segunda-feira, 10 de junho de 2019

Carlos Drummond de Andrade (Na Delegacia)


— Madame, queira comparecer com urgência ao Distrito. Seu filho está detido aqui.

— Como? O senhor ligou errado. Meu filho detido? Meu filho vive há seis meses na Bélgica, estudando física.

— E a senhora só tem esse?

— Bom, tenho também o Caçulinha, de dez anos.

— Pois é o Caçulinha.

— O senhor está brincando comigo. Não acho graça nenhuma. Então um menino de dez anos foi parar na polícia?

— Madame vem aqui e nós explicamos.

A senhora correu ao Distrito, apavorada. Lá estava o Caçulinha, cabeça baixa, silencioso.

— Meu filho, mas você não foi ao colégio? Que foi que aconteceu?

Não se mostrou inclinado a responder.

— Que foi que meu filho fez, seu comissário? Ele roubou? Ele matou?

— Estava com um colega fazendo bagunça numa casa velha da rua Soares Cabral. Uma senhora que mora em frente telefonou avisando, e nós trouxemos os dois para cá. O outro garoto já foi entregue à mãe dele. Mas este diz que não quer voltar para casa.

A mãe sentiu uma espada muito fina atravessar-lhe o peito.

— Que é isso, meu filho? Você não quer voltar para casa?

Continuava mudo.

— Eu disse a ele, madame — continuou o comissário —, que se não voltasse para casa teria de ser entregue ao Juiz de Menores. Ele me perguntou o que é o Juiz de Menores. Eu expliquei, ele disse que ia pensar.

— Meu filho, meu filhinho — disse a senhora, com voz trêmula —, então você não quer mais ficar com a gente? Prefere ser entregue ao Juiz de Menores?

Caçulinha conservava-se na retranca. O policial conduziu a senhora para outra sala.

— O que esses garotos estavam fazendo é muito perigoso. Brincavam de explorar uma casa abandonada, onde à noite dormem marginais. Madame compreende, é preciso passar um susto nos dois.

A senhora voltou para perto de Caçulinha, transformada:

— Sai daí já, seu vagabundo, e vamos para casa.

O mudo recuperou a fala:

— Eu não posso voltar, mãe.

— Não pode? Espera aí que eu te dou não pode.

E levou-o pelo braço, ríspida. Na rua, Caçulinha tentou negociar:

— A senhora me deixa passar em Soares Cabral? Deixando, eu volto direito para casa, não faço mais besteira.

— Passar em Soares Cabral, depois desse vexame? Você está louco.

— Eu preciso, mãe. Tenho de pegar uma coisa lá.

— Que coisa?

— Não sei, mas tenho de pegar. Senão me chamam de covarde. Aceitei o desafio dos colegas, e se não trouxer um troço da casa velha para eles, fico desmoralizado.

— Que troço?

— O pessoal diz que lá dentro tem ferros para torturar escravo, essas coisas. Eu e o Edgar estávamos procurando, ele mais como testemunha, eu como explorador. Mãe, a senhora quer ver seu filho sujo no colégio, quer? Tenho de levar nem que seja um pedaço de cano velho, uma fechadura, uma telha.

A mãe estacou para pensar. Seu filho sujo no colégio? Nunca. Mas e o perigo dos marginais? E a polícia? E seu marido? Vá tudo para o inferno. Tomou uma resolução macha, e disse para Caçulinha:

— Quer saber de uma coisa? Eu vou com você a Soares Cabral.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

domingo, 9 de junho de 2019

Odenir Follador (Poemas Avulsos)


A ESSÊNCIA DA NATUREZA

Pensativo à sombra
de uma linda palmeira,
eu observo a natureza
e vejo quanto beleza
ela pode nos proporcionar!

Vejo o mar agitando as ondas,
 lançando espumas prateadas
que caminham lentamente
ao encontro do continente,
como querendo lhe abraçar.

Vejo o pescador no seu barco 
que se lança ao mar, destemido,
nem se importa com o perigo;
só quer  as suas redes  lançar
para o seu sustento granjear.

Vejo que ruma ao sol nascente
que nesse momento, no horizonte,
lança seus dourados raios
às águas lindas e puras do oceano!

Ouço o trinar das lindas gaivotas
que bailam ávidas sobre as águas;
olhar atento como das águias,
a procura de algum alimento.

Sinto a bruma branca e úmida
que impregna o ar que respiro;
sinto, que até eu faço parte
desta natureza, em cor e arte!

A FORÇA DE UM ABRAÇO

Quando me sinto um tanto
só, não sei mais o que faço,
me desperto por encanto
na força do teu abraço.

Meu coração bate forte
transfiguro-me, renasço;
Agradeço a Deus a sorte,
da força do teu abraço.

Feliz é quem une seu coração
 em outro, num único compasso;
sem tristeza... só emoção,
na força de um abraço!

O ÉDEN!
(Poema em redondilha maior)

Deus criou o Paraíso
o Céu e todo o Universo...
Mas, o homem perdeu o juízo
ao criar um mundo inverso!

E destruiu nossas matas
pensando só em riqueza;
olhando às famílias castas,
ignorando a pobreza!

Fez máquinas e conduções
pra bem menos trabalhar ;
não pensou que essas ações,
iriam poluir o ar!

Criaram até redoma
pra poderem respirar;
milhares até em coma
implorando pelo ar!

Que importa tantas luzes
para o mundo iluminar?...
Inserindo tantas cruzes,
por toda arma que criar?!

CORDEL: “O VELÓRIO”

01 
Vou contar-lhes uma história
Que aconteceu num velório
Na capela São José,
Onde velavam seu Honório
Padrinho da Filomena
Que era filha de Tenório.

02 
A Filomena e a Rosalva
Amigas de longa data,
Foram à noite a capela   
Numa atitude sensata,
Levando vasos de flores
Envoltos em papel prata.

03 
E chegando à funerária
Pelo morto procuraram, 
Eram tantos os velórios...
Num deles elas entraram
Pensando ser o padrinho
Os pêsames desejaram!

04 
Pasmo levanta um senhor
Que estava junto ao caixão,
Falando em alto e bom tom
O que é isso? Quem vocês são?
- Filomena logo disse:
Eu te conheço, é o Romão?

05 
O professor de história?
- Nunca te vi, sou pintor,
E acho tudo muito estranho
Saiam daqui, por favor,
E levem também as flores
Senão chamo o zelador!

06 
Assustadas as amigas
Saíram em correria,
Descobriram que o padrinho
Fora enterrado outro dia!
E nossas flores Rosalva
Deixamos com o vigia?

07 
- Nada disso diz Rosalva
Vou levar para o coitado!
Mas o cemitério em frente
Já se encontrava fechado,
Pensou em pular o muro
Mas era muito elevado.

08 
Enfim elas resolveram
Voltar à floricultura
Pedir de volta o dinheiro,
Pois nem foram à sepultura
Os seus vasos com as flores
Parceiros desta aventura!

09
Voltam pra casa às amigas
Sem velarem o defunto,
Lembraram-se da capela
E ficaram rindo muito,
Pois a Filó nunca vira
Aquele senhor tão bruto!

10
Fica então só a decepção...
As flores são devolvidas
E o dinheiro recebido,
Voltam muito ressentidas…
E do seu padrinho Honório
Só recordações vividas!

Fonte:
O Poeta

Nilto Maciel (As Fantásticas Narrações das Meninas do São Francisco)


Quase sempre estávamos sentadas nas ribanceiras, ou nas pedras lisas das redondezas, ou caminhando ao longo do rio, pisando aquelas areias ribeirinhas, ou passeando de barco, rio acima, rio abaixo, contando intermináveis histórias para nosso pai que nos ouvia atentamente e, às vezes, rindo, como se disséssemos as palavras mais engraçadas do mundo. Retirávamos nossas histórias do mais fundo de nossa memória de crianças nascidas na beira do rio e nos sentíamos como pequenos animais indomesticáveis, livres e puros. Ele nos ouvia, calado, muito pensativo, como se disséssemos grandes e irrefutáveis verdades, como se fôssemos sábios antigos, a quem estivessem confiados todos os segredos da Terra. Para que não falássemos nós apenas, permitíamos que ele fizesse perguntas, que interrompesse nossas narrações, que fizesse reparos, quando nos deixássemos levar pela pura imaginação. Mesmo assim, ele permanecia calado ou sorridente, os olhos brilhando de muita alegria. Então, alguma de nós fazia perguntas, muito tolas, às vezes, para forçá-lo a falar, a perguntar, ao menos. Mas ele apenas sorria ou levava a sério o que estávamos fazendo, como se fôssemos criaturas superdotadas, incapazes de dizer tolices, como se não fôssemos apenas suas filhas, mas criaturas de outro mundo, que tivessem vindo com a exclusiva missão de contar-lhe histórias.

À noite, na nossa cabana, iluminada pela lua e pelas estrelas, ele escrevia como um louco, sem parar, apressadamente, enchia cadernos e mais cadernos, enquanto dormíamos, cansadas da tagarelice e dos passeios diurnos, incrivelmente felizes, como se tivéssemos praticado os melhores atos do viver, como se tivéssemos erigido pirâmides, repletas de alívio, como se tivéssemos jogado fora os grandes fardos que pesavam dentro de nossas cabeças. Muitas vezes, quando acordávamos, ele ainda estava a escrever, com a mão esquerda, os olhos quase pregados no papel, sonolento.

Muitas das histórias que contávamos eram essencialmente horrorosas, cruéis, desumanas, e nos faziam sofrer muito e chorar demais. Sofríamos e chorávamos juntos, nós e ele. E nos compadecíamos uns dos outros, nós dele e ele de nós. E era pior, mil vezes pior do que a solidão. Ele então nos prometia brinquedos, para que não nos atormentássemos tanto. Jurava que desceria o São Francisco em busca de pérolas, de caracóis, de querubins, de totens e mil outras coisas que desconhecíamos. E saíamos juntos na nossa barca, descíamos o grande rio, dias e noites sobre as águas, na direção do mar que nunca víramos, esperançosas de encontrar na foz não o que ele nos havia prometido, mas nossa mãe perdida ou levada por pescadores aventureiros, causa maior de todo o nosso tormento. Contávamos então histórias de sereias, de serpentes marinhas, de grutas no fundo do mar e, quando sentíamos saudades de nossa cabana, abandonávamos a barca e regressávamos, esquecidas do mar desconhecido, dos brinquedos prometidos e de nossa mãe perdida, caminhando às margens do rio. E corríamos, brincávamos e contávamos histórias de peregrinos e perdidos. Quando cansávamos, deitávamos-nos nas ribanceiras solitárias, sonhávamos com morcegos violadores de virgens, acordávamos, assustadas, gritando estranhas palavras, e passávamos a contar histórias tão alarmantes quanto nossos sonhos. Nosso pai se retorcia, abria e fechava os olhos, resmungava e voltava a roncar. E, quando regressávamos, fazíamos uma festa em cada lugar: na cabana, dentro do rio, debaixo das árvores, nas ribanceiras, no alto dos coqueiros. Fantasiávamos-nos de mil maneiras, imitando os pássaros, os peixes, as serpentes e os quadrúpedes.

Muitas vezes, sentados ou deitados debaixo das árvores, dormíamos e sonhávamos transformadas em figuras que jamais imaginávamos possíveis. Quando acordávamos, nosso pai estava escrevendo, como se dormisse, os olhos cerrados. Corríamos para perto dele, olhávamos para o papel e nada entendíamos. Ele se sobressaltava e começava a rir, a rir muito, como se não fosse mais possível deixar de fazê-lo. Nós o acompanhávamos no riso, até que pedíamos a ele que lesse, em voz alta, o que estava escrito. Assustávamos-nos, então, porque havia grande diferença entre o que contáramos e o que ele lia. Pensávamos que tínhamos perdido a memória e chorávamos, desesperadas. Ele ficava triste, chorava também e dizia que, na verdade, não disséramos aquilo, mas que ouvira nossas vozes interiores, enquanto dormíamos. Íamos então tomar banho no rio, para nos tornarmos leves e delgadas, capazes de falar do mais fundo de nós mesmas. Brincávamos com as piranhas, sem medo nenhum, nadando e mergulhando, ele nos protegendo com seu olhar, sentado à beira do rio ou navegando em sua galera, como chamávamos, por brincadeira, cada nova canoa que ele fabricava.

Nessa época vivíamos uma grande crise de medo, que era horrível e nos deixava muito tristes, chorosas, magras, feias, pálidas e lerdas, medo que esquecíamos quando começávamos a contar histórias para nosso pai. Nos nossos céus voavam gigantescos morcegos, em grande algazarra, aos bandos, gritando assustadoramente e batendo as asas com estardalhaço. Sabíamos de sua sede insaciável de seiva, pois as árvores murchavam, secavam, como se um sol de fogo as queimasse, e os frutos apodreciam ou desapareciam, como se invisíveis pássaros sorvessem-lhes o suco, deixando-nos sem alimentos para as ceias da manhã, e as pessoas eram cruelmente raptadas e conduzidas para as alturas mais distantes, em voos espetaculares, onde eram violentadas, exauridas e lançadas, abobalhadas ou sem vida, às beiras dos rios, que desapareciam, os menores, ou se reduziam a riachos, os maiores, como o nosso São Francisco, e os peixes, nossa alimentação predileta, eram devorados aos milhares.

Dizia nosso pai, em momentos de lucidez ou de maior crise, que os tais monstros vinham do norte, afugentados pela matança dos índios. Dizíamos nós, no entanto, que eles vinham de mais longe, das estrelas, pois só apareciam em noites de grande escuridão. Mas pensávamos que nada disso existia, que tudo não passava de fantasia de nosso pai, pois não nos recordávamos de que os tivéssemos visto alguma vez. Críamos até que tudo não passava de mais uma longa história por nós contada, pois costumávamos passar dias, semanas e meses contando uma só história, que absorvia todo o nosso tempo, que tomava conta de nossa vida, que se tornava nossa própria vida.

Um dia, ancorou diante de nossa cabana uma enorme galera e dela descarregaram umas malas antigas. Nosso pai conversou com os desconhecidos, que não pisaram a terra, durante algum tempo, e depois carregou as malas para dentro da cabana. Quando voltamos, a galera já estava perto do mar. Nosso pai nos chamou, abriu as malas e nos mostrou muitos livros, que disse serem as nossas histórias em inglês, francês, alemão, espanhol, russo e outras línguas desconhecidas. Folheamos, um a um, os grossos volumes, rimos das figuras, sem nada entendermos. Ele então começou a olhar para as páginas e a falar umas falas estranhas, mas que logo entendemos. E tal era a pujança de sua voz, que os pássaros pousaram sobre nossas cabeças, silenciosos, e as águas do São Francisco pararam de correr. Foi então que vimos pela primeira vez um monstruoso morcego parado no ar. Não nos assustamos mais. Apenas olhamos para o céu e o vimos subir em direção ao sol, para nunca mais voltar.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.

Isabel Furini (História de Escritores)


Escritores! Todo mundo sabe que os escritores gostam de reunir-se. Associações, academias, grupos de leitura, seminários, debates.  Mas, em pouco tempo, descobrem que não suportam os colegas. Afinal, um ego de escritor já preenche qualquer sala por maior que seja. Já muitos egos de escritores na mesma sala tornam o local asfixiante. Alguns egos escorregam nas palavras dos outros. Os outros chutam as costas dos egos que falaram. Os que não falam nada esperam o momento oportuno para jogar o título de seu novo livro na cabeça de qualquer escritor.

O título de seu novo livro na cabeça de qualquer escritor? Perguntarão os que desconhecem a tribo dos escritores. Poucas pessoas alheias a tribos sabem disso. Eu vou fazer uma revelação: os títulos dos livros são seres vivos. Sim. Eles atraem e rejeitam. Jogados na cabeça de um escritor inimigo machucam a subjetividade.  O escritor atingido grita: Ai! Fui atingido por um título desse escritor maluco! Socorro!

Socorro! Grita o escritor machucado, e imediatamente é retirado da sala e considerado bipolar com mania de perseguição.

Mania de perseguição é uma doença traiçoeira. Disse a senhora de óculos. É verdade, disse o velhinho de paletó cinza. Estamos reunidos para falar de nossos livros! Grita o homem de barba. Imediatamente os egos crescem. Qual será o livro escolhido para a ocasião? Será o livro novo livro de papel reciclado?

Papel reciclado? Papel é papel, grita o escritor de camisa azul mexendo o celular. Todos olham para ele. Acanhado, desliga o celular. Temos que fazer livros virtuais, exclama veementemente. E um dos escritores, vestido de terno marrom, muito serio, apoia-o. O futuro é livro na internet, e-book, livro virtual, o nome que vocês desejem. O nome não é importante, o importante é... O homem de terno marrom se cala, olha todo mundo e começa a tossir. Quase disse a verdade. E isso seria tão inconveniente.

Tão inconveniente é dizer a verdade que há alguns meses um escritor fora banido da tribo por dizer a verdade. Dizer a verdade! Ninguém merece! Teria gritado um jovem. A juventude está sempre inovando, disse o escritor de terno marrom e blá, blá, blá. Não revelou que defende o livro virtual porque acaba de criar uma editora virtual. Afinal, livro é produto. E produto é para lucrar. Viva o lucro!

Viva o lucro! Pensa o escritor de terno marrom e olha de ladinho para seu sócio, o homem de gravata vermelha. O homem de gravata vermelha entende o recado. Levanta-se e começa um longo discurso sobre as vantagens do livro virtual. Repete os argumentos. São poucos e precisa repeti-los para fortalecer seu ponto de vista.

Seu ponto de vista parece-me excelente, disse a senhora de blusa amarela.  E aplaude. Todos aplaudem. Entre escritores é comum aplaudir. Afinal, todos gostam de receber aplausos, elogios. Bom, quase todos. Existem poucos exemplares de uma raça em extinção que não gosta de aplausos. Isolados, raramente são entrevistados pela mídia.

Raramente são entrevistados pela mídia. Existe um problema maior que esse para um escritor? Afinal, o mais importante não é escrever bem, mas ser um escritor de sucesso. Sucesso é tão bom. Todo mundo sonha com o sucesso.

Todo mundo sonha com sucesso. A maioria dos escritores sonham com o Prêmio Nobel de Literatura - mas ninguém quer confessar. Sonhos são parte da subjetividade humana. Sonhos revelam muito das pessoas, por isso é difícil falar dos sonhos. Bom, Prêmio Nobel de Literatura é difícil, mas talvez um Prêmio Nacional ou Internacional pode se tornar realidade. Sempre é bom ter sucesso.

Sucesso! Sucesso quer dizer ser o melhor escritor do mundo. E nunca pergunte. Nunca. Qualquer escritor dirá que você está errado. E é aqui o ponto central de minha história: Quando ao declamar um poema o velhinho de paletó cinza caiu morto, os escritores aproximaram-se dele e escutaram as últimas palavras do velho. "Sou o melhor escritor do mundo!"

Afastaram-se.  - Que ilusão! - disse a senhora de blusa amarela - O melhor escritor do mundo?

E todos, em silêncio, pensaram a mesma frase: O melhor escritor do mundo sou eu!

Fonte:
Isabel Furini, in Recanto das Letras

sábado, 8 de junho de 2019

Carolina Ramos (Canzarrão)


Aconteceu em Seriema. A cidade existe? Se de fato existir, substitua-a por outra qualquer, não localizável em mapa. A personagem deste conto pertence ao imaginário, ao mundo puro e extremamente amplo das crianças, sem fronteiras, sem pátria definida.

Não era à toa que o chamavam Canzarrão, ou Cachorrão, como preferia a meninada.

Muita coisa em seu aspecto físico contribuía para isso: — o corpo atarracado, as pernas arqueadas muito particularmente, as bochechas flácidas, puxadas para baixo pela força da gravidade e pelo peso das banhas que lhe "abuldoguezavara" as faces, sugerindo comparações. A articulação cruzada, dos maxilares, acentuava mais a semelhança, aproximando-os das mandíbulas possantes de um cão feroz.

Daí a ser chamado Canzarrão, nada mais que um passo. 

Tudo não passava, no entanto, de mera aparência. No íntimo, batia, no peito do velho, um coração passivo, tão meigo quanto ao de um totó de estimação, pronto a fazer festa ao menor sinal de afetividade. Não fazia mal a ninguém! Não passava de um tipo popular, absolutamente inofensivo, como tantos outros, e que gostava de contar histórias. Por isso mesmo, vivia sempre rodeado de crianças. 

Vez ou outra, apareciam os mais preconceituosos que, sem melhor o conhecer, deixavam-se ficar à distância, temerosos da exótica figura. Assim mesmo, por pouco tempo. Ressabiados, chegavam-se, pouco a pouco, e o número de ouvintes crescia,

Toninho foi dos mais arredios. Quando o tio, beberrão  inveterado, o trouxe para Seriema, o menino descobriu, por acaso, o ponto de encontro de Canzarrão e da garotada, aos sábados, no jardim fronteiro à Matriz.

Manteve-se à distância, desconfiado, como gato arisco.

O velho "bulldog" esticando o pescoço viu-o de longe, sem exteriorizar qualquer estímulo que o induzisse à aproximação. O tempo é que deveria agir, despertando a confiança.

Cada semana, o menino chegava mais perto, até que, afinal, enturmou-se.

Os olhos do velho, encontrando os do menino, pareceram sorrir, sem que as bochechas flácidas sofressem qualquer alteração. Inflando os pulmões, rosnou, então, latindo rouco: guau... guau…

Assustado, o menino recuou, sentido-se repelido. Logo, entendeu que o latido nada tinha de hostil, sendo a maneira mais cordial e simpática do Cachorrão dizer a um recém-chegado: — Bem-vindo!

Jamais trocaram palavra, mas, um elo tácito de amizade estabeleceu-se entre as almas do garoto e do velho contador de histórias.

Toninho voltou para casa, na certeza de ter encontrado um verdadeiro amigo. O coração vazio, ocupado apenas num canto, pelo tio sisudo, único membro da família que lhe restava, vinha agora transbordante de afeto. Passou a ser dos mais assíduos aos encontros dos sábados, que acabaram por se repetir nas quartas.

Traiçoeiro, o tempo passa depressa. E, para os velhos, embora os ponteiros pareçam arrastar-se, correm mais rápido do que para os jovens.

O enterro de Canzarrão foi feito pela Prefeitura. O caixão, coberto de flores, acompanhado, em silêncio, por um sem números de crianças desoladas.

Toninho foi dos últimos a abandonar o Campo Santo. Deixou entre as flores um bilhete escrito em letra gorda e irregular:

"Amigo — tenho saudade das suas histórias... quero ser igualzinho a você, quando crescer."

Tentou latir, baixinho, em despedida. A garganta apertada, só lhe permitiu um soluço magoado. Protesto de cachorrinho choramingas agora tristonho… agora sem dono.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XV


NUANCE

O céu lembra uma taça fina de cristal
sobre o mundo emborcada,
e a tarde,
lá na beira do horizonte
(talvez a imagem seja um tanto louca)
parece a marca rubra de uma boca
sobre o cristal manchada…

NÚPCIAS PAGÃS
  
Braços dados, nós dois, vamos sozinhos...
O teu olhar de encantamento espraias
pelas curvas e sombras dos caminhos
debruados de jasmins e samambaias

Há queixumes de amor na alma dos ninhos
e as nuvens lembram danças de cambraias...
- na minha mão ansiosa de carinhos
tonta de amor, a tua mão, desmaias...

Andamos sobre painas... entre alfombras...
E à luz frouxa da tarde em desalento
misturam-se no chão as nossas sombras

- Aqui... Há rosas soltas, desfolhadas...
Nada receies, meu amor - é o vento
em marcha nupcial pelas ramadas !

O BALÃO

Azul e cor-de-rosa, amarelo e encarnado
- um palhaço de gás, feito em papel cetim...
Ei-lo pronto e já aceso, o bojo arredondado
não tarda há de ser erguer pela amplidão sem sim...

A criançada da rua ajoelha-se ao seu lado
e ele arqueja ao calor da chama carmesim...
Há vivas!... Alegria!.. . E pelo céu, listrado
de louros foguetões, ei-lo ascendendo enfim...

Vai subindo contente, sem parar, sem rumo,
até que num momento, entre as luzes bordadas
no céu, - cai desmaiado, em vômitos de fumo...

Então... Põe-se a descer sereno... De repente
as crianças de outra rua atiram-lhe pedradas...
E o balão cai do céu como cai toda gente!...

O DESTINO DE UMA FLOR 

Era um lindo botão
aquele, o do meu jardim...

Para enfeitar a jarra da tua vaidade
tu o cortaste da roseira
sem necessidade,
- a roseira de uma alma que floresce em mim...

E na jarra da tua vaidade
o botão foi se abrindo, e aos poucos se fez flor
ao sol de uma ilusão... e na felicidade
de enfeitar teu amor. , .

Foi assim,
que algum tempo viveu esplêndida e viçosa
a rosa,
até que foi cansando o teu olhar...

E ontem, quando a apanhaste para pôr uma outra,
- outro lindo botão no seu lugar,
depois que tanto tempo a deixaste esquecida:
- ao toque da tua mão
por encanto desfez-se em pétalas no chão
a flor da minha vida !

E só tu, não soubeste ver naquela flor
o fim de um grande amor!

O MEU TORMENTO

O meu tormento é  adivinhar  pisadas
de um outro que passou antes de mim,
e que já andou talvez pelas estradas
por onde sigo atormentado assim...

É o de pensar que só te achei agora
e surpreender-me, às vezes, a supor
que o grande amor que me inspiraste, mora
na mesma casa de um antigo amor...

É imaginar também que os teus desejos
a outra alma estranha já fizeram louca,
e que a doce champanha dos teus beijos
fez transbordar de beijos outra boca!

É pensar... (doloroso é o pensamento
quando o encho assim com meus tormentos vãos)
- que carícias ficaram, como o vento,
a roçar, invisíveis, tuas mãos…

O VERBO AMAR 

Te amei: - era de longe que eu te olhava
e de longe me olhavas vagamente...
Ah, quanta coisa nesse tempo a gente
sente, que a alma da gente faz escrava...

Te amava: - como inquieto adolescente,
tremendo ao te enlaçar... E te enlaçava
adivinhando esse mistério ardente
do mundo, em cada beijo que te dava!

Te amo: - e ao te amar assim vou conjugando
os tempos todos desse amor, enquanto
segue a vida, vivendo... e eu, vou te amando...

Te amar é mais que um verbo, é a minha lei:
- e é por ti que o repito no meu canto:
te amei, te amava, te amo e te amarei!

OS VERSOS QUE TE DOU 

Ouve estes versos que te dou, eu
os fiz hoje que sinto o coração contente
enquanto teu amor for meu somente,
- eu farei versos...e serei feliz...

E hei de faze-los pela vida afora,
versos de sonho e de amor, e hei depois
relembrar o passado de nós dois...
- esse passado que começa agora...

Estes versos repletos de ternura são
versos meus, mas que são teus, também...
Sozinha, hás de escuta-los - sem ninguém que
possa perturbar vossa ventura...

Quando o tempo branquear os teus cabelos
hás de um dia mais tarde, revive-los nas
lembranças que a vida não desfez...

E ao lê-los...com saudade em tua dor...
- hás de rever, chorando, o nosso amor,
- hás de lembrar, também, de quem os fez...

Se nesse tempo eu já tiver partido e
outros versos quiseres - teu pedido deixa
ao lado da cruz para onde eu vou...

Quando lá, novamente, então tu fores,
pode colher do chão todas as flores, pois
são os versos de amor que ainda te dou!…

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Arthur de Azevedo (Dona Eulália)



Quando cheguei, a casa mortuária estava cheia de gente.

No centro da sala, forrada de preto, havia uma essa entre quatro enormes tochas acesas, e sobre a essa um caixão, dentro do qual D. Eulália dormia o último sono.

Já tinha passado a hora do saimento.

Faltava apenas o padre.

O padre não aparecia.

O viúvo, comovido, mas calmo, perfeitamente calmo, perguntou a um parente, que pelos modos tinha se encarregado do enterro:

– Então?.. . esse padre?..

– Já cá devia estar. O Tio Eusébio quer que eu vá buscá-lo?

– É favor, Cazuza.

E o parente saiu muito apressado.

Dez minutos depois, o Eusébio aproximou-se de mim e disse-me baixinho:

– E nada de padre! Estava escrito que este dia não passava para mim sem alguma contrariedade…

* * *

Justifiquemos esse grito do coração.

O Eusébio não foi um marido feliz; D. Eulália, que tinha muito mau gênio, transformara-lhe a vida num verdadeiro inferno.

O pobre homem não tinha voz ativa dentro de casa; era repreendido como um fâmulo quando entrava mais tarde; devia dar contas de um níquel, de um miserável níquel que lhe desaparecesse do bolso!

Apesar de casado havia já quinze anos, ele não se pudera habituar a essa existência ridícula, e sentia-se envelhecer prematuramente na alma e no corpo.

Não tinha filhos, – e era melhor assim, porque com certeza, D. Eulália não lhes perdoaria. Pensava bem: pudesse ela contrariar a natureza, e fecundá-lo-ia, para humilhá-lo ainda mais!

* * *

Durante os primeiros tempos de regime conjugal, o Eusébio tentou reagir contra o mau gênio de D. Eulália; num dia, porém, que lhe falou mais alto e lhe bateu o pé, recebeu em troca uma tremenda bofetada, cujo estalo ressoou em todo o quarteirão. Durante quinze dias a vizinhança não se ocupou de outra coisa.

O marido que apanha da cara metade está perdido; o que apanha e chora, está irremessivelmente perdido. O Eusébio apanhou e chorou…

Daquele dia em diante foi-se-lhe toda a autoridade marital: tornou-se em casa um manequim, um pax vobis, um joão-ninguém.

Era, entretanto, um homem simpático, virtuoso, apreciadíssimo por numerosos amigos e muito conceituado na repartição de onde tirava o necessário para que nada faltasse a D. Eulália.

* * *

De todas as maçadas a que estava afeito o nosso Eusébio, nenhuma o ralava tanto como a de procurar cozinheira, o que lhe acontecia a miúdo, porque, graças ao mau gênio da dona da casa, a cozinha estava constantemente abandonada.

Como as impertinências de D. Eulália já tinham fama no bairro, e nenhuma criada queria servir aquela ama, o Eusébio era obrigado a procurar cozinheira muito longe de casa.

O que ele queria era alugá-la, mas bem sabia que, na venda, a recém-chegada seria logo posta ao corrente de tais impertinências.

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Um dia o pobre marido foi muito cedo arrancado da cama pela mulher.

– Levante-se, tome banho, vista-se e vá procurar uma cozinheira!

– Quê!… pois a Maria…?

– Acabo de pô-la no olho da rua!

– Por quê?

– Não é da sua conta! Mexa-se!…

– Uma cozinheira que não estava em casa há oito dias!…

– Basta de observações! Quem manda aqui sou eu! Vamos! vista-se! E nada de agências, hem? olhe que se me traz cozinheira de agência, não passa da porta da rua!

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Nesse dia o Eusébio teria purgado todos os seus pecados, se os tivera, e se D. Eulália não fosse já um purgatório bastante.

O pobre-diabo, que morava no Rio Comprido, foi, levado por informações, procurar uma cozinheira em São Francisco Xavier. Já estava alugada; entretanto, lá lhe disseram que no Morro do Pinto havia outra, muito boa, que lhe devia servir.

O desgraçado almoçou numa casa de pasto, encheu-se de coragem e subiu o Morro do Pinto.

A cozinheira não estava em casa; tinha ido passar uns dias com uma parenta, na Rua de Sorocaba, em Botafogo; mas um vizinho aconselhou o Eusébio a que não adiasse a diligência; a mulher trabalhava primorosamente em forno e fogão, era morigerada e estava morta por achar emprego.

Abalou o Eusébio para Botafogo, e encontrou, efetivamente, a mulher na Rua de Sorocaba, em casa da parenta, pronta já para sair. Por pouco mais, a viagem teria sido baldada.

Era uma mulata quarentona, muito limpa, de um aspecto simpático e humilde, que à primeira vista inspirava certa confiança.

Ela, pelo seu lado, simpatizou com o Eusébio, a julgar pela prontidão com que se ajustaram.

– Bem; amanhã lá estarei, meu patrão.

– Amanhã, não: há de ser hoje, porque se entro em casa sem cozinheira, minha mulher…

O Eusébio interrompeu-se – ia deitando tudo a perder, – e emendou:

… minha mulher, que é muito boa senhora, mas nem sempre acredita no que eu digo, há de supor que me remanchei.

– Nesse caso, meu patrão, é preciso que eu vá primeiramente ao Morro do Pinto.

– Pois vamos ao Morro do Pinto… respondeu resignado o resignado Eusébio.

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Era quase noite fechada, quando o infeliz marido, fatigadíssimo, doente, sem jantar, entrou em casa acompanhado da mulata.

D. Eulália recebeu-o com duas pedras na mão:

– Onde esteve o senhor metido até estas horas? oh! que coisa ruim… que homem insuportável… Só a minha paciência!…

– A senhora não calcula como me custou encontrar esta mulher, mas, enfim… parece que desta vez ficamos bem servidos.

– Pois sim, resmungou D. Eulália, – vão ver que é alguma vagabunda!

E, voltando-se para a mulata, disse-lhe com a sua habitual arrogância:

– Chegue-se mais! Não gosto de gritar e quero que me ouçam!

A cozinheira aproximou-se com um sorriso humilde de subalterna.

– Como se chama? perguntou D. Eulália.

– Eulália.

– Eulália?!

– Eulália, sim, senhora!

– Eulália?! Rua! Rua!

E voltando-se para o marido:

– Pois o senhor tem a pouca vergonha de trazer para casa uma cozinheira com o mesmo nome que eu? Que desaforo!…

– Mas, senhora.

– Cale-se! Não seja burro!

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Creio que o Eusébio está justificado: a morte de D. Eulália não poderia contrariá-lo.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Fora da Moda.