segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Três) Morcego Cego


O TELEFONE TOCOU e Glorinha, a empregada, atarefada passando o café, gritou lá da cozinha para  que o Chico, motorista de seu patrão, o magnata das saborosas sardinhas Tuti, sentado  na sala,  fizesse a gentileza de ver quem era. Obediente, e  prestativo, o Chico foi:  

—  Alô, bom dia!

— Bom dia.

— Com quem falo?

— Quer falar com quem?

— Com o Tuti.

— O senhor Tuti não está.

— Sabe a que horas posso encontrá-lo?

— Glorinha me passou a informação que só depois das oito da noite.

— Quem é a Glorinha?

— A Glorinha é a empregada dele.

— E o  senhor, quem é?

— Não sou o senhor Tuti.

— Ok. Qual seu nome, por obséquio?

— Prefiro não me identificar. Não vejo necessidade.

— Estou propensa a acreditar que o senhor é o Tuti e está tentando me enganar. Acertei?

— Asseguro-lhe que não. Conhece o senhor Tuti?

— Não tive ainda o prazer.

— Acaso falou com ele alguma vez?

— Na verdade nunca tivemos nenhum contato. Esta é a primeira vez que ligo para a sua casa.

— Minha não,  a casa é dele. Se nunca falou com o senhor Tuti, como ousa afirmar que eu sou ele, se jamais conversou comigo?

— Tá vendo só? Na mosca. O senhor é o Tuti.

— Não, não sou.

—  Claro que é.

— Prove que sou o senhor Tuti.

— Repetirei o que o senhor acabou de dizer: “Como ousa afirmar que sou ele se nunca conversou comigo?”.

— E daí...?

— Se o senhor não fosse o Tuti  diria: “Como ousa afirmar que sou ele, se nunca conversou com o cara, ou com o sujeito?”. Ao contrário, o senhor foi categórico. O senhor disse com todas as letras: “Como ousa afirmar que sou ele se nunca conversou comigo?”.

— Basta. Não precisa repetir.

— E para completar ficou nervoso. Aliás, está nervoso. Uma prova insofismável de que é o próprio.

— Que próprio?

— O Tuti em carne e osso.

— Senhora, o senhor Tuti realmente saiu. Só depois das oito da noite...

— A que horas ele saiu?

— Não sei ao certo.

— Sabe dizer onde foi?

— A Glorinha  não me disse. Afinal de contas, a senhora é de onde? Deixe o nome e o número do telefone que farei o favor de anotar e repassar para a moça que trabalha aqui na residência dele.

— Vamos esclarecer uma coisinha?

—  Que coisinha?

— Não sou casada.

— E o que eu tenho a ver com o fato  da senhora não ser casada?

— Às pessoas casadas o senhor se dirige usando a tal da senhora. Às solteiras...

— Por acaso tenho bola de cristal?  

— Senhor...

— Também não sou senhor.  

— O tratamento diferenciado faz parte da educação, cavalheiro.  

— Não quero saber.  

— Seu Tuti, preste atenção. Eu...

— Senhora, quero dizer... Moça, não sou o senhor Tuti, por gentileza, não insista. Está começando a me tirar do sério.

— Sabia que é feio mentir?

— Quem está mentindo aqui?

— Só vejo uma pessoa berrando no meu ouvido.

— Berrando? Quem está berrando?

— O Tuti. Só pode ser o senhor. Pois bem, seu Tuti. Vamos ao que realmente nos interessa, ou seja, ao real motivo que ensejou o presente telefonema para a sua residência. O Senhor é o Tuti. Tuti de quê?

— Dona, não sou Tuti de nada.

— O senhor não tem sobrenome?

— Não vou responder. Aliás, não quero mais prolongar esta lenga-lenga. Passe bem.

— Pretende continuar insistindo na brincadeira? Fale sério!

— Por que não desliga e vai  até a esquina fumar um cigarro ou tomar um refrigerante bem geladinho no canudinho?

— Não fumo mais. Parei  faz  exatamente dois anos.  Refrigerante dá estrias. E o canudinho... Bem o canudinho...

— Esquece o canudinho. Tenha um bom dia.

— Calma, seu Tuti. Só confirme para mim o seu nome completo e seu endereço.

— Simpática, não sou o senhor Tuti. Ele saiu...

— Vamos supor que realmente o seu Tuti esteja ausente . O senhor, quem é?

— Um colega e um amigo.

— E esse colega e amigo não tem nome?

— Senhora, eu...

— Senhorita. Lembre-se: não sou casada.

— Que seja. Atendi ao telefone para fazer uma gentileza à Glorinha que está passando o café. Tenho mais o que fazer. Pela última e derradeira, tenha um bom dia.  

— Calma, calma. Percebo, por sua voz, que o senhor está muito nervoso.

— E não é para estar com você torrando meu saco?

— São quase dez horas da manhã. Estamos no horário comercial. Apenas tento fazer meu trabalho.

— Vamos colocar um ponto final nesta parlenda. Não sou o senhor Tuti. Ligue depois das oito da noite e se entenda com ele diretamente. Ou deixe seu nome e número. Ele lhe retornará a ligação.

— Insisto: quem é o senhor?

— Um colega e amigo do senhor Tuti.

— Colega e amigo do senhor Tuti em sua casa, assim tão cedo?

— Vim resolver um problema. Passei para pegar os documentos do carro dele. Coincidentemente, como a Glorinha está preparando um café, estou esperando pela bebida. Meu Deus, o que estou fazendo? Não tenho que lhe dar satisfações.

— Ora, seu Tuti, fique à vontade.

— Tuti é a sua mãe.

— Não me ofenda. Minha mãe se chama Umbelina. Umbelina sem o agá. E não tem Tuti.

— Vá para o inferno.

— Irei. Antes de me pôr a caminho, me diga seu nome todo. Tuti de quê?

— Querida, vá para o raio que a parta.

— Cavalheiro, colabore. Quero seu nome para constar aqui na minha ficha de atendimento ao cliente. Tenho que anotar o nome da pessoa com quem falei neste número.

—  Se lhe der meu nome me deixará em paz?

— Juro por tudo quanto é mais sagrado.

— Pois bem. Sou o Chico. Chico Média. Satisfeita?

Risos:

— O que foi agora? Qual a graça?

As hilaridades continuaram:

— Vou desligar...

— Então o senhor é o famoso Chico Média?

— Sou. Contudo, não tenho nada de famoso. Por que continua  gargalhando? Tenho cara de palhaço?

— Me lembrei de um fato curioso. Mamãe fala todo mês no senhor...

— Sua mãe? Ela não me conhece! Que patranha é essa agora?

— Se minha mãe não lhe conhecesse, não teria motivos para ficar uma arara. Uma arara. Principalmente quando o senhor chega...

— Deve haver algum engano neste falatório todo. Sua mãe nunca me viu nem mais gordo, nem mais magro. E eu... Eu nunca cheguei...

— Agora que declinou seu nome, tenho cá minhas dúvidas...

— Que dúvidas? Como sua mãe poderia me conhecer?

— Vou provar que o senhor a conhece. E a incomoda, literalmente, todos os meses.

— Eu a incomodo? Como? De que forma? Não sei quem é você, moça, que dirá a sua mãe, esta tal de dona Umbelina.

— Lembrando, para que não esqueça: sem o agá.

— Que diferença isto faz, com ou sem o agá?

— Seu Tuti —, quero dizer —, seu Chico, o senhor me faria um imenso favor?

— Favor, que favor?!

— Saia de uma vez por todas da vida da minha mãe. Quero dizer, desgarre da minha querida genitora. Todo mês o senhor a incomoda. Mamãe fica uma fera com a sua presença. Que droga, que coisa feia, seu Média... Digo, seu Chico...

Chico Média ia retrucar mas a engraçadinha se abriu novamente numa estrondosa chalaceação desligando o aparelho na cara dele.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

domingo, 1 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 425

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) JP, Granado e Schiavone


Se a gente juntasse alguns dos muitos casos engraçados ocorridos na história desta cidade, daria um livro delicioso. Outro dia, num papo com um pessoal meio da saudade, conversa-vai, conversa-vem, veio à lembrança um fato que vou recontar pra vocês, pedindo desculpas antecipadas aos três ilustres personagens da cena, dois deles em memória.

João Paulino estava mais ou menos na metade do seu primeiro mandato de prefeito – 1962, se me não engano. Na época, Ademar Schiavone era diretor administrativo e colunista social do “O Jornal de Maringá”, então comandado pelo velho e bom jornalista Ivens Lagoano Pacheco. Mas Schiavone era um colunista social guerreiro: além de fofoquear a vida dos clubes e as festas da cidade, gostava de falar também de política. Arrumou brigas históricas com os vereadores e muitas vezes irritou João Paulino com críticas azedas. Além disso, o “O Jornal” era costumeiramente provocador.

A prefeitura era onde depois funcionou a biblioteca pública, na esquina da Getúlio Vargas com a 15 de Novembro. De repente um funcionário entrou no gabinete do prefeito informando que “um jornalista desaforado havia subido com o carro no jardim em frente ao correio”, portanto a poucos metros do paço municipal. JP quis saber quem era o tal jornalista. Responderam que era um colunista social. O prefeito pensou logo no Schiavone, enrubesceu o rosto e ordenou: “Mandem prender o carro dele... agora”.

Deu o maior auê na praça. “Não foi por querer, foi um acidente, foi a direção que quebrou... Que negócio é esse de prender o carro?” – protestou o jornalista. Mas os guardas não quiseram saber de desculpas e levaram o Gordini para o Trânsito, com ameaça de levar também o dono, se ele não sossegasse.

Gordini?... Mas o Schiavone não tem Gordini; o carro dele é um fusquinha. Então deve ter havido um baita engano. João Paulino, já de bom humor, disse que queria apenas dar um susto no Schiavone, que vivia pegando no pé dele com artigos irreverentes. Mas... e se o dono fosse outro? Que jornalista tinha Gordini em Maringá?

Era o Pedro Granado, também na época prestigiado colunista social, da “Tribuna de Maringá” (do saudoso Manoel Tavares). Granado não tinha nada a ver com as broncas do Schiavone; ele aliás nem falava de política, estava pagando o pato inocentemente. Dera um problema na direção do veículo e ele realmente subiu no jardim, mas sem querer. E agora?

Agora quem estava mais chateado com o engano era o prefeito. Telefonou para o Trânsito e pediu que liberassem o Gordini. Em seguida telefonou para o Granado, explicou o mal-entendido e ambos acabaram dando boas risadas.

E o Schiavone? Deu também uma gargalhada. Anos depois virou amigão do João Paulino, que até o convocou para trabalhar na administração municipal como secretário.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 23-7-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Arquivo Spina 24 (Artur José Carreira)

 

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 3

 

Agostinho da Cruz
 
(Ponte da Barca, 1540 – 1619, Setúbal)

À COROA DE ESPINHOS


A que vindes, Senhor do Céu à terra,
Terra que sendo vossa vos enjeita,
E que tanto vos honra e vos respeita,
Que em não vos receber insiste e emperra?

Ah! Quanta ingratidão nela s’encerra!
Quão mal de vossa vinda se aproveita!
Pois se põe a tomar-vos conta estreita,
Mais brada contra vós, quanto mais erra.

E vós de vosso amor puro forçado
Os malditos espinhos lhe pisais,
Dos quais ainda sendo coroado,

A maldição antiga lhe trocais
Na bênção, que lhe dais crucificado,
Quando morto d’amor, d’amor matais.
****************************************

Padre Baltasar Estaço
 
(Évora, 1570 - 16??)

A CRISTO NA CRUZ


O bem que a tantos bens me convidava,
O qual desmereci, vós merecestes
Que a vida que por meu amor perdestes,
A vida me alcançou que eu desejava.

O mal que a tantos males me obrigava,
O qual não satisfiz, satisfizestes,
Que a morte que por meu amor sofrestes,
Da morte me livrou, que eu receava.

A vós Deus amoroso, a vós só amo,
De vós pratico, só, de vós escrevo,
Por vós a vida dou, e a morte quero,

Em vós fogo de amor, em vós me inflamo,
Pois que pago por vós o mal que devo,
E mereço por vós, o bem que espero
****************************************

D. Francisco Manoel de Melo
 
(Lisboa, 1608 – 1666)

SONETO

Eu que faço? Que sei? Que vou buscando?
Conto, lugar, ou tempo, a esta fraqueza?
Tenho eu mais que acusar, por mais firmeza,
Toda a vida, sem mais como, nem quando.

Se cuidando, Senhor, falando, obrando
Te ofenda minha ingrata natureza,
Nascer, viver, morrer, tudo é torpeza
Donde vou, donde venho, donde ando?

Tudo é culpa, ó bom Deus, não uma e uma
Descubro ante os teus olhos. Toda a vida
Se conte por delito, e por ofensa.

Mas que fora de nós, se esta, se alguma
Fora mais que uma gota a ser medida
Co’ largo mar de tua Graça imensa?
****************************************

Jerónimo Baía
 
(Coimbra, 1620/30-1688, Neiva)

FALANDO COM DEUS


Só vos conhece, amor, quem se conhece;
Só vos entende bem quem bem se entende;
Só quem se ofende a si, não vos ofende,
E só vos pode amar quem se aborrece.

Só quem se mortifica em vós floresce;
Só é senhor de si quem se vos rende;
Só sabe pretender quem vos pretende,
E só sobe por vós quem por vós desce.

Quem tudo por vós perde, tudo ganha,
Pois tudo quanto há, tudo em vós cabe.
Ditoso quem no vosso amor se inflama,

Pois faz troca tão alta e tão estranha.
Mas só vos pode amar o que vos sabe,
Só vos pode saber o que vos ama.
****************************************

Frei António das Chagas
 
(Vidigueira, 1631-1682, Torres Vedras)

SONETO

Deus pede hoje estrita conta do meu tempo
E eu vou, do meu tempo, dar-lhe conta.
Mas como dar, sem tempo, tanta conta
Eu que gastei sem conta tanto tempo?

Para ter minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado e não fiz conta.
Não quis, tendo tempo, fazer conta.
Hoje quero fazer conta e não há tempo.

Oh! Vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo em fazer conta.

Pois aqueles que sem conta gastam tempo,
Quando o tempo chegar de prestar conta,
Chorarão, como eu, se não der tempo.

Fonte:
Sammis Reachers (org.). Antologia de poesia cristã em língua portuguesa. e-book.

Carla Rejane Silva (Tristes lembranças)


Sentada nesse balanço, olhando para a imensidão...

Com meus pensamentos voando ao longe, sentindo uma brisa leve tocar minha face, sinto as lágrimas escorrerem molhando meu rosto.

As recordações vêm como num filme triste...

Me lembro: ao receber sua mensagem como fiquei feliz. Dizia que queria me ver naquela noite, me esperaria na praça onde trocamos nosso primeiro beijo.

Como uma criança, que acabara de ganhar o presente tão sonhado...

Saltitante me arrumo pra você. Coloco minha calça preferida, que fica coladinha em meu corpo, a blusa vermelha, batom quase do mesmo tom, meu perfume suave com cheirinho adocicado.

Prendo meus cabelos vermelhos...  

Me olho no espelho; estou pronta pra você. Vou ao encontro do meu amor. Uma felicidade contagiante invade meu ser, transbordando através dos meus olhos.

De longe vejo você e me aproximo...

Você pega minhas mãos entre as suas e me pede pra sentar. Tinha algo a me comunicar… meu coração dispara, quase saindo boca afora. Sinto suas mãos suadas, observo que você evita olhar pra mim.

Nesse momento antecipando...

Prevendo o que estava por vir, pressinto algo. Uma dor se forma em meu peito, penetra minha alma, meu coração como uma faca afiada. Então pedi que me dissesse o que estava acontecendo: - Fale por favor.

Com uma certa relutância...

Diz que ama outra pessoa. Que não sente mais nada por mim. Apenas uma imensa gratidão, quer apenas ser meu amigo. Por alguns instantes me sinto perdida, sem chão.

Mas com uma coragem assustadora...

Com aquele  nó na garganta. As lágrimas teimando em querer cair, ouço minha própria voz dizer seja feliz! Muito  feliz! Me levantei daquele banco da praça virei as costas pra você e disse adeus e fui embora.

Fui embora chorando...

Caminhando como um fantasma sem rumo. Uma vontade louca de gritar, minha alma naquele instante estava dilacerada, esmagada. Não por ter perdido você. Mas pela dor das promessas não cumpridas, pelas mentiras, e por ter sido covardemente traída.

Hoje sentada nesse balanço...

Olhando,  mas sem perceber a beleza  ao meu redor. Ainda um pouco machucada, ferida, mas com uma decisão tomada: – Eu vou esquecer você. Tirar você de vez da minha vida. Enterrar esse amor que sonhei, um sonho sonhado a dois, mas que terminou em enorme pesadelo.

Preciso te esquecer, preciso.

Fonte:
Carla Sonhadora

sábado, 31 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 424

 



Arthur de Azevedo (O Lencinho)


O Juvêncio, explicador de matemáticas, era um homem lúgubre.

Nunca ninguém o viu rir, nunca ninguém lhe apanhou a expressão do olhar através dos óculos escuros.

Tinha as faces encovadas, o nariz adunco, a barba crescida.

Trajava sempre de preto e usava chapéu alto.

Era distraído e parecia estar sempre vagando pelos intermúndios do infinito, levado sobre uma nuvem de algarismos.

Numa dessas belas tardes cariocas, em que todas as mulheres bonitas vão assoalhar na Avenida a sua beleza e as suas toilettes, o explicador Juvêncio tomou, com alguma dificuldade, o bonde no Largo da Carioca, para ir dar uma explicação no Catete. Era à hora de mais afluência. Os lugares eram conquistados à força de agilidade e destreza.

O explicador Juvêncio ficou, por acaso, num bonde cheio de mulheres, num bonde que parecia antes a barca de Citera, pintada por um Watteau moderno. Que pena! O explicador Juvêncio, que era um viúvo positivista, não tinha olhos para a porção mais bela da humanidade.

No banco em que ele se sentou estavam três cocottes espaventosas, que o embriagavam com uma porção de capitosos perfumes.

O banco da frente estava ocupado por uma família: três elegantes senhoritas, acompanhadas pela mãe, que poderia passar pela irmã mais velha.

As três senhoritas falavam pelos cotovelos, comentando tudo quanto tinham visto durante o passeio.

Uma delas, por sinal que a mais bonita, agitava entre os dedos um pequenino lenço branco, um mimo de lenço em que nariz algum se atreveria a assoar-se.

No calor da conversa, a senhorita fez um gesto, e o lenço, escapando-lhe da mão, foi cair - vejam que fatal casualidade! - foi cair mesmo em cima da braguilha do explicador Juvêncio.

Este, que ia entretido a ler um livro de matemáticas, não deu absolutamente pela coisa.

As cocottes riram a bom rir, mas nenhuma se atreveu a ir buscar o lenço onde caíra para entregá-lo à dona. Entretanto, a que estava junto do explicador Juvêncio deu-lhe uma cotovelada e, com um olhar, chamou-lhe a atenção para o lenço.

O que se passou então foi extraordinário. O explicador Juvêncio disse consigo: - Quando me hei de corrigir das minhas distrações? Pois não é que deixei ficar de fora um pedaço da fralda da camisa? E imediatamente, cobrindo com o livro o que estava fazendo, empurrou o lencinho para dentro da braguilha.

Depois, tirou o chapéu à cocotte, dizendo:

- Muito obrigado, minha senhora - e continuou a ler imperturbavelmente.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Professor Garcia (Trovas que Sonhei Cantar) 12


Aquela fronte sofrida,
que na cruz, tanto sofreu,..
Por ser a essência da vida
está viva e não morreu!
- - - - - -
As rendas da cor de neve,
na areia branca a brilhar...
São versos que o vento escreve
das ladainhas do mar!
- - - - - -
A todo instante eu tropeço,
ergo-me e fico sem jeito;
na dor da queda é que eu meço
a fé que existe em meu peito!
- - - - - -
Canta, velho sino, e espanta,
a dor que canta em teu peito,
que a dor que em meu peito canta
espanto do mesmo jeito!
- - - - - -
De que valem nossos laços,
arranjos lindos, perfeitos...
Se esses nós de teus abraços
ao por do sol, são desfeitos?
- - - - - -
Desde minha tenra infância,
seguem-me por onde eu for...
Os gritos da mendicância,
por meus pedidos de amor!
- - - - - -
Do amor, eu não me desfaço,
nele, a vida se agasalha...
Pois para o amor, sobra espaço
no meu casebre de palha!
- - - - - -
Esquece as mágoas pequenas,
e as grandes, torna a esquecer;
diante de Deus, nossas penas,
são dons do nosso viver!
- - - - - -
Eu vi num pobre andarilho,
a paz no rosto de alguém!
Honra e pobreza, meu filho,
é o que pouca gente tem!
- - - - - -
Mãos dadas! sempre juntinhos
curtindo os dias risonhos...
Quando formos dois velhinhos,
quem curtirá nossos sonhos?
- - - - - -
Meus poetas pirilampos,
um contraste nos conduz;
Uns, são luzes pelos campos;
o outro, sem campo e sem luz!
- - - - - -
Minha casa é uma surpresa;
é simples, do teto ao chão...
Se faltar pão sobre a mesa,
sobra amor no coração!
- - - - - -
Na infância, mamãe rezava,
à tarde, por devoção,
enquanto a gente jogava
bola de gude e pião!
- - - - - -
O homem deixa cicatrizes
por todo canto que passa,
trocando as horas felizes
por minutos de desgraça!
- - - - - -
O ocaso, que me seduz,
é o mesmo que me entristece,
quando a tarde apaga a luz,
puxa a cortina e adormece!
- - - - - -
O pai, que aconselha o filho,
ante a dor que fere o peito...
Mostra que o amor tem mais brilho,
depois de um sonho desfeito!
- - - - - -
Percebo em tuas retinas,
minha eterna flor de lís...
O olhar de duas meninas,
num ser que me faz feliz!
- - - - - -
Pondo em meus pés, teus espinhos,
e a tua cruz sobre as costas...
Rasguei velhos pergaminhos
com perguntas sem respostas!
- - - - - -
Por ironia ou por terdes
falso orgulho, é que, no entanto,
Há nos vossos olhos verdes
perpétuas gotas de pranto!
- - - - - -
Preso ao lar que não é dele,
canta o poeta passarinho
a dor, do pranto daquele,
que canta longe do ninho!
- - - - - -
Saudade - que me incendeia,
toda noite, que surpresa!...
Se apago a luz da candeia
sua chama fica acesa!
- - - - - -
Se amar é o gesto mais nobre
que a vida ensina e nos diz,
no amor, é que se descobre
um jeito de ser feliz!
- - - - - -
Se o tempo, desgovernado,
apaga tudo que alcança...
Por que poupar o passado
que apagou minha esperança?
- - - - - -
Sigo-te amor, fielmente,
e aprisionado aos teus laços,
como é leve esta corrente
quando estou preso em teus braços!
- - - - - –
Só depois que a idade avança,
o homem, já curvo e cansado...
Enxerga a luz da esperança
no olhar de um crucificado!
- - - - - -
Velho andarilho, na estrada,
tangendo o passo miúdo;
na mochila, quase nada,
no coração, quase tudo!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018.  
Livro enviado pelo autor.

Humberto de Campos (Miopia)


Uma das graças que eu devo ao Supremo Arquiteto do Universo é haver me dotado de vista excelente. Até os sessenta e cinco anos eu recusei aos olhos, sempre, qualquer auxílio artificial, vindo a capitular, apenas, há seis, quando tive de recorrer à piedade ótica de um monóculo providencial. Um aparelho visual perfeito vale por uma bênção do céu; e deve levantar as mãos, rendendo-lhe o culto do seu coração, todo homem, velho ou moço, que tem a luz suficiente para enxergar, de noite ou de dia, os perigosos buracos do mundo.

Não era assim, infelizmente, o meu saudoso amigo Vieira Cardoso, a quem a magnanimidade do imperador concedeu, mais tarde, o titulo de visconde de Guaxupé.

Vieira Cardoso, que foi duas vezes ministro na Monarquia, era, talvez, o homem mais míope de todo o Brasil. Usava grau três, reforçado, e, tirando o pince-nez, era capaz de confundir um ovo com um prego e de comer o prato em lugar da linguiça. Ele era, mesmo, tão curto dos olhos, que muitas vezes se surpreendeu, ele próprio, batalhando nas fileiras do partido contrário, vitorioso na véspera, na suposição de que estava, ainda, ao lado dos seus correligionários derrotados. O fruto desse defeito colheu-o ele, entretanto, nos limites do lar, em um incidente que ele mesmo, um dia, me contou.

Era o visconde ministro da Justiça, no gabinete Tamandaré, quando, certa manhã, entrou na sua sala de trabalho, em sua própria residência, uma senhora encantadora, que lhe ia pedir, como as esposas de hoje, um emprego para o marido. Cabeça baixa, olhos e nariz no papel, estudava o ministro um dos processos que lhe eram submetidos a despacho, quando, insensivelmente, estendeu o braço, alcançando a dama pela cintura. Com a brutalidade da surpresa, a moça não abriu, sequer, a boca; e nem lhe era isso possível, porque, quando quis protestar, estava, já, com os lábios grossos do visconde grudados, como ostra em rochedo, nos seus polpudos lábios famintos!

Nesse momento, porém, abre-se, ao fundo, a porta do gabinete, e surge, com a cólera faiscando nos olhos, o vulto da viscondessa.

- Sr. visconde, que é isso? - exclamou, rubra, a esposa do ministro.

A essa voz, a aventureira, de um salto, ganhou a porta fronteira, desaparecendo sob o reposteiro solferino. Boquiaberto, o visconde deixou-se ficar sentado, com os braços estendidos. Ouvindo, porém, de novo as palavras indignadas da esposa, estranhou, aflito, pondo-se de pé:

- Então, não era Vossa Excelência, Sra. viscondessa? Não era Vossa Excelência que estava aqui, a meu lado?

E, tateando na mesa, procurando, com os dedos trêmulos o pince-nez, lamentou batendo na testa, com a mão espalmada:

- Maldita miopia!... Maldita miopia!...

E escanchou a bicicleta no nariz.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 423

 


Folhetim de Trovas “Copaíba” n. 1 outubro 2020 (Baixe grátis)

 
Em seu conteúdo:
 
O que é Copaíba.
 
Um breve resumo sobre Campo Mourão.
 
Trovas de trovadores de Campo Mourão, do Paraná e de outros rincões.
 
Concursos de trovas com inscrições abertas (atenção, que  um se encerra hoje, dia 30, outro amanhã e dois dia 5 de novembro)

Para ler o Folhetim, baixe para seu computador em pdf, no link
https://drive.google.com/file/d/16bXF4fHyZBTaqNq_k4w2VdFMmsWvNuTg/view?usp=sharing

Leon Eliachar (Um Nome Qualquer)


Encontraram-se depois de mais de dez anos:

— Afonso!

— Hermenegildo!

Abraçaram-se três vezes seguidas, como fazem todos os que não se veem há muito tempo:

— Lembra-se do Rogério?

— Lembro.

— Morreu a semana passada.

— Coitado.

Conversaram a mesma conversa que conversam os que não se veem há muito tempo:

— Que tens feito?

— Lutando. E você?

— Levando a vida.

Quando deram por si, estavam tomando cafezinho em pé, como fazem sempre os que não se veem há muito tempo:

— Você está mais gordo.

— E você, mais magro.

Foram andando, parando, relembrando incidentes pitorescos, como fazem todos os que não se veem há muito tempo:

— E aquele mergulho no rio, atrás do internato, lembra-se?

— Se me lembro, quase você morre afogado.

— E foi você quem me salvou, nunca esqueci.

Pararam num ponto de ônibus pra se despedir, ficaram batendo papo mais de meia hora, como fazem todos os que não se veem há muito tempo:

— Você casou?

— Casei. E você?

— Mais ou menos. Estou com uma zinha aí mas ela é casada.

— Você nunca quis nada com o casamento, hein, malandro?

— Com essa até que eu casava.

— Como ela é?

— Baixotinha, gordota, tem um sinalzinho no rosto, mas eu gosto dela assim mesmo.

Afonso ficou apreensivo:

— Como é o nome dela?

— Cláudia.

Afonso ficou mais curioso:

— Ela tem filhos?

— Dois. Um menino de quatro e uma menina de três.

Afonso só faltou pedir o retrato pra ver, mas não teve coragem. Apressou a despedida:

— Bem, tenho de ir andando, estou atrasadíssimo.

Tomou o ônibus, foi direto para casa. No caminho, foi pensando: “Cláudia… dois filhos… um menino de quatro… uma menina de três… baixotinha… gordota… um sinalzinho no rosto…” era muita coincidência. Quando entrou em casa, só faltou arrancar a porta. Lá estava a mulher no meio da sala, com os dois filhos, baixotinha, gordota, com um sorriso na cara deste tamanho:

— Chegou cedo hoje, hein, Afonso?

Ele estava tremendo de ponta a ponta, quando perguntou:

— Diz depressa o nome de um homem.

— Como?

— Depressa, diz um nome de homem. Um nome qualquer.

Ela nem teve tempo de pensar:

— Hermenegildo.

Ele chegou a cambalear, foi preciso segurar no vão da porta:

— Quem diria, hein?

Sua mulher não entendia nada:

— Mas o que foi, Afonso? Está sentindo alguma coisa?

Ele foi categórico:

— Estou sim.

— Está sentindo o quê?

Ele arreganhou os dentes:

— Estou sentindo ódio de mim mesmo, por ter salvo aquele desgraçado. Devia ter deixado ele morrer afogado.

Cláudia caiu de bruços e como caiu, ficou, inteiramente desacordada.

O médico disse que era normal.

Estava esperando o terceiro filho.

Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. Publicado em 1965.

Baú de Trovas XIX


 Meu lar, embora modesto,
é um ninho de beija-flor,
com dois filhotes travessos,
pelos quais morro de amor!
ADAÍS COSTA CARVALHO
- - - - - -
Solidão, indiferença...
tudo é ontem para mim!
Só a saudade é presença,
presença que não tem fim!...
ANGELA SARMET
- - - - - -
Ouve a súplica serena
de minha alma que te diz:
- num simples beijo, morena,
tu me farias feliz!
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
Peço a Deus que teus encantos
se conservem sempre assim,
mas rogo a todos os santos
que não te esqueças de mim.
FRANCISCO PIMENTEL
- - - - - -
Beijo tantas, tantas vezes,
teu retrato, meu amor,
que o tenho há bem poucos meses
e já vai perdendo a cor...
FRANKLIN COUTINHO
- - - - - -
Como a estrela matutina
de uma aurora colorida,
tens sido a luz peregrina
nas noites de minha vida.
GAMALIEL BORGES PINHEIRO
- - - - - -
Tua carta colorida,
que eu guardo, perdeu a cor...
Mesmo assim, teve mais vida
que as tuas juras de amor.
GERALDO GUIMARÃES
- - - - - -
Você me olhou, nos olhamos,
e nós dois então sorrimos.
Nada mais, nem nos falamos,
mas, no peito, o que sentimos!
GODOFREDO CARDOSO
- - - - - -
Que ideia maravilhosa:
— transformar Nosso Senhor
cada mulher numa rosa,
e fazer-me beija-flor!
GUIMARÃES BARRETO
- - - - - -
A tua alma quanto é bela
só Deus sabe, além de mim:
— eu porque hoje vivo dela,
Deus por tê-la feito assim!
HEITOR BELTRÃO
- - - - - -
Riquezas, tenho-as sem conta,
pois, crê, de nada preciso.
Basta-me o sol que desponta
nas manhãs do teu sorriso...
HELENY DE MORAES SIQUEIRA
- - - - - -
Este bem consolador
é minha felicidade:
ter presente o teu amor
no milagre da saudade.
HÉLIO C. TEIXEIRA
- - - - - -
Em minhas longas viagens,
dispenso livros, porque
gosto de ler, nas paisagens,
a saudade de você.
HÉLIO GARCIA DE MATTOS
- - - - - -
Nossa Senhora das Dores,
aos meus amores, fazei
que se convertam em flores
os dissabores que dei.
HÉLIO NOGUEIRA
- - - - - -
Na vida há céus constelados
e cardos pelos caminhos...
— E há poetas deslumbrados,
pondo estrelas nos espinhos!...
IRACI DO NASCIMENTO E SILVA
- - - - - -
Por mais humilde que for,
de viver jamais se cansa
quem tem no peito um amor
e, na vida, uma esperança!
IRENE DE ARAÚJO MONZON ABRIL
- - - - - -
Saudade de um ser amado,
que foi e não voltou mais,
cura-se com o beijo dado
nos lábios de outro rapaz!...
IVANISE LOBO TRINDADE
- - - - - –
Se os olhos teus eu tivesse,
sempre os traria cerrados,
— que olhares ninguém merece
dos teus olhos encantados.
IVO DOS SANTOS CASTRO
- - - - - -
Rosas tolas, tão vaidosas,
que em belas hastes vicejam...
Vem, amor, olha estas rosas,
quero que as rosas te vejam!...
J. G. DE ARAÚJO JORGE
- - - - - -
Tu podes me desprezar
com teu orgulho medonho,
mas não podes evitar
que sejas minha no sonho!
J. MONTE LOPES
- - - - - -
Vai, barqueiro, na bonança,
sem temores da procela,
que Deus solta uma esperança
quando desliza uma vela!
JACINTO DE CAMPOS
- - - - - -
Este silêncio que instala
esta quietude entre nós
é a voz de tudo que fala,
sem ser preciso de voz.
JEFFERSON LEÃO DE ALMEIDA
- - - - - -
Quanto mais teu corpo enlaço,
mais padeço o meu tormento,
por saber que meu abraço
não prende o teu pensamento.
JESY BARBOSA
- - - - - -
"Bom dia", morena linda,
minha doce Ave-Maria!
O meu dia é noite ainda,
até que eu te dê "Bom dia"!
JOÃO FELÍCIO DOS SANTOS
- - - - - -
Numa alegria incontida,
sou bem feliz, porque ponho,
na taça escura da vida,
o claro vinho do sonho!
JOÃO RANGEL COELHO

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Figueiredo Pimentel (O Peixe Encantado)


Roberto era muito trabalhador e serviçal. Sempre que alguém precisava dos seus serviços, prestava-os de boa vontade, sendo por esse motivo estimadíssimo toda a gente que o conhecia.

Tinha ele três filhas, cada qual mais bonita, principalmente a mais moça, de beleza extraordinária, chamada Marocas.

A pobre família vivia da pesca que o homem fazia todas as madrugadas, indo, durante o dia, vender o peixe pelas ruas da cidade próxima. O seu único sustento e de toda a sua numerosa família era a pesca. Parte da noite, até romper a manhã, Roberto passava pescando. Durante o dia, ia vender o peixe de casa em casa. À tarde tratava da canoa, das linhas e das redes. Feliz no seu negócio, trazia sempre a canoa cheia de peixes grandes e bons.

Um dia lançou a rede ao mar e nada trouxe. Lançou-a outra vez, e só vieram peixinhos peixinhos, que nada valiam.

No dia seguinte aconteceu-lhe o mesmo que na véspera. Deitou a rede diversas vezes; e, nada tendo conseguido, ia voltar para casa, desolado, pensando que naquele dia sua família não teria o que comer.

De súbito ouviu uma voz que partia do mar:

– Roberto, terás muito peixe, se me prometeres trazer o que avistares, assim que chegares à casa.

O pescador respondeu que daria, pois sempre chegava à praia, encontrava o cachorrinho de Marocas, que ia esperá-lo, latindo a saltando alegremente.

Tendo-o prometido, os peixes começaram a saltar para a canoa, e ele nesse dia obteve muito dinheiro com a sua venda.

De volta o pobre velho ia quase embicando à praia, contentíssimo por ter dinheiro para dar à família, quando ao olhar para a terra viu sua filha mais moça, Marocas, justamente aquela por quem tinha maior predileção.

Ficou desesperado, aturdido, triste, lembrando-se da promessa e chegando à casa contou à família o que se tinha passado.

Quando acabou de falar a menina respondeu:

– Meu pai, não chore por tão pouco. Eu vou e estou certa de que é para meu bem. Com certeza serei muito feliz, e demais minha família terá sempre com que se sustentar.

Roberto vendo como a filha se sacrificava por ele de tão boa vontade, ficou menos pesaroso. No dia seguinte, pela madrugada, embarcou com ela na canoa de pesca. Assim que chegou ao lugar onde ouvira a voz, as águas se separaram um pouco, e o pescador atirou Marocas, que desapareceu imediatamente.

Voltou para terra com a canoa cheia de peixes, sem ter sido preciso lançar a rede.

A moça foi ter a um palácio no fundo do mar, habitado pelo Rei dos Peixes, que fora quem havia falado ao pescador.

Encontrou aí tudo quanto lhe era necessário: salas e quartos mobiliados, vestidos riquíssimos e jóias de subido (exorbitante) valor. Entre essas jóias havia um anel de brilhantes, muito rico, com uma dedicatória feita pelo soberano dos peixes. Contudo, apesar de tudo isso, Marocas vivia tristíssima, porque não via pessoa alguma, principalmente os seus. O serviço da casa era feito por encanto, pois nunca vira um ser vivente no palácio, e os objetos estavam sempre em ordem.

Depois de já estar habituada àquela solidão, na noite, quando já estava deitada, a formosa Marocas ouviu ruído. Sentiu-se receosa, assustada, esperando ver entrar algum monstro, algum bicho que viesse matá-la. Sossegou, porém, ao ver entrar um enorme peixe, com uma coroa de ouro na cabeça. Era o rei dos Peixes. Entrou silencioso, quase sem fazer ruído, andando naturalmente em seco como se estivesse na água.

O rei entrou, e logo após saiu, aparecendo aos olhos deslumbrados da jovem um moço elegante e lindo, ricamente vestido à corte, com trajes de gala, que bem indicavam o seu nascimento real. Sempre calado, aproximou-se da moça e pôs-se a contemplá-la, enleado, maravilhado.

Marocas disse-lhe então:

– Príncipe, porque não vieste há mais tempo?

– Porque receei que, vendo um peixe tão feio, tivesses medo. Se vim hoje admirar tua beleza, foi porque julgava que dormias.

Desde esse dia, Marocas e o rei dos Peixes viveram juntos, completamente felizes. O serviço do palácio continuava a ser feito por encanto. O único ser vivo que a moça via era o Rei-peixe e sempre nessa figura.

Apenas uma vez, de sete em sete dias, deixava aquela aparência, para vir a ser o príncipe encantador, divinamente belo, que era em verdade.

Estavam casados havia já um ano, quando uma vez, Marocas lhe pediu, rogou, suplicou, insistentemente que a deixasse ir ver sua família.

– Podes ir, respondeu o príncipe, mas com a condição de só te demorares lá uma semana. Quando quiseres voltar, põe este anel no dedo, que imediatamente estarás aqui.

E deu-lhe um anel de aço.

A moça pôs num baú muita roupa e presentes que levou à família, e no dia seguinte quando o velho Roberto veio pescar, apareceu na canoa e foi com ele para terra.

Em casa ficaram todos muito alegres ao vê-la, e sua mãe e suas irmãs começaram a indagar como vivia ela; se estava satisfeita; se o noivo era bonito. Marocas respondeu que julgava que era, que não garantia, pois só via o príncipe de noite.

Lembraram-lhe, então, a conveniência de levar para o fundo do mar um pedaço de vela, para ver se o rei de fato era bonito. A jovem concordou. Ao sexto dia, chegando ao palácio, não dormiu à noite, esperando que o príncipe adormecesse primeiro que ela.

Assim que o ouviu ressonar, saiu da cama, com a vela acesa, e foi se certificar da beleza do noivo. Tendo porém, chegado a vela muito perto, deixou cair um pingo de sebo no peixe. Ficou trêmula de medo, receando que ele acordasse, e com o tremor, derramou mais outros pingos, os quais se transformaram em chagas.

O Peixe-rei acordou, sofrendo horrivelmente, e exclamou:

– Foste tu a causa destas chagas Se quiseres viver comigo, tens que me procurar num lugar muito distante daqui, chamado pico do Amor.

Assim que o peixe acabou de dizer essas palavras, desapareceu por encanto, e Marocas viu-se num lugar deserto, em meio de uma mata virgem.

Começou a caminhar muito triste; e, como estava fatigada, sentou-se debaixo de urna árvore, e ouviu esta conversa:

– O rei dos Peixes está muito mal e ninguém pode pô-lo bom, porque não sabem qual é o remédio necessário.

Disse outra voz:

– Nada mais fácil, basta apanhar três de nós, torrar-nos e colocar esse pó nas feridas.

Disse uma terceira voz:

– Ai de nós, se souberem disso!...

A moça levantou-se para ver onde estavam as pessoas que assim falavam. Ficou admirada quando viu três andorinhas, que conversavam no alto de uma árvore.

Armou um laço e apanhou-as. Imediatamente torrou-as, guardando cuidadosamente o pó.

Continuou a andar, até que chegou finalmente ao pico do Amor, por onde se entrava para o palácio do rei dos Peixes. Soube que ele estava quase para morrer e pediu que a deixassem falar com o rei, o que os criados não consentiram. Não desanimou. Insistiu outra vez, tanto, tanto, que conseguiu mandar-lhe um prato de mingau.

O príncipe começou a comê-lo, e quando pôs a segunda colherinha na boca, sentiu que havia um caroço misturado no mingau. Foi ver o que era, e reconheceu o anel que tinha dado à filha do pescador.

Ordenou que trouxessem a mendiga ao quarto e conheceu a moça. Dias depois já estava restabelecido, graças ao remédio das andorinhas que Marocas trouxera.

Voltaram ao Palácio do Mar apanharam todas as riquezas e foram morar em terra. Mandaram buscar o pescador Roberto e sua família, e casaram-se dias depois.

O príncipe desencantou-se de uma vez e nunca mais se transformou em peixe.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 422

 

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 2: O morto no caixão


DE VEZ EM QUANDO A GENTE precisa colocar em evidência a parte social da vida, ou seja, aquele eventual em que literalmente nos propomos a fazer um programa de índio, e por ser exatamente de índio, este nativo deverá literalmente surgir em cena paramentado, com tudo o que tem direito, como aldeia, arco, flecha, tacape, a borduna (clava), o chuço (lança) e etc, etc.

Com este pensamento, bem cotidiano à flor da pele, fomos acompanhar o amigo Varíola Pegajoso que havia perdido um parente e os funerais do falecido se daria logo cedo, numa bela manhã de um sábado radiante e apetitosamente convidativo à um banho de mar.

— Carretão — observou ele —, só vamos mesmo porque o cara era meu tio e acredito, minha tia ficaria deveras chateada se não me visse na hora do derradeiro adeus.

— Fique tranquilo, Varíola. Os amigos são para os momentos bons e ruíns. Saiba, desde sempre, estamos  junto nesta para o que der e vier.

— Tenho certeza que apesar do convite meio que esquisito —  observou ele, a certa altura — você irá gostar e quem sabe até se apaixonar ao ver uma prima minha, a Chiquinha do Catatau. Cara, um pedaço de mau  caminho!

Chegamos no ato fúnebre à hora exata em que o padre Bentão  celebrava a missa de corpo presente.

A capela estava lotada, com gente saindo pelo ladrão —  ladrão não, esta expressão é, sem dúvida alguma, uma modalidade vulgar e chula de falar, claro. O certo, seria, como de fato soa melhor, ‘com gente saindo à francesa’. Pois bem! O povo dava uma escapulida básica usando uma porta discretamente estratégica que desembocava para uma lanchonete com as iguarias mais apetitosas para um cemitério tido como o eterno Jardim da Paz.

Dona Canindé Formigão, esposa do ‘de cujus’, tia de Varíola Pegajoso, o rosto cerrado em transe, as vistas  derramadas à bom chorar, mostrava em meio às lágrimas, um par de olhos vermelhos como dois tomates recém colhidos. Apesar da imoderada dor ingente que a consumia, eles não deixavam de revelar o fulgor da sua juventude.

A triste senhora se fazia acompanhar de familiares próximos, entre os quais, Jericó, seu filho mais novo e, ao lado dele, um pedacinho engalanado de um aconchegante futuro promissor vestido numa saia azul celeste, com todos os tropeços que a vida ofereceria a quem tivesse a sorte e o prazer de cair nas graças daquela beldade.

De fato, neste ponto, o Varíola Pegajoso não medira esforços para descrever a belíssima prima Chiquinha do Catatau. A  exuberante fazia jus à fama que o meu amigo houvera feito de seu conjunto dos caracteres exteriores, figura extraordinariamente admirável e pecaminosamente infernal. Nos aproximamos a ponto de (à certa altura) nos juntarmos aos aparentados, quase a tropeçarmos nos regozijos que emanavam da bela Chiquinha Catatau.

O sacerdote, tecia comentários elogiosos sobre  o extinto e, exatamente naquele momento da nossa chegada, ele apregoava, à alta voz,  o seguinte:

— Estamos diante de um grande homem, dono de um coração magnífico, excelente pai de família, bom marido, católico incondicional, amigo de todas as horas, vizinho exemplar e colaborador assíduo da nossa humilde paróquia. A isto, acrescentaríamos um primoroso trabalhador ‘pau pra toda obra’ e peremptório cumpridor de seus deveres...

Foi nesta sequência da esparramação dos elogios, que a viúva  cutucou Jericó num cochicho vapt vupt. Toda a igreja, ainda que não quisesse, captou e fez escancarar as bocas cheias de dentes (e as banguelas também) irmanadas num Oh! retumbante e espantado, doido e único, ao tempo em a cônjuge varoa soltou o que parecia estar engasgado em sua garganta:

— Jericozinho, meu filho se aproxime ali do caixão de seu pai, discretamente...

E completou, sem mais delongas:

— Veja, estou pra lá de aperreada. Perceba, minha agonia. Confesso a você, com todo este rol  de mesuras e rasgação de sedas que o padre Bentão está trazendo à baila...

— Mas por que isto agora, mamãe?

— Filho meu, com toda certeza, quero crer estamos todos aqui velando o defunto errado.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Isabel Furini (Poema 21) Escrever

  

Luiz Damo (Trovas do Sul) XIII


Água pura tem faltado,
lagos em estagnação,
nem o peixe foi poupado
de tamanha poluição.
- - - - - -
Através do sofrimento
também podemos crescer,
tão valioso ensinamento
é o que tem a oferecer.
- - - - - -
Cedo, sentimos saudade,
das coisas belas da vida,
fontes de tranquilidade
lembrando a paz já vivida.
- - - - - -
Conte um conto alegremente,
cante um canto de louvor,
sente e sinta lentamente
ressurgir novo valor.
- - - - - -
Dá-nos a força, Senhor,
pra podermos divulgar,
tua mensagem de amor
para quem necessitar.
- - - - - -
Dependem da preferência
todas nossas decisões,
umas com total prudência
outras sem as convicções.
- - - - - -
Estão nos primeiros passos
os segredos da vitória,
longe de quaisquer fracassos
descrevemos nossa história.
- - - - - -
Jamais se sinta culpado
de algo que não cometeu,
pois, pode ser perdoado,
se do mal se arrependeu.
- - - - - -
Não subornes a verdade
pois, dela dependerá
a força da liberdade
que sempre te guiará.
- - - - - –
Num encontro surpreendente,
bem antes da integração,
o desejo mais latente
talvez seja a interação.
- - - - - -
Num mundo controvertido,
pela vida, nós lutamos,
num semblante pervertido
pouco brilho constatamos.
- - - - - -
O desgosto de perder
não gere dor ou lamento,
muito pior é vencer
sem qualquer merecimento.
- - - - - -
O lar que não tem crianças
é como um jardim sem flores,
ao lar faltava esperanças
e ao jardim as nobres cores.
- - - - - -
O mundo nem sempre ensina,
o homem como deve andar,
aprende com disciplina
e um constante caminhar.
- - - - - -
O sino no alto das torres
num apelo às orações,
convida seus oradores
a umas breves reflexões.
- - - - - -
Os peixes vão se tornando
artefatos de ficção,
uns até se transformando
em bichos de estimação.
- - - - - -
Por menor que seja a dor
sentida por um doente,
é sempre confortador
ter a família presente.
- - - - - –
Primavera exuberante
refletindo tantas cores,
eterniza cada instante
no aroma das suas flores.
- - - - - –
Quando nos palcos, alguém
tudo promete fazer,
escutando, siga quem
lhe fizer sem prometer.
- - - - - -
Quem caminha quer buscar
algo traçado na mente,
mesmo às nuvens a ofuscar
não desiste, segue em frente.
- - - - - -
Se não chovesse, seria,
um deserto permanente,
vegetação não teria
e sequer algum vivente.
- - - - - –
Se hoje somos ambiciosos,
amanhã, nunca rivais,
uns dos outros respeitosos
porque à lei somos iguais.
- - - - - -
Sempre que for necessário
pelos mares navegar,
trace bem o itinerário
e aonde pretende chegar.
- - - - - -
'Se o conselho fosse bom
ninguém dava, mas vendia'.
E se fosse a solução
problemas ninguém teria.
- - - - - -
Se quiser frutos colher
não se canse de esperar,
deixe a planta florescer
pra depois frutificar.
- - - - - -
Sob a sombra da ignorância
a inveja senta e descansa,
espelhada na arrogância
rompe qualquer aliança.


Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Roberto Melo Mesquita (A Língua Portuguesa)


A Língua Portuguesa é um instrumento facilitador da organização do pensamento. Quem possui o conhecimento da estrutura da língua, tem plena consciência do que diz e automaticamente pensa melhor. A Língua é como a roupa: usa-se conforme a ocasião.

A variação linguística ainda é considerada um tabu entre os próprios professores de português. E o que mais me incomoda nessa questão é o conceito irreal de que temos uma “unidade linguística no Brasil”. A verdade é que esse tabu prejudica em muito o avanço à construção da nossa educação. É preciso reconhecer a grande diversidade do português falado pelos nossos irmãos brasileiros por esse Brasil afora.

Somos mais de 210 milhões de falantes, marcados por variantes e não por uma língua comum, única, sem diversidades. Estamos vinculados a uma série de fatores de ordem geográfica, econômica, de escolarização, de faixa etária que influenciam fortemente nessa diversidade. E aptos a entendermos que, quando falamos em Língua Portuguesa, estamos falando de uma unidade que se constitui de muitas variações: diatópicas (nacionais e regionais), diacrônicas (de uma época para outra), diastráticas (de um grupo social para outro), diafásicas (de uma situação para outra) e diamésicas (de uma modalidade – oral – para outra – escrita).

Se uma pessoa usar em sua fala expressões como “fósfro”, “home”, “trabaiá”, “môio ingrês”, a maioria vai achar, inclusive professores, que ela está falando errado.

Com o emprego dessas expressões, somos levados a abordar apenas as variedades diatópicas e diastráticas, que por sua vez, se estendem sobre a linguagem urbana e a linguagem rural. Aqui é que aparecem os dialetos ou falares regionais. E é neste momento que me permito fazer uma incursão ao nosso dialeto caipira, sempre tão bem estudado por Amadeu Amaral e muito bem representado por Cornélio Pires como nos lembra a estudiosa professora Durce Gonçalves Sanches. Cornélio coletou inúmeros dizeres caipiras. Já Amadeu estudou linguisticamente esse fenômeno.

Assim, em “Nóis vai, nóis vorta, o preço do ônibo é o mesmo” vale a pena marcar o “r” retroflexo tão característico de região definida por isoglossas como sendo “região do dialeto caipira”. Já em “Faiz mar, tomá banho de mar?Num faiz; é só tomá cuidado com o sar, por causa do sor”, temos uma expressão marcada como “apenas fenômeno no dialetal” e não como erro. É o caso de “Sarta da carçada, sordado marvado, que lá vai porva".

Daí, concluirmos que "se uma pessoa usar em sua fala expressões como 'fósfro', 'home', 'trabaiá', 'môio ingrês', a maioria vai achar, inclusive professores, que ela não está falando errado". Lembrando que, enquanto os gramáticos (normativos) lidam com erro e acerto, os linguistas trabalham com adequado e inadequado.

O brasileiro de uma forma geral tem camuflado o preconceito racial. Nesse momento, temos de lembrar sempre que, na linguagem, são refletidos não apenas a maneira de pensar e a evolução dos acontecimentos, mas também os preconceitos e tabus sociais. A função social da linguagem é permitir a compreensão entre os membros de uma comunidade. Muitas vezes a palavra exata é constrangedora em determinados momentos, usando-se então uma expressão atenuadora, o eufemismo. O ato de roubar, por exemplo, é nomeado de acordo com a posição social do sujeito que o pratica. O gerente desvia o dinheiro. Já o marginal assalta o banco.

O prestígio da linguagem das classes sociais elevadas é enorme, pois a maneira de falar de um superior sempre parece a nós invejável e se apresenta como símbolo de uma vida suposta como ideal. Os hábitos linguísticos vindos do que a sociedade considera inferior são sempre desdenhados — seja pela região geográfica, seja pela classe social.

Os usos procedentes do Centro-Sul, do eixo Rio-São Paulo são logo socializados. Seu padrão de vida é tido como invejável e imitável, além de exportado pela TV para todo o país.

Segundo pesquisas, apenas 26% das pessoas entre 15 e 64 anos são plenamente alfabetizadas, isto é, têm domínio das habilidades de leitura e escrita. Essas pesquisas nos deixam muito preocupados. Mas a vida continua e queremos que a nossa educação melhore. Então, a escola precisa aprender a desenvolver nos alunos habilidades e competências, no seu processo de ensino-aprendizagem. Aprender a focar a formação acima da informação, transformar o aluno em cidadão participante consciente. Fazer com que ele desenvolva a capacidade de raciocinar, de interpretar, de interferir na realidade, de resolver os problemas do dia a dia. Ao construir o próprio conhecimento, a partir da observação, da manipulação, da pesquisa, da análise, o aluno vai vivenciar o conceito ao invés de recebê-lo pronto. Vai internalizar, chegando com mais profundidade ao conhecimento. A escola ainda há de realizar um currículo com conteúdos contextualizados, próximos da realidade do aluno, e trabalhados de maneira interdisciplinar, em conteúdos interligados.

E é bom que se diga que o domínio da leitura e escrita é fundamental para o aprendizado em todas as disciplinas. Ensinar a ler e a escrever é tarefa de toda a escola e não só do professor de Língua Portuguesa.

Fonte:
Língua e Tradição

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 421

 


Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 11



Fonte:
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.
Livro enviado pelo autor

Fernando Sabino (O Ricochete Telefônico)


“Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.”
Carlos Drummond de Andrade


TIRO o fone do gancho e uma voz me pergunta:

— Quem está falando?

Isso é que é eficiência — ainda nem disquei!

— Você. Não falei nada.

Desligo e tento de novo. Desta vez vou obtendo logo um sinal de ocupado, antes de discar.

O que eles querem é que eu desista. Não adianta, sou teimoso como uma mula.

Mais uma tentativa — desta vez não acontece nada.

Pois então vamos ver quem tem mais paciência.

Deixo o fone fora do gancho e vou cuidar da vida. De vez em quando volto para dar uma escutadinha.

Nada.

Ao fim de dez minutos, ganho a parada: obtenho uma linha.

Só que é daquelas que continuam tocando depois que a gente disca.

Então está bem.

Consigo outra. Novo sinal de ocupado depois de discar o número da estação.

Estou progredindo.

Com diabólica obstinação me submeto à provação do ricochete telefônico, ou seja, a sequência de insólitos fenômenos auditivos que faz do completamente de ligação uma loteria nem sempre esportiva:

— Eu gostaria de esclarecer umas dúvidas.

— Pois não. Com muito prazer.

— Sinal de ocupado antes da hora?

— Sobrecarga de chamadas. Congestionamento na estação.

— Aquela linha boba que não pára?

— Defeito no equipamento. O jeito é tentar outra.

— Chamada que não se completa?

— Sobrecarga.

— Número errado o tempo todo?

— Defeito.

Quando não é sobrecarga, é defeito. E aquele sinal de ocupado que vem depois que a gente liga, pensa que me enganam? Aquele sinal é falso, não está ocupado coisa nenhuma.

— Só nas novas estações acontece isso.

— E nas outras?

— Não acontece nada.

Estou falando com um representante da Companhia Telefônica Brasileira, da seção de Relações Públicas, para esclarecer umas tantas coisas. Pelo telefone, depois de meia hora de tentativas. Ele não falou propriamente assim, estou resumindo: foi amável, interessado e convincente, Quando soube que eu pretendia escrever sobre o assunto, se dispôs logo a colaborar. Disse que a CTB não estava tentando livrar a cara, pelo contrário: é a primeira a reconhecer que o sistema é deficiente e está procurando melhorá-lo. Por exemplo: este ano vão inaugurar novas estações, a partir de abril — uma por mês. O que quer dizer que haverá menos sobrecarga. Outras providências que estão tomando reduzirão os defeitos.

Mantivemos uma instrutiva conversa de quase uma hora, durante a qual não aconteceu nada: nem linhas cruzadas, nem ruídos (ou música, como costuma acontecer), nem queda de ligação, como se diz hoje em dia, quando a chamada pifa. Ao fim, eu estava satisfeito: conseguira falar ao telefone. Agradeci e desliguei. Não sem antes defender uma velha tese minha, segundo a qual uma das maneiras mais eficientes de melhorar os serviços telefônicos seria incentivar a utilização dos Correios e Telégrafos.

“Telefonavas, telefonavas”
Manuel Bandeira


Reconheço publicamente que sofro da síndrome de Graham Bell. Doença terrível no Rio de hoje — a dos maníacos como eu, que não podem passar sem um telefone: tornei-me sério candidato a uma temporada de cura e repouso no Pinel.

— E a linha cruzada?

— Contato nos cabos. Quando chove penetra umidade no cabo, e dá linha cruzada.

É o serviço telefônico mais barato do mundo: permite participar da conversa de uma porção de gente ao mesmo tempo e pelo mesmo preço.

— Quantos telefones tem no Rio?

— Tem 12 aparelhos para cada 100 pessoas. Não pode se comparar a Washington, por exemplo, que tem 98, ou Nova York, que tem 60.

Não estou comparando, estou só perguntando:

— E quantos entre estes cem podem falar ao mesmo tempo?

— Vinte e cinco.

Considerando-se que estarão falando com outros 25, já são 50 — nada mal.

— Que acontece se os cem resolvem falar ao mesmo tempo?

— O sistema entra em colapso.

Como costuma acontecer quase toda tarde. (Dizem que a culpa é do jogo do bicho.) Tenho um amigo que conseguiu se livrar dos que o importunavam pelo telefone, pedindo que o chamem sempre entre cinco e sete da tarde.

“Meu telefone agora vive mudo
E o dela sempre em comunicação.”
Fox-canção de Orestes Barbosa


— E os macetes que o carioca inventou para conseguir ligação?

— Não adiantam nada. Bater no gancho para conseguir linha é sair do princípio de uma fila e entrar no último lugar. Prender o disco, forçar a sua volta, discar devagar ou depressa, acrescentar mais um algarismo — nada disso adianta. Tem gente que acredita até em discar com a mão esquerda para dar sorte. Ou com o dedo mindinho, sei lá.

— Conseguir telefonar ainda é uma questão de sorte?

— Mais ou menos: aumentou o número de usuários de maneira assustadora, fazendo com que o problema continue grave, apesar das melhorias.

Quer dizer que, tudo considerado, o serviço piorou porque o sistema melhorou.

— Para terminar, uma última pergunta: por que será que basta discar um número errado para que atenda sistematicamente uma alemã malcriada, de sotaque carregado?

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) III


CONSELHOS

Não odeies um pobre que mendiga,
que ao mendigo, na mesa falta o pão;
é que Deus abençoa a mão amiga
que entre os trapos, se humilha e estende a mão!

A humildade suprema não castiga,
e oferece conselho a cada irmão;
prova sempre do pão, que alguém mastiga,
quando é feito da massa do perdão!

Abre as mãos, ergue os braços, cerra os punhos,
que entre os ecos da vida há mil rascunhos
de conselhos de amor pedindo paz...

Que os que guardam rancor dos infelizes,
ficam neles, profundas cicatrizes,
entre as marcas, que o tempo não desfaz!
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GRATIDÃO

Não maldigo da vida os atropelos
e nem posso do tempo ter desgosto;
devagar vai pintando os meus cabelos,
pondo riscos de rugas no meu rosto.

Passa a vida e no espelho posso vê-los,
e aceitá-los assim, estou disposto,
quanto é bom contemplar meus brancos pelos,
mas confesso, um pouquinho a contragosto.

São sinais estes meus cabelos brancos,
certamente, de muitos solavancos
que o capricho da vida me deixou...

E eu feliz igualmente a um beduíno,
corro atrás do fantasma do destino
que o feitiço do tempo me levou!
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INQUIETUDES

Vim pedir-te Senhor, de olhos abertos,
ante as luzes de velhos castiçais,
que os meus sonhos de amor, sejam libertos,
das algemas dos sonhos irreais!

Meu temor é o de ter sonhos incertos,
e entre sombras e anseios tão fatais,
os meus sonhos se tornem tão desertos,
que eu não sonhe contigo nunca mais!

Cada sonho na vida é um breve instante;
muitas vezes, de paz, de amor constante,
e, outras vezes, também cego e sem luz...

No altar-mor, como é bom que Cristo veja,
nós dois juntos, no altar da mesma igreja,
ajoelhados aos pés da mesma cruz!
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MÃOS

Esses traços, que tens em tuas palmas,
nessas mãos tão sensíveis, sem temores,
podem ser traços vindos, de outras almas,
entre as almas febris de outros valores!

Por favor, joga fora esses teus traumas,
vem comigo depressa e esquece as dores,
vamos juntos curtir, nas horas calmas
os prazeres da vida entre os amores!

O que eu quero é prender-me nos teus laços,
ser escravo da cruz dos teus abraços
entre as cruzes das mãos que sempre quis...

Se os teus dedos das mãos são tão audazes,
sem meus dedos, jamais serão capazes,
de escrever esses versos que te fiz!
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SAUDAÇÃO À CAPISTRANO DE ABREU

Capistrano de Abreu, grande arquiteto,
que, no mundo das letras, floresceu.
Maranguape, seu berço predileto,
foi a terra da luz, onde nasceu!

Nessa terra sagrada ele cresceu
foi um autodidata tão completo,
que no mundo da história, o que escreveu,
usou todas as tintas do alfabeto!

Ninguém pode esquecer que Capistrano
exaltou Maranguape, ano após ano,
berço eterno do altar de tanta glória.

Capistrano de Abreu virou poema
e entre os beijos eternos de Iracema
beija e abraça os portais de nossa história!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Eduardo Affonso (Proparoxítonas)


Há dois tipos de palavras: as proparoxítonas e o resto.

As proparoxítonas são o ápice da cadeia alimentar do léxico.

Estão para as outras palavras assim como os mamíferos para os artrópodes.

As palavras mais pernósticas são sempre proparoxítonas. Das mais lânguidas às mais lúgubres. Das anônimas às célebres.

Se o idioma fosse um espetáculo, permaneceriam longe do público, fingindo que fogem dos fotógrafos e se achando o máximo.

Para pronunciá-las, há que ter ânimo, falar com ímpeto - e, despóticas, ainda exigem acento na sílaba tônica!

Sob qualquer ângulo, a proparoxítona tem mais crédito.

É inequívoca a diferença entre o arruaceiro e o vândalo.

O inclinado e o íngreme.

O irregular e o áspero.

O grosso e o ríspido.

O brejo e o pântano.

O quieto e o tímido.

Uma coisa é estar na ponta – outra, no vértice.

Uma coisa é estar no topo – outra, no ápice.

Uma coisa é ser fedido – outra é ser fétido.

É fácil ser valente, mas é árduo ser intrépido.

Ser artesão não é nada, perto de ser artífice.

Legal ser eleito Papa, mas bom mesmo é ser Pontífice.

(Este último parágrafo contém algo raríssimo: proparoxítonas que rimam. Porque elas se acham únicas, exóticas, esdrúxulas. As figuras mais antipáticas da gramática.)

Quer causar um impacto insólito? Elogie com proparoxítonas.

É como se o elogio tivesse mais mérito, tocasse no mais íntimo.

O sujeito pode ser bom, competente, talentoso, inventivo – mas não há nada como ser considerado ótimo, magnífico, esplêndido.

Da mesma forma, errar é humano. Épico mesmo é cometer um equívoco.

Escapar sem maiores traumas é escapar ileso – tem que ter classe pra escapar incólume.

O que você não conhece é só desconhecido. O que você não tem a mínima ideia do que seja – aí já é uma incógnita.

Ao centro qualquer um chega – poucos chegam ao âmago.

O desejo de ser uma proparoxítona é tão atávico que mesmo os vocábulos mais básicos têm o privilégio (efêmero) de pertencer a esse círculo do vernáculo – e são chamados de oxítonos e paroxítonos. Não é o cúmulo?

Fonte:
Facebook Língua e Tradição

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 420

 



Olivaldo Júnior (O Aluado)


Conheci o aluado há muito tempo. Não queria tê-lo conhecido, mas ele não me deu escolha. Morava num galho de árvore, na beira do rio. Comia os frutinhos que a mata lhe dava. Era um homem de mais ou menos trinta anos, pele escura pelo sol, olhos negros pela noite, com fiapos de luar em seus cabelos, tão sujinhos de memórias. Não falava nossa língua. Aliás, já não falava. Dizem que ficou assim depois de ter amado.

Não sei, mas o amor pode mesmo machucar. Não, o amor não. A paixão. A senhora dos corações humanos, ainda mais que o amor, esse bálsamo que os anjos de quando em quando deixam cobrir nossas feridas, a paixão é o que nos fere, muitas vezes mortal e irremediavelmente, sem dó. Assim estava ele, o aluado, em permanente estado apocalíptico, pós-paixão.

Conheci há muito tempo o aluado. Não queria tê-lo conhecido, mas ele não me deu escolha. Hoje, os olhos dele são meus olhos quando o vejo, tenho o tal em minha vista. Canta, cantarola em língua própria seu hinário, de dor, de amor, de andor. Não sei se o perco de vez na escuridão, se lhe dou a mão para subir, não sei o que fazer. Hoje é lua cheia. Do edifício das estrelas, São Jorge desce e quer levá-lo. Ave, Maria, cheia de garças, levai o Homem a ser ave! Posso, da vista de casa, avistá-los. O aluado não quer ir, mas São Jorge insiste e ele vai. No dorso do cavalo branco, guerreiro, perdendo a guerra em paz, o aluado vai morar no Céu, enfim.


Fonte:
Texto enviado pelo autor