sábado, 1 de abril de 2023

Lóla Prata (Aborto)

Vera, uma católica, engravidou do sexto filho. Gravidez indesejada, visto que representaria mais despesa na família encalacrada por dívidas, com o marido desempregado, casal morando em casa dos pais. Veio a tentação de abortar, como solução do problema. Conflitos de consciência vieram, fortes e desconcertantes, abafados pela ideia fixa, tudo em surdina, para não atormentar mais o quadro terrível em que se achava o lar. E a tentação foi levada à prática: começou com lavagens vaginais, continuou com a ingestão de chás, pulos de alturas cada vez mais altas, compressas quentes, etc. A paz fugira de seu coração. O tempo passando, e a gravidez se denunciando nos enjoos e azias. Pouco dormia, emagrecia, tinha olheiras e tristeza. Nem percebia mais os outros filhos, também pequenos.

Uma noite, cansadíssima, estava na cama e rezou, imaginem, para que Deus a fizesse perder naturalmente, a criança. Dormiu quando a exaustão chegou ao auge. E sonhou... 

No sonho, seu pai lhe cochichava um conselho:

- Minha filha, pare com isso, senão, quando eu morrer, sairão três caixões de casa: o meu, o seu e o do bebê.

Ao despertar, lembrava-se perfeitamente do conselho e foi ao encontro do pai que estava na cozinha: – Papai, o senhor anda bem de saúde?

- Tinindo... tudo sob controle. E você, Vera, emagrecendo, triste? Alegre-se...

- Vou me alegrar... a partir de agora. Estou esperando outro filho...

- Parabéns! Será bem-vindo!

Vera voltou aos sacramentos; alojou a esperança novamente, em seu coração.

Alguns dias após o acontecido, o pai é vítima de enfarte fulminante. Choque duro para a família que, sofrendo muito, vê o corpo saindo da casa num caixão. A grávida lembrou-se do sonho e ponderou:

- Será que seriam três caixões?

Nunca saberemos!

Fonte:
Maria de Lourdes Prata Garcia (Lóla Prata). Provai e vede como o Senhor é bom! Bragança Paulista: ABR, 2009. Ebook enviado pela autora.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 12 –


MIOLO E CONTEÚDO

O mundo é forte... e o homem tão... fragilizado... 
pobre coitado desse vão super-herói, 
tão de si mesmo... presunçoso e ensimesmado 
que só se iguala quando a solidão lhe dói. 

Quem se acha o máximo, vendo o outro, seu vassalo, 
vai no embalo de uma tola intolerância, 
com arrogância, só quando lhe aperta o calo, 
sente o abalo da insignificância. 

O sonhador, que às vezes parece tão tolo, 
Tem por consolo sua própria consciência 
Sua inocência é conteúdo... e não miolo, 
olha o monjolo e vê, no rio, a sua essência. 

O egocêntrico é o dono da verdade, 
quando a verdade se veste de absoluta, 
em sua gruta, onde repousa a falsidade 
a insanidade que ele tem, nem ele escuta.
 
Ele se grita, qual Narciso ou bruxa má, 
e ao escutar o que o espelho lhe revela, 
destrói a tela e vai galgar seu baobá, 
pequeno príncipe invejando a Cinderela. 

Quem não se basta, olha a casta e discursa, 
para si mesmo, calculista, sem pudor, 
olhando os outros como quem vê uma ursa 
com seus filhotes... e os fita... com pavor. 

Nessa viagem, todo humilde aprendiz 
vive das bênçãos divinais que a vida tem, 
porque semeia o mesmo amor que o faz feliz, 
que só floresce em quem pratica e faz... o bem. 

A humildade é a virtude dos que agem, 
sobrevivendo de maneira natural, 
levando sempre o otimismo na bagagem, 
e dividindo o seu amor com seu igual. 
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NA MÃO DA ALEGRIA

Certas pessoas, não há como defini-las 
analisá-las sem ser psicanalista; 
tiram da lista quem sequer pôde feri-las, 
para entendê-las, há que ser malabarista. 

Somos artistas, nosso palco é nossa vida 
curta ou comprida, quem entende o destino ? 
Alguns se curam da sua própria ferida; 
outros se ferem... sem nem ter quem os agrida. 

E cada qual tem um enredo, uma história 
para viver, para contar... repetitiva, 
tempos felizes abastecem a memória, 
mas de saudades há quem diga que não viva. 

Quando ela chega, sempre sem fazer alarde, 
conta segredos silenciosos, traz sorrisos, 
lágrimas tristes... ela nunca chega tarde, 
e traz, consigo, sentimentos tão precisos... 

Cada imagem que vem nela, é nebulosa 
e ao mesmo tempo fotográfica, fiel 
trazendo flashes de uma história majestosa... 
lembrança triste é amargor, saudade.. é mel. 

O ser humano... inumano... se transforma, 
não se conforma com dádivas que recebe, 
bebe silêncios adversos e o que forma 
provém da própria solidão que a si concebe. 

Infelizmente, alguém ruim sempre planeja 
coisas nocivas ao seu próximo e alega, 
de modo falso, mentiroso, que deseja 
tornar feliz o seu igual... mas o renega. 

Porém quem ama, de verdade, o seu irmão, 
não o despreza, abandona ou repudia, 
não o descarta, pois o tem, no coração, 
e a emoção... cabe na mão... dessa alegria. 
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POETAS

Alguns poetas morreram de solidão, 
trancafiados na prisão dos sentimentos, 
num abandono contumaz sem solução, 
desapontados com seus próprios pensamentos. 

Alguns exaltam seu legado com emoção; 
outros demonstram nunca tê-los conhecido, 
há até quem diga, que se foram sem razão 
porém, quem ama, se orgulha por tê-los lido. 

Todo poeta tem seu próprio alimento, 
o seu alento é o amor que o inspira, 
se a vida tira-lhe a dor e o sentimento, 
cada momento do amor cura-lhe a ira. 

Os pensamentos de um poeta são diversos, 
há universos profundos que ele transporta; 
quando ele abre as comportas dos seus versos, 
a dor afoga-se no amor que lhe abre a porta. 
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SENTIMENTOS VIRTUAIS

Eu nunca dei tantos abraços virtuais, 
beijos , desejos felizes... tanta oração, 
para dizer, do fundo do meu coração, 
que amo os amigos que são tão especiais. 

Nunca pedi a Deus com tanta esperança 
que Ele salvasse os irmãos que não perdi 
e resgatasse novamente essa bonança 
que tantas vezes, no meu coração, senti. 

Nunca escrevi, fugindo de um tema tão triste, 
que o povo insiste em copiar dos pessimistas, 
dos revoltados que agridem, de dedo em riste, 
parlamentares, jornais, tevês... e revistas. 

Não que eu não tenha, como eles, a vontade 
de dar meu brado contra tanta injustiça, 
porém, se a arte complementa a liberdade 
de ser feliz, por que essa areia... movediça ? 

A perda triste dos amigos traz vazios 
tão doloridos e abandonos tão cruéis, 
que é como estar na solidão de um cais sombrio, 
buscando barcos que sumiram nas marés. 

Mas eu insisto nos abraços... a saudade 
é o sentimento mais sincero que visita 
a solidão de um coração... por ser bendita, 
ela habita os ermos da... fraternidade. 

Só Deus consegue ouvir o que a gente pensa 
ou sente, Ele conhece nossos segredos, 
nossos mistérios, nossos tédios, nossos medos, 
Ele é quem monta nossos líricos enredos. 

Minha palavra mais precisa é gratidão 
e meu perdão aos que um dia me magoaram, 
pois os momentos mais felizes que deixaram, 
abençoaram, com amor, meu coração. 
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Fonte:
Facebook do poeta. Também disponível no Recanto das Letras.

Aparecido Raimundo de Souza (Bob)

SEMPRE QUE SE ENTREVISTAVA com seu psiquiatra, Taborda falava de seus problemas, de suas angústias e aflições e acabava por tecer longos comentários a respeito do pequeno Bob, um menino de dez anos. A grande preocupação do paciente, não se prendia aos problemas pessoais que enfrentava. Seus medos e temores se faziam outros: estavam voltados para o bem estar do tal garoto, que vivia com a mãe, uma jovem solteira e desempregada. 

Taborda, por sua vez, morava sozinho e tinha a senhora sua mãe em idade bastante avançada. Logo a velhinha completaria noventa e oito anos e ele, passava da casa dos sessenta. Se viesse a faltar, de repente, o menino Bob, coitado, ficaria desamparado, embora morasse com a genitora. Sem ele por perto, imaginava que o piá (garoto) poderia cair em mãos de estranho, o que certamente transformaria a sua vida num verdadeiro inferno. 

Somente em pensar nessa hipótese, Taborda ficava temeroso e bastante preocupado com seu futuro. Não queria nada de ruim para o pequeno. O infante não era seu filho, mas o amava como se fosse. Por essa razão, trabalhava duro em dois empregos distintos. E tudo o que ganhava, revertia para melhorar as condições de Bob, que perdera o pai muito cedo num acidente de moto e, desde então, ficara sob a guarda e responsabilidade da Eunice Fininha, a mãe, uma jovem de vinte e nove anos. 

Taborda não tinha caso com essa moça. Ajudava-a com dinheiro, roupas, alimentos e remédios, por ter bom coração. Agia como um bom samaritano, sem pedir ou querer nada em troca. O doutor Frestrincheiquime, psiquiatra de Taborda, de longos janeiros, sabia de toda a história relacionada ao menino. E mais que médico da criatura, se transformara em seu amigo particular. Dessa forma, quando chegava ao consultório, o doutor o ouvia pacientemente, sem interrupções. 

De vez em quando, a fim de não cair no marasmo, ou correr o risco de “pegar no sono”, fazia uma pergunta nova (embora soubesse de antemão qual seria a resposta), objetivando passar o tempo e a coisa não ficar piegas demais. Numa dessas entrevistas, Taborda segredou ao psiquiatra:

— Precisa ver que maravilha. Bob já sabe navegar na Internet. Fez um e-mail para mim. Imagine, Frestrincheiquime. Um e-mail. E eu, que mal sei ligar o computador. (Risos). Esse moleque vai longe. 

— Você comentou, na última vez em que esteve aqui, que Bob é bom em matemática?

— Perfeito. Nasceu com o dom dos números...

— Como foi mesmo a história dos camelos?

— Três irmãos discutiam acaloradamente sobre como dividiriam trinta e cinco camelos entre si. Um teria direito apenas a metade, o outro a terça parte e o mais novo, ficaria com a nona parte. Trinta e cinco divididos por dois, dá dezessete e meio. A terça parte e a nona parte de trinta e cinco, também não são exatas. (*)

Taborda levantou da cadeira, acendeu um cigarro, foi até o envidraçado. Olhou demoradamente para a cidade, quarenta e cinco andares abaixo de seus pés. Após algumas tragadas retornou ao seu assento e indagou: como proceder? Saberia fazer essa conta, meu caro doutor?

— De forma alguma. Tenho aversão aos números, Taborda.

— Faço minha as suas palavras. Confesso que não sei juntar dois mais dois. Bob, ao contrário, nossa! Bob fez a divisão na hora, num abrir e piscar de olhos... eu e a mãe dele, a Eunice Fininha, ficamos paralisados, como dois bobocas diante de uma “resma de leões famintos” prestes a nos devorar sem piedade.  

O médico insistiu batendo na mesma tecla de todas as consultas: 

— Gostaria como já lhe pedi trocentas vezes, conhecer o pequeno Bob. 

— Por certo. Não faltará oportunidade, meu caro Frestrincheiquime. Asseguro que não faltará oportunidade...

O tempo continuou passando. E as sessões acontecendo, sem mudanças no quadro. Tudo corria às mil maravilhas. Contudo, toda vez que o esculápio insistia em conhecer o pequeno Bob, Taborda saia pela tangente, desconversava, mudava de assunto. 

O doutor, diante disso, passou a desconfiar. Estava claro. Havia alguma coisa errada entre seu paciente e o tal do Bob. Precisava tirar a limpo e pôr às dúvidas às claras. Ligou para a mãe dele. Dona Espingardina generosamente recebeu o galeno com um abraço fraterno e o convite para se acomodar na sala e tomar uma xícara de café que ela havia mandado a empregada fazer. Por telefone, um dia antes, o doutor combinara que chegaria após a saída de Taborda para o trabalho. Taborda não morava com a mãe. 

Residia próximo dela, duas ruas abaixo para ser mais preciso. Porém, Taborda não seguia para a empresa sem antes passar pela residência da anciã, tomar o dejejum com ela, pedir a benção e dar um beijo de bom dia. Assim foi: 

— A que devo sua amável visita, doutor? Algum problema com meu filho?

O clínico se abriu num sorriso alegre e cativante:

— Em absoluto, senhora. Só queria lhe dar um alô e ver como andam as coisas.

Dona Espingardina, entretanto, não engoliu a explicação:

— Doutor, pelos meus anos de experiência, tenho plena convicção de que o senhor não veio até aqui exclusivamente para uma visita cordial. Não tenho seu estudo, nem desfruto da sua visão de capacidade, mas posso ver em seus bugalhos que esconde um segredo. Gostaria que se abrisse comigo. Algo errado com meu Tabordinha?

— A senhora tem toda razão, dona Espingardina. Vim aqui com outro propósito.  Conhecer o pequeno Bob...

A velhota se espantou com o nome e encarou o doutor além das lentes grossas que ele usava:

— Bob? Quem é Bob, doutor?

O doutor Frestrincheiquime passou, então, a relatar em breves palavras, as seções com Taborda. Finalizou explicando o capítulo Bob:

— Não sei quem é essa tal de Eunice Fininha e, menos ainda, o tal do Bob, doutor. Meu filho nunca comentou. Tem certeza de que é esse o nome da beldade e do moleque? Creia, meu nobre, se meu Tabordinha tivesse um caso com alguém, eu seria a primeira a tomar conhecimento. Ele nunca me escondeu coisa alguma.  

O médico concluiu que a velhota literalmente situada no tempo e no espaço, se fazia de sonsa. Mentia descaradamente. Por óbvio, escondia sujeira muito séria de seu rebento. O que, nessa altura do campeonato? Possivelmente algo que não pudesse ser revelado por um entrave qualquer que ele desconhecia. Aceitou uma segunda rodada de café, papeou um pouquinho mais. Falou de trivialidades e, com uma desculpa bem convincente, minutos depois, deu por encerrada a entrevista. 

Na seção seguinte, depois de um longo papo, nele incluindo Bob, evidentemente Frestrincheiquime se mostrou austero a ponto de enroscar os fios de seu bigode com os de Taborda:   

— Você é meu paciente faz cinco anos. Mais que isso, se tornou meu amigo. Amigo e parceiro. Precisamos agora, esclarecer, de uma vez por todas, um ponto obscuro que até este momento tem estado fora de foco...

— Que ponto obscuro é esse, meu amigo. O que é que está fora de foco?

— Bob. Quero conhecer o Bob.

Taborda ficou sério e pensativo:

— Não chegou a hora, ainda. No momento...

—...Taborda, esta é a hora. Traga Bob aqui para que eu o conheça, ou darei ordens expressas à senhorita Xicória, minha secretária, para que não agende suas próximas consultas. Ademais, lembre-se de um detalhe: estamos terminando o mês e você tem consciência que careço renovar o atestado de capacidade mental para a sua empresa. Farei isso se você trouxer Bob até mim. Fui claro?

— Claríssimo. Falo tanto no menino esses anos todo e você nunca o viu... 

— Então?

— Que tal na sexta?

— Para mim está ótimo. 

— Combinado.

— A que horas?

— As quatro, está legal para você?

— Perfeito.

No dia e hora aprazados, a bela senhorita Xicória interfonou anunciando a chegada de Taborda. 

Antes de mandá-lo entrar no consultório, Frestrincheiquime indagou, pelo interfone, se o paciente se fazia acompanhar de alguém:

— Ele está só, doutor.

— Senhorita Xicória, não há uma criança com ele, digo, um menino?

— Não, doutor. A propósito, acho que está acontecendo alguma coisa de estranho com o senhor Taborda... 

— Exatamente o quê? — Procure ser mais objetiva... 

— Ele está conversando animadamente com uma pessoa ao seu lado...

— Algum paciente à minha espera?

— Não, doutor, o seu Taborda é o derradeiro.

— Então com quem ele bate papo, senhorita Xicória?

— O senhor não vai acreditar. Ele está falando e gesticulando sozinho, como se tivesse alguém ao lado. 

A secretária imprimiu ao diálogo uma breve pausa e continuou:

— Doutor, o senhor está sentado? 

— Claro que estou sentado, senhorita Xicória. O que está havendo?

— Seu Taborda se levantou, pegou dois copinhos de café e ofereceu um ao invisível da cadeira... espere, doutor. Meu Deus! Ele agora está vindo em minha direção...

— Ele quem, senhorita Xicória? O Taborda ou o invisível que o acompanha?

Sem entender as palavras do seu patrão, a moça se abriu, chorosa:

— Doutor, fala sério! Isso é algum tipo de brincadeira?

— Claro que não, senhorita Xicória. Olha, me escuta. Aja com calma e cautela. Respire. Conte até mil. Não demonstre medo. Sobretudo, não deixe o Taborda perceber que fala comigo. Rápido, saia da sua mesa, vá até o banheiro, leve o interfone debaixo da blusa. Em lá chegando, dê descarga no aparelho e se jogue pela janela.
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(*) Este problema encontra-se no livro “O homem que calculava”, de Malba Tahan.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 31 de março de 2023

Vanda Fagundes Queiroz (Trovando) “03”

 

Cláudio de Cápua (A noiva italiana)


Num destes dias, cruzei na rua, com o Felipe da Silva Neves. Vinha ele com cara de quem comeu e não gostou. Estava pálido e preocupado... Trazia na mão um jornal Diário.

- O que há, Felipe? Perguntei, com interesse.

- Graziella!

Fiquei surpreso.

– Caramba, Felipe, ainda não esqueceu essa italianinha?

E claro, preciso dizer, que o Felipe, de dois anos para cá, caíra, lamentavelmente, nos braços de uma tremenda depressão nervosa. E sabem por que? Por uma bobagem! Um mero noivado interrompido!

Semanas e meses, Felipe me contara e recontara os encantos de uma certa italianinha, a quem fizera a corte, e com quem acabara oficializando noivado. Estive em casa da família Di Jordano, e apresentei calorosas homenagens, à bela jovem, sem dúvida, muito atraente! Meses depois, venho a saber que o noivado do Felipe com a Graziella, terminara. Como amigo íntimo do Felipe, recebi dele o seguinte comentário;

- Eu sou o culpado, de tudo!

O problema de entender era meu.

Fosse lá o que fosse, tinham transcorrido, quase dois anos e agora Felipe me aparecia pálido e transtornado. Resolvi ajudar, dando-lhe uma sacudidela.

- Vamos terminar com isso! Há quase dois anos você desmanchou o noivado e há seis meses não mencionava essa tal italianinha. Pensei que a tivesse esquecido! E agora me vem com essa! Veja lá, tenha a santa paciência! É babaquice demais!

Felipe respondeu, calmamente:

- Não é nada disso, que você está pensando. Você se interessaria em saber o motivo do fim do nosso noivado?

- Claro que sim!

- Estávamos próximo do casamento, cerca de uns 90 dias para sua realização, quando comprei aquele Opala branco. Eu sabia que a Graziella tinha carteira de habilitação. Num sábado, em que resolvemos dar um passeio até Santos, minha noiva resolveu pedir o volante. Ela não dirigia mal, mas, tinha um defeito; gostava de velocidade. Ainda em São Paulo, cruzou nada menos que cinco sinais vermelhos, antes de pegarmos a via Anchieta, em direção a Santos. E então, é que a maldita esnobou. Nas curvas, fazendo miséria, sem sequer diminuir a velocidade, ultrapassando carros à direita e á esquerda ... E, volta e meia, lá estava ela fechando alguém.

Em certo momento, fiz-lhe uma observação. Fechou a cara e continuou com as barbaridades ao volante. À certa altura, surgiu um guarda rodoviário, ela nem ligou para o sinal que ele lhe fez. Fomos, ou fui multado, à revelia. Chegamos em Santos. Dei-lhe uma valente bronca e a resposta foi:

- Você é homem ou maricas?

Ao entrar na praça Mauá, não diminuiu a velocidade e, por um triz, não nos chocamos com o ônibus elétrico. O motorista do ônibus, lhe disse os diabos. E a maldita lhe devolveu tudo em dobro. Que língua!

- Resultado: cavalheirescamente, desci do carro. O motorista ficou com o nariz esborrachado e eu, com um dente partido.

A essa altura, interrompi a narração, e indaguei se havia acontecido algo de mais grave.

- Sim. Desse dia em diante, não nos entendemos mais. E o resultado foi o rompimento,

- Bom, e daí?

- E você acha pouco? Afinal, ela era adorável, mais tinha um gênio ...

- É, Felipe, não há dúvida de que você se aborreceu, com razão. Mas, isso já era. E você já estava consolado. Por que é que hoje está remoendo tudo, de novo?

Felipe deu-me o Diário que trazia;

- Leia, aí na página policial, a manchete principal.

- Lá estava; Marido leva tiro no testículo. O motivo, foi ter ele criticado o panetone de Natal, feito pela sogra.

- A esposa criminosa é Grazlella Di Jordano Chaves, meu caro amigo. E o meu choque, ao ler a notícia, foi imaginar que a vítima, ao invés do Chaves, poderia ter sido eu.

Fonte:
Cláudio de Cápua. Era uma vez… (coletânea de contos). Comptexto: outubro 1989.

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 10

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.


Ah, meu bem se eu não te amo
Deus do céu que não me escute,
o sol que não me alumie
nem a terra me sepulte.
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Amarrei o sol com a lua,
com a fita da verdade,
para arriscar minha vida,
pra te fazer a vontade.
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Amor, se fordes, levai-me,
se ficardes, ficarei,
se não, meu amor matai-me,
que viver sem vós não sei.
= = = = = = = = = 

As estrelas do céu correm,
eu também quero correr;
Elas correm atrás da lua,
eu atrás do bem querer.
= = = = = = = = = 

As estrelas do céu fogem,
se a luz do sol aparece.
Menina, junto de ti,
o próprio sol desmerece.
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As estrelinhas são pontos
e a lua cheia novelo,
para bordar o teu nome
nas letras do sete-estrelo...
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Até onde as nuvens giram
vão meus suspiros parar.
Só tu, pertinho de mim,
não me ouves suspirar.
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Cazuzinha, estais de luto,
dizei-me quem vos morreu,
se foi por causa de amores
Cazuzinha, aqui estou eu.
= = = = = = = = = 

Inda que teu pai não queira,
tua mãe diga que não,
tu querendo, e eu querendo,
tudo está na nossa mão.
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Jura o sol e jura a lua.
Juram as estrelas também.
Juramos de te adorar
a ti só, e a mais ninguém.
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Menina diga a seu pai,
e ele diga a quem quiser,
que ele há de ser meu sogro
e você minha mulher.
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Menina dos olhos grandes
não olhes pra mim chorando,
tu pensas que eu não te quero,
e eu estou te namorando.
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Menina, minha menina,
põe a mão nas sobrancelhas,
que do céu te estão caindo
rosas brancas e vermelhas.
= = = = = = = = = 

Menina, rainha menina
hei de te matar a tiro,
com a garrucha da saudade,
com a bala do suspiro.
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Meu balaio de costura
tem um segredo no fundo.
Queira-me bem que desprezo
querer-me mal todo o mundo.
= = = = = = = = = 

Minha prima Mariquinha,
meu amor, minha paixão,
serei teu pra toda a vida,
quer teu pai queira, quer não.
= = = = = = = = = 

0 sol prometeu à lua
uma fita de mil cores;
Quando o sol promete prenda,
quanto mais quem tem amores.
= = = = = = = = = 

Os sinais desse teu rosto
são como um céu estrelado,
por eles passeio a vista,
nunca me dou por cansado.
= = = = = = = = = 

Parece que tu tens isca,
amor, neste teu agrado,
quando eu penso que estou livre
é ali que estou fisgado.
= = = = = = = = = 

Pode o céu produzir flores,
a terra estrelas criar?
Como pode um coração
viver sem te adorar ?
= = = = = = = = = 

Quando eu vim para esta terra
trouxe uma estrela por guia,
porque soube que aqui estava
a prenda que eu mais queria.
= = = = = = = = = 

Quando me ponho a querer,
não faço conta em ninguém,
venha do céu o remédio,
tu mesma hás de ser meu bem,
= = = = = = = = = 

Quando olho para a noite
cuido ver tua almofada:
Vejo alfinetes e bilros
e o céu é a renda lavrada...
= = = = = = = = = 

Tenho inveja de tua cama
e inveja de tua roupa,
eles se gozam de ti
e eu faço cruzes na boca.
= = = = = = = = = 

Tu és clara que nem leite,
corada que nem romã,
pareces a estrela d'alva
quando sai pela manhã.
= = = = = = = = = 
Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

Jaqueline Machado (Menos os loucos...)

O pior da espera não é a espera em si, já que é através do tempo transcorrido em esperança que faz com que a chegada do tempo esperado seja o tempo perfeito. O difícil não é esperar, e sim, ver a omissão moldar a espera e dela fazer o que bem quer. Por isso, não espere. Faça-a!

Silêncio é omissão, é indiferença. E ambas as coisas são irmãs da fuga. Não da fuga de uma estrada, mas da fuga da própria alma. As pessoas veem o mal tomando conta de tudo, possuem a capacidade de reclamar, mas desprovidos de coragem, nada fazem além de repetir a reclamação. Não querem se expor.

Com frequência, sentada em frente à porta de minha casa desfrutando de minha companhia, ao universo repito a indagação: afinal, o que é verdade e o que é mentira no mundo em que vivemos? Às vezes, pagamos pra ver, mas nem sempre vemos o que desejamos. Raras são as ocasiões em que a vida nos concede a certeza de que estamos sendo protegidos, admirados, amados ou fatalmente ridicularizados por aqueles que, de alguma ou de muitas formas nos dirigimos. Hoje, tudo parece duvidoso. E certamente, amanhã a dúvida permanecerá ainda mais viva.

Apesar dos pesares, sigo aqui, firme, tentando sobreviver a essa torre de Babel, lembrando que a palavra babel significa confusão.

Em meio à  multidão, desorientada, minha alma se entristece por não conseguir distinguir tantas verdades e inverdades misturadas. Ora o povo diz, depois desdiz, depois diz de novo e, por fim, não lembra o que foi dito. As máscaras até caem, mas logo são repostas.  

A paz se mudou do mundo. Se é que algum dia ela esteve por aqui. Como certa vez disse Fernando Pessoa: “Extraviamo-nos a tal ponto que devemos estar no bom caminho”. Isso é, chegamos ao fim de tudo para recomeçarmos. Só que a maioria de nós, não sabe disso.

Na tentativa de sobreviver a esse caos, mantenho meu corpo aqui, mas todos os meus sentidos estão em outras esferas.

A minha visão continua a contemplar o que é belo. Meu olhar segue o brilho do sol. Meus ouvidos só escutam os conselhos das plantas e a poesia das flores. Meu paladar só está para o gosto das maçãs, das avelãs, das ambrosias... Meu olfato repele os atores do ódio, esse que tanto inflama a atmosfera: só quer saber do cheiro das virtudes.

E por fim, em rios amorosos, mergulho meu tato, e assim defendo minha pele e meu sentir da ira dos apedrejadores e dos seus toques cheios de espinhos.

Estou aqui sem estar...  E sei que isso é o suficiente para ser chamada de louca.

Essa crise não vai passar, as pessoas não vão mudar, as incertezas não vão sumir. Os silêncios ensurdecedores não vão dar trégua. Ninguém ouve mais ninguém! Tudo chegou ao fim. E até que tudo e todos se reconstruam novamente, vai levar tempo. Muito tempo. Mesmo fazendo barulho todos estão mortos a se sacudirem em estreitos e grandes túmulos cheios de gavetas e frestas.  Todos estão mortos até que voltem a renascer, menos os loucos que continuam a rir.  

Fonte:
Texto enviado pela autora.

sexta-feira, 24 de março de 2023

José Fabiano (Muros de Trovas) 07

 

O. Henry (A Água-Furtada)

Mrs. Parker mostraria primeiramente os salões duplos. Você não ousaria interromper-lhe a descrição das vantagens desses aposentos e dos méritos do cavalheiro que os havia ocupado durante oito anos. Só depois de finda a descrição é que você conseguiria gaguejar a confissão de que não era médico nem dentista. A maneira de Mrs. Parker receber tal declaração era de sorte a fazer com que você nunca mais sentisse o mesmo afeto por seus pais, que haviam descurado de educá-lo numa das profissões que se coadunavam com os salões de Mrs. Parker.

Depois, você subiria um lance de escada para examinar o quarto dos fundos do segundo andar, a oito dólares. Convencido, pela atitude "segundo andar" de Mrs. Parker, de que o quarto valia bem os doze dólares que Mr. Toosenberry costumava pagar por ele até que saiu para ir tomar conta de uma plantação de laranjas do seu irmão, na Flórida, perto de Palm Beach, onde Mrs. Mcintyre sempre passava o inverno, e que compreendia a dupla sala de frente com banheiro privativo, você a custo balbuciaria que desejava coisa mais em conta ainda.

Se lograsse sobreviver ao desprezo de Mrs. Parker, seria então conduzido ao espaçoso quarto de Mr. Skidder, no terceiro andar. O quarto de Mr. Skidder não estava vago. Nele, esse senhor escrevia peças de teatro e fumava cigarros o dia todo. Porém, quantos estivessem à procura de quartos eram levados a esse aposento par admirar os lambrequins. Depois de cada visita, Mr. Skidder, com medo de um possível despejo, pagaria alguma coisa por conta do aluguel.

Depois — oh! depois —, se você ainda conseguisse manter-se de pé, e proclamasse roucamente a sua pobreza hedionda e culposa, enquanto apalpava com mão quente os três pegajosos dólares no bolso, nunca mais teria por cicerone Mrs. Parker. Berrando a palavra "Clara", ela lhe voltaria as costas e desceria as escadas. Então Clara, a empregada de cor, acompanhá-lo-ia pelos degraus atapetados do lance que levava ao quarto andar, e mostrar-lhe-ia a Água-Furtada, cubículo de exíguas dimensões que se erguia no centro do patamar. Flanqueavam-no, de ambos os lados, escuros quartinhos de despejo ou de guardados.

No cubículo havia uma cama de ferro, um lavatório e uma cadeira. Uma prateleira vazia de cômoda. As quatro paredes nuas pareciam fechar-se sobre quem ali entrasse, como os lados de um sarcófago. Você levaria a mão à garganta, daria um suspiro, olharia para cima como se estivesse num poço e respiraria de novo. Pelo vidro da trapeira, você poderia ver um quadrinho de infinito azul. 

— Dois dólares, patrão — diria Clara, em tom meio de desprezo, meio de piedade.

Certo dia, apareceu Miss Leeson à procura de um quarto. Trazia uma máquina de escrever, evidentemente feita para ser carregada por uma senhora mais robusta. Era uma mocinha miúda, com olhos e cabelos, que haviam continuado a crescer depois que ela deixara de fazê-lo, e que pareciam estar sempre a dizer: — "Ora essa! Por que não nos acompanhou?"

Mrs. Parker mostrou à moça os salões duplos.

— Neste armário, — informou —, pode-se guardar um esqueleto, ou anestésico, ou ainda carvão...

— Mas não sou médica, nem dentista — replicou Miss Leeson, com um arrepio.

Mrs. Parker lançou-lhe o olhar incrédulo, penalizado, insolente e gélido, que reservava para os que não logravam diplomar-se médicos ou dentistas, e conduziu-a ao segundo andar. 

— Oito dólares? — exclamou Miss Leeson. — Deus do céu! Não sou milionária. Sou apenas uma pobre moça que trabalha. Mostre-me algo mais para cima e de preço mais baixo.

Ao lhe baterem à porta, Mr. Skidder deu um pulo, espalhando tocos de cigarros pelo chão.

— Desculpe-me, Mr. Skidder — disse Mrs. Parker, sorrindo diabolicamente ante a palidez do inquilino. — Não sabia que estava em casa. Convidei esta senhora para ver seus lambrequins!

— São lindos demais para terem serventia — atalhou Miss Leeson, sorrindo exatamente como sorriem os anjos.

Depois de as duas se terem retirado, Mr. Skidder ocupou-se ativamente em substituir a heroína alta e de cabelos pretos de sua última (inédita) peça, por outra heroína miúda, maliciosa, de feições vivas e cabelos fartos e sedosos.

— Anna Held ficará louca pelo papel — munnurou, apoiando os pés contra os lambrequins e desaparecendo numa nuvem de fumaça, qual um aéreo molusco.

Pouco depois, o toque de alarme — "Clara!" — proclamou ao mundo o estado financeiro de Miss Leeson. Um negro duende agarrou a moça e, subindo a escada estígia, introduziu-a numa catacumba com uma nesga de luz ao alto e murmurou as palavras cabalísticas e ameaçadoras.

— Dois dólares! 

— Fico com ele! — suspirou Miss Leeson, deixando-se cair sobre a cama de ferro rangedora.

Todos os dias, Miss Leeson saía para trabalhar, À noite, trazia para casa folhas manuscritas e as copiava na máquina de escrever. Quando não tinha serviço à noite, sentava-se nos degraus da íngreme escada com os outros pensionistas. Miss Leeson não devia ter sido destinada a uma água-furtada quando lhe traçaram o caráter no dia da sua criação. Era alegre e cheia de fantasias delicadas e caprichosas. Certa vez, permitiu que Mr. Skidder lhe fizesse a leitura de três atos da sua grande comédia (inédita), Não é Criança ou O Herdeiro do Metropolitano.

Os inquilinos masculinos se alegravam sempre que Miss Leeson tinha tempo para sentar-se nos degraus por uma ou duas horas. Porém, Miss Longnecker, a loura alta que ensinava numa escola pública e dizia "Oh, com efeito!" a tudo quanto ouvia, sentava-se no último degrau e torcia o nariz para ela. E Miss Dorn, que todos os domingos ia a Coney Island para exercitar a pontaria nos patinhos do tiro ao alvo, sentava-se no degrau debaixo e torcia-lhe igualmente o nariz. Miss Leeson sentava-se no degrau do meio e os homens imediatamente se agrupavam à sua volta.

Especialmente Mr. Skidder, que já a imaginava como heroína de um drama particular, romântico (não declarado) da vida real. E especialmente Mr. Hoover, que tinha quarenta e cinco anos, era gordo, afogueado e tolo. E especialmente o mui jovem Mr. Evans, que simulava uma tosse cava para induzir a moça a pedir-lhe que deixasse de fumar. Os rapazes a elegeram "a mais alegre e a mais espirituosa de todas", mas as fungadas do degrau de cima e do degrau debaixo eram implacáveis.

Peço-vos licença para interromper o drama enquanto o coro avança para a ribalta e deixa cair uma lágrima lúgubre sobre a obesidade de Mr. Hoover. Afinal as flautas para a tragédia da banha, o flagelo do volume, a calamidade da corpulência. Se fosse a julgamento, Falstaff renderia mais romance por tonelada do que as raquíticas costelas de Romeu por onça.

Um apaixonado pode suspirar, mas não deve bufar. Os gordos são reenviados à corte de Momo. Em vão bate o mais fiel dos corações acima de uma cintura de 1,30 m de diâmetro. Eia, avante, Hoover! Hoover quarentão, afogueado e tolo, poderá raptar Helena; Hoover, quarentão afogueado, tolo, e gordo, é caso perdido. Nunca houve oportunidade para você, Hoover.

Certa tarde de verão, estando os inquilinos de Mrs. Parker acomodados na escada, Miss Leeson levantou os olhos para o céu e exclamou com uma risadinha alegre:

— Ei! Lá está Billy Jackson! Vejo-o perfeitamente daqui.

Todos olharam para cima — alguns para as janelas dos arranha-céus, outros à procura de uma nave aérea pilotada por Jackson.

— É aquela estrela — explicou Miss Leeson, apontando-a com o seu dedinho. — Não a grande que pisca; a azul, fixa, que lhe fica ao lado. Vejo-a todas as noites pela minha trapeira. Apelidei-a de Billy Jackson.

— Oh! Com efeito! — disse Miss Longnecker. — Não sabia que era astrônoma, Miss Leeson.

— Sou, sim. — replicou a pequena contempladora de estrelas. — Sei tão bem quanto qualquer astrônomo que estilo de mangas estará na moda no outono próximo cm Marte.

— Oh! Com efeito! — retrucou Miss Longnecker. — A estrela a que se refere é Gama, da Constelação de Cassiopéia. É quase de segunda grandeza, e sua passagem pelo meridiano é...

— Ora! — interrompeu o mui jovem Mr. Evans. — Acho Billy Jackson um nome muito mais apropriado.

— Eu também! — asseverou Mr. Hoover, bufando alto em desafio a Miss Longnecker. — Penso que Miss Leeson tem tanto direito de dar nome a estrelas quanto qualquer desses velhos astrólogos.

— Oh! Com efeito! — exclamou Miss Longnecker.

— Será que é uma estrela cadente? — perguntou Miss Dorn. — No domingo passado, acertei nove patos e um coelho, de dez, numa barraca de Coney.

— Daqui não se pode vê-la muito bem. — disse Miss Leeson. — Vocês deviam observá-la de meu quarto. Como sabem, avistam-se estrelas mesmo durante o dia, do fundo de um poço. À noite, meu quarto é como uma galeria de mina de carvão, e faz Billy Jackson parecer um grande alfinete de diamante com que a noite prende seu quimono.

Veio uma época em que Miss Leeson não mais trouxe formidáveis calhamaços para copiar. E quando saía de manhã cedo, em vez de ir trabalhar, andava de escritório em escritório, o coração confrangido ante as frias recusas que lhe eram transmitidas por insolentes contínuos. Isso continuou.

Certa tarde, ela subiu com dificuldade a escada de Mrs. Parker, à hora em que sempre costumava voltar do seu jantar no restaurante. Mas não jantara.

Ao passar pelo vestíbulo, encontrou Mr. Hoover que, aproveitando-se da oportunidade, pediu a moça em casamento. A corpulência de Mr. Hoover oprimia Miss Leeson como uma avalancha. Ela recuou e agarrou-se à balaustrada. Mr. Hoover procurou-lhe a mão; ela a ergueu e deu-lhe uma bofetada, com pouca força. Amparando-se ao corrimão, Miss Leeson pôs-se a subir a escada, degrau por degrau. Passou pela porta de Mr. Skidder, que estava justamente anotando, com tinta vermelha, uma marcação para Myrtle Delorme (Miss Leeson) na comédia (não aceita): "fazer uma pirueta através do palco, de L até junto do Conde". Arrastando-se pela escada atapetada, ela finalmente chegou à porta da água-furtada, que abriu.

Estava muito fraca para acender a lâmpada ou despir-se. Deixou-se cair sobre o leito de ferro; seu corpo frágil mal pesou sobre as molas gastas. E nesse quarto do Érebo vagarosamente descerrou as pálpebras cansadas e sorriu.

Através da trapeira, Billy Jackson brilhava sobre ela, calma, brilhante e fiel. Não havia nada à sua volta: ela estava mergulhada num poço de escuridão, com apenas aquele quadrado de luz pálida a emoldurar a estrela a que com tanto capricho e, oh!, com tanta impropriedade dera nome. Miss Longneker devia ter razão: era Gama, da Constelação de Cassiopéia, e não Billy Jackson. No entanto, ela não podia admitir que fosse Gama. 

Deitada de costas, experimentou por duas vezes erguer o braço. Na terceira tentativa, logrou levar dois dedos aos lábios e mandou um beijo, de dentro do poço negro, a Billy Jackson. Logo caiu-lhe inerte o braço.

— Adeus, Billy. — murmurou, fracamente. — Estás a milhares de milhas de distância, e não vais dar nem uma piscadela, Mas ficaste sempre aí, onde eu podia ver-te, quando não havia senão escuridão para se ver, não é mesmo?... Milhares de milhas... Adeus, Billy Jackson.

Clara, a empregada de cor, encontrando a porta ainda fechada às 10 horas do dia seguinte, arrombou-a. Vinagre, batidas no pulso, penas queimadas, nada surtiu efeito; alguém correu ao telefone para chamar uma ambulância.

No devido tempo, depois de muita sirene, a ambulância encostou à porta dos fundos. O jovem médico, no seu avental de linho branco, disposto, ativo, confiante, a face entre jovial e séria, subiu saltitante os degraus da entrada.

— Chamado de ambulância para o n.° 49 — disse, secamente. — Que é que há?

— Oh, sim, doutor — suspirou Mrs. Parker, como se o embaraço que o incidente lhe causava fosse maior do que o incidente em si. — Não posso atinar com o que houve com ela. Nada do que tentamos fê-la voltar a si. É uma moça, uma certa Miss Elsie... isso mesmo, Miss Elsie Leeson. Jamais em minha casa...

— Que quarto? — berrou o médico, com uma voz terrível, até então desconhecida para Mrs. Parker.

— A água-furtada. É...

Evidentemente o médico da ambulância estava familiarizado com a localização de águas-furtadas. Subiu as escadas, de quatro em quatro degraus. Mrs. Parker seguiu-o vagarosamente, como o exigia sua dignidade.

No primeiro patamar, ela deu com o médico já de volta, com a pequena astrônoma nos braços. O rapaz deteve-se e pôs em ação, sem muito ruído, o escalpelo de sua língua. Gradualmente, Mrs. Parker foi-se encolhendo, como um vestido que escorregasse de um prego. Mesmo depois,
ficaram-lhe rugas na mente e no corpo. Algumas vezes, seus inquilinos curiosos indagavam-lhe o que lhe dissera o médico.

— Não se incomodem — respondia ela. — Se eu for perdoada por ter ouvido o que ouvi, ficarei satisfeita.

O médico da ambulância, com o seu fardo, atravessou a matilha de curiosos reunida pelo som da sirene. Mesmo estes se afastaram pela calçada, envergonhados, pois o rosto do jovem médico era o de quem trouxesse consigo a própria morte.

Repararam que o médico não depositou na cama adrede preparada na ambulância o fardo que carregava. Tudo o que disse foi:

— Corra como um demônio, Wilson!

Eis aí tudo. Será uma história? No jornal do dia seguinte, vi, nas notícias diversas, um pequeno parágrafo cuja última sentença talvez ajude você (como me ajudou) a ligar entre si os incidentes.

O parágrafo contava a chegada ao Hospital Bellevue de uma mocinha que fora removida do n. 49 da rua..., e que sofria de debilidade por fome.

E concluía com estas palavras;

"O Dr. William Jackson, médico da ambulância que atendeu o caso, diz que a paciente se salvará."

Fonte:
Disponível em domínio público.
O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909.