quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Neida Rocha (Lançamento de Livro em Pomerode)


Quem trouxer 3 livros infantis usados em bom estado, ganha um exemplar do livro!

Doaremos os livros arrecadados para a APAE. 

Neida Rocha, IWA
(47)99227-2202
Pomerode/SC

www.neidarocha.com.br

Fonte: A Escritora

domingo, 11 de novembro de 2018

Trova 328 - Prof. Garcia (Caicó/RN)

  

Malba Tahan (Uma Fábula sobre a Fábula)


(Lenda Oriental)

Allahur Akbar! Allahur Akbar! (Deus é grande! Deus é grande!)

Quando Deus criou a mulher criou também a Fantasia. Um dia a Verdade resolveu visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid.

Envoltas as lindas formas num véu claro e transparente, foi ela bater à porta do rico palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas. Ao ver aquela formosa mulher, quase nua, o chefe dos guardas perguntou-lhe:

— Quem és?

— Sou a Verdade! — respondeu ela, com voz firme — Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, o Cheique do Islã!

O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, apressou-se em levar a nova ao grão-vizir:

— Senhor, — disse, inclinando-se humilde, — uma mulher desconhecida, quase nua, quer falar ao nosso soberano, o sultão Harun Al-Raschid, Príncipe dos Crentes.

— Como se chama?

— Chama-se a Verdade!

— A Verdade! — exclamou o grão-vizir, subitamente assaltado de grande espanto. — A Verdade quer penetrar neste palácio! Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Verdade aqui entrasse? A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que uma mulher nua, despudorada, não entra aqui!

Voltou o chefe dos guardas com o recado do grão-vizir e disse à Verdade:

— Não podes entrar, minha filha. A tua nudez iria ofender o nosso Califa. Com esses ares impudicos não poderás ir à presença do Príncipe dos Crentes, o nosso glorioso sultão Harun Al-Raschid. Volta, pois, pelos caminhos de Allah!

Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou muito triste a Verdade, e afastou-se lentamente do grande palácio do magnânimo sultão Harun Al-Raschid, cujas portas se lhe fecharam à diáfana formosura!

Mas...

Allahur Akbar! Allahur Akbar!

Quando Deus criou a mulher, criou também a Obstinação. E a Verdade continuou a alimentar o propósito de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid...

Cobriu as peregrinas formas de um couro grosseiro como os que usam os pastores e foi novamente bater à porta do suntuoso palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas.

Ao ver aquela formosa mulher grosseiramente vestida com peles, o chefe dos guardas perguntou-lhe:

— Quem és?

— Sou a Acusação! — respondeu ela, em tom severo. — Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid. Comendador dos Crentes.

O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu a entender-se com o grão-vizir.

— Senhor — disse, inclinando-se humilde, — uma mulher desconhecida, o corpo envolto em grosseiras peles, deseja falar ao nosso soberano, o sultão Harun Al-Raschid.

— Como se chama?

— A Acusação!

— A Acusação? — repetiu o grão-vizir, aterrorizado. — A Acusação quer entrar neste palácio? Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Acusação aqui entrasse! A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que não, não pode entrar! Dize-lhe que uma mulher, sob as vestes grosseiras de um zagal, não pode falar ao Califa, nosso amo e senhor!

Voltou o chefe dos guardas com a proibição do grão-vizir e disse à Verdade.

— Não podes entrar, minha filha. Com essas vestes grosseiras, próprias de um beduíno rude e pobre, não poderás falar ao nosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid. Volta, pois, em paz, pelos caminhos de Allah!

Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou ainda mais triste a Verdade e afastou-se vagarosamente do grande palácio do poderoso Harun Al-Raschid, cuja cúpula cintilava aos últimos clarões do sol poente.

Mas...

Allahur Akbar! Allahur Akbar!

Quando Deus criou a mulher, criou também o Capricho.

E a Verdade entrou-se do vivo desejo de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid.

Vestiu-se com riquíssimos trajos, cobriu-se com joias e adornos, envolveu o rosto em um manto diáfano de seda e foi bater à porta do palácio em que vivia o glorioso senhor dos Árabes.

Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta lua do mês de Ramadã, o chefe dos guardas perguntou-lhe:

— Quem és?

— Sou a Fábula — respondeu ela, em tom meigo e mavioso. — Quero falar ao vosso amo e senhor, o generoso sultão Harun Al-Raschid, Emir dos Árabes!

O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu, radiante, a falar com o grão-vizir:

— Senhor! — disse, inclinando-se, humilde — Uma linda e encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicita audiência de nosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, Emir dos Crentes.

— Como se chama?

— Chama-se a Fábula!

— A Fábula! — exclamou o grão-vizir, cheio de alegria. — A Fábula quer entrar neste palácio! Allah seja louvado! Que entre! Bem-vinda seja a encantadora Fábula: Cem formosas escravas irão recebê-la com flores e perfumes. Quero que a Fábula tenha, neste palácio, o acolhimento digno de uma verdadeira rainha!

E abertas de par em par as portas do grande palácio de Bagdá, a formosa peregrina entrou.

E foi assim, sob o aspecto de Fábula, que a Verdade conseguiu aparecer ao poderoso califa de Bagdá, o sultão Harun Al-Raschid, Vigário de Allah e senhor do grande império muçulmano!

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

Vicentina de Carvalho (Poemas Recolhidos)


Soneto X

Houve quem me dissesse: - "A minha vida 
depende só do que você me der". 
E eu, femininamente distraída, 
nada lhe dei, nem prometi sequer.

De outros ouvi a frase sempre ouvida: 
"Meu amor será seu quando quiser..." 
Mas deixaram apenas comovida 
minha tola vaidade de mulher.

Depois, mais tarde, alguém, indiferente, 
passou por mim, e, desvairada e cega, 
segui em seu encalço, inutilmente...

E, desde então, minha alma não sossega 
e vive da esperança, tão somente, 
de um pouco desse amor que ele me nega.

Soneto XIII

Um dia em minha vida tu surgiste, 
trazendo a luz do sol em teu olhar. 
Sorriu-me a vida, porque me sorriste, 
apagaste com risos meu pesar.

Eu, que vivera uma existência triste 
e tinha os olhos gastos de chorar, 
ia já ser feliz quando partiste, 
e para nunca, nunca mais voltar!

Foi-se contigo todo o meu prazer! 
Ao deixar-me, levaste o que trouxeste: 
toda a minha alegria de viver,

toda a felicidade que me deste. 
Se eu tinha de tão cedo te perder, 
por que tão tarde, ó meu amor, vieste?

Soneto XXII

Sorvi sequiosa a taça do prazer,
só lhe sentindo o bem que me sabia,
sem a preocupação de conhecer
o mal que ela, esgotada, me traria.

Desprezando o futuro, quis viver
o presente, que alegre me sorria,
sem nunca imaginar e sem prever
quanto custa um momento de alegria.

Logo, porém, o travo da amargura
mudou-me o riso em lágrima dorida,
pois a felicidade não perdura.

Só então percebi, arrependida,
quanto, por um instante de ventura,
hei de figar pagando toda a vida.

Soneto

Sinto que já se vem aproximando 
O gélido crepúsculo da vida; 
Extingue-se-me a vista amortecida,
E os meus cabelos já se vão prateando.

Despovoaram-me a alma dolorida
Os sonhos que sonhei de quando em quando,
Oásis na existência mal vivida,
De onde vai a esperança se afastando.

Quando o longo passado rememoro, 
Sangra-me o coração cruel saudade;
Porém, desse passado, que deploro,

Menos que as horas de felicidade, 
De tudo o que perdi, o que mais choro 
É ter perdido a minha mocidade.

Soneto

Já fui moça e também já fui amada
Como as outras mulheres hoje o são.
Vi abrirem-se rosas pela estrada
Por onde me levava o coração.

Gozei o encanto azul da madrugada
Dos lindos sonhos que sonhava então.
O amor que a muitas outras não deu nada,
Pôs a felicidade em minha mão.

Pelos bens que auferi, bendigo a vida,
Pois seria injustiça me queixar;
E recordo, serena e agradecida.

Tudo o que me foi dado desfrutar
Nessa longa existência bem vivida
Que só teve um defeito - foi passar.
__________________________________________

Vicentina Mesquita de Carvalho, nasceu em 24/6/1890 em Santos/SP e faleceu na Capital em 1/4/1954. Filha do grande poeta Vicente de Carvalho, herdou as qualidades de talento de seu ilustre pai, mas conseguiu em seus versos uma nobre originalidade, não tendo os reflexos da voz paterna.

Professora diplomada pela Escola Normal da Praça da República, poetisa e tradutora.

Possuidora de grande cultura, Vicentina de Carvalho destacou-se no magistério paulista como uma das mais brilhantes educadoras da sua época. Deixou um livro de versos, "Sonhos Mortos", publicado em 1950, onde se destaca a perfeição de seus sonetos. Esse livro foi prefaciado por Agripino Griecco, tendo merecido do conceituado crítico literário expressões como esta: "E agora é um rebento do varão glorioso que nos surge com um punhado de sonetos. Quem? Pode ser filha de rei e reinar também nos espíritos, revogando a lei sálica nos domínios da poesia? Encontra-se aqui, sem dúvida, uma brasileira cuja arte poética não está em Horácio ou Boileau: está em sua alma."
(www.novomilenio.inf.br/cultura/cult032.htm)

Nilto Maciel (Da Noite Para o Dia)


Como a vida da gente muda da noite para o dia! Ainda ontem tudo ao meu redor parecia sem vida, tudo monotonamente normal, quando me assaltou novamente a ideia de remexer papéis velhos, um dos meus passatempos prediletos. Assim consigo também trazer de volta o passado. Às vezes é uma foto, outras uma carta, outras ainda uma poesia que rabisquei na adolescência. Mas desta vez não foi nada disso. Encontrei uma novela. Datilografada, ilustrada, com capa e tudo. Como um livro impresso. No fundo de uma gaveta, enrolada noutras folhas de papel. Retirei o invólucro e fui me lembrando da história daquela história. Era uma novela amorosa escrita por César e ilustrada por mim. Datilografamos, fizemos uma bonita capa,  grampeamos as folhas. Nesse tempo vivíamos de sonhar. Éramos estudantes do mesmo colégio, colegas de grêmio literário, de leituras, discussões acaloradas. Líamos Dumas, Camilo, Herculano, Alencar.

César sonhava com a glória literária. Ser membro da Academia, escritor de fama, ganhador do Nobel. Já meu sonho se contentava com as migalhas da simples publicação. Eu não tinha vocação literária, embora rabiscasse versos vez por outra. Aprazia-me mesmo era desenhar. Daí a capa do futuro livro de César e algumas ilustrações ao texto.

Iríamos trabalhar juntos sempre: ele como escritor de novelas, eu como ilustrador de seus livros. E nunca ele aceitaria outro ilustrador, nem eu ilustraria livro de outro escritor. Pacto de sangue, de morte, de amizade eterna.

Planejamos publicar a primeira novela. Cinquenta mil exemplares na primeira edição. Ele havia sonhado com cem mil, até que o convenci a ser mais modesto. Iríamos ficar famosos da noite para o dia: ele como escritor, eu como ilustrador. Lidos e vistos em todo o Brasil. E depois em todo o mundo. Inclusive na China. Falaríamos com Mao Tse-tung. A juventude chinesa precisava de ler textos mais do coração e não só o livrinho vermelho.

Enviamos cópias para algumas editoras. As respostas vieram desalentadoras: “livro pouco comercial”, dizia uma; “muitas obras no prelo nos impedem de dar publicação à sua novela”, esclarecia outra; “não estamos no momento publicando novelas”, explicava uma terceira; “livro não aprovado pelo nosso Conselho de Leitores”, resumia uma quarta. E outras do mesmo teor.

Algumas editoras nem sequer deram resposta. Fizemos então novos planos maravilhosos. Não iríamos precisar das editoras. Pouparíamos. Deixaríamos de fumar, beber, merendar, ir ao cinema, etc. César iria trabalhar e depositaria a maior parte do ordenado na caderneta. Meu pai não me deixava trabalhar, mas, em compensação, eu exigiria mesada mais gorda. Dela tiraria apenas o suficiente para os gastos mais necessários e depositaria o restante na poupança. Quando já tivéssemos alguns milhões, mandaríamos publicar a novela numa gráfica qualquer. Venderíamos os livros nas escolas, nos cinemas, nas ruas, lojas, repartições públicas, nos bares. Viajaríamos pelo interior. Com o dinheiro da venda mandaríamos publicar o segundo livro. Mas quando teríamos os milhões suficientes para pagar a primeira impressão? A esta pergunta perdemos o entusiasmo.

Concluídos os estudos secundários, César deixou de estudar e arranjou emprego. Não para juntar dinheiro, mas para sobreviver. Seu pai mergulhava cada vez mais na pobreza. E não falamos mais na novela. Nossas relações pouco a pouco iam perdendo o calor, nossos encontros se distanciando no tempo. E, quando nos víamos por acaso, apenas nos cumprimentávamos.

Esqueci logo os desenhos, as ilustrações, os sonhos. E fui estudar Direito.

Um ano depois meu pai morreu. Estranhamente assassinado. Crime horrível – latrocínio. Morto e roubado. Encontraram seu corpo numa valeta a poucos quilômetros do centro da cidade. Um tiro no crânio. E o carro estacionado à margem da estrada. Nenhum vestígio do assassino.

Meu pai nunca teve inimigos, dava-se bem com todo mundo e quase toda a cidade o conhecia. Nós, os filhos, estudávamos nos melhores colégios. Minha mãe o adorava. A polícia ficou tonta. Não sabia a quem atribuir o crime. Nenhum indício, nenhum suspeito.

No dia de sua morte havia sacado uma grande soma em dinheiro ao banco, como sempre fazia. E seus negócios ele mesmo os resolvia. Deixava o carro estacionado nas proximidades do banco, levava uma pasta, um revólver e só. Não queria guarda-costas.

A polícia concluiu finalmente que o assassino só podia ser um assaltante comum. Foram então presos todos os ladrões e suspeitos de terem cometido crimes contra o patrimônio. A nenhum deles, porém, foi possível imputar o latrocínio.

Folheei a novela e por um bom tempo me deixei a cismar. Pensei no meu passado, em César, e quase não consegui dormir. E decidi que hoje procuraria saber onde vivia César. Queria recordar com ele todos os nossos sonhos, todos os nossos sofrimentos, ele por ter tido suas ilusões tão duramente mortas, eu por ter perdido meu pai de maneira tão bárbara e misteriosa. Como pudemos nos esquecer tão depressa, apesar daquela amizade quase apaixonada que nutríamos um pelo outro? Como somos fracos, débeis, inconstantes!

Onde, porém, eu poderia encontrá-lo? Detrás de um balcão de loja? Na cozinha de um restaurante? Ou teria conseguido realizar seus sonhos literários, pelo menos os mais modestos? Ou teria ido embora para bem longe? Talvez até estivesse morto.

Não, não adiantava fazer suposições. Mais fácil procurar seu nome na lista telefônica. Se não estivesse tão mal, certamente teria um telefone. Tentei lembrar-me de seu nome completo. Lamentei mais uma vez a fragilidade do coração humano. Como pude esquecer tão facilmente o nome de meu melhor amigo? Ainda bem que a novela se encontrava comigo, e, com toda certeza, nela estaria o nome inteiro, um sobrenome pelo menos. Corri os olhos e li: César Augusto dos Reis, no alto da capa.

Hoje disquei o número e atendeu uma voz grossa e autoritária. “Quero falar com o novelista César Augusto dos Reis”. A voz do outro lado se mostrou aborrecida: “Não existe nenhum novelista aqui. Quer deixar de brincadeiras, meu senhor.” Apresentei-me. Ele se fez de esquecido ou de fato não se lembrava mais de mim. Depois se disse surpreso: “Não sabia que você ainda era gente”. Conversamos mais. Quis saber de minha vida. “Sou advogado. E você?” Falou em barzinho, dificuldades, “aturando esses bêbados dia e noite”. Pedi o endereço.

O barzinho chama-se “Restaurant Carnivorous”, serve pratos da cozinha internacional, recebe a fina-flor da sociedade e é irmão de outros dois e de um prédio de doze andares.

César mandou dizer por um moleque de recados que não podia receber ninguém. Em um minuto deveria sair para compromisso inadiável. Não dei ouvidos ao recado e entrei no escritório. E só saí de lá uma hora depois.

Falamos da morte de meu pai, de comércio, de literatura e artes plásticas, do passado, de nossos sonhos, mil coisas, tudo de forma desordenada, como se quiséssemos falar todas as palavras ao mesmo tempo. Contou-me sua história: antes de adquirir o primeiro barzinho, trabalhou como garçom, copeiro e cozinheiro. O barzinho rendia alguma coisa, até se transformar num bar de verdade. O bar virou restaurante. “Tudo porque sou muito controlado e trabalhador. Não ando esbanjando dinheiro”.

Surpreendi-me diante de tanta riqueza e fui para casa desconfiado não sei de quê. E todo o passado voltou à tona, aos borbotões, feito vômito. Relembrei todas as nossas conversas, todos os sonhos, todos os projetos, a novela, tudo. E me interroguei com mil perguntas: por que César não publicou o livro, não virou o escritor que desejava ser, se tem tanto dinheiro? E se havia dito numa de nossas últimas conversas que nada o impediria de se transformar num grande homem, famoso, reconhecido por todos! Como um barzinho podia ter se transformado num restaurante daqueles em tão pouco tempo?

Não durou muito aquele vômito e voltei ao restaurante. Da porta gritei: “César, você matou o meu pai”. Ele quis explodir, gritar, correr, agredir. Apontei-lhe o revólver e ele se rendeu.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

sábado, 10 de novembro de 2018

Trova 327 - Olympio Coutinho (Belo Horizonte/MG)


Mário Quintana (Os Sonetos e Doutor Quejando)


Lili, ao revelar-me um dia umas composições suas - onde os lugares-comuns esvoaçavam com toda a novidade da inocência muito se espantou do meu espanto pelo fato de que os títulos nada tinham a ver com o texto. Explicou-me que um dos sonetos se chamava João porque era o nome de um seu amiguinho de escola e o mesmo se dava com o soneto chamado Sofia.

Ora, ora, me quedei pensando, não estaria ela com a razão? Já teve a poesia o seu período temático, como a pintura. Daí, hoje, a desnecessidade de títulos, nas telas como nos poemas. O que, cronologicamente, não é bem assim, tanto que Camões e Petrarca se limitavam a numerar os seus sonetos, nem é de crer que assim fizessem simplesmente por falta de imaginação. Deixemos, pois, de generalizações, que levam sempre a becos sem saída. E, em troca, este "soneto" que improvisei naqueles tempos para Lili, quando a sua mania, além de chamar tudo de soneto, era meter, em tudo, a palavra "POIS":

O Doutor Quejando, pois, vinha andando andando, quando encontrou o carneirinho Mé em companhia da vaquinha Bu.

- Olé! Como vais tu? - disseram-lhe os dois.

O Doutor Quejando continuou andando, mudo.

Mas na cerca havia um urubu. Mudo.

E o Doutor Quejando e o urubu trocaram um horrivel olhar de simpatia.

E o pior de tudo é que se acabou a história... Se acabou a história e a vida continua.

Fonte:
Mário Quintana. Caderno H. Porto Alegre/RS: Globo, 1973.

Zeferino Brazil (Poemas Recolhidos)


ASPIRAÇÃO

Ser pedra! não sofrer nem amar, ó que ventura!
Excelsa aspiração que merece um poema!
Ser pedra e ter da pedra a consistência dura
Que resiste do tempo à corrupção extrema.

Alma! sopro de luz que me anima e depura,
Antes tu fosses pedra: um diamante, uma gema
Não te seria a vida esta insana loucura
Do eterno aspirar à perfeição suprema!

Homem, não mudarás! És homem, serás homem;
Lama vil animada, onde vive e onde medra
A venenosa flor das mágoas que consomem.

Homem sempre serás, imperfeito e corruto...
E melhor é ser pedra e viver como pedra
Que ser homem assim e viver como um bruto!..

DE LEVE BEIJO AS SUAS MÃOS PEQUENAS

De leve, beijo as suas mãos pequenas, 
Alvas, de neve, e, logo, um doce, um breve, 
Fino rubor lhe tinge a face, apenas
De leve beijo as suas mãos de neve.

Ela vive entre lírios e açucenas, 
E o vento a beija, e, corno o vento, deve 
Ser o meu beijo em suas mãos serenas, 
— Tão leve o beijo, como o vento é leve.. . 

Que essa divina flor, que é tão suave, 
Ama o que é leve, como um leve adejo 
De vento ou como um garganteio de ave, 

E já me basta, para meu tormento, 
Saber que o vento a beija, e que o meu beijo 
Nunca será tão leve como o vento.. .

ZELOS

De leve, beijo as suas mãos pequenas,
alvas, de neve, e, logo, um doce, um breve,
fino rubor lhe tinge a face, apenas
de leve beijo as suas mãos de neve.

Ela vive entre lírios e açucenas,
e o vento a beija, e, corno o vento, deve
ser o meu beijo em suas mãos serenas,
— Tão leve o beijo, como o vento é leve.. .

Que essa divina flor, que é tão suave,
ama o que é leve, como um leve adejo
de vento ou como um garganteio de ave,

e já me basta, para meu tormento,
saber que o vento a beija, e que o meu beijo
nunca será tão leve como o vento.. .

FORMOSURA IDEAL

Esta visão que em sonhos me aparece,
e que, mesmo sonhando, me resiste,
por que foge, por que desaparece,
mal eu desperto, apaixonado e triste?

Por que, branca e formosa resplandece
como uma estrela, e a torturar-me insiste,
se é certo, - oh! dor cruel que me enlouquece!...
que ela somente no meu sonho existe?

Cheia de luz e de pureza e graça,
- alma de flor e coração de estrela -
ela, sorrindo, nos meus sonhos passa...

E sempre a mesma angústia dolorida:
branca e formosa dentro d´alma tê-la,
sem poder dar-lhe forma e dar-lhe vida!

NA ALCOVA

Formosa e diáfana visão de lenda,
Elsa, subindo o leito de escarlata,
o cortinado cerra, e a rir, desvenda
a alva nudez escultural e exata.

Antes que o fino laço se desprenda,
a loura coma em ondas se desata,
e a moça esconde em flóculos de renda
o régio corpo modelado em prata.

Doce perfume o colo lhe embalsama...
Abrindo as asas de rubi e lhama,
olha-a, entre flores, um cupido louro...

Cerra, afinal, as pálpebras de neve,
e o sonho desce, e estende, leve, leve,
sobre o leito o estrelado manto de ouro...

Zeferino Brazil (1870 - 1942) Príncipe dos Poetas Rio-Grandenses

Zeferino Antônio de Souza Brazil, filho de João Antonio de Souza e de Fausta Carolina de Souza, nasceu em 24 de abril de 1870, no distrito ribeirinho de Taquari, em Porto Grande. 

Em 1879, mudou-se para a capital provincial do Rio Grande do Sul, onde exerceu diversas funções até ingressar, em 1889, através de concurso, no funcionalismo público, como oficial do Tesouro do Estado. 

Em 1890, conheceu Celina Ribeiro Totta, com quem se casou em 1891. 

Zeferino Brazil firmou-se como cronista, romancista, dramaturgo, crítico, mas a sua marca pessoal, como artista da palavra, foi a poesia, obtendo, por isso, o epíteto “Príncipe dos poetas rio-grandenses”, devido à sua expressiva e notória sensibilidade poética: “romancista de vastos recursos, prosador imaginoso e ágil, lidador da imprensa diária, humorista fino e mordaz, orador elegante e fluente, tudo isto Zeferino Brazil conseguiu ser! O Poeta, porém, constituía o feitio integral daquele espírito cheio de harmonias e de doçuras infindas!”, conforme Augusto de Carvalho. 

Colaborou com vários jornais usando, além do nome Zeferino Brazil, vários pseudônimos, dentre eles, conforme o próprio autor: Nilo Castanheira, João Simplício, Lúcifer, Til, João da Ega, Eça de Oliveira, Brás Patife Júnior, José dos Cantinhos, Zézinho, Tic, Tac e Diabo Coxo, Celino Délio, Vasco de Montarroyos, Phoebus de Montalvão e Diávolo e Luiz Deniz. 

Membro e posteriormente Presidente de Honra da Academia Literária Sul-rio-grandense e da Academia Riograndense de Letras; 

Membro da comissão de lexicografia da Academia de Letras do Rio Grande do Sul; 

Presidente de honra do Cenáculo Literário Porto Alegrense; 

Presidente de Honra da Casa do Intelectual Brasileiro; 

Foi homenageado por um grupo de jovens de Santiago do Boqueirão, que fundou, em 02/09/1919, um grêmio denominado Grêmio Literário Zeferino Brazil, e também por um grupo de jovens de Encruzilhada, que criou, em 15/05/1942, um centro de cultura denominado Ateneu Zeferino Brazil. 

O poeta Zeferino Brazil, o príncipe dos poetas rio-grandenses, faleceu em 03 de outubro de 1942, em Porto Alegre, à margem do Guaíba, deixando a esposa, filhos, netos e bisnetos, além de uma legião de amigos que manifestaram sua dor e reconhecimento numa série de artigos publicados na imprensa local. 

Fragmento, extraído do Diário Carioca, de 04/10/1942: “Ele viveu para as letras. O cargo público que exercera mal lhe dava o pão de cada dia. Todo o seu tempo, os seus dias, os seus minutos eram voltados para as coisas do espírito. Com elas viveu e com elas morreu.”

Começou a escrever muito cedo, deixando publicadas nove obras poéticas, dois romances e um livro de crônicas, na seguinte ordem:

Alegros e surdinas (versos dos 15 anos) – 1891;
Traços cor de rosa (verso) – 1892;
Comédia da Vida – 1896-1897;
Juca, o letrado (estudo da psicologia mórbida) – 1900;
Vovó musa – 1903;
Visão do ópio – 1906;
Torre de marfim – 1910,;
Comédia da vida. Versos alegres para gente triste. 2ª série. – 1914;
O meio: psicofisiologia do alcoolismo – 1922;
Teias do luar – 1924;
Bohemia da Penna (prosa velha) – 1932;
Alma gaúcha – 1935;

Como dramaturgo, escreveu a comédia Ester, (apresentada pela Sociedade dramática de Porto Alegre, no Teatro São Pedro em 21 de julho de 1902); o drama O outro, em 1904, (também apresentada pela Sociedade Dramática) e a comédia de um ato O Homem de gênio, encenada, mas sem menção da companhia teatral. 

Fonte:
Pontífice Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Contos e Lendas do Mundo (Portugal: Lenda do Bolo-Rei)


O Bolo-Rei é o bolo tradicional natalício português por excelência. A sua origem tem várias raízes. A ideia de um bolo misturado com fruta cristalizada terá surgido na corte do rei Luís XIV, em França, que com os tempos foi-se espalhando pelo resto da Europa. Chegada a Portugal a receita foi adaptada, adquiriu a forma de coroa com que é vendido atualmente e passou a ser associado à época natalícia. A introdução da fava vem no tempo dos Romanos, em que era costume durante as festividades eleger-se o “rei da festa” colocando-se uma fava num bolo. Já a introdução do brinde como recompensa (ficando o perdedor com a fava) é uma criação portuguesa, embora este costume tenha sido, à uns anos, passado a ser proibido por apresentar risco de sufoco, sobretudo para as crianças.

Apesar do nome “Bolo-Rei” não vir, como erroneamente se pensa, do dia de Reis – a nomenclatura “Rei” é apenas uma indicação da riqueza de ingredientes com que é feito, tornando-o no bolo “maior” das festividades – isso não impediu a tradição oral de o associar aos Reis Magos, havendo inclusive uma lenda portuguesa que lhes atribui a origem do bolo e lhe dá simbologia. Segue-se a história:

Conta a lenda que num país distante viviam três homens sábios que analisavam e estudavam as estrelas e o céu. Estes homens sábios chamavam-se Gaspar, Melchior e Baltazar, a que a tradição deu a nomeação de “três Reis Magos”.

Numa noite, ao analisarem o céu, viram uma nova estrela, muito mais brilhante que as restantes, que se movia pelo céu, e interpretaram-na como um aviso de que o filho de Deus nascera. Resolvidos a segui-la, levaram consigo três presentes: incenso; ouro e mirra, para poder presentear o Messias recém nascido.

Chegados à cidade de Belém, já perto da gruta onde estava o menino Jesus, os Reis Magos depararam-se com um dilema: Qual deles teria o privilégio de oferecer  primeiro o seu presente? Esta pergunta gerou a discussão entre os três.

Um artesão que por ali passava ouviu a conversa e propôs uma solução para o problema de maneira a ficarem todos satisfeitos. Pediu à sua mulher que fizesse um bolo e que na massa colocasse uma fava. Mas a mulher não se limitou a fazer um simples bolos e arranjou forma de ali representar os presentes que os três homens levavam. Desta forma fez um bolo cuja côdea dourada simbolizava o ouro, as frutas cristalizadas simbolizavam a mirra e o açúcar de polvilhar simbolizava o incenso. Depois de cozido o bolo foi repartido em três partes e aquele a quem saiu a fava foi efetivamente o primeiro a oferecer os presentes ao menino Jesus.

Fonte:
Contos de Natal Portugueses: Coletânea de histórias, textos, lendas e poemas. 
Disponível em: http://www.luso-livros.net/

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Antonio Brás Constante (Vivendo entre Duas Amantes)


Tenho duas amantes. O sonho da maioria dos homens. Elas são caprichosas e cada uma possui os seus encantos. Uma delas está comigo agora, incendiando minha imaginação, enquanto a outra espera deitada ao meu lado, para que eu descubra os seus segredos.

A primeira é a escrita, que revela o que há de melhor e de pior em mim. Somos ligados por seus símbolos e simbolismos, comungando uma paixão a cada novo texto. Invento os seus caminhos, deixando neles a minha marca de autor. Ela me seduz como obra; é mais uma amiga querida, do que uma amante desejada.

A escrita é uma parte de mim, a transformação de pensamentos abstratos em formas concretas, traduzindo as percepções que me cercam em realidades impressas e expostas ao mundo através de revistas, e-mails, sites e jornais. O desejo de escrever é uma luz que invade a janela onde se encontra minha alma. Por meio dela, cada pensamento pode virar uma nova frase, um novo parágrafo, uma nova narrativa, um novo começo. Somos parceiros no mais íntimo dos momentos de um ser humano: o momento da criação.

Minha outra amante é a leitura, repousando em forma de livro ao lado de minha cama, sempre cheia de conhecimentos, aflorando emoções, alterando minhas compreensões. Ela chega até mim repleta de saborosas ideias ou de amargos dissabores. Algumas vezes me enfeitiçando com seu fascinante enredo, outras vezes me decepcionando com a cruel realidade retratada no seio de suas palavras. Quando nos encontramos, passamos a pertencer a um só momento localizado nas páginas de suas histórias. Vamos para todos os lugares juntos. Quando me percebo já estou viajando com meus olhos por seu delicioso corpo de mistérios. Quem nos vê ao longe, não nota o gozo advindo dos momentos que ela me proporciona. A cada leitura, um novo romance se inicia, uma incrível aventura nasce do nada, com personagens que vão surgindo e dançando em irresistíveis cenas vistas apenas por mim. Irrefutável. 

Ao ler, acabo me envolvendo nos encantos de uma amante escrita por outro autor. Da mesma forma que vejo minhas composições deleitando os olhares de outros que delas se aproximam. Orgias literárias, nas quais essas amantes textuais se tornam fontes de prazer indelével a vários leitores e escritores que a elas se entregam voraz e totalmente.

As duas são faces distintas de uma só moeda, almas gêmeas de uma mesma concepção. Filhas da mãe inspiração, que entra de forma imperceptível nos recantos da mente (frágil mente), inicialmente em busca de mãos onde possa se expressar. Mãos que vão aos poucos tecendo e nutrindo as formas desejadas por ela para suas criações. A inspiração é deusa sussurrante e maliciosa, que envolve e se desenvolve no cérebro do escritor, se desnudando em toda sua glória como singela história, fabricando para si um novo corpo que possa vestir, recheado de letras, para então seguir cumprindo seus desígnios de amante, saindo das mãos dos escritores, para enfim cair nos braços de inúmeros leitores.

Fonte:
Constante, Antonio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

Caldeirão Poético XV

ESTAÇÕES

Nós, duas almas que desabrochavam,
começavam viver os bons momentos,
cheios de grande amor, encantamentos
que em arroubos de ardor se enamoravam.

Braços, que ao sabor, já se entrelaçavam,
seguindo, os corações, os batimentos,
a mesma comunhão de sentimentos,
desnudos, nossos corpos que se amavam.

Primaveras, outonos... Estações,
velhos costumes,, sem as emoções
dia a dia a verdade que me ensina.

Nosso futuro, que nos corações,
se anunciavam, cheios de paixões.
agoniza no chão desta rotina.


 
A MÃO...
        Ao Dr. Claudino dos Santos

Tantas vezes, bem sei, e eu ouço, quando cismo,
Meu coração bater depressa, não o nego,
Mão invisível tem-me salvo, a mim, um cego,
Rolando como se rolasse num abismo...

Babilônias de horror, e montanhas de lodo,
E torres de Babel, sangrentas como lava,
Eu mais afoito do que um jovem deus, mais doido,
Eu passei sem saber por onde é que passava...

Sorrindo pelo ar, miraculosa e a esmo,
Tudo pôde abrandar, os ventos, e a mim mesmo,
Por um prodígio enfim que eu não explico, ateus!

...Donde veio essa mão nervosa, que me arranca
Dos abismos do mal, a Mão ideal e branca,
A mim, que nem sequer mais acredito em Deus?...




E É QUASE DIA...
Glosando Wanda de Paula Mourthé

MOTE:
No talvez da quase noite,
quando a espera me angustia,
horas batem feito açoite...
Tu não vens...e é quase dia...


GLOSA:
No talvez da quase noite,
eu me perco em devaneios
e temo que a dor se amoite
e se instale nos meus seios!

O pranto cai devagar
quando a espera me angustia,
sentindo – não vais chegar,
morre em mim toda a alegria!

A tristeza faz pernoite
no meu pobre coração...
horas batem feito açoite...
sem nenhuma compaixão!

Quando a solidão aumenta,
a noite perde a magia
e minha alma não aguenta,
tu não vens...e é quase dia...



ÚNICA

Fruto efêmero e hostil de um efêmero gozo,
Esta vida que arrasto, efêmera e improfícua,
Sinto-a embalde, e, debalde, entre pasmado e ansioso,
Sondo-a, palpo-a, examino-a, estudo-a, verifico-a.

E tudo quanto empreende o espírito curioso,
E tudo quanto apreende a análise perspícua,
É o falso, é o vão, é o nulo, é o mau, é o pernicioso,
Por menos que a razão seja perversa ou iníqua.

Logo, por que pensar? Logo, por que no Sonho
Não havemos deixar correr a vida fátua,
Obrigando o Destino a ser calmo e risonho?

Por que só não amar: É culpa? Eis-me: resgato-a
Agora que a teus pés todo o meu ser deponho,
Como um vil pedestal à tua excelsa estátua!. . .



BERIMBAU

Ariranha arranha a presa,
Aranha tricota a teia,
Faz charme a moça bonita,
Faz crochê a mulher feia.

Quando o dia se apressa
O homem acende a candeia,
A pecadora confessa,
O padre impõe muita reza:
O fogo dela incendeia.

Araruta faz polvilho
E dele faz-se o mingau,
Vaca dá leite ao novilho
No cocho lambendo o sal.

Surubim sobe a represa
Indo em busca do canal,
Mulher de saia rodada,
Não dança o mineiro-pau.

O coração machucado
Bate em ritmo anormal,
O homem que é afobado
Come cru e passa mal.

Eu fico aqui matutando
Para encontrar um final,
Nesses versos que eu te fiz
Sob o som do berimbau.



SONETOS COMO UM PÁSSARO

Criar sonetos como um pássaro
Que canta por cantar e abrir o bico
Ou porque tendo já descido ao tártaro
Subiste e sem culpa nem um tico.

E então ao leitor lembrar Camões
Sem poderem dizer que o imitas
Pela forma pouco lusa que compões
Ou pelos dois olhos com que fitas

A tua realidade que é só tua
Sendo outrossim de toda gente
Que persegue a palavra que flutua

Ao léu, por aí, no espelho astral
Onde o mundo então seja diferente
Mas nunca invertidos bem e mal...




O BIBLIOTECÁRIO BÊBADO

Parece que
do topo das estantes
vocês ficam olhando para mim...
O que querem que eu faça?
Que abra as mãos
e tente
segurar a Poesia?
Eu a sinto
 invisível pelo ar...

E se eu erguesse as mãos
por um acaso
tentando capturar
toda a Poesia
latente
na atmosfera desta sala
e condensasse
os versos em absinto,
eu viveria embriagado deles?

Isabel Furini (Mudando a Perspectiva)


Em literatura há uma técnica chamada “mudança de perspectiva”. Os personagens falam, ou pensam, ou algo acontece, e o leitor descobre uma nova perspectiva de um assunto. É muito interessante descobrir que isso é simplesmente uma maneira de levar a visão do homem para o universo literário. Muitas vezes nossa perspectiva sobre um assunto muda ao conhecer algum fato, ou descobrimos que sustentávamos uma visão errada sobre uma pessoa.

Lamentavelmente o ser humano não tem raio-x para ver os pensamentos dos outros. Somos facilmente enganados pelas aparências. Um rosto bondoso pode ser na realidade uma máscara para não despertar suspeitas. O sorriso pode esconder raiva ou ressentimento. O olhar doce pode não ser espontâneo, pode ser resultado de algum curso de teatro. A elegância nas palavras, às vezes, nasce da artimanha de seduzir os outros. Além disso, temos os chamados “sintagmas significativos”, ou seja, palavras ou frases que podem ser usadas com a finalidade de manipular os outros.

Em um mundo no qual a imagem impera, nunca sabemos se quando alguém fala de seu passado está revelando uma verdade escondida, ou está criando uma imagem para ser aceito, amado ou aplaudido. Só conseguimos ver a cor da pele, dos olhos, dos cabelos, não conseguimos saber quais são as intenções das pessoas.

E, como nada é tão horrível ao mundo contemporâneo quanto à honestidade, usamos máscaras. Se as coisas continuarem desse jeito, corremos o perigo de chegar em casa depois de uma festa na qual mentimos - desculpem, fomos gentis e dissemos que os doces dos quais não gostamos eram maravilhosos, excelente o livro recém lançado por algum autor que desprezamos em silêncio, além de elogiar o horrível vestido da anfitriã, chegar em casa e caminhar até o espelho para tirar a máscara e descobrir que sob essa máscara há outra. Tirar a segunda máscara e descobrir mais uma... Ao final, quem poderá dizer que conhece o seu rosto autêntico?