sábado, 24 de fevereiro de 2024

Mitos Indígenas (Begorotire - o homem chuva)

Begorotire era um índio feliz. Certo dia, porém, havendo sido injustiçado na divisão da caça, ficou furioso, decidindo que sairia à procura de um outro lugar para viver. Cortou os cabelos da esposa e da filha, pintando toda a família com uma tintura preta que havia retirado do fruto do jenipapo. Pegou um pedaço de madeira pesada e resistente, fazendo a primeira borduna Caiapó, com o cabo trançado em preto e a ponta tingida com sangue da caça. Chegou então ao alto de uma montanha, levando sua arma, e começou a gritar. 

Seus gritos soaram como fortes trovões. Girou fortemente a borduna no ar e de suas pontas saíram relâmpagos. Em meio ao barulho e às luzes, Begorotire subiu aos céus. 

Os índios, assustados, atiraram suas flechas, mas nada conseguiu impedir que o índio desaparecesse no firmamento. As nuvens, também assustadas, derramaram chuva. Por isso Begorotire tornou-se o homem chuva. 

Tempos depois, levou toda a família para o céu, onde nada lhes faltava, e de lá muito fez para ajudar os que na terra ficaram. Juntou sementes de suas fartas roças, secou-as sobre o jirau, entregando-as a uma filha para trazê-las. 

A índia desceu dentro de uma cabaça enorme amarrada a urna longa corda, tecida com as próprias ramas do vegetal. Caminhando pela floresta, um jovem encontrou a cabaça, amarrou-a com cipós e pedaços de uma madeira e, com a ajuda dos amigos, levou-a para a aldeia. 

A mãe, abrindo a cabaça, encontrou a índia, a filha da chuva, que estava magra e com longos cabelos, por lá haver permanecido muito tempo. A jovem foi retirada e alimentada, e teve seus cabelos aparados. Ao ser indagada, a filha da chuva explicou por que viera, entregando-lhes as sementes enviadas por seu pai e deixando a todos muito felizes. 

O jovem que encontrou a cabaça, casou-se com a moça, passando esta a morar novamente na terra. Com o tempo, resolveu visitar os pais. Pediu que o esposo vergasse um pé de Pindaíba, trazendo a copa até o chão. Sentou-se sobre ela e, ao soltarem a árvore, a índia foi lançada ao céu. 

Ao retornar, trouxe consigo toda a família e cestos repletos de bananas e outros frutos silvestres. Begorotire ensinou a todos como cultivar as sementes e cuidar das roças, regressando depois ao seu novo lar. 

Até hoje, quando as plantas necessitam de água, o homem chuva provoca trovões, fazendo-a cair sobre as roças para mantê-las sempre verdes e fartas.

Fonte> Adaptação do Texto de Jayhr Gael in O Caminho de Wicca - http://www.caminhodewicca.com.br (desativado). acesso em 13/10/2023.

Dicas de Escrita (Formas de Escrever Diálogos) – 3

REVISANDO O DIÁLOGO

1 – Leia seu diálogo em voz alta. 

Isso lhe dará uma chance de ouvir como ele soa. Você pode fazer mudanças de acordo com o que ouve ou lê.

Deixe passar um tempo antes de lê-lo ou seu cérebro lerá o que você quer ler, não o que está no papel.

Peça para um amigo confiável ou parente ler o diálogo e dar sua opinião. Olhos diferentes podem falar melhor se ele soa natural ou se precisa melhorar.

2 – Pontue as falas corretamente. 

Isso vai fazer seu trabalho parecer profissional aos olhos dos leitores. Poucas coisas irritam tanto (especialmente editores e agentes) quanto o excesso de pontuação, principalmente em diálogos.

Tem que ter uma vírgula depois do fim do diálogo e as últimas aspas. Por exemplo: "Olá. Eu sou Joana", disse Joana.

Se incluir ação no meio do diálogo, você terá que usar letra maiúscula no começo da segunda parte do diálogo, ou não. 

Por exemplo: "Eu não  acredito que ele matou meu pai." Joana disse, seus olhos transbordando com lágrimas. "Ele jamais faria isso." ou "Eu não acredito que ele matou meu pai," disse Joana, seus olhos transbordando com lágrimas, "porque ele jamais faria isso".

Se não houver o disse, apenas a ação, então um ponto final deverá ser usado no lugar da vírgula, nas últimas aspas. Por exemplo: "Adeus, tia Ana." Joana bateu o telefone ao desligar.

Remova quaisquer palavras ou expressões que sejam desnecessárias à conversa ou à história. Às vezes, menos é mais.

Quando as pessoas conversam, elas não são exageradamente prolixas. Elas falam de modo simples e curto.

Por exemplo, em vez de "Eu não acredito que em todos esses anos, foi o tio João que pôs venenos no coquetel do meu pai para matá-lo," disse Joana", você poderia escrever "Eu não acredito que tio João matou meu pai!"

3 – Use dialetos com cuidado. 

Cada personagem deve ter sua própria voz, mas um sotaque ou voz arrastada demais pode se tornar irritante para os leitores. Além disso, se você trabalhar em um dialeto que não conhece, pode acabar sendo extremamente ofensivo para os falantes nativos.

Estabeleça as origens dos personagens de outras formas. Por exemplo, use termos regionais como "biscoito" ao invés de "bolacha" para definir a geografia. Não se esqueça de usar termos corretos para cada localização, como "mexerica" para São Paulo e "bergamota" para o Paraná.

Dicas

Acesse fontes que vão te ajudar a escrever diálogos excelentes. Faça uma aula de redação, ou veja livros e sites feitos especificamente para ajudar escritores a melhorarem suas habilidades de contar histórias através do diálogo.

Procure por grupos de escritores e aulas de roteiro e escrita literária em sua região e pela internet. Trabalhar em grupo e ter a opinião de colegas de oficina pode ser muito enriquecedor.

Não se prenda muito ao diálogo quando você estiver escrevendo seu primeiro rascunho. Não ficará muito bom e não tem problema, pois você voltará a esse ponto em outros rascunhos e o melhorará.

Referências
1. http://www.folhetimonline.com.br/2011/12/05/dicas-melhores-dialogos-7-dicas-paraescritores/

Fonte> https://pt.wikihow.com/Escrever-Diálogos

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Trova ao Vento – 008

 

O. Henry (Vinte Anos Depois)

O policial de serviço subiu a avenida garbosamente. O garbo era-lhe habitual e não  ostensivo, já que havia por ali poucos transeuntes. Ainda não haviam soado as dez horas da noite, mas lufadas de vento gélido e úmido tinham despovoado prematuramente as ruas.

Experimentando as portas à medida que caminhava; girando o bastão com movimentos complicados e destros; voltando-se de quando em quando para inspecionar a avenida pacífica — o policial, com sua figura imponente e afetada, dava bem a ideia de um guardião da paz. O bairro era madrugador. Aqui e ali podiam-se ver as luzes de uma tabacaria ou de um café, desses que permanecem abertos a noite toda; a maioria das portas, porém, pertencia a lojas comerciais havia muito fechadas.

A meio caminho de certo quarteirão, o policial moderou subitamente o passo. Ao portal sombrio de uma loja de ferragens, estava encostado um homem, com um charuto apagado na boca. Ao aproximar-se o policial, disse-lhe rapidamente:

— Está tudo bem, seu guarda; espero um amigo, Um encontro marcado há vinte anos atrás. Parece esquisito, não é? Pois bem, vou explicar o caso e verá que está tudo legal. Naquele tempo, onde agora se encontra esta loja, havia um restaurante, o restaurante de Big Joe.

— Exatamente. Foi demolido há cinco anos — confirmou o guarda.

O homem do portal riscou um fósforo e acendeu o charuto. A chama revelou um rosto pálido, de queixo proeminente, olhos espertos e uma pequena cicatriz branca no supercílio direito. O alfinete de gravata era um grande brilhante, curiosamente engastado.

— Há vinte anos atrás, numa noite como esta — continuou o homem —, jantei no Big Joe com Jimmy Wells, o meu maior amigo e o melhor camarada deste mundo. Ambos crescemos em Nova Iorque, como irmãos; eu tinha dezoito anos, ele vinte. Na manhã seguinte, eu devia embarcar para o Oeste, em busca de fortuna. Ninguém, contudo, lograria arrancar Jimmy de Nova Iorque, pois ele considerava esta cidade a melhor do mundo. Bem, combinamos, naquela ocasião, um encontro aqui, exatamente vinte anos depois, independentemente das condições ou da distância que tivéssemos de percorrer para cumprir o compromisso. Imaginávamos que, dentro de vinte anos, estaríamos com a vida feita e a fortuna consolidada, quaisquer que fossem.

— Muito interessante — retrucou o policial — Todavia, parece-me que vinte anos é prazo um tanto longo, não acha? Teve notícias do seu amigo durante esse tempo?

— Bem, de início nos correspondemos, — respondeu o outro — mas, depois de um ano ou dois, perdemos a pista um do outro. Como sabe, o Oeste é muito vasto e andei sempre muito ocupado, pulando de cá para lá. Tenho a certeza, porém, de que Jimmy, se estiver vivo, virá esta noite, pois sempre foi o sujeito mais correto e leal do mundo. Jamais se esqueceria. Viajei mais de mil milhas para estar hoje neste local e me darei por bem pago se ele aparecer.

O homem consultou o relógio, cuja tampa era ornada de pequenos diamantes.

— Dez para as dez — anunciou. — Separamo-nos exatamente às dez horas, na porta do restaurante.

— O Oeste foi-lhe propício, não? — indagou o policial.

— Nem me diga! Espero que Jimmy tenha tido pelo menos a metade do êxito que tive. Era um tanto bisonho, apesar de bom sujeito. Tive de competir com os malandros mais finórios para cavar o meu quinhão. Em Nova Iorque, a gente fica entocado. Só o Oeste consegue deixar a gente afiado.

O guarda girou o bastão e deu alguns passos.

— Vou andando — disse. — Espero que seu amigo venha. Vai esperá-lo muito tempo ainda?

— Acho que sim — respondeu o outro. — Vou dar-lhe um desconto de meia hora, pelo menos. Se Jimmy estiver vivo, aparecerá logo mais. Até breve, guarda.

— Boa noite — disse o policial, continuando com sua ronda e experimentando as portas conforme se afastava.

Caía, agora, um chuvisco gelado e as ocasionais rajadas haviam-se convertido numa ventania constante. Os poucos transeuntes retardatários apertavam o passo, silenciosos e friorentos, com a gola do casaco erguida e as mãos nos bolsos. À porta da loja de ferragens, o homem que viajara mil milhas para comparecer a um encontro, incerto e quiçá absurdo, com o amigo de mocidade, fumava seu charuto e esperava.

Aguardou vinte minutos e, então, um homem alto, enfiado até as orelhas num comprido sobretudo, atravessou apressadamente a rua. Dirigiu-se para o homem à espera.

— É você, Bob? — indagou, em tom de dúvida.

— É você, Jimmy Wells? — exclamou o homem do portal.

— Por Deus! — suspirou o recém-chegado, tomando entre as suas as mãos do outro. — É Bob mesmo, no duro! Esperava encontrá-lo aqui se você ainda estivesse vivo. Ora, ora, ora! Vinte anos é muito tempo. O velho restaurante se foi, Bob; gostaria de que ainda existisse, para que lá pudéssemos jantar. Como foi de Oeste, meu velho?

— Às mil maravilhas! Lá encontrei tudo quanto esperava. Você mudou muito, Jimmy. Nunca pensei que você pudesse crescer tanto.

— Pois olhe! Depois dos vinte, ainda cresci mais um pouco.

— Dando-se bem em Nova Iorque, Jimmy?

— Assim, assim. Tenho um bom emprego numa repartição municipal. Vamos Bob; sei de um lugar onde poderemos conversar longamente sobre os velhos tempos.

Os dois se puseram a caminho, de braços dados. O homem do Oeste, seu egotismo espicaçado pelo sucesso, começou a esboçar a história de seus êxitos. O outro, enfiado no sobretudo escutava com interesse.

Na esquina, brilhavam as luzes de um café. Ao chegar à zona iluminada, os dois se voltaram simultaneamente para se examinarem um ao outro.

O homem do Oeste parou de súbito e retirou o braço.

— Você não é Jimmy Wells — explodiu. — Vinte anos é muito tempo, mas não o bastante para mudar um nariz romano em batatinha.

— Às vezes, transforma um bom cidadão num mau — retorquiu o homem alto. — Você está preso há já dez minutos, Silky Bob. Chicago deseja conversar consigo e nos telegrafou avisando de que você talvez estivesse por aqui. Vai ficar bonzinho, não vai? Faz muito bem. Agora, antes de irmos até a delegacia, eis um bilhete que me pediram lhe entregasse. Pode lê-lo diante da janela. É do guarda Wells.

O homem do Oeste desdobrou o papelzinlio que lhe fora entregue. Sua mão, firme ao começar a leitura, estava trêmula quando a terminou. O recado era curto:

"Bob: compareci ao encontro na hora marcada. Quando você riscou o fósforo para acender o charuto, reconheci a fisionomia do homem que Chicago procurava. De qualquer maneira, não podia prendê-lo pessoalmente. Por isso, fui arranjar um secreta para executar o serviço.
JIMMY."

Fonte> O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público.  

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) – 6


CANSAÇO

No cansaço da noite, entre os cansaços, 
tive um sonho esquisito e diferente,
pois, sonhei abraçado noutros braços,
entre os braços da noite, descontente.

Ante um sonho, outro sonho e, de repente,
eu me sinto algemado noutros laços,
como quem segue a vida loucamente,
controlando as pegadas de outros passos...

E, eu sonhando e sonhando pouco a pouco,
fui ficando no sonho quase louco
nessa louca paixão que não passou...

Se os teus beijos, neguei sem ter ressábios,
quero agora, pagá-los noutros lábios
esses beijos que a vida me negou!
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DELÍRIOS DA AURORA

Quando a aurora bem cedo, abre a cortina,
ante os raios do Sol, o orvalho chora,
pestaneja no céu, a luz divina
e resplende, na terra, a luz da aurora!

Basta o olhar dessa aurora peregrina,
passageira que, ao longe, o céu decora,
e, aos pouquinhos, dos braços da campina,
o silêncio da noite vai embora!

Sobre as copas de antigos arvoredos,
lindas aves revelam seus segredos,
dando vivas, à luz do Sol nascente...

E entre coros, canções, ressurge a vida,
despertando essa paz adormecida,
que adormece de novo, ao sol poente!
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ENTARDECER

Morre a tarde!... E, na dor do Sol poente,
há uma nesga de luz e nostalgia,
separando, de forma displicente,
os encantos e a dor do fim do dia!

Ante o drama sem volta e tão dolente,
ouço, ao longe, uma voz que me assedia;
é a de um sino que tange, lentamente,
os suspiros finais da Ave Maria!

Nesse instante, eu me sinto até covarde;
me envergonho, ante a dor do fim da tarde,
mas encaro de frente e olhos abertos…

E à distância, no olhar da eterna luz,
eu percebo dois braços numa cruz,
rodeados de luz entre os libertos!
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ILHA DE SANT’ANA

Tua origem, de fato, ninguém sabe,
mas nasceste das cinzas deste pó;
Ilha amada, em teu ventre, tudo cabe,
aos sussurros do velho Seridó!

Que teu nome, no tempo, não desabe,
nem te deixem viver assim tão só;
que o teu canto de amor, nunca se acabe,
ante o olhar de Sant'Ana, nossa avó!

Sob as bênçãos de nossa padroeira,
e os arpejos de cada cachoeira,
que deságua nas terras deste chão...

Quando o rio, de verde se reveste,
tens a imagem mais pura do Nordeste,
e és a Ilha mais linda do sertão!
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MATIZES DA AURORA

Brindo e abraço, na aurora, outra alvorada,
todo dia, da porta do meu quarto,
no silêncio da velha madrugada,
ouço o choro da luz de um novo parto!

Esse raio de luz que eu não descarto,
no meu teto, depressa, faz morada...
Abro portas, janelas, não me farto,
não me canso do olhar da luz dourada!

E essa luz, em silêncio, a caminhar,
traz o brilho da aurora, em seu olhar,
apagando, da noite, a treva ardente...

E entre cantos, sussurro e mil respingos,
põe, nas luzes do orvalho e em ternos pingos,
os matizes da luz do Sol nascente!
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VIVA PLENAMENTE


Pelas trilhas tortuosas dos caminhos,
há empecilhos, bravatas e há temores...
Quanto sonho vencido entre os sozinhos,
quanta glória perdida entre os amores!

Nas angústias do mundo há mais espinhos
do que o cheiro da paz que tem nas flores...
Mas sem ódio e sem mágoa, em nossos ninhos,
nosso sonho de amor inibe as dores!

Deixo, em poucas palavras, meus apelos;
- Por que sempre guardar seus pesadelos
se a esperança cochila ao pé da porta?

Pode haver plenitude, em meio aos trapos:
A esperança não morre entre os farrapos
e viver plenamente, é o que me importa!
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Fonte> Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020. Enviado pelo poeta.

Mitos Indígenas (Poronominaré - o dono da terra)

O velho pajé Cauará saiu para pescar, demorando muito a voltar. A filha, preocupada, resolveu procurá-lo perto das águas mansas do rio. Após muito andar, sentou-se na relva para descansar. Anoitecia e a lua surgiu atrás das montanhas, ficando a jovem a contemplá-la. Subitamente, destacou-se do astro um vulto muito estranho que vinha em sua direção. A índia parecia hipnotizada, sendo em seguida tomada por profunda sonolência. 

Neste momento o pajé, que havia retomado à aldeia, preocupou-se com a ausência da filha. Tomou então um pote com paricá, pó alucinógeno que, inalado, lhe despertava os poderes de pajé, entrando assim em transe. 

Muitas sombras desfilaram à sua frente e entre elas surgiu a silhueta de um homem que subia aos céus em direção à lua. Aos poucos, outras imagens foram tomando formas humanas com cabeça de pássaros, anunciando ao pajé que sua filha estava numa ilha, não muito distante dali. 

Imediatamente Cauará dirigiu-se ao local revelado, encontrando a moça enfraquecida e faminta. Voltaram à aldeia. 

Passados alguns dias, a jovem, recuperada, contou ao pai um sonho impressionante: no alto da montanha ela dava à luz uma criança muito clara, quase transparente. Não havia leite em seus seios, sendo o seu filhinho alimentado por uma revoada de beija-flores e borboletas. A sua volta, outros animais que também se encantaram com o bebê, lambiam-no carinhosamente. 

Algum tempo depois, a filha de Cauará notou que, embora virgem, esperava uma criança. O pajé, estranhando o fato, entrou novamente em transe. As alucinações lhe mostraram ser o homem que ele vira subir à lua, o pai de seu neto. 

Numa madrugada em que os animais, as aves e os insetos pareciam agitados e felizes, nasceu na serra de Jacamin o neto do pajé, Poronominaré, o dono da terra. Ao ser informado do feliz acontecimento, Cauará seguiu para a montanha para conhecer o herdeiro. 

Surpreso, encontrou a criança com uma barbatana nas mãos, indicando a cada animal o seu lugar na Natureza. 

Ao cair da tarde, quando tudo já estava em pleno silêncio, ouviu-se uma cantiga feliz. Era a mãe do dono da terra que subia aos céus, levada por pássaros e borboletas.

Fonte> Adaptação do Texto de Jayhr Gael in O Caminho de Wicca - http://www.caminhodewicca.com.br (desativado). acesso em 13/10/2023

Dicas de Escrita (Formas de Escrever Diálogos) – 2

ESCREVENDO DIÁLOGOS

1 – Seja simples. 

Use "ele disse" ou "ela respondeu" em vez de termos chiques como "ele protestou" ou "ela exclamou." 

Você não quer tirar a  atenção do diálogo entre os personagens com palavras ou frases incomuns. A palavra "disse" é discreta o suficiente para não distrair o leitor. Ocasionalmente você pode quebrar o ritmo do "disse" ou "respondeu", quando for apropriado. Por exemplo, você poderia usar "interrompeu", "gritou", "sussurrou", mas apenas se fizer sentido na história — e só de vez em quando.

2 – Avance a história com os diálogos. 

Eles devem fornecer informações ao leitor ou espectador. Diálogos são ótimos recursos para mostrar como um personagem se desenvolveu e informar o leitor de coisas que ele não poderia saber.

Não faça conversas fiadas sobre o tempo ou como o personagem fulano tem passado, mesmo que seja algo natural em uma conversa. 

Agora, um jeito que dá pra incluir esse tipo de papo é para criar a tensão. 

Por exemplo, um personagem precisa muito de uma informação sobre outro personagem, mas o interlocutor dele fica enrolando e insiste nesse ritual do papo furado. Isso fará com que o seu personagem e o seu leitor roam as unhas de ansiedade!

Todos os seus diálogos devem ter um propósito. Quando estiver escrevendo um, pergunte-se "O que isso acrescenta à história?", "O que eu estou tentando mostrar ao leitor sobre o personagem ou sobre a trama?" 

Se você não souber responder essas simples questões, risque esse trecho.

3 – Não encha seu diálogo com informações da história. 

Isso é algo que todo mundo tende a fazer. Você pensa "Quer jeito melhor de passar a informação para o leitor do que fazer os personagens discutirem isso detalhadamente?", mas pare agora! Informações e histórico dos personagens devem ser distribuídos ao longo da trama!

Um exemplo do que não fazer: Joana olhou para Carlos e disse "Oh Carlos, lembra que meu pai morreu de causas misteriosas e que minha família foi despejada pela minha tia malvada Ana?"; "Lembro sim Joana, você tinha apenas 12 anos e teve que abandonar a escola para ajudar sua família!".

Uma versão melhor dessa conversa seria: Jane virou para Carlos, seus lábios quase sorrindo: "Falei com tia Ana hoje." Carlos se lembrou — "Não foi ela que despejou sua família? O que ela queria?"; "Vai saber, mas ela me deu pistas sobre a morte do meu pai."; "Pistas?" Carlos ergueu uma sobrancelha. "Parece que ela não acredita que a morte dele foi natural".

4 – Inclua entrelinhas. 

Conversas, especialmente em histórias, são assuntos em camadas. Geralmente tem mais de uma coisa acontecendo, tente captar as sutilezas de cada situação.

Existem várias formas de falar as coisas. Se você quer que o seu personagem diga algo como "Eu preciso de você", tente fazer com ele diga a mesma coisa, sem usar essas palavras especificamente. 

Por  exemplo: "Carlos ligou o carro. Joana repousou a mão em seu braço; ela mordia o lábio." — "Carlos, eu... você realmente tem que ir tão cedo?" ela perguntou, retirando a mão. "Nós nem sabemos o que vamos fazer ainda."

Não faça seus personagens falarem tudo que se passa na cabeça deles ou tudo que estão sentindo. Isso dará informação demais e não dará espaço para o suspense.

5 – Misture! 

Você quer que o seu diálogo seja interessante, para manter seu leitor engajado na trama. Isso significa pular as conversas vazias de ponto de ônibus, sobre o tempo e o passado, e incluir mais conversas com conteúdo importante, como Joana confrontando a sorrateira tia Ana.

Faça seus personagens discutirem ou falarem coisas surpreendentes. Os diálogos devem ser interessantes. Se todos concordam ou fazem questões simples e as respondem, o diálogo pode ficar entediante.

Intercale a conversa com ação. Quando as pessoas conversam elas ficam mexendo nas coisas, dão risada, lavam os pratos, tropeçam etc. Adicionar esses elementos aos diálogos os deixará mais reais.

Por exemplo: "Você não acha que um homem forte e saudável como o seu pai teria simplesmente adoecido e morrido, não é?" disse tia Ana com uma risada. Joana se agarrou ao resto de sua paciência, dizendo "Às vezes as pessoas ficam doentes". "E às vezes elas têm uma ajudinha externa." Tia Ana foi tão convencida que Joana quis alcançá-la pelo telefone e estraçalhar seu pescoço. "Se alguém o matou, tia Ana, você sabe quem foi?"; "Ah, eu tenho uma ideia, mas vou deixar você adivinhar."
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continua…


Aparecido Raimundo de Souza (Simplesmente funambulesco*)

* Funambulesco = ridículo
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ERA MANHÃ de sábado e a doutora Lamparina estava de plantão na sua clínica odontológica. Não esperava clientes naquele dia. A maioria das pessoas preferia aproveitar o fim de semana para descansar ou se divertir. Ela mesma gostaria de estar em casa, assistindo a um filme ou acabando de ler os capítulos finais da “25ª Hora,” do escritor romeno Virgil Gheorghiu, lembrando que geralmente nos finais de semana, dificilmente algum imprevisto aconteceria que necessitasse com urgência das suas obrigações profissionais.

A doutora estava sentada na recepção, na cadeira da sua secretária, folheando uma revista, quando ouviu um barulho estranho vindo da antessala onde ficavam os pacientes e o acesso da porta principal. Parecia o som de algo batendo contra os vidros espessos que colocara para dar mais claridade ao ambiente. Apressada, se levantou a fim de verificar do que se tratava. Para sua surpresa, se deparou com um cavalo preto, de porte médio, que olhava fixamente para os óxidos metálicos que frenteavam a clínica. O animal parecia nervoso. Dava a impressão de ter bebido todas, ou além da conta. Em razão disso, soltava uns relinchos altos e estrepitosos.

Num primeiro momento, a doutora Lamparina ficou sem reação. Em toda sua vida desde que viera morar naquele povoado, não se lembrava de ter visto um espécime por aquelas paragens, muito menos na frente da clínica onde montara seu ganha-pão. Perguntou aos botões de seu jaleco de onde aquele quadrúpede saíra, e quem seria o seu dono? Pensou em abrir a porta e tentar afugentar o visitante. Teve medo de assustá-lo ou provocá-lo. Resolveu ficar quieta, esperando que o intruso fosse embora por conta própria.

Todavia, o “equus” não arredou pés. Pelo contrário, se aproximou mais e encostou o focinho naturalmente dando de cara com a própria imagem.  O sujeito, ou melhor, o rústico, parecia curioso, ou talvez confuso, com o advento do seu próprio reflexo. Ficou assim por alguns instantes e depois se virou de lado. Ato contínuo, iniciou uma série de coices na direção do vitral. A estrutura estremeceu, sem, no entanto, se quebrar. A doutora se atemorizou, e diante daquele fato bizarro, recuou. Pensou em gritar por socorro. Contudo, emparedada, não sabia se alguém viria em seu auxílio. 

Passou a mão no celular e tentou ligar para a polícia. A droga do aparelho estava com a bateria descarregada. O bronco, por sua vez, seguia prepotente, abusado, arrogante e fora de controle. Continuava com seus coices no revestimento. As patadas se faziam cada vez mais potentes. O belo arquitetônico finalmente se rachou. Um amontoado de pequenos estilhaços se espalhou pelo chão do piso de azulejos brancos. A dentista sentiu um frio na barriga. Imaginou o que o endiabrado faria se conseguisse derrubar a porta e invadir o recinto. 

Pensou nos seus equipamentos caros, nos prontuários dos clientes, e em seus diplomas. Também refletiu na segurança da sua vida. Se perguntou se o sáfaro (animal bravio) estava com raiva, com fome, ou precisando arrancar um dente. Lembrou-se de um evento parecido que ocorreu com a sua amiga ginecologista, a doutora Alterosa Bulboa. Uma vaca prenha quebrara a porta da sua clínica numa cidade próxima dali. Recordou que a médica dissera que a bendita bovina estava gravida, e, em consequência, carecia de ser atendida com certa urgência, pela especialista. 

Por um momento achou graça, porém, naquele momento, não conseguiu se situar em outra coisa menos absurda. O metido a machão seguia determinado. Mandava um coice atrás do outro. A porta finalmente cedeu. Pernadas precisas e o umbral se fez ao chão. A chave saiu correndo para um lado e a fechadura para outro. A doutora Lamparina se escondeu no banheiro, rezando para que o bruto não invadisse aquele pedaço e pedisse para usar o sanitário. Para sua sorte, o afrontoso deve ter pensando duas vezes e não seguiu adiante. 

Limitou-se em apenas olhar para dentro da clínica, como se estivesse satisfeito com os seus feitos tresloucados. Soltou uns relinchos mais alto que os anteriores, deu de ombros (de ombros?!), virou as costas (as costas?!) e se afastou. Saiu trotando calmamente pelo meio da a rua, sem se incomodar com as pessoas que se acotovelaram e gritavam, enquanto outras de celulares nas mãos, filmavam todas as cenas. A Lamparina de certa forma ficou aliviada e perplexa. Mais perplexa que aliviada. 

Não entendia o que acontecera, nem o que motivara o ilustre aviltante a tomar tal atitude. Deixou o banheiro e foi até o acesso onde ficava a porta.  Viu, de perto, o estrago que o animal fizera. Suspirou aliviada. Tinha consciência, nenhuma alma caridosa viria em seu auxílio e que em face dessa fatalidade, tomaria para si os prejuízos, o que não seria nada barato. 

Perguntou-se se o dono do ignominioso apareceria se responsabilizando pelos danos. Possivelmente, tais indagações jamais seriam respondidas. Espiou longamente para o dilatado da rua, e viu uma multidão de pessoas. Eram vizinhos. A maioria deles, curiosos que tinham ouvido o furdunço e se achegaram para filmar tudo o que tinha acontecido e depois postar nas redes sociais. Eles se depararam com os caquinhos espalhados pelo chão, o ingresso quebrado, e a doutora chorando copiosamente tentando compreender a extensão da sua desdita. 

Meia dúzia perguntou o que tinha acontecido, e ela fez um breve relato. Ao final da curta explicação dois senhores se mostraram solidários. Outros, com as caras de imbecis mongoloides riram como se a desgraça da dentista lhes fizesse bem. Vivalma perguntou se a pobre doutora estava bem, ou se necessitava de ajuda. Entretanto, ninguém soube dizer de onde viera o pilungo (cavalo ruim) e menos ainda quem seria seu proprietário. Eles disseram que o caso se fazia inusitado, e que ela deveria chamar a imprensa local, a rádio, culminando em levar tudo ao conhecimento do delegado. 

Disseram outros mais afoitos, que aquela tragédia interiorana daria uma história engraçada, e que ela deveria levar na esportiva. A doutora Lamparina agradeceu a fraca solidariedade e a desvigorada falta de senso do ridículo dos moradores e residentes próximos. Por certo, somente uns boçais e ignaros fariam pilhérias da desfortuna alheia. Ela só queria que aquele dia acabasse logo, e que pudesse esquecer o incidente. A coitadinha só queria voltar para casa e descansar. Queria, em paralelo, que o maldito "equidae" (nome científico de equino) nunca mais aparecesse na sua vida. 

Mesmo saco de coices, que o quadrúpede jamais tivesse coragem e retornar à sua calçada. 

Na segunda feira, por volta das quatro da tarde, o milagre. O inconcebível. Um senhor vestido com humildade apareceu trazendo no cabresto o cavalo imprudente. A doutora, ao vê-lo estremeceu. Um vidraceiro e um marceneiro estavam prestes a terminarem os estragos causados pelo funesto e inditoso animal. O pacato senhor chegou e se dirigiu primeiramente aos trabalhadores contratados para a reforma das depredações. 

Pediu mil desculpas culminando em saldar todas as despesas causadas pelo seu animal. Por fim, encarou à doutora, os olhos vermelhos tomados por lágrimas amargas:

— “Sinhoura, mir perdãum. Queru paga os prejuizu. A sinhoura nãum terá que desinborçar ninhum centavu. Só quiria pedir um favor. Se fô pussíver. Cuida do meo cavalu. Desdi a sumana passada eli tá cuma dor di denti dos infernu. Pelu amour di Cristu, cuida do meu pobri pangaré”?   

Fonte: Texto enviado pelo autor 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Vanice Zimerman (Tela de versos) 30


 

Mensagem na Garrafa = 107 =

Silmar Bohrer
Caçador/SC

"TUDO TE LEMBRA E LEMBRANDO CHORO"

agosto, 07, 2023.

Era madrugada da segunda quando a MALDITA levou do nosso convívio o amado Frederico, cãozinho "ente encantado de encantos", jovial, social, comunicativo, que viveu conosco por onze anos.  Assim mesmo! Nós, do signo de gêmeos, ele gostando de "falar", e eu entendia a língua dele, e ele compreendia a minha língua.

Nossa língua era universal. 

Comandante das horas dos dias, Frederico, você merece mais do que uma croniquinha, porque sua vida foi grandiosa, gloriosa, espetáculo de vida.  Tantos seres humanos não escrevem uma CRÔNICA linda e inesquecível como a de um cachorrinho doce, carinhoso, livre de maldades, injustiças, preconceitos. Alegria da nossa vida.

Nossa convivência tinha rituais, rumos e razões de ser.  O conversar estava no sangue, e a gente conversava a qualquer momento. Tinha um bordão especial.  Na alacridade de sempre, latia dizendo  -  eu e o papai somos nós.  E éramos nós ! 

Final de noite, dez e meia/onze horas eu no computador, ou lendo, ou escrevendo, olhava para o lado, ali o Negão sentadinho esperando silente para irmos deitar.

Manhãzinha, ele ao meu lado no colchonete, acordamos, conversamos, um abraço, vai para fora e logo volta, cutucando minha perna com o focinho como a dizer que estava ali, enquanto me lavo. Senta e espera para abrirmos a biblioteca.

Onze e meia me convida para a voltinha até o vizinho.  Vamos.  À tarde o soninho do vigia da casa.  Saio a caminhar e na volta encontro o "guri do pai" esperando no portão para nossa  caminhada na quadra. Seis e meia/ sete horas, escurinho, me chama para darmos quirerinha aos pássaros do bosco e nos fundos de casa. Sempre na frente.  A lista é longa...

Tantos lembrares, tantos viveres. As incursões. Banhos de mar, a busca do sirizinho na areia, viagens.  A empatia entre nós, a liberdade de viver leve e solto, como nós viventes também gostamos.

Fomos construtores. Construímos amigos. 

Você era o vanguardeiro, ia na frente abrindo sorrisos, jorrando alegria, carismático, criatura singular  -  fidalgo a ensinar o papai e a outros tantas lições de vida. 

Fez história, querido, e agora não há mais tempo para você.  Que lástima!  Mas vamos nos encontrar nalguma planura do universo.

Papai e mamãe choram a sua ausência, mas o LORDE FREDERICO estará sempre no nosso coração.  Papai e você seremos sempre nós, meu eterno Frederico. 

Fonte> enviado pelo autor. 

Teófilo Braga (A adega de Funck)

(Conto baseado das notas de Hoffmann)
A ironia, quando não é despertada pela luta incessante de contrariedades imprevistas, que cercam o espírito de dúvidas e desesperos, e o deixam na prostração da indiferença e do cinismo, é uma doença, uma febre lenta, que vai devorando a existência, depois de a ter despido de todas as alegrias. Observa-se no pessimismo do poeta. O riso com que a ironia se traduz, que é a expressão que mais de pronto lhe acode no acesso do frenesi suscitado pela vista repentina de um contraste, para quem o compreende, é uma visagem infernal, um esgar que gela, um arremedilho de cadáver sacudido por uma pilha galvânica. É uma descarga nervosa pela via muscular, como uma compensação, como notaram os fisiologistas. 

A gargalhada é também a linguagem das grandes agonias; é esta polaridade misteriosa da nossa natureza dupla, constituída já em aforismo: os extremos tocam-se. A ironia, derivada do mesmo principio supremo, é a impressão abrupta de uma ideia infinita que se compara com outra finita, cuja disparidade intuitiva desperta em nós todas as vibrações do sentimento cómico. A primeira manifestação do cómico na vida foi por certo o grotesco; Susarion e Thespis caracterizavam os seus personagens com borras de vinho.

Ele aparece-nos no mundo moderno como uma arma da burguesia contra a pressão do clero e as extorsões dos senhores feudais, na Festa do Asno, nos serviços, nos contos cômicos, nos baixos relevos e goteiras das catedrais. O pico, a agudeza do pensamento estão completamente materializadas na imagem; eis o cómico pela sua parte visível ou objetiva, tanto da simpatia popular.

O humor é um grão elevado; no contraste que se funda na antítese da ação e o pensamento, a forma não corresponde, contraria mesmo a expressão da ideia, donde resulta uma monotonia triste; o esforço do que procura alegrar-se infunde nos que o contemplam uma melancolia indefinida, como na Viagem de Sterne. A ironia é a impossibilidade de conciliar os elementos da antítese, ou o contraste mental que gera todo o sentimento cómico: tal é o desespero de Hamlet propondo ao seu espírito o problema insolúvel e eterno: To be or not to be that is the question.

A imaginação de Hoffmann similar a um caleidoscópico onde estas três cambiantes do sentimento se refletem, confundem, se cruzam em direções infinitas, formando um espectro a que chamamos o fantástico. A ironia, o humorismo e o grotesco sucedem-se, como fases da sua inspiração. Quando ele sente estas inversões do sistema nervoso, anuncio da ataxia locomotora que progride de um modo irremissível, o pensamento então dá forma a todas as vertigens; a dor torna a criação pessoal, caprichosa; os retratos que ele faz são quase sempre caricaturas, a incarnação de um riso de desespero. As bebidas e o seu cachimbo de Kumer vêm distrai-lo da consumação que ele observa a cada instante em si. O fumo que se enovela em formas extravagantes no ar, e se dissipa como uma quimera fugitiva, representa-lhe os tipos que reproduz nos seus contos. Ao fogão, na concentração íntima da família, o cachimbo povoa-lhe o aposento de silfos e gnomos, que embalam a fantasia enlevada em sonhos incríveis, com músicas estranhas que o deliciam no egoísmo do sofrimento que o corrói. Ele tem uma afeição particular ás pessoas espirituosas, porque lhes supõe talvez a veia sarcástica proveniente de algum estado mórbido. Quando se retrata caricaturiza-se. 

Muitas vezes aceitar-se uma criação cómica, rimo-nos, sem saber que a inspiração que a produziu foi a doença que arrebatou Molière, o desalento de Gil Vicente, a resignação de Scarron. Porque não procuraria Hoffmann distrair-se com o vinho, afogar nele a preocupação do mal irremediável, que lhe atacava a espinha dorsal? 

O seu editor Funck, homem estimável de caráter, a quem a especulação não pôs em guerra com os que têm a infelicidade de precisar escrever, convidou-o para passar alguns dias na sua residência em Bamberg. Funck tinha uma magnifica adega e lembrava-se perfeitamente daquelas expressões de Hoffmann: «Fala-se muito do entusiasmo que procuram os artistas no uso das bebidas fortes; citam-se músicos, poetas que não podem trabalhar senão assim; eu não sei, mas é certo que com esta feliz disposição, direi, quase sob a constelação favorável, em que se está quando o espírito passa da concepção à realização, as bebidas espirituosas aceleram a torrente das ideias.»

Funck tinha o mais excelente de todos os vinhos, como lhe chamava Hoffmann, o Porto, que no seu nome traz o segredo da sua força. O escritor original era esperado com ansiedade em Bamberg. Chegou por uma tarde fria. O céu estava escuro, carregado de nuvens; relampejava a espaços, como o preludio de uma grande trovoada noturna. Quando a natureza é triste sentimos uma vontade de nos reconcentrarmos; o lar domestico é a grande poesia do norte. Um dos maiores castigos no antigo direito germânico era a pena severa expressa naquela formula romana interdictio tecti; o banido é comparado ao lobo solitário; a casa era arrasada, tapado o poço, extinto para sempre o fogo do lar.

Hoffmann esquecia todas as dores ao abraçar aquele amigo; com toda a liberdade de uma confiança intima sentou-se logo ao piano. O frenesi da inspiração fazia-o percorrer desesperadamente o teclado. Era a sua ultima composição, meio improvisada com o júbilo que sentia. Começou um canto com uma voz desentoada, que fazia arrepiar os nervos; parecia que estava em delírio. Nisto um trovão rebentou com um estampido soturno.

—A natureza, disse ele para Funck, escarnece-se de mim, parodia-me a voz roufenha. Há bastantes dias que tenho sentido humor para o romântico religioso. Jovis omnia plena! Hoje, não sei se é o excesso da alegria, predomina em mim uma exaltação humorística levada até à ideia da aberração.

Funck continuava silencioso. Hoffmann permaneceu alheado alguns instantes, como levado por uma serie de deduções, que absorvem fatalmente toda a contenção do espírito. Estava a diagnosticar-se; a prolongada doença dera-lhe um certo conhecimento do seu estado. Depois prosseguiu:

—É notável! Que diversidade de sensações agora. Disposições humorísticas, coléricas, com um humor musical exaltado, e sentimento de um bem estar com indiferença. Como conciliar tudo isto? O hematose nervoso inverte-se-me de dia para dia.

Restrugia um aguaceiro espesso. Há no cair da agua uma magia, que adormece. 

—Vamos, disse Funck, interrompendo aquela reflexão penosa, eu tenho um excelente remédio. Vejo-te tiritar com frio, de um modo que me tira a satisfação do agasalho que presto a um amigo. O seio de Abraão deve estar com uma temperatura suave; refugiemo-nos lá.

— Como isso era bom! Mas infelizmente as asas da poesia não nos desprendem da terra; a realidade é pior do que o sol para as asas de Ícaro; ela toca-nos o corpo com mais aspereza do que o velho Satã quando experimentava o desgraçado varão da terra de Hus. Agora acho-me divorciado com a poesia, com a musica, com a pintura; são as três fúrias que sob uma aparência sedutora surgiram das sombras do paganismo para atribularem-me o espírito.

—E por que não havemos de refugiar-nos, em uma tarde destas, no seio de Abraão? —disse Funck procurando interromper a corrente das ideias aflitivas.—Não é tão difícil como pensas. Nem são precisas asas para ir lá. Para descermos basta obedecer à lei eterna da gravidade, que sobre nós pesa. Não sabias ainda que a gravidade é o nosso pecado original?

Hoffmann sorriu-se; o seu amigo tomou um tom humorístico para se adequar ao carácter dele nesse dia.

—Apesar da facilidade que apresentas ainda não resolvi o problema. Como iremos nós procurar conforto ao seio de Abraão?

—Segue-me.

Funck caminhava adiante com um ar vitorioso. Hoffmann sorria-se com um modo duvidoso, para que o riso o defendesse do logro que esperava. Desceram uma escadaria escura; uns ferrolhos pesados gemeram, como se abaixasse uma ponte levadiça.

Entraram. Era um subterrâneo fundo, alumiado por um lampadário de bronze. Depois de afeito à sombra, Hoffmann pôde discriminar grandes toneis dispostos, como uma longa fila de cachaci-pansudos cônegos*.

Era a adega do seu amigo Funck. De fato havia ali uma temperatura tépida, de fermentação. Nenhum olhar importuno através da abobada calada.

—Se os velhos patriarcas, principalmente nosso pai Noé, não trocariam de boa vontade a tua adega pelo seio de Abraão!—Hoffmann estava animado de uma alegria indivisível; era um homem de extremos; a sensibilidade excessiva deixava-lhe apreciar os mais desapercebidos contrastes, era por isto que ele possuía mais do que ninguém a raça irritável dos poetas.

Mal acabava de proferir aquelas palavras, quando se atirou de um salto, com uma loucura de criança, e se escarranchou em um tonel.

Funck seguiu o exemplo.

—A vida é um grande mar, que estua em convulsões intermináveis; felizes os que caindo na voragem encontram deste delfins, que os tomam sobre si e os levam a porto seguro.

—Foste feliz na imagem, principalmente, porque o vinho desperta-me o humor erótico-musical, e os delfins, se dermos credito a antigos fabuladores, eram levados pela magia da musica.

E começou a cantar alguns trechos da sua opera a Ondina, que só interrompeu para levar à boca o sifão de lata que estava mergulhado na pipa. Hoffmann tocava a realidade dos seus contos.

—Este não dá pelos calcanhares do teu dileto Porto?—acudiu Funck; o vinho de Nuits é dos melhores de Borgonha, e, graças ao céu, podemos nadar em mar de rosas. 

A noite corria tempestuosa e tétrica: os trovões rebentavam com uma detonação tremenda. Nos ares, coriscou um relâmpago repentino e veio iluminar com um clarão pálido o rosto dos dois amigos, que tocavam neste momento os copos espumantes. Era um quadro com toda a verdade e simplicidade de Teniers, como o próprio Funck, em uma nota de uma edição do seu amigo, confessa com aquela ingenuidade alemã.

Hoffmann ficou deslumbrado com o fulgor instantâneo; tinha a mudez do terror.

—Em que pensas?

—Um conto, um conto horrível!

—Mais uma saúde, e narra-me essa historia ponto por ponto.

—Historia? dizes bem; porque tem muita verdade, ao menos a verdade da arte. Nunca te falaram nisso? Admira! Foi tão notório. Quem a não conheceu! Bela, como era, ninguém podia fita-la sem experimentar o pasmo da admiração. As linhas do semblante tinham uma irradiação etérea, perdiam-se no ar. Era uma visão suspensa, a incarnação de um sonho indivizível de amor.

A tristeza realçava-lhe a candura angélica. Para ela, a vida era um desterro no mundo. Passava, alheia de tudo, distraída, sem saber que levava após si todas as aspirações que um olhar de relance, fortuito, gerava na alma. Um dia vi-a pelo braço de um homem feio, que a conduzia com burlesca familiaridade! Disseram-me que era o marido.

Perscrutei o segredo de uma união para mim impossível, inexplicável. Não tinha sido arrojada a hipótese: viviam com uma certa paz artificial, um acordo de convenção ante a sociedade. O marido bem conhecia, que a família da engraçada criança a forçara aquela união desigual; a consciência da riqueza não conseguira persuadi-lo de que a merecesse; e espreitava, espiava-lhe todos os olhares, interpretava-lhe cada gesto insensível.

O que não idearia o ciúme? O ciume que não tem a franqueza selvagem de Otelo é vil, infame. Um dia, a infeliz senhora, começou a sentir-se indisposta; não faltavam carinhos da parte do esposo, não poupava esforços para consola-la, com uma solicitude hipócrita. O mal progredia, convulsões violentas a acometiam, vertigens assombrosas, dores intensas, como se lhe retalhassem as entranhas. O marido escutava os gemidos com um pungimento afetado.

Sabia que morria:—«Sabes, disse ela tomando-lhe uma das mãos, eu deixo a vida, mas custa-me baixar à frieza do sepulcro sem te dizer uma palavra. Oh! nem sei como revelar-te esse segredo, esse desvario de uma paixão infantil. Não soube guardar a fidelidade do tálamo.» 

O marido ouviu a confidencia solene com um ar estúpido de  imbecilidade:—És neste momento tão generosa e grande! A verdade nos teus lábios vibra-me de um modo que tudo te perdoo. Choras? escuta. Deixa também fazer-te uma revelação tremenda: envenenei-te.

Hoffmann não pôde tirar do conto a moralidade que se espera, e caiu, esquecido do mundo, entre os toneis do seu amigo.
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* cachaci-pansudos cônegos = não encontrei o significado.

Fonte> Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894. Disponível em Domínio Público. Português atualizado por J. Feldman