sábado, 10 de fevereiro de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (E agora, Jose??!!)

SEMPRE GOSTEI de cachorros. Melhor dito, de cachorras. Desde que passei a morar sozinho, adquiri uma amiga de quatro patas que me acompanha em todas as brincadeiras. Ela se chama Bergamota. Bergamota nada mais é que o nome da mexerica no Rio Grande do Sul. A simpática é uma Shitzu Xícara de Chá. Chama a atenção pelo seu tamanho. De pelo totalmente branco crescendo em todas as direções, traz as orelhas caídas e o rabinho em constante estado de abano. Extremamente carinhosa, adora me dar lambidas no rosto. Eu não me importo. Acho tratar a nossa relação de uma forma “cachorral” literalmente especial e amada em demonstrar o seu amor incondicional por mim.

Dia desses, estava aqui em casa a minha avó, e ela me viu beijando a Bergamota na boca. Aquele beijo cinematográfico que faz qualquer língua por mais quieta que seja, sair do sério e mergulhar num mundo de salivas em ebulição deixando ao final um amontoado de lembranças imorredouras. Vovó, entretanto, ficou horrorizada e me deu um sermão. Disse que aquilo se fazia extremamente perigoso. Que eu poderia pegar doenças e parasitas da cachorra. Argumentou que a saliva da minha cadelinha (como a de outros animais) armazena uma série de bactérias e vírus. Que eu poderia, num futuro próximo, ter problemas nos dentes, na pele, no estômago, e até mesmo na cabeça. Ela me mostrou alguns artigos na Internet que falavam sobre os riscos de beijar um animal (por mais limpo e asseado) na boca.  

Fiquei meio que assustado e confesso, ainda ando deveras cabreiro e confuso, notadamente quando ela esclareceu que, de repente, eu poderia passar a latir. Brincadeira ou não, me imaginei latindo em meio aos amigos nas peladas de domingo, ou mesmo quando estivesse com a Brisa, a minha namorada. Será que a Bergamota se constituía numa ameaça para a minha saúde? Será que eu tinha que parar de beijá-la? Resolvi pesquisar mais sobre o assunto. Descobri que havia opiniões diferentes. Alguns especialistas diziam que se fazia um gesto seguro dar um beijo em seu pet, desde que ele estivesse saudável, vacinado e vermifugado. 

Outros acrescentavam que seria de entendimento mais benigno, evitar. Havia sempre um risco, mesmo que pequeno, de transmissão de doenças. Também li que algumas pessoas se tornavam mais vulneráveis do que as outras, o mesmo acontecendo com bebês, crianças, idosos, grávidas e criaturas com o sistema imunológico baixo. A meu ver, não me encaixava em nenhuma dessas categorias. Ainda assim, fiquei com um certo receio. Eu não sabia o que fazer. Amava Bergamota e não queria deixar de beijá-la. Também não queria ficar doente por sua causa. 

Decidi conversar com o meu veterinário. Ele estava viajando. Optei em ter um papo franco com meus pais. Eles, como sempre, metidos até o pescoço, trabalhando. Por derradeiro, os meus amigos. Por azar, os idiotas não entendiam nada de cachorros. Senti-me sozinho e angustiado. Foi então que tive uma ideia. Resolvi conversar com a própria cidadã em pessoa. Cheguei mais cedo em casa, chamei a Bergamota para o meu quarto.  Sentei na cama. Ele veio correndo, abanando o rabo e pulou em cima de mim. Eu a abracei e olhei nos seus olhos. Comecei rodeando:
— Berga... preciso te falar uma coisa... 

Ela, de rabinho em total abanação deu carta branca:
— Fala, meu amor... sou toda ouvido, nariz, boca, e etc...
— Engraçadinha. Você sabe que te amo muito, né? Você é a minha melhor amiga. A minha melhor companheira. Indo mais longe, minha irmã... sua pessoinha alegre e saltitante sempre esteve comigo nos momentos bons e ruins me fazendo rir e me consolando. Você é a melhor criatura do mundo. Porém, entre mortos e feridos, tenho um problema. Estou com uma dúvida tremenda. Melhor dizendo: não sei que decisão tomar. Descobri que beijar você na boca, entre outras coisas, pode fazer mal para mim. Pode me causar uma série de transtornos, ou contrair doenças e infecções. Pode me deixar doente. E eu não quero isso. Eu quero e não só quero, pretendo ficar bem para poder brincar com você, passear com você, cuidar de você... etc... etc... e tal... 

Tomei fôlego e fui em frente:
— Então, minha amiga, eu careço que você me ajude. Necessito que me diga o que fazer. Devo continuar beijando você na boca ou não?
Bergamota me olhou bem dentro dos olhos e meio entristecida, respondeu:
— Gato, com toda certeza você está me tirando. Que mal posso lhe fazer? Sou uma cachorra saudável. Pior é você beijando a língua da sua namoradinha. Aquela lambisgóia da Brisa. Acaso sabe me dizer onde a sua sirigaita (me perdoe a franqueza) mete aquela abertura oral quando não está com você? Duvido!

Fiquei um momento em silêncio e obtemperei:
— Berga, ela é gente...
— E eu, o que sou?
— Uma cachorra... ora bolas...
— Mas na hora do bem bom, você larga a sua amadinha e vem balançar as pulgas comigo. Uma vez você, numa de nossas “excitações,” me disse que as minhas pulgas são as melhores. Mordem pra valer... e a coceira no corpo dura mais...
— Bergamota, entenda...
Bergamota começou a chorar. Me olhou com uma expressão de curiosidade e inocência. Inclinou a cabeça para o lado e soltou um latido. 

Em seguida, lambeu meu rosto todo, da testa ao queixo, passando pelo nariz, pela boca, pelas bochechas. Me deu, no mesmo impulso, os maiores beijos (aqueles como já mencionei, cinematográficos, de novelas) ósculos arrojados e incitantes. Sucções alucinantes como jamais recebera na vida. 
— Estou apaixonado por você. Seu cuspe, seu jato salival, sua baba, ou qualquer outro nome que queira dar, me faz viajar em sonhos. 
Repetiu os beijos, desta vez mais demorados. Na sequência, latiu, digo, falou:
— Meu gato, te amo, te amo, te amo... 
 Sorri e chorei ao mesmo tempo. Eu entendi o que ela quis dizer. 

Na verdade, Bergamota deixou claro que me amava muito. Que acima de qualquer coisa, confiava em mim. Não queria, em hipótese nenhuma me fazer mal. Ela quis dizer (e na verdade disse) que aquele trocar de línguas impulsivos e ousados se fazia no jeito mais humano de me demonstrar seu amor. Sinalizou que não entendia nada de doenças e infecções. Todavia, assimilava o bastante sobre sentimentos e emoções. Quis deixar óbvio (e deixou) que, como cadela, só queria, só desejava, só pleiteava ser feliz comigo, e que esperava, do fundo do seu coração, que também fosse feliz com ela.
Eu abracei a Berga com mais força e disse:
— Berguinha, eu te entendo. Você é uma cadela e eu sou um ser humano. Nós somos diferentes, mas como os seres humanos, nós nos amamos. 

Voltei a tomar fôlego:
— Nós temos nossas formas de expressar o amor, e nós respeitamos isso. Nós não precisamos de palavras. Nossa comunicação se dá através de pequenas trocas de gestos e mimos vindos de dentro do nosso mais profundo. Nós, minha linda, não precisamos de regras. Seguimos o instinto. Não precisamos sentir medo. Nós temos coragem. Nós não ficamos em cima do muro remoendo dúvidas. Temos dentro de nós, a certeza. E eu tenho a convicção de um ponto importante: nunca vou deixar de beijar você na boca. E de fazer outras coisas... tipo tirar suas pulgas, coçar sua barriguinha... porque eu sei que você nunca vai me fazer mal. Em contrapartida, sei que você nunca vai me deixar. Sei que você é a minha melhor amiga e companheira. 

Bergamota me interrompeu com uma das patinhas dianteiras em meus lábios:
— Por minha conta, é porque sei que você é o autor dos meus melhores beijos.
Sem que eu dissesse o que pretendia, Bergamota lambeu o meu rosto mais uma vez e deitou a cabeça no meu peito. Eu fiz um carinho na sua orelha e fechei os olhos. Ficamos assim por um tempo, em silêncio, apenas sentindo o calor um do outro. Estávamos felizes. Ao nosso redor, a paz falava mais alto. Afinal, vivíamos o nosso amor.

— Sabe aquele segredo que eu queria te revelar?
— Não, Berga. Que segredo?
— Duas chances...
— Desistiu do Tigrão, o cachorro chato do nosso vizinho do 601?
— Não. Falta uma... 
— Está de olho no Labrador do sujeito tampinha do segundo andar?
— Errou feio... 
— OK, minha fofa. Entrego os pontos. Abra o jogo de uma vez. 
Antes de trazer à tona o tal segredo, me beijou longamente na boca: 
— Eu vou ser mãe... estou esperando um filhote seu...

Fonte> Texto enviado pelo autor 

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 40

 

Mensagem na Garrafa = 101 =

Ialmar Pio Schneider
Porto Alegre/RS

CIGARRAS E FORMIGAS

Nos primeiros anos de escola primária, se não me falha a memória, no terceiro, aprendíamos a fábula “A cigarra e a formiga”, de La Fontaine, traduzida pelo poeta português Belchior M. Curvo Semedo, expressa com as seguintes estrofes: 

Tendo a cigarra em cantigas 
Folgado todo o verão, 
Achou-se em penúria extrema 
Na tormentosa estação. 

Não lhe restando migalha 
Que trincasse, a tagarela 
Foi valer-se da formiga, 
Que morava perto dela. 

Rogou-lhe que lhe emprestasse, 
Pois tinha riqueza e brio, 
Algum grão com que manter-se 
Té voltar o aceso estio. 

“Amiga, (diz a cigarra) 
Prometo, a fé d’animal, 
Pagar-vos antes de agosto 
Os juros e o principal.” 

A formiga nunca empresta, 
Nunca dá, por isso ajunta... 
“- No verão em que lidavas? “
À pedinte ela pergunta.

Responde a outra: “Eu cantava 
Noite e dia, a toda a hora.” 
“Oh! Bravo! (torna a formiga) 
Cantavas? pois dança agora!”

Ensinavam-nos que se não fizéssemos nosso pé de meia no verão, quando chegasse o inverno iríamos ter dificuldades insuperáveis para nossa sobrevivência. De fato, aquela filosofia ficou impregnada em meu subconsciente por diversos anos até que, bem mais tarde, conheci os sonetos de Olegário Mariano, entre os quais o “Conselho de amigo”, que assim se expressa: 

Cigarra! Levo a ouvir-te o dia inteiro, 
Gosto da tua frívola cantiga, 
Mas vou dar-te um conselho, rapariga: 
Trata de abastecer o teu celeiro. 

Trabalha, segue o exemplo da formiga, 
Aí vem o inverno, as chuvas, o nevoeiro, 
E tu, não tendo um pouso hospitaleiro, 
Pedirás... e é bem triste ser mendiga! 

E ela, ouvindo os conselhos que eu lhe dava 
(Quem dá conselhos sempre se consome...) 
 Continuava cantando... continuava…
Parece que no canto ela dizia: 
- Se eu deixar de cantar morro de fome... 
Que a cantiga é o meu pão de cada dia.

Foi deste modo que a literatura explicava-me por dois prismas como deveria ser encarada a existência das cigarras e das formigas. Comecei a aceitar que Deus as fez para que cumprissem seus destinos já traçados. Nem por isso julguei transpor ao homem esta fatalidade, pois este é dono do livre-arbítrio, o que o leva a diferenciar o certo de o errado, ou melhor dizendo, escolher o caminho que deverá trilhar para seu bem-estar e o de sua família. Estamos aqui de passagem, mas podemos discernir as coisas existentes ao nosso redor, sem fugir da responsabilidade que nos pesa.

Se não conseguir realizar tudo o que desejava, por que me frustrar? Posso, contudo, desenvolver as atividades por mim exequíveis de acordo com as minhas forças. Dizem por aí que, nos dias atuais, empatando já é a conta.; outros falam em não deixar cair a peteca; e assim por diante. São expressões populares que despertam um sentimento de aceitação. Quero crer que é a maneira mais adequada de enfrentar a vida.

Cantiga Infantil de Roda (Boi Barroso)


Eu mandei fazer um laço 
do couro do jacaré
Pra laçar o boi barroso, 
num cavalo pangaré

Refrão: 
Meu Boi Barroso, meu Boi Pitanga
O teu lugar, ai, é lá na cana
Adeus menina, eu vou me embora
Não sou daqui, ai, sou lá de fora

Meu bonito Boi Barroso,
Que eu já dava por perdido
Deixando rastro na areia
Logo foi reconhecido

Refrão:
Meu Boi Barroso, meu Boi Pitanga
O teu lugar, ai, é lá na cana
Adeus menina, eu vou me embora
Não sou daqui, ai, sou lá de fora

George Abrão (Amores das nossas vidas)

Hoje eu me peguei refletindo sobre os amores da minha, da sua, da nossa vida. 

Quando nascemos conhecemos o nosso primeiro e eterno amor: nossos pais. Amor natural, incondicional, imensurável!

Depois vem o amor fraterno, diferente, cheio de divergências, pequenas rusgas ou até mesmo brigas. Mas mantêm-se para sempre, superando o tempo e a distância.

Um amor engraçado: no caso de nós (homens) pela primeira professora. É uma fascinação por seus gestos, pelo seu modo de falar, por sua sabedoria. E por mais que o tempo passe jamais a esquecemos!

Aí fazemos nossas amizades e para que sejamos ou tenhamos amigos ou amigas, é primordial que exista amor recíproco, pois do contrário é simples convivência. Amor sincero, sem exigências, puro!

E a primeira namorada, que coisa incrível o primeiro toque de mãos, o primeiro e rápido beijo, a vontade de se estar juntos, a inocência e a pureza no relacionamento.

Até que encontramos a nossa outra metade. Apercebemo-nos que acabou a procura, que queremos ficar a vida toda ao seu lado. E o amor completa-se com a paixão, com o sexo. E nos completamos, e saciamos a nossa sede, e vivemos plenamente.

E os filhos, que durante os nove meses da gestação aprendemos a amá-los, a esperá-los com ansiedade e mesmo com sofreguidão. E quando nascem o nosso amor explode em risos e lágrimas, e nos julgamos o mais afortunado dos mortais. Esse amor é crescente, é exigente, é responsável!

Todos esses amores são fáceis de explicar, bons de sentir, razão de viver.  

Agora, inexplicável é a dimensão do amor pelos netos. Aí a coisa pega, é um amor que ultrapassa todas as barreiras, que transcende a própria razão. E então voltamos a ser criança, a exigir de nós mesmos uma vitalidade que talvez já não possuímos, a querer mostrar ao mundo os nossos “troféus”. Sim, porque neto representa o apogeu de nossas vidas, a coroação por tudo que vivemos ou fizemos!

Fonte: George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017. Enviado pelo autor.

“Spinas” Entre-Nuvens – 1 -


Ana Meireles
Belém/PA

VERSÃO SEM IGUAL 

Convoca meus versos
— Versão sem igual
 Lenta faina doce…

Qual gosto ao comer sapoti
A língua criteriosa não trava
 Remexe como se ágil fosse
Busca a rima para sonorizar
O amor no poema agridoce.
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Artur José Carreira
São Paulo/SP

AMORES

Amores são diferentes
Amores são diversos:
Inversos são rancores.

Seus versos rimam meio assim,
Nos perplexos olhares, não sós,
Se prestam pelos seus favores.
Amores são divinos, sem alarde
Apenas pétalas ao chão, flores.
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Beth Iacomini
Ponte Nova/MG

LEVEZA EM NÓS 

Gostoso é viver...
só nós, sempre
plenos de amor!

Nas manhãs, regarmos o jardim,
amar as nossas rosas amarelas...
realidade tão assim, pouca dor!
deitarmos aos pés da mangueira  
bendito Sol, mais tardinha, por…
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Carla Bueno Oliveira
São Paulo/SP

ESQUEÇO DE TUDO

Esqueço de tudo
Desde que conheci
Você, meu universo.

Você tornou-se a minha vida
A razão de tudo, enfim,
De existir cada novo verso
Foi tão bom isso acontecer
Não poderia ser o inverso!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Cleusa Piovesan
Capanema/PR

SALDO FINAL 

Velhice sem idade,
Idade sem traumas,
Medo? Só sobreviver.

Saldo de noites mal dormidas,
Bem vividas em poesia insone,
Instigam minha ânsia de viver.
Tive amores, paz, medo, dores...
Tenho benção de não esquecer!
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Isabel Pernambuco
Maceió/AL

LUA…

Banhando a noite,
bela lua cheia...
Infinda de beleza

Tão linda lua, traz-me você.
Ela é dos namorados... enamorados
Basta admirá-la, foge a tristeza.
Suas fases, as tenho também
Segue sempre brilhando, só boniteza.
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Mari Ane Araújo
João Pessoa/PB

ELA, PERSISTE NO SORRISO

Coração, alma leve
Persiste no sorriso 
Apreciadora do mar.

Assim, coração aberto para amar;
Encantada da vida, busca alegrias.
Ela, intensidade. Ah! Sempre solar
Das estações... Prioriza o VERÃO;
Conserva, nos detalhes: O olhar!…
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Olema Mariz
Porto/Portugal

LENDO OLHARES

Ainda bem pequena 
Já admirava olhares,
Decifra-los ali começava...

Percebia a linguagem dos olhos,
Cedo entendeu os seus sinais...
A tristeza, alegria, via, repensava.
Quantos pares ela absorta intuiu.
Encantada com a leitura avançava.
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Ronnaldo de Andrade
São Paulo/SP

ALMA FRUSTADA 

Revejo meu espírito
distante, a caminhar,
olhando a paisagem.

Os passarinhos vão fazendo traquinagem,
semeando semente altiva em opulência.
Espalham no caminho esquisita ramagem;
atônita amargura estremece... Minha alma 
antagônica, zen, segue pedindo passagem.

Maria Amália Vaz de Carvalho (A escolha de Gastão)

Fez verdadeiramente o que se chama escândalo, em todas as salas da alta roda, o casamento do filho do visconde das Lagoas.

O visconde, cujo nome primitivo era João do Moinho Novo, e que depois não sei porque artes se apelidava João Silveira, fora para o Brasil muito moço, creio que com dezoito anos, e voltara de lá com cinquenta e arquimilionário.

Rosnava-se muito acerca das origens desta nebulosa e extraordinária fortuna.

Uns falavam de escravatura, alguns de contrabando, todos de negócios pouco lisos e pouco lícitos. No fim de contas, porém, o principal é que uma pessoa seja muito rica.

Lá o como e porquê são questões secundárias, com que se preocupam muito os invejosos, e um pouco os escrupulosos.

O resto das pessoas, e já se vê que são muitas, essas nem para aí voltam os olhos.

Acham este esmiuçar impertinente das vidas alheias além de enfadonho pouco aristocrático.

O visconde passava o verão na provincia do Minho, numa povoação perto de Vianna, onde comprara um velho palácio, cuja fronte enegrecida ele mandara cuidadosamente caiar.

O portão do palácio era encimado pelo brasão de armas da família arruinada a que pertencera. O visconde, que não quisera conservar mais nada intacto, teve a caridosa lembrança de o conservar .

Mandou-o limpar das ervas e dos musgos daninhos que se tinham introduzido entre as fisgas da pedra, e dos ninhos que a fantasia errante das andorinhas ali armara no estio.

Depois de limpo pareceu-lhe um ornato simpático e nada contraditório com os seus gostos plebeus, e deixou-o ali ficar, com intenção firme de o cobrir de crepe, no caso de lhe morrer algum dos seus.

Foi depois disto que se decidiu a pedir ou por outra a comprar, dos poderes públicos complacentes o seu titulo de visconde.

O mais modificou-o e transformou-o à sua vontade.

Detestava as ruínas por instinto.

As vastas salas apaineladas e forradas de custosos panos de Arrás, mandou-as estucar à moderna, de cores claras e alegres, vendendo a um amador de curiosas velharias, — o mais caro que pode, já se entende — aquelas colgaduras enegrecidas e esfiadas, cujo mérito não havia nunca logrado perceber.

Vendeu igualmente a velha mobília, que punha como que um perfume de grandeza extinta no arruinado casarão, as credencias marchetadas, os tremós (espelho colocado entre duas janelas) de espelho partido ao meio, e em cuja moldura dançavam estranhas figurinhas, as cadeiras abaciais de couro e pregaria amarela, os cofres de pau santo, os tamboretes de carvalho, as relíquias de um mundo que desabara.

Os domínios do visconde depois de transfigurados pelo seu opulento proprietário perderam aquele aspecto desolador, saudoso e melancólico que os recomendava aos artistas e aos... morcegos.

Ninguém por mais fantasioso e poeta que fosse, seria capaz de evocar na sombra dos longos corredores claustrais, uma daquelas figuras que são a graça misteriosa do passado.

Uma castelã pálida e esguia, sustendo nas suas mãos de marfim o missal de ricas iluminuras... Um pajem louro e namorado, embevecido no sonho de longínquas aventuras e de impossíveis amores... Um vulto de abade austero e glacial, trazendo para o meio do mundo a gélida mortalha da sua piedade monástica...

Nenhuma dessas visões podia agora evocar-se.

Foram derrubadas as árvores silvestres cuja sombra envolvia o palácio numa austera solidão; arrancaram-se as heras possantes que cobriam com o manto vigoroso da sua folhagem verde-negra os muros gastos e esburacados; calçaram e ladrilharam os pátios por onde a erva crescia indomada e livre, e onde fontes enormes choravam dia e noite com uma triste e sonolenta melopeia.

Um jardineiro inglês veio de propósito cortar as moitas de buxo espesso do jardim, onde umas estátuas de pedras mutiladas e musgosas pareciam ainda relembrar no desamparo da sua nudez friorenta, uma vida inteira que o passado abismara.

Aquela desolação das ruínas e aquele indômito luxo da natureza entregue a si, foram substituídos por todas as graças e coquetismos da moderna jardinagem.

Uma estufa de plantas raras, de estranho colorido, de formas fantásticas e inquietadoras, de cheiro irritante e acre; tabuleiros de gazão (relva de jardim) duma frescura esmeraldina, camélias, rosas, trepadeiras floridas, tudo que as tiranias da arte têm misturado nas liberdades da Natureza.

O visconde depois de haver-se rodeado de tudo que pôde tornar aos ricos a vida não só aprazível o que é pouco, mas invejável o que é muitíssimo, começou a granjear relações, e a receber com bizarra hospitalidade os amigos que durante o inverno adquiria nas salas da capital.

Em Lisboa não era menos rica, nem menos confortável, a habitação do milionário.

Vastos salões ricamente mobilados, equipagens de alto estilo, criadagem insolente e ociosa, escadarias alcatifadas, bailes e ceias onde toda a corte concorria tão cheia de curiosidade como de gulodice, jantares aos quais eram convidados os ministros, os titulares, os diplomatas estrangeiros e os funcionários mais influentes, tudo enfim que pode dar à vida um aspecto opulento e principesco, tudo que constitui o orgulho supremo dos medíocres e a inveja brutal dos ambiciosos.

De resto o dono da casa era tão pouco conhecido da maioria dos frequentadores das suas festas, que mais de  um o tomou pelo criado de si mesmo, e lhe pediu com desdenhosa insolência, o paletó, ou um copo de água.

O visconde enviuvara antes de deixar o Brasil, e os que haviam conhecido sua mulher, não lamentavam que a pobre senhora fosse dispensada pela Providência de assistir à espetaculosa mise-en-scéne (encenação) da vida dos que tinham sido seus.

O visconde tivera do seu matrimônio, duas filhas e dois filhos.

Na época em que ele maior ostentação desenvolvia, teriam as meninas dezoito a vinte anos.

Tinham sido educadas em casa, por uma mestra francesa escolhida pelo pai. Vestiam-se da Aline, quando não mandavam vir diretamente de Paris as suas toaletes extraordinárias, e sempre muito além da moda.

Usavam tudo que havia de mais excêntrico. Os chapéus mais pequenos, ou os chapéus de mais largas abas, os vestidos que deixassem ver o pé todo, ou os vestidos cuja cauda roçante lembrasse um manto de rainha... de teatro.

Havia tempos em que usavam na cabeça o cabelo de uma dúzia de mulheres, e outros tempos em que apareciam de repente de cabelo cortado como os rapazes, encaracolado e de risco ao lado.

Timbravam em não se parecer com mais ninguém.

Mas não podiam eximir-se a um defeito especial que as fazia darem muito na vista. Ocupavam-se extremamente de si.

Falavam do seu boudoir (salão de beleza privado), das suas toaletes, das meias de seda de três libras ou doze mil réis — as únicas que traziam — , do elegante edredom do seu leito, das finas perfumarias do seu toucador.

Isto fazia rir com riso amarelo as amigas mais íntimas, que diante de gente, costumavam puxar-lhes pela língua.

De resto as filhas do visconde seguiam rigorosamente os preceitos e regras da alta-vida.

Tinham assinatura em S. Carlos, para serem vistas, e frequentavam assiduamente a igreja, para se parecerem com as filhas de condes pálidas e anêmicas, cujo luxo superior é a devoção e a caridade, diluídas ambas as coisas em pequeninas práticas de todos os dias.

Sabiam conversar pouco mais ou menos sobre tudo, sendo no fundo de uma crassa ignorância acerca de todas as coisas.

Como dissemos, fora francesa a mestra que as dirigira. Dera-lhes o verniz da educação, e mais nada.

De línguas sabiam o bastante para conversarem com os diplomatas; de música, para criticarem o físico das cantoras; de artes para revelarem a cada instante a negação profunda que tinham para o belo.

Respeitavam e invejavam todas as superioridades sociais; o dinheiro, a fidalguia herdada ou comprada, a posição, as honras, a formosura.

Desprezavam profundamente uma só coisa: a pobreza.

Quando viam alguém pobre, pouca ou nenhuma atenção lhe prestavam; mas se esse alguém tivesse a inaudita ousadia de apresentar uma ideia, uma opinião, um juízo, de contraria-las, de escarnecer alguma das coisas que elas acima de tudo reverenciavam viam-nas então revelar um pasmo sincero, um espanto que tinha o seu quê de tragicamente ridículo.

Um dia ouviu alguém a uma delas este aforismo extraordinário: Quem é pobre não tem opinião.

E tinham um modo de levantar a voz, de alçar altivamente a cabeça, de sublinhar vigorosamente as palavras, que mais do que tudo confirmava que elas como pessoas que possuíam duzentos mil réis por mês, só para os seus alfinetes, não tinham nunca imaginado sequer a possibilidade de não terem razão.

Era uma maneira não menos autoritária, porém menos correta de dizer o que à senhora de Stael disse um dia a duquesa de La Ferté.

Il n’y a que moi, chère amie, qui aie toujours raison.
(Só eu, querido amigo, estou sempre certo.)

Aí estão pouco mais ou menos as duas filhas do visconde.

O filho mais velho, que partilhara no Brasil os primeiros trabalhos e as primeiras lutas de seu pai, adquirira com a vitória dele, que era também sua, o mesmo ar de ingênua superioridade.

Tinham trazido do Brasil uma fortuna colossal, logo tinham o direito de dominarem onde quer que estivessem.

Toda a gente que frequentava a casa deles, que lhes aturava a impertinência boçal, confirmava pela sua servil condescendência esta convicção; porque é pois que não haviam de a sentir?

O primogênito do visconde ocupava-se muito, com verdadeira alegria de seu pai, de cifras e de operações bancárias; jogava em fundos estrangeiros, tinha a vocação mercantil pronunciadíssima, e nos intervalos que estas ocupações transcendentes lhe deixavam, governava um carro, e mandava correr os seus cavalos.

Estivera em Londres, quando lá fora deixar num colégio o seu irmão mais novo, e voltara com certas aspirações a gentleman rider (cavaleiro cavalheiro).

Falava pouco, com ar sacudido, apressado, sentencioso.

Usava suíças e vestia de um alfaiate inglês. Queria ser homem sério, respeitável, homem de peso, e pensava numa candidatura como num pedestal próprio para as suas atitudes.

É no meio desta família admiravelmente feita para a sua época e para a posição que tem, que vamos encontrar Gastão, o último filho do visconde, um fenômeno destinado a contrariar tudo que se tem dito e escrito sobre a lei da hereditariedade.

Gastão tem vinte e um anos, é alto, delgado, duma constituição tão delicada e nervosa, que ao lado de suas irmãs com o seu ar masculino e as suas inflexões duras, ele é que parece a mulher e elas é que parecem os homens.

Dizem os que um dia se atreveram a chasquea-lo pelo ar tímido e suave que aparenta, que nos seus olhos azuis, de uma expressão triste e sofredora, passou um relâmpago de cólera, pouco tranquilizador para os que abusarem da sua excelente educação.

Gastão da Silveira, chegara havia pouco duma viagem que fizera pela Europa, depois de concluir a sua formatura numa Universidade de Inglaterra.

Da sua família não sabia senão que era rica, e que vivia grandemente, como ele tinha visto viver os opulentos banqueiros ingleses, nas suas deliciosas casas dos arrabaldes da cidade, confortáveis e luxuosas.

Esta informação não lhe faltava porque seu pai, suas irmãs, seu irmão mais velho, nunca se cansavam de lhe repetir em todas as cartas.

Isto porém não bastava a Gastão. O que ele desejaria profundamente, era conhecer a fundo o caráter dos seus, e o que desse caráter lhe revelavam as cartas secas e lacônicas de que falamos, teimava ele na sua fé juvenil, em não o aceitar como prova ou como manifestação.

Tinha pelos seus amigos e condiscípulos conhecido a vida inglesa em relação à família, fora convidado para passar as férias, em casa de ricos industriais na companhia de alguns dos seus mais caros colegas de estudo, e pudera conceber um ideal realizável, de paz, de aconchego, de conforto doméstico, que ansiava encontrar no seio da sua família.

Tinham-lhe dito que seu pai ganhara pelo trabalho a grande fortuna que possuía, e Gastão habituado a observar a atividade enorme, incansável, persistente, a fecunda atividade inglesa, sentira crescer o amor pelo visconde ao saber a tenacidade com que ele trabalhara.

Inteligente, de uma inteligência fina e delicada, a viagem que fizera desenvolvera-lhe o espírito, e afinara-lhe o gosto.

Voltava cheio de ideias, de fatos, de noções práticas, respeitando acima de tudo a inteligência, e a dignidade da vida.

Como homem educado ao contato da vida inglesa, avaliava o dinheiro mas não como um fim, simplesmente como um meio, o mais enérgico e infalível dos meios para chegar a grandes fins.

No dia em que Gastão conheceu seu pai e seus irmãos imaginem a dolorosa surpresa que ele sentiria.

No ânimo do visconde e de seus filhos excitou porém o aparecimento daquele belo moço de maneiras distintas, afavelmente dignas, de espírito superiormente cultivado, de conhecimentos científicos excepcionalmente desenvolvidos, a mais agradável das impressões.

Um irmão daqueles, um filho de tal maneira elegante e fino, dava-lhes honra, dava-lhes importância e realce. Se fosse um estranho ter-lhe-iam inveja, mas enfim, Gastão pertencia-lhes, era deles, a sua graça, a sua superioridade, a sua distinção comunicava-se-lhes, distinguia sobre as suas pessoas.

O visconde pensava que no fim de contas o que constituía o especial encanto do filho, a educação, fora ele quem a comprara muitíssimo cara.

Podia orgulhar-se de Gastão diante dos estranhos mas queria domina-lo, subordinar as opiniões dele às suas, mostrar-lhe bem claro, que o adorava pelo que ele transmitia a sua vida de elegante e de superior, mas que o considerava um objeto raro adquirido por muito bom preço, e do qual dispunha absolutamente.

As manas, essas não ocultaram no primeiro momento de entusiasmo que a posse de Gastão lhes dava muito mais chique do que a posse do seu coupê novo tirado por dois cavalos ingleses puro sangue e cujos arreios irrepreensíveis tinham sido louvados pelo embaixador de França.

— Ora tu verás, dizia a mais velha para a outra, que as Pimentas em vendo Gastão ficam de fel e vinagre. Repara bem para a cara que elas fazem, sobretudo se vierem acompanhadas do mano, daquele Leopoldo, de olhos vesgos, de quem toda gente se ri, e que ainda não acertou a fazer uma conta de somar.

E exibiam o irmão pelas salas das suas amigas, sob pretexto de que não tinham quem as acompanhasse, e repetiam em segredo a todas as pessoas do seu conhecimento:

— Não fazem ideia! O mano Gastão é um poço de ciência. Sabe todas as línguas. Eu creio que ele até sabe sânscrito. O papá gastou muito, mas que educação que ele lhe deu!

E por aqui adiante uma ladainha em que se confundiam a ciência do mano, os gastos do papá, a inveja que todos tinham de ambos, e a glória que a elas provinha da inveja, dos gastos e da ciência.

Gastão tornara-se o luxo superior da família.

Foi por esse tempo que o visconde entendeu que era necessário casar o filho mais novo, visto que o mais velho dissera com desdém supremo que só se atiraria a esse abismo do casamento, quando tivesse completado os seus folgados quarenta anos.

— Quando Gastão casar, as pequenas poderão frequentar mais os bailes, os saraus e os passeios.

Eu gosto de receber em casa; não me incomodo com isso, mas lá para andar sempre pelo meio da rua é que não estou. E depois Gastão pode fazer um casamento esplêndido. Está nesses casos por todos os motivos.

E foi resolvido em conselho de família, que Gastão tomasse estado.

A casa do visconde das Lagoas tornou-se a mansão de todos os prazeres, como o bom do homem dizia na praça aos seus amigos titulares e merceeiros. Bailes, jantares, petites sauteries intimes (pequenas brincadeiras íntimas), concertos, a fortuna!

A leoa destas reuniões, que os noticiaristas imortalizavam na seção da alta elegância mundana, chamava-se Clotilde de Magalhães. O pai ambicionava um título que ainda não tinha podido alcançar dos governos, mas que mediante um avultado donativo a não sei que estabelecimento bafejado pelo favor da corte, lhe fora prometido para muito breve.

O conselheiro Magalhães dissera porém ao seu amigo o visconde das Lagoas, que essa promessa lhe não bastava, que o que ele queria e alcançaria decerto, visto que ao dinheiro nada é impossível, era um título em duas vidas, um titulo que ele pudesse transmitir à sua filha e portanto a seu genro.

O visconde ouviu e compreendeu.

Desde esse dia as duas famílias acariciaram como uma esperança lisonjeira, o projeto de enlace entre Clotilde de Magalhães, a filha única desse conselheiro milionário, e Gastão da Silveira, o elegante filho do visconde das Lagoas.

Clotilde tinha vinte e dois anos. Uma esplêndida fisionomia peninsular iluminada por um par de olhos negros, dos que ateariam incêndios há trinta anos no seio apaixonado dos tétricos trovadores.

Era inteligente o bastante para ocultar o soberano orgulho, que lhe esterilizava o coração.

Tudo quanto a educação das salas tem de mais requintado e precioso possuía-o Clotilde em larga escala.

Manejava facilmente duas ou três línguas, cantava com uma voz de contralto quente e apaixonada as árias mais enervantes dos mestres italianos, dançava com uma perfeição de atitudes que a tornavam célebre nos salões, vestia-se bem, sem excentricidades e sem plebeísmos de mau gosto.

As filhas do visconde das Lagoas invejavam-na ardentemente conhecendo-lhe a superioridade dominadora, mas fingiam adora-la, porque da frequência de Clotilde na casa delas, resultava grande animação para as suas soirées.

Clotilde que era caridosa em certas horas, e que ostentava o capricho da proteção, tinha em sua casa, como companheira, pupila ou o que quer que fosse, uma parenta pobre de sua falecida mãe.

Muitas vezes a levava consigo às reuniões mais íntimas talvez por um refinado instinto de garridice.

Tão admirável e triunfante era a beleza de Clotilde, como doce, modesta, sofredora, era a aparência de Angelina. Deste contraste que a todos os olhos se impunha, resultavam sempre grandes alegrias de amor próprio para a elegante herdeira.

Angelina tinha pois uma dupla missão, inteiramente passiva. Fazer sobresair a bondade de Clotilde e a sua formosura.

Quando Clotilde conheceu mais de perto aquele que seu pai lhe prometera muito brevemente para esposo, compreendeu logo, com a rara perspicácia que a distinguia, que o que na sua pessoa havia de mais brilhante e admirado pouca ou nenhuma influência exerceria no coração dele.

Uma noite em que a filha do conselheiro Magalhães estivera mais rodeada de admirações lorpas e de cultos banais, em que, ébria desse grosseiro incenso das salas, ela exibira todas as suas raras e distintas prendas de mulher bonita e de mulher garrida, ousou sorrindo perguntar a Gastão, que mais de uma vez a tinha olhado com mal disfarçada ironia:

— Não me dirá qual é o seu ideal de mulher? Vejo-o sempre tão reservadamente cortês com todas as senhoras, que ainda não percebi o que é preciso ser para lhe agradar.

— Meu Deus! Não há nada mais fácil — respondeu o moço fitando o olhar límpido e honesto no altivo olhar de Clotilde. — É preciso ser uma mulher em quem ninguém repare.

— Julguei que a mediocridade o não cativava a esse ponto — volveu Clotilde mordendo os beiços de cólera.

— Mas é que não é ser medíocre ser modesta. É que a mulher que gosta de brilhar, não sabe o que é sacrifício e abnegação, é que para mim todos os encantos que se apreciam nas salas, não valem um bom e cândido coração que saiba amar-me e viver só para mim.

Não se pode dizer que Clotilde adorava Gastão, mas enfim a verdade é que gostava muito dele. Achava-o superior, correto, distinto, de uma aristocracia inata que a encantava.

Achava-o digno de si.

Não lhe sacrificaria nenhum dos seus triunfos, nenhuma das suas vaidades, nenhum dos seus gozos, mas sacrificava-lhe com certeza todos os seus adoradores.

Ser mulher dele era para ela um sonho radioso.

Discordavam, porém, em tudo, nos gostos, nas ideias, nos sentimentos, na maneira de entenderem a vida.

Clotilde na arte preferia tudo que é brilhante e aparatoso; Gastão amava tudo quanto é grande e dedicado. Clotilde só vivia no meio das opulências sociais; Gastão tinha a ambição das alegrias íntimas e ignoradas.

Ela gostava do incenso de todas as lisonjas por mais grosseiramente capitoso que fosse; ele mais de uma vez dissera que achava ignóbil da parte de uma mulher consentir que um sujeito de casaca, engravatado e ridículo, tivesse a audácia de lhe declarar perto do ouvido que a estava achando formosa e cobiçável.

— Só digo finezas às mulheres a quem desprezo. São as únicas que nos dão direito de lhes dizermos o que nos passa pela cabeça.

Um homem que diz coisas ternas a uma senhora, fazendo boquinhas e frases românticas, insulta-a de um modo indigno.

Como é que as mulheres são tão absurdamente educadas que não percebem isto?

Um dia perguntaram a Gastão diante de Clotilde se gostava da música italiana.

— Conforme! Gosto do bom que há em todas as escolas. Nesse ponto sou eclético e creio que todos o deviam ser. Agora a música italiana das salas acho-a ridícula e pouco decente. Uma senhora a cantar árias em que se fala de amor, de paixão, de êxtases inesquecíveis, etc., que diz Io t’amo revirando os olhos ao primeiro sujeito que passa, perdeu o direito a que um homem sério a escolha para sua mulher.

Desde esse dia Clotilde deixou de cantar.

Gastão não percebeu o sacrifício, ou pelo menos não mostrou que o percebera.

Era um espírito lógico e reto, e tinha o defeito de se guiar na vida pelas opiniões que professava.

Dançavam todos em casa do visconde das Lagoas, e junto de uma pequena mesa de trabalho, no gabinete das filhas do visconde, uma figura loura e delicadíssima, inclinada sobre um álbum de retratos, parecia ignorada e esquecida de toda aquela multidão que se divertia.

— Porque não dança, senhora D. Angelina? perguntou jovialmente a voz de Gastão. Se eu lhe pedir que seja meu par, recusa-me?

— Recuso, respondeu ela docemente, e uma cor viva tingiu-lhe as faces. - Recuso por muitas razões. Em primeiro lugar é um pouco estranho dançar quando se tem a posição que eu tenho, porque enfim eu não sou mais que uma dama de companhia, uma aia, uma governante ou como queiram chamar-me, de casa dos meus caridosos parentes. — Ao dizer isto, talvez involuntariamente, na voz de Angelina havia umas inflexões de amargura resignada.

— Depois — continuou — não danço porque me faria mal. Dói-me muito o peito!

Gastão sentiu dentro da alma como que a brotar subitamente, um sentimento que lhe era desconhecido e em que havia dó, tristeza, admiração, um enternecimento sem nome que lhe embargava a voz.

Angelina era tão delgada, tão frágil, de uma fisionomia tão delicadamente melancólica!

Para tudo a fizera o destino, menos para combater e para lutar. A desgraça despedaçara-a sem que ela tentasse resistir-lhe sequer.

Como seria doce protege-la, guia-la na vida, abriga-la no peito contra os embates hostis da adversidade!

Era assim que Gastão havia sonhado uma adorável e submissa mulherzinha, com aquele olhar largo e límpido que lembrava um lago da Suíça, com aqueles louros cabelos ondeados emoldurando uma testa cetinosa e cor de marfim.

Trocaram mais duas ou três palavras, e depois separaram-se de novo. Angelina talvez ficasse a cismar, que nunca mais teria ocasião de ver postos nos seus uns olhos onde se lesse tão doce e tão honesta simpatia.

O visconde das Lagoas convidou a família do conselheiro para estar um mês na sua quinta do Alto Minho.

Angelina acompanhou naturalmente a sua gentil parenta e protetora.

No campo estabelecem-se facilmente intimidades que na cidade parecem inconvenientes e impossíveis.

Gastão entre aquelas duas belas criaturas, de uma beleza tão diversa como diversos eram os caracteres, pode apreciar e aquilatar a alma e o coração de ambas.

Durante um mês Clotilde foi a rainha aclamada e triunfante do solar provinciano povoado de numerosos hóspedes que alternadamente chegavam, ou partiam.

Era ela quem organizava as festas, quem dirigia as partidas, quem inventava as distrações e os jogos. Ativa, inteligente, soberanamente caprichosa, ser dominada por ela constituía uma sedução. Enquanto assim era o centro da animação festiva que se notava na opulenta casa do visconde, Clotilde empregava para cativar Gastão todos os seus artifícios de sereia.

Envolvia-o no magnetismo irresistível dos seus sorrisos misteriosos, do seu espírito satírico e mordaz, da sua graça majestosa e altiva.

Punha aos pés dele todas as homenagens de que era objeto.

Ás vezes á noite, sentava-se à mesa com o desleixo que sabia fingir, e punha-se a desenhar, com uma verve cômica incomparável, as caricaturas dos galãs suspirosos que a cercavam. Depois, cônscia de que a sua mão valia um milhão, e sem atender aos desesperos que excitava, oferecia a Gastão os desenhos com um gesto irônico e submisso de que só ela possuía o segredo encantador.

Os serões animava-os com a sua presença, com a sua voz, com a sua mestria musical, com os seus conhecimentos variados adquiridos nas viagens e nas leituras.

Angelina voluntariamente oculta no canto mais escuro da sala, assistia a todo este jogo brilhantíssimo com a silenciosa resignação de quem se sente para sempre expulsa de todos os prazeres da vida.

Nem sequer percebia que era para o lugar em que ela trabalhava, que os olhos de Gastão se dirigiam constantemente, e que ele tão desdenhoso e tão irônico para com as outras, lhe falava sempre timidamente, respeitosamente, como os devotos falam com o seu Deus, como as mães falam com os seus filhos doentes.

Houve um dia em que uma resposta quase insolente de Clotilde a fez padecer muito.

Arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas, levantou-se e foi encostar-se à varanda toda enredada de trepadeiras que dava sobre o jardim.

Não percebeu que a crueldade de Clotilde significava um despeito, um ciúme, talvez uma agonia profunda de amor próprio! Pensou somente que a herdeira rica e poderosa insultava diante da sua família, diante do seu noivo, a órfã desamparada, e chamou baixinho por sua mãe, pedindo lhe que a levasse consigo para o céu.

Então uma voz grave, sonora e viril, a voz de um homem de coração e de coragem, murmurou perto dela:

— Quer ser minha mulher, Angelina? Há muitos dias que tenho vontade de fazer-lhe esta pergunta e não me atrevia! É que se me recusar, juro-lhe que me dá um desgosto muito grande! Não faz ideia! Parece-me que a conheço desde que nasci, que nunca vi outra mulher, que nunca achei possível ter outra esposa... Talvez não creia... mas olhe... hei de fazê-la muito feliz... hei de ama-la com uma devoção tão profunda...

Angelina não o deixou concluir. Tapou-lhe a boca com uma das suas mãos diáfanas, e pálida, a tremer, deixou-lhe cair a cabeça sobre o peito a soluçar. 

A família de Gastão quando o moço lhe participou a resolução definitiva que adotara, repeliu-o do seu grêmio ilustre com o mais indignado espanto.

Aquele mesquinho enlace que vinha destruir tantas esperanças pomposas, era para todos uma vergonha.

O visconde, as duas manas, o irmão mais velho, o conselheiro Magalhães, tudo se revoltara contra o que chamavam o romantismo de Gastão.

Só uma pessoa o aceitou sem cólera e sem protestos.

Foi Clotilde.

Quis ela própria conduzir à igreja a sua juvenil protegida, e até a ultima hora teve para com ela e para com o homem a quem um dia no íntimo do coração chamara — o seu noivo — uma atitude irrepreensível de serena dignidade.

Gastão e Angelina vivem numa deliciosa casinha em Buenos Aires, onde há dias os visitei.

Ele alcançou uma excelente colocação numa casa bancária; ela tem o singular segredo de ser econômica com elegância e laboriosa com gentil dignidade.

São ambos felizes como dois leais corações que se estremecem e se entendem.

No seu gabinete confortável e artisticamente arranjado pelas mãos de Angelina, quantas vezes à noite no tranquilo recolhimento do serão comum, os dois noivos não lamentam a sorte dos seus parentes milionários!

Clotilde não casou ainda, nem casará talvez.

Aparece em todas as festas, em todos os bailes, em todos os teatros, sempre com o seu eterno sorriso mordaz nos lábios empalidecidos.

Há porém quem julgue ler na sua bela fisionomia altiva, uns toques de intraduzível sofrimento.

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.

Hinos de Cidades Brasileiras (Maceió/AL)


Letra por Carlos Moliterno
Melodia por Edilberto Trigueiros

És, Maceió, altiva e majestosa
Feliz nascente entre a lagoa e o mar
Ao lado da capela milagrosa
De um velho engenho pobre e secular

Pelo trabalho e pelo esforço ingente
Como a bravura de teus filhos nobres
E debaixo de um sol glorioso e quente
Veio a riqueza dessas terras pobres

A tua glória promana
Desses teus filhos audazes
Cujo alto valor se imana
Aos dos heróis mais capazes

Maceió, terra adorada!
Ó terra bela e altaneira!
Tua história é proclamada
Pela nação brasileira

Tu tens paisagens, Maceió, famosas
Teu sol é quente e teu luar é claro
São tuas praias belas e formosas
De um tom de prata, deslumbrante e raro

E desse alvorecer das madrugadas
De Ponta Verde às curvas do Pontal
Os coqueiros e as velas das jangadas
Dão-lhe um vigor de tela natural

A tua glória promana
Desses teus filhos audazes
Cujo alto valor se imana
Aos dos heróis mais capazes

Maceió, terra adorada!
Ó terra bela e altaneira!
Tua história é proclamada
Pela nação brasileira