domingo, 8 de novembro de 2009

Isaac Asimov (Tempo Para Escrever)



- Conheci uma pessoa que era um pouco parecida com você – disse George.

Estávamos almoçando em um pequeno restaurante, em uma mesa perto da janela, e George olhava para fora com ar pensativo.

- Estou surpreso – disse eu. – Pensei que eu fosse único.

- E é. O homem a que me refiro só se parecia um pouco com você. Ninguém mais no mundo possui essa sua capacidade de escrever, escrever, escrever sem colocar nenhuma idéia no papel.

- Acontece que eu uso um processador de texto.

- Usei a palavra “escrever” no sentido figurado. Qualquer escritor de verdade compreenderia isso – declarou, parando de comer a mouse de chocolate para dar um suspiro dramático.

Eu conhecia o sinal.

- Vai me contar mais uma daquelas histórias fantasiosas a respeito de Azazel, não vai, George?

Ele me dirigiu um olhar de desprezo.

- Você vem inventando mentiras há tanto tempo que não sabe mais reconhecer um relato verdadeiro. Mas não tem importância. A história é triste demais para ser contada.

- Mesmo assim, você vai me contar, não vai?

George suspirou de novo.

Foi aquela parada de ônibus lá fora [disse George] que me fez lembrar de Mordecai Sims, que ganhava modestamente a vida produzindo laudas e mais laudas de lixo variado. Não tantas quanto você, nem tão imprestáveis, e é por isso que eu disse que só se parecia um pouco com você. Para ser honesto, às vezes o que ele escrevia chegava a ser razoável. Sem querer ferir seus sentimentos, você jamais chegou a esse ponto. Pelo menos pelo que me contaram, porque ainda não baixei meus padrões a ponto de ler pessoalmente o que você escreve.

Mordecai era diferente de você em outra coisa: era terrivelmente impaciente. Mire-se naquele espelho, se é que não se importa de ser cruelmente lembrado de sua aparência, e veja como está sentado displicentemente, com um braço jogado nas costas da cadeira e o resto do corpo em total abandono. Olhando para você, ninguém diria que está preocupado em entregar a tempo sua cota diária de caracteres digitados ao acaso.

Mordecai não era assim. Vivia preocupado com os prazos, que pareciam estar sempre para vencer. Naquela época, eu almoçava com ele toda terça-feira, mas ele tirava toda a graça da refeição com suas lamúrias.

- Tenho de colocar este artigo no correio amanhã de manhã, o mais tardar – dizia ele -, mas primeiro tenho de rever outro artigo, e simplesmente não vai dar tempo. Quando é que vai chegar a comida? Por que o garçom não aparece? O que eles estão fazendo na cozinha? Batendo papo?

Ele se mostrava particularmente irrequieto na hora de pagar a conta, e mais de uma vez temi que fosse embora, deixando para mim a triste incumbência. A bem da verdade, isso nunca aconteceu, mas a simples possibilidade era suficiente para me estragar o apetite.

Olhe para aquele ponto de ônibus. Estive a observá-lo durante os últimos quinze minutos. Não passou nenhum ônibus, e hoje é um dia frio e ventoso. O que vemos são casacos abotoados, mãos nos bolsos, narizes vermelhos ou arroxeados, pés se arrastando no chão em [1]busca de calor. O que não vemos é nenhum sinal de revolta, nenhum punho cerrado levantado para o céu. As injustiças da vida tornaram aquelas pessoas totalmente passivas.

Mordecai Sims não era assim. Se estivesse naquela fila de ônibus, ficaria no meio da rua para espreitar o horizonte à procura do primeiro sinal de um veículo; estaria resmungando, rosnando e agitando os braços; comandaria uma passeata em direção à prefeitura. Seu sangue, para resumir, estaria carregado de adrenalina.

Mais de uma vez, ele me procurou para se queixar, atraído, como tantos outros, pelo meu ar sereno de competência e compreensão.

- Sou um homem ocupado, George – afirmava, atropelando as palavras. Ele sempre atropelava as palavras. – É uma vergonha, um escândalo e um crime a forma como o mundo conspira contra mim. Tive de passar no hospital para alguns exames de rotina, só Deus sabe por quê. Acho que meu médico resolveu justificar o dinheiro que eu lhe pago. Disseram-me para me apresentar na sala de espera às 9:40.

“Cheguei lá exatamente às 9:40, é claro, e havia um cartaz na parede que dizia: “Aberto a partir das 9:30.” Era exatamente isso que o cartaz dizia, George, para quem quisesse ver. Na mesa da recepcionista, porém, não havia ninguém.

“Consultei o relógio e disse para uma faxineira que passava: “Onde se encontra a funcionária relapsa que devia estar atrás dessa mesa?”

“”Ainda não chegou”, respondeu a faxineira.

“”Aqui diz que o lugar funciona a partir das 9:30.”

“”Mais cedo ou mais tarde, alguém vai aparecer”, observou a faxineira, com irritante indiferença.

“Afinal de contas, eu me encontrava em um hospital. Podia estar à morte. Alguém se importava com isso? Não! Eu tinha prazo para entregar um trabalho importante, que me havia custado muito esforço e me renderia dinheiro suficiente para pagar a conta do médico (supondo que eu não tivesse uma forma melhor de gastá-lo, o que não era provável). Alguém estava se incomodando? Não! A recepcionista só apareceu às 10:04, e quando me aproximei da mesa, aquela maldita retardatária olhou para mim de cara feia e disse: “Vai ter de esperar a sua vez!

Mordecai vivia contando histórias como aquela; falava de edifícios nos quais todos os elevadores estavam subindo ao mesmo tempo, parando em todos os andares, enquanto ele esperava na portaria; de pessoas que almoçavam do meio-dia às 15:30 e começavam o fim de semana na quarta-feira sempre que precisava falar com elas.

Não sei por que alguém se deu o trabalho de inventar o tempo, George – dizia para mim. – Não passa de um artifício para tornar possível a formação de novos métodos de desperdício. Se eu pudesse transformar as horas que passei esperando esses imbecis em tempo de trabalho, minha produção aumentaria de dez a vinte por cento. O que, apesar da sovinice criminosa dos editores, resultaria em um aumento substancial da minha renda… a comida vai chegar ou não?

Eu não podia deixar de pensar que ajudá-lo a aumentar a renda seria uma boa ação, principalmente porque ele tinha o bom gosto de gastar parte dela comigo. Além disso, costumava escolher os melhores restaurantes para jantarmos juntos, o que me deixava comovido… Não, não como este aqui, amigo velho. Coisa muito melhor. O seu gosto deixa muito a desejar, o que combina, pelo que ouço dizer, com o que você escreve.

Comecei, portanto, a dar tratos à bola para encontrar uma maneira de ajudá-lo.

Não me lembrei imediatamente de Azazel. Naquela época, ainda não estava acostumado com ele; afinal de contas, um demônio de dois centímetros de altura é uma coisa relativamente incomum.

Afinal, porém, ocorreu-me que talvez Azazel pudesse fazer qualquer coisa para aumentar o tempo de que meu amigo dispunha para escrever. Não parecia provável e talvez eu o estivesse fazendo perder tempo; para que serve o tempo para uma criatura de outro mundo?

Passei pela rotina de antigos feitiços e encantamentos que uso para invocá-lo, e ele chegou dormindo. Seus olhinhos estavam fechados e emitia um som agudo e desagradável que devia ser o equivalente a um ronco humano.

Eu não sabia ao certo como acordá-lo, e finalmente decidi pingar um pouco de água no seu estômago. Ele tem abdome perfeitamente esférico, você sabe, como se tivesse engolido uma bilha. Não tenho a menor idéia se isso é comum no planeta dele, mas quando falei no assunto, ele fez questão de saber o que era uma bilha. Quando expliquei, disse que estava com vontade de me zapulniclar. Não sei o que é isso, mas pelo seu tom de voz não deve ser nada agradável.

A água realmente o acordou, mas também o deixou muito aborrecido. Disse que eu quase o havia afogado e começou a explicar, com detalhes irrelevantes, como se fazia para acordar alguém no seu mundo. Tinha algo a ver com danças, pétalas de rosa, instrumentos musicais e o toque dos dedos de lindas donzelas. Eu lhe disse que no nosso mundo éramos mais práticos e ele nos chamou de bárbaros ignorantes antes de se acalmar o suficiente para que eu pudesse lhe explicar o que queria.

Contei-lhe o meu problema, convencido de que, na melhor das hipóteses, ele me daria algum conselho trivial antes de ir embora.

Estava enganado. Azazel olhou para mim, muito sério, e disse:

- Escute aqui, você está me pedindo para interferir nas leis das probabilidades?

Fiquei satisfeito por ele ter compreendido tão depressa a questão.

- Exatamente.

- Mais isso não é nada fácil!

- Claro que não. Se fosse fácil eu pediria a você? Se fosse fácil eu mesmo faria. Só quando não é fácil é que tenho de recorrer a um ser superior como você.

Nauseante, é claro, mas essencial quando se está lidando com um demônio que se envergonha do seu tamanho e de sua barriga em forma de bilha.

Ele pareceu gostar do meu argumento e disse:

- Bom, eu não disse que era impossível.

- Ótimo.

- Eu teria de ajustar o contínuo psicalóbico do seu planeta.

- Tirou as palavras da minha boca.

- O que vou fazer é introduzir alguns nós na ligação entre o contínuo e o seu amigo, esse que tem prazos a cumprir. A propósito: que são prazos?

Quando tentei explicar, ele observou, com um suspiro fundo:

- Ah, sim, temos coisas parecidas em nossas demonstrações mais etéreas de afeição. Se você deixa um prazo passar, as adoráveis criaturinhas não o perdoam. Lembro-me de uma vez…

Mas vou poupar-lhe os detalhes sórdidos da vida sexual de Azazel.

- O único problema – disse ele, afinal – é que depois que eu introduzir os nós não poderei mais desfazê-los.

- Por que não?

- É teoricamente impossível – declarou Azazel, em tom deliberadamente casual.

Não acreditei nele. Para mim, aquele demônio incompetente simplesmente não sabia como. Entretanto, já que ele era competente o bastante para tornar a vida impossível para mim, não lhe revelei o que estava pensando, mas disse, simplesmente:

- Você não vai ter de desfazer nada. Mordecai precisa de mais tempo para escrever, e quando o conseguir ficará satisfeito para o resto da vida.

- Nesse caso, vou começar.

Ficou fazendo passes durante muito tempo. Parecia um mágico no palco, exceto pelo fato de que de vez em quando eu tinha a impressão de que suas mãos ficavam invisíveis. Entretanto, eram tão pequenas que às vezes era difícil dizer se estavam ou não visíveis, mesmo em circunstâncias normais.

- Que está fazendo? – perguntei, mas Azazel sacudiu a cabeça e seus lábios se moveram como se estivesse contando.

Depois, ele se apoiou na mesa e suspirou.

- Terminou? – perguntei.

Ele fez que sim com a cabeça e disse:

- Espero que você compreenda que eu tive de reduzir o quociente de entropia do seu amigo de forma mais ou menos permanente.

- Que significa isso?

- Significa que a partir de agora as coisas serão mais regulares nas proximidades do seu amigo do que costumavam ser.

- Não há nada de errado com a regularidade – disse eu. (Você talvez não acredite, amigo velho, mas sempre gostei de organização. Tenho um registro de todo o dinheiro que lhe devo, até o último centavo. As quantias estão anotadas em pedaços de papel, aqui e no meu apartamento. Se quiser, posso mostrar-lhe…)

Azazel disse:

- Claro que não há nada de errado com a regularidade. Só que é impossível violar a segunda lei da termodinâmica. Para manter o equilíbrio, as coisas serão um pouco menos regulares longe do seu amigo.

- De que forma? – perguntei, verificando se o meu zíper estava aberto.

- De várias formas, quase todas difíceis de notar. Espalhei o efeito por todo o sistema solar, de modo que haverá um número um pouco maior de colisões entre asteróides, um número um pouco maior de erupções vulcânicas etc. O maior efeito, porém, será sobre o sol.

- Que vai acontecer com o sol?

- Calculo que ele ficará quente o bastante para tornar a vida impossível na Terra dois milhões e meio de anos mais cedo do que se eu não tivesse introduzido os nós no contínuo.

Dei de ombros. Que importam uns poucos milhões de anos quando é uma questão de arranjar alguém para pagar de boa vontade as minhas refeições?

Só voltei a jantar com Mordecai uma semana depois. Ele parecia muito animado ao entrar no restaurante, e quando chegou à mesa onde eu o esperava pacientemente com o meu drinque, sorriu para mim.

- George, tive uma semana incrível! – exclamou. Estendeu a mão sem olhar e não pareceu nem um pouco surpreso quando alguém lhe passou um cardápio. Logo naquele restaurante, em que os garçons eram tão prepotentes que exigiam um requerimento em três vias, assinado pelo gerente, para entregar um cardápio!

“George, parece que estou no paraíso! Disfarcei um sorriso.

- Verdade?

- Quando entro no banco, há sempre um guichê vazio e um caixa sorridente. Quando entro no correio, há sempre um guichê vazio e… bem, acho que esperar um sorriso de um funcionário dos correios seria demais, mas pelo menos eles registram minhas cartas sem fazer cara feia. Chego no ponto de ônibus e há sempre um à minha espera. Outro dia, na hora de maior movimento, levantei a mão e imediatamente um táxi encostou para me pegar. Quando disse que queria ir para a esquina da Quinta com a Quarenta e Nove, ele me levou até lá pelo caminho mais curto. E falava a minha língua! Que é que você vai querer, George?

Uma consulta rápida ao cardápio foi suficiente. Parecia que tudo estava arranjado para que ninguém pudesse atrasar o meu amigo. Mordecai pôs o cardápio de lado e fez os pedidos para nós dois. Observei que não se deu o trabalho de levantar os olhos para ver se havia um garçom à espera. Já se acostumara a esperar que houvesse.

E havia.

O garçom esfregou as mãos, fez uma mesura e nos atendeu com presteza, cortesia e eficiência.

Eu disse a ele:

- Você parece estar passando por uma fantástica maré de sorte, Mordecai, meu amigo. Como explica isso? (Devo admitir que por um momento tive a tentação de revelar a ele que eu em o responsável. Afinal, se soubesse disso, não teria vontade de me cobrir de ouro, ou, em nossos dias prosaicos, de papel?)

- É muito simples – disse ele, pendurando o guardanapo no pescoço e agarrando a faca e o garfo como se quisesse estrangulá-los, porque Mordecai, com todas as suas qualidades, não é exatamente o que se chamaria de um homem refinado. – Não tem nada a ver com a sorte. É a conseqüência inevitável das leis das probabilidades.

- Das probabilidades? – repeti, com indignação.

- Claro! Passei a vida inteira tendo de suportar a série mais revoltante de atrasos fortuitos que já ocorreu neste planeta. De acordo com as leis das probabilidades, é preciso que esta seqüência infeliz de eventos seja compensada. E o que está acontecendo agora, e espero que continue a ocorrer durante o resto de minha vida. Espero, não, tenho certeza. As coisas têm de se equilibrar. – Inclinou-se na minha direção e espetou o dedo no meu peito. – Acredite nisso. É impossível desafiar as leis das probabilidades.

Passou o resto do jantar discorrendo sobre as leis das probabilidades, a respeito das quais, tenho certeza, conhecia tão pouco quanto você.

Afinal, eu perguntei:

- Agora você não tem mais tempo para escrever?

- Claro que tenho. Calculo que o meu tempo para escrever deve ter aumentado uns vinte por cento.

- E a sua produção aumentou na mesma proporção, imagino.

- Ainda não – disse ele, parecendo meio constrangido. – Ainda não. Naturalmente, preciso me adaptar. Não estou acostumado com tanta facilidade. Fui apanhado de surpresa.

Na verdade, ele não parecia nem um pouquinho surpreso. Levantou a mão e, sem olhar, tirou a conta dos dedos de um garçom que se aproximava cora ela. Examinou-a rapidamente e devolveu-a, com um cartão de crédito, ao garçom, que, para meu espanto, tinha ficado esperando e, ao recebê-la, levou imediatamente à caixa.

O jantar inteiro tinha levado pouco mais de trinta minutos. Não vou esconder de você o fato de que teria preferido um jantar civilizado de duas horas e meia, precedido por champanha, seguido por conhaque, cora um ou dois vinhos finos separando os pratos e uma conversa civilizada preenchendo todos os interstícios. Entretanto, consolei-me com o fato de que Mordecai havia economizado duas horas que poderia passar ganhando dinheiro para si mesmo e, até certo ponto, para mim também.

Depois daquele jantar, passei três semanas sem me encontrar com Mordecai. Não me lembro por quê; acho que nós dois viajamos em semanas diferentes.

Seja como for, certa manhã eu estava saindo de uma lanchonete onde às vezes como um ovo mexido com torrada quando vi Mordecai de pé na esquina, cerca de meio quarteirão de distância.

Tinha acabado de nevar e estava tudo molhado. Era o tipo de dia em que os táxis vazios se aproximam de você apenas para jogar respingos de neve suja nas pernas das suas calças antes de baixarem o sinal de livre e se afastarem rapidamente.

Mordecai estava de costas para mim e acabava de levantar a mão quando um táxi vazio reduziu a marcha e se aproximou dele. Para minha surpresa, Mordecai olhou para outro lado. O motorista esperou um pouco e depois foi embora, desapontado.

Mordecai levantou a mão pela segunda vez e, aparentemente surgido do nada, um segundo táxi apareceu e parou para ele. Meu amigo entrou no carro, mas, como pude ouvir claramente, embora estivesse a uma distância de uns quarenta metros, brindou o motorista com uma torrente de impropérios que fariam corar uma pessoa de respeito, se ainda houvesse alguma em nossa cidade.

Telefonei para ele naquela mesma manha e marquei um encontro para mais tarde em um bar que costumávamos freqüentar, que oferecia uma “Happy Hour” após outra durante o dia inteiro. Eu mal podia esperar pela explicação de Mordecai.

O que eu queria saber era o significado dos palavrões que ele havia usado. Não, amigo velho, não estou me referindo à definição desses vocábulos no dicionário, se é que eles constam de algum dicionário. Estou falando da razão pela qual ele ofendera o motorista de táxi. Pela lógica, deveria agradecer-lhe efusivamente por haver parado.

Quando ele entrou no bar, não parecia muito satisfeito. Na verdade, tinha um ar preocupado.

Disse para mim:

- George, quer chamar a garçonete para mim?

Era um desses bares em que as garçonetes se vestem sem nenhuma preocupação de se manter aquecidas, o que, naturalmente, ajudava a me manter aquecido. Chamei uma delas com todo o prazer, embora soubesse que interpretaria meus gestos simplesmente como representando o desejo de pedir um drinque.

Na verdade, ela não interpretou coisa alguma, pois me ignorou totalmente, mantendo-se de costas para mim.

Eu disse para o meu amigo:

- Mordecai, se você quer ser atendido, é melhor chamá-la pessoalmente. As leis da probabilidade ainda não começaram a agir a meu favor, o que é uma pena, porque já era mais do que tempo de o meu tio rico morrer e deserdar seu único filho, deixando toda a fortuna para mim.

- Você tem um tio rico? – perguntou Mordecai, com uma ponta de interesse.

- Não! O que torna as coisas ainda mais injustas. Peça um drinque para nós, está bem, Mordecai?

- Por que a pressa? Deixe que eles esperem – resmungou Mordecai, de cara feia.

Eu não tinha nenhum interesse em deixá-los esperando, é claro, mas minha curiosidade foi maior que a minha sede.

- Mordecai, você parece infeliz. Hoje de manhã, você não me viu, mas eu o vi. Você ignorou um táxi vazio em um dia em que eles valem seu peso em ouro e depois, quando tomou um segundo táxi, xingou o motorista.

- É mesmo? Acontece que estou farto desses filhos da mãe. Os táxis me perseguem. Eles me seguem em longas filas. Não posso nem olhar para a rua sem que um deles pare. Quando chego a um restaurante, sou cercado por hordas de garçons. Lojas já fechadas são abertas por minha causa. No momento em que entro em um edifício, todos os elevadores estão no térreo. Salto em um andar, e eles esperam pacientemente por mim. Quando marco uma consulta médica, sou atendido imediatamente. Se preciso de um documento em uma repartição pública…

Àquela altura, porém, eu tinha recuperado a voz.

- Mordecai – protestei -, não compreende que isso é ótimo para você? As leis das probabilidades…

O que sugeriu que eu fizesse com as leis das probabilidades é totalmente impossível, é claro, já que elas não passam de abstrações.

- Mordecai – insisti -, tudo isso lhe dá mais tempo para escrever.

- Está muito enganado. Parei de escrever.

- Por quê?

- Porque não tenho mais tempo para pensar.

- Como assim?

- O tempo que eu passava esperando, nas filas de banco, nos pontos de ônibus, nas salas de espera… era esse o tempo que eu usava para pensar, para planejar o que eu iria escrever quando chegasse em casa. Essa preparação era essencial para o meu trabalho.

- Eu não sabia disso.

- Nem eu, mas agora já sei.

- Pensei que você passasse todo o tempo de espera reclamando, xingando e se aborrecendo.

- Parte do tempo eu passava assim. O resto do tempo, passava pensando. E mesmo o tempo que eu passava me queixando das injustiças do universo era útil, porque eu me exaltava, a adrenalina no meu sangue ia lá em cima e quando eu finalmente chegava em casa usava o teclado da máquina de escrever para descarregar todas as minhas frustrações. Meus pensamentos forneciam a motivação intelectual e minha raiva a motivação emocional. Juntos, faziam com que os fogos sombrios e infernais de minha alma despejassem grandes blocos de excelente literatura. E agora? Como vou fazer? Observe!

Estalou os dedos e imediatamente uma garçonete sumariamente vestida estava a seu lado, perguntando:

- Que posso fazer pelo senhor?

Eu podia imaginar várias coisas, mas Mordecai se limitou a pedir drinques para nós dois.

- Pensei que precisava apenas me acostumar com a nova situação, mas agora compreendo que não é tão simples assim.

- Pode se recusar a tirar vantagem das facilidades que os outros oferecem a você.

- Posso mesmo? Você me viu esta manhã. Se recuso um táxi, logo aparece outro. Se eu recusar cinqüenta vezes, haverá um qüinquagésimo primeiro esperando por mim na primeira esquina. Eles me vencem pelo cansaço.

- Nesse caso, por que não reserva uma hora ou duas por dia para pensar, no conforto do seu escritório?

- Exatamente! No conforto do meu escritório! Só consigo pensar direito quando estou roendo as unhas em uma fila de banco, sentado no banco duro de uma sala de espera ou morrendo de fome em uma mesa de restaurante. É a revolta que me dá inspiração para escrever.

- Mas você não está revoltado no momento?

- Não é a mesma coisa. Posso me revoltar com uma injustiça, mas como posso me revoltar com as pessoas que me tratam com tanta consideração? Não, não estou revoltado; estou apenas triste, e quando estou triste não consigo escrever. Acho que nunca passei uma “Happy Hour” tão infeliz como naquele dia.

- Juro para você, George – disse Mordecai -, que tenho a impressão de que fui amaldiçoado. Acho que alguma fada madrinha, aborrecida por não ter sido convidada para o meu batizado, descobriu finalmente alguma coisa pior do que ser forçado a esperar em filas. É a maldição de se poder fazer imediatamente tudo que se deseja.

Ao ouvir aquele triste relato, meus olhos ficaram úmidos, pois me dei conta de que a fada madrinha a que ele se referia era na verdade a minha pessoa, e talvez um dia ele viesse a descobrir esse fato. Se Mordecai soubesse a verdade, poderia muito bem, em um ato de desespero, tirar a própria vida, ou, pior ainda, tirar a minha.

Mas o pior ainda não tinha chegado. Depois de pedir a conta e, naturalmente, recebê-la sem demora, examinou-a sem interesse, passou-a para mim e disse, com voz rouca:

- Tome, pode pagar. Vou para casa.

Paguei. Que remédio? Mas isso me deixou uma ferida que ainda me incomoda quando o tempo está para mudar. Afinal, é justo que eu tenha encurtado a vida do sol em dois milhões e meio de anos e acabe tendo de pagar, não só o meu drinque, mas também o do meu amigo? É justo?

Nunca mais tornei a ver Mordecai. Ouvi dizer que deixou o país e se tornou um vagabundo de praia nos Mares do Sul.

Não sei exatamente o que faz um vagabundo de praia, mas desconfio que eles não ficam ricos. Seja como for, tenho certeza de que se ele estiver na praia e quiser uma onda, ela não demorará a aparecer.

- Então você não vai fazer nada por mim?

- Não.

- Ótimo. Então eu pago a conta.

É o mínimo que você pode fazer – disse George.

Aquela altura, um garçom já havia trazido a conta e a colocara entre nós, enquanto George a ignorava com a desenvoltura de sempre.

- Você não está pensando em pedir a Azazel para fazer alguma coisa por mim, está? – perguntei.

- Acho que não – disse George. – Infelizmente, amigo velho, você não é o tipo de pessoa em que a gente pensa quando sente vontade de fazer boas ações.

Fonte:
ASIMOV, Isaac. Azazel. RJ: Record, 1988

Hans Christian Andersen (O Trigo Mourisco)



Muitas vezes, após uma trovoada, ao passar-se por um campo de trigo mourisco, pode ver-se como ficou todo chamuscado. É como se o fogo tivesse passado por ele e o camponês dá-nos a explicação seguinte: “Foi um raio!” Mas porquê? Pois vou contar-lhes o que disse a um pardal um velho salgueiro que se encontrava perto dum campo de trigo mourisco e ainda lá está. É um salgueiro grande e venerável, mas enrugado e velho, um pouco rachado ao meio, com uma fenda onde crescem ervas e sarças. A árvore está um pouco tombada para a frente, e os ramos pendem para o solo, como se fossem uma longa cabeleira verde.

Em toda a volta havia campos de cereal, de centeio, de cevada e de aveia, a bela aveia que, quando está sazonada, parece um enorme bando de pequeninos canários amarelos pousados num ramo. Os cereais são assim uma bênção de Deus e quanto mais pesados estão, mais baixos se inclinam em humildade.

Mas havia também um campo de trigo mourisco, bem perto do velho salgueiro, que não queria nunca inclinar-se como os outros cereais; sempre se mantinha direito, orgulhoso e altivo.

— Sou tão rico como a espiga de trigo — disse ele. — Sou, além disso, mais bonito. As 15 minhas flores são tão belas como as da macieira, e é um regalo olhar para mim e para a minha floração. Conheces algo de mais belo, velho salgueiro? O salgueiro abanou a cabeça, como quem diz “pois claro que conheço”, mas o trigo mourisco inchou de orgulho e exclamou: — Árvore estúpida, tão velha estás que te crescem ervas na barriga!

Então rebentou uma terrível trovoada. Todas as flores dobraram as folhas ou inclinaram as cabeças, enquanto passava a trovoada sobre elas. Só o trigo mourisco continuava com a cabeça erguida, no seu orgulho.

— Abaixa a cabeça, como nós! — disseram as flores.

— Não tenho nenhuma necessidade disso! — respondeu o trigo mourisco.

— Abaixa a cabeça como nós! — gritou o trigo. — Vem aí o Anjo da Tempestade! Tem asas e com elas alcança tanto o céu lá em cima como a terra cá em baixo. Pode ceifar-te sem teres sequer tempo de pedir-lhe mercê.

— Está bem, mas eu não vergo! — retorquiu o trigo mourisco.

— Anda, fecha as flores e dobra as folhas! — disse o velho salgueiro. — Não olhes para cima, para os raios, quando as nuvens rebentam. Nem os próprios homens o podem fazer, pois que por eles é possível olhar para dentro do Céu, mas isso é bastante para os cegar. E o que nos aconteceria a nós, plantas da terra, se o ousássemos fazer, nós que somos muito menos?

— Muito menos? — disse o trigo mourisco. — Pois vou mesmo olhar para dentro do Céu! E foi isso que fez, com presunção e orgulho. Caiu então uma faísca tão grande que parecia que toda a terra ardia em chamas.

Quando o mau tempo passou, sentiram-se as flores e os cereais numa atmosfera calma e pura, refrescada pela chuva; mas o trigo mourisco ficara completamente queimado, reduzido a carvão pelo raio. Era agora uma erva inútil e morta no campo.

O velho salgueiro agitava os ramos ao vento e deixava tombar grandes gotas de água das suas folhas verdes, como se chorasse. Os pardais perguntaram-lhe:

— Porque estás a chorar? Não é tudo maravilhoso? Repara como brilha o sol e deslizam as nuvens. Não sentes o perfume das flores e dos arbustos? Porque choras, pois, velho salgueiro?

Então, o salgueiro falou-lhes do orgulho e da presunção do trigo mourisco e do seu castigo. É sempre assim. Eu, que escrevi este conto, ouvi-o duns pardais. Contaram-mo uma tarde em que lhes pedi uma história.

Fonte:
ANDERSEN, Hans Christian. Historias do Cisne. Companhia das Letrinhas.

Paulo V. Pinheiro (À espera da primavera)

A Primavera (Monet)
Assim, num círculo, como um te, espero, nesta sala, algo para ouvir.
O silêncio é ensurdecedor.
Procuro algo para fazer, com o insucesso, volto a me sentar.
Quantos anos mais?
Já não conto, como houve perceber, os minutos.
Há quanto tempo não ouço uma palavra ou vejo um sorriso!
A chuva e o frio vento vêm me visitar e hoje já não choro.
Bom dia quem chega! eu amo o que me vem.
A minha vantagem é já não mais sentir dores.
Vocês não imaginam como isso é bom.
A contar os dias e calcular o presente vejo a promessa chegar.
Nunca me senti tão menino.
Não sei mais quantas primaveras terei.
Sei que esta que chega será minha, é minha.
No futuro... que futuro? não sei.
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Fonte:
Colaboração do autor

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte IV


II. — Sentido sacro e iniciático

1. — Esoterismo e Magia

O esoterismo é subjacente em muitos de nossos atos. A religião católica não pode se livrar dos ritos de religiões antigas e os círios e o incenso provam a sobrevivência das oferendas, bem como a tonsura do padre indica o sítio da espiritualidade.

O coroamento é uma cerimônia esotérica: os braceletes tornam o rei prisioneiro de seu povo, o cetro é a vara mágica, e a coroa o emblema da flor ritual de mil pétalas. Th. Briant deu: Le goéland, n.o 108 (A gaivota) preciosas informações sobre o coroamento da rainha Elisabete da Inglaterra que, vestida com sua roupagem de linho, está ritualmente nua para a unção real.

Os povos da África, com seus conhecimentos sobre magia, se aproximam de uma verdade transcendente que nos escapa. Os ritos esotéricos eram, porém, muito mais empregados em tempos passados e Victor Emile Michelet: Le secret de la chevalerie (O segredo da cavalaria) escreveu: “Os construtores de catedrais inscreveram no secular silêncio da pedra o eco da palavra perdida que os predestinados ouvirão.” Se os mitos sagrados fossem divulgados seriam profanados e com isso perderiam suas virtudes místicas, diz Lévy-Bruhl: La mythologie primitive (Mitologia primitiva, 1935). Assim é que o sentido profundo e a virtude eficaz são revelados somente aos iniciados, os não iniciados só encontram nesses mitos um divertimento. Os contos da Nova Guiné expõem essa eficácia mágica.

Ora, todos os povos fizeram uso da magia. No evangelho assistimos aos fenômenos da levitação, à multiplicação dos pães e dos peixes; se o alcance das palavras de encantamento nos escapa, não deixamos de sentir que esses ritos se destinam a manter a coesão de uma civilização (Van Gennep). Saintyves: Les contes de Perrault (Os contos de Perrault, 1923), definiu as provações e as tentações com suas encenações prestigiosas que são ritos de iniciação.

Este elemento sobrenatural requer uma explicação a qual tentaremos evidenciar no estudo de algumas lendas. Pois esses costumes de iniciação, provindo de um conhecimento profundo e de um ritual desenvolvido estão tão alterados que perderam o seu sentido original. O símbolo do casamento, em que a bênção coloca os eleitos sob a proteção de um poder superior; o elo sem princípio nem fim, cadeia indissolúvel que une dois esposos romanos; o elo deve ser de ouro puro pois que a mulher é acorrentada pelo mérito e pelas qualidades sólidas de seu noivo; mas esse elo liga a vontade do operador ao gênio benfazejo personificado pelo fluido invisível.

O simbolismo do casamento é muito vasto, mas o ritual da morte — freqüentemente tido como uma espécie de sortilégio — mereceria também ser estudado. A magia popular deveria ocupar-se do modo de conquistar o poder com Fausto e D. Juan. Surgiram então os feiticeiros, as invocações, os filtros, os remédios e os venenos; essa magia natural penetrou nos contos.

O sistema cabalista — de origem esotérica e de espírito iniciado — serviu para a construção das catedrais. A constituição da sociedade — que teve seu apogeu no reinado de São Luís — a música dos gregos de Eleusis, o cantochão provêm da Cabala que serviu para estabelecer os monogramas árabes, as estátuas da Índia, as regras para a seção do ouro. Este ensinamento profundo, freqüentemente insuspeitado, constitui um precioso patrimônio da inteligência humana.

Os próprios jogos têm origem esotérica (jogos de cartas, buena-dicha, de xadrez, de damas, gamão, dominó, jogo do ganso, roleta, marelinha, esconde-esconde, etc.). As canções populares, muitas vezes, são iniciáticas (Les compagnons de la Marjolaine, la tour prends-garde, Cadet Roussel).

O valor dos algarismos é nesse caso muito importante. O texto pode ser dividido em livros, capítulos, versículos, alíneas, cujo número é ditado, (poema em doze cantos, tragédia em cinco cantos). Às vezes é o número de personagens, o número de anos de sua existência, o número de seus combates. O escritor multiplica os algarismos para não se dar a conhecer e os acontecimentos descritos ultrapassam, dessa forma, a realidade. As profecias entram nessa categoria. O número 3, emblema sexual em Freud, é a base do princípio divino que reaparece em todos os cultos, culto de Mitra, triade teológica céltica, ternário de Pitágoras. São três as penitências e existem três etapas essenciais no aperfeiçoamento individual; as fadas, como no teatro, dão três golpes com a varinha; dez, número de Adão e Eva, falo e ovo, são a base da filosofia pitagórica.

Os ritos podem derivar para a superstição, o fetichismo, mas a interpretação desse simbolismo é sempre delicada.

2. — Religião e origem sacra

As teses religiosas são numerosas. O Pe. Banier, com sua Escola bíblica, via nos mitos pagãos, a revelação divina; Bérard, na sua tese religiosa, explica as cerimônias rituais.

Lenormant e Gladstone interpretam as personalidades dos deuses a partir de personagens bíblicas.

O Apocalipse de São João é uma obra esotérica cujas palavras-chave servem a religiões e ordens assaz diferentes. As religiões empregam palavras de encantamento que devem produzir o máximo de efeito além de processos na aparência muito simples; eis aí uma forma de magia (Anne Osmont). Diz o conde de Larmandie a esse respeito: “Esses ritos que nada mais são do que a realização de símbolos, têm poder natural sobre o mundo astral, que contém em potencial e germe todo o desabrochar do mundo físico. A palavra símbolo significa, principalmente, resumo, quintaessência; atingimos, pois, completando-o, a causa segunda na órbita de nossa vontade: desencadeamos o dinamismo produtor do fenômeno.” F. Ch. Barlet (A iniciação, janeiro de 1897), diz que “a religião nas suas manifestações exteriores torna-se apenas uma alta magia cerimonial”.

Se Lévy-Bruhl afirma que o homem primitivo não tem o sentimento do divino, parece que para Piobb: Formulaire de haute-magie (Formulário de alta magia) ele está presente em toda parte mas suas leis são difíceis de discernir; são muitos os véus que encobrem esses segredos que só se exprimem por meio de símbolos. Contudo, toda essa ciência que provém dos colégios iniciáticos, não está perdida. O cristianismo não soube se eximir de leis anteriores; as idéias jurídicas em curso formaram o direito canônico; as vestes sacerdotais provêm de Bizâncio.

3. — A arte sagrada da Índia

Estas lendas, encontradas na Índia, pertencem à mitologia hindu que compreende os Vedas (hinos), os Bramanas (comentários), as Sutras e Upanichads (manuais de devoção) e finalmente as compilações de lendas Puranas.

Mallarmé: Les dieux antiques (Os deuses antigos) fala desse berço misterioso, os Arias, situado no centro da grande Ásia, no vale do Oxo e do qual temos poucas referências. Suas tribos nômades emigraram para os países eslavos e depois para a Pérsia, a Índia, a Grécia e a Itália. A mitologia persa, no seu falar Zenda, devia influir sobre a mitologia norse para criar a epopéia escandinava.

Varuna, autor do mundo, exprime o instinto monoteísta dos cantos védicos. Não é absurdo afirmar que os três deuses da Índia (Varuna, Agni e Indra) representam diferentes aspectos do Ente Infinito. Eis porque Deus, falando com Moisés, diz nós e não eu. Outros três deuses sucedem aos três deuses antigos: o deus da criação Brama, o deus da conservação Vichnu e o deus da destruição Civa, portador do terceiro olho: R. Fougère, Contes et légendes de l’Inde (Contos e lendas da Índia). Quanto a Buda, seria apenas um dos mais recentes avatares do Vichnu e o próprio Jesus Cristo seria o reflexo desse Deus. Um livro curioso e inspirado, La vie de maîtres (A vida dos mestres), de Baird T. Spalding (Ed. Leymarie, 1946), retoma esse tema.

É digno observar que a crença na transmigração é reencontrada na literatura céltica; é que a religião druídica, de uma amplidão esquecida, estendia-se até a Grécia e com toda certeza se achava em comunicação com a Ásia. Desta forma, depois da morte, a alma se reencarna tomando nova forma, ora superior, ora inferior, relativamente à vida anterior. Essa sucessão de existências pode ser humana ou animal e ter lugar neste ou em outros mundos. A sociedade bramânica é estabelecida em castas, cujos grupos são hereditários e hierarquizados; em seu pináculo reinam os brâmanes, os padres.

No século VI antes da era cristã, porém, o bramanismo se transforma sob a impulsão de Gotama, o Buda. Depois de reencarnações sucessivas, o indivíduo chega ao aniquilamento total, o Nirvana. Por suas concepções mais amplas e mais sociais, todo homem tem acesso à via religiosa.

Lotus de Paini observa que o Tao seria uma força oculta ao redor da qual todos os valores morais evoluiriam. Esse dinamismo cósmico seria produzido por elementos eletrizantes Iang e Iin que se aparentam ao próton e ao eléctron. Essa sabedoria espiritual se obtinha por meio da meditação realizada sobre regras precisas; a formação dos órgãos da clarividência só podia se produzir após as duas fases impostas: a purificação do corpo astral e a iluminação.

Langlois (Monuments littéraires de l’Inde, 1827) analisou essa literatura sânscrita cujos Vedas (4500 a. C.) são os livros do conhecimento e os Vidia, os da ciência. As quatro obras Upanichad tratam da natureza de Deus, os Upavedas são relativos à vida corrente. Valmiki escreveu o Ramaiana, as aventuras do deus Rama e Viasa (1000 a. C.) e é o autor de Maabarata que descreve as desgraças de uma família real. O Bagavad-Gita é um episódio desse trabalho: o deus revela ao seu favorito Ardjuna a origem e a natureza do universo.

Essa literatura é escrita em sânscrito, língua dos padres e da alta sociedade mas entremeada de dialeto Pracrit, linguagem de classes inferiores. Sob o efeito das invasões o sânscrito foi esquecido e só em alguns santuários é encontrado. Observemos os recentes estudos de Jones, Wilkins, Colebrooke, Wilson, e Langlois.

Quanto ao grande livro hindu, o Pantchatantra, foi traduzido do sânscrito para o phlvi por ordem do rei Choroés, no século VI. A importância desse livro é considerável uma vez que foi traduzido em antigo persa e em sírio (Calila e Diná); traduzido em árabe (século VIII) em hebraico (século XII), passou pela Espanha e sua tradução latina data do século XIII, quando chegou à França e à Alemanha. Paralelamente a esse eixo, sua tradução árabe penetra na Grécia (Stéphanit et Ikhnilate) e na língua eslava (XII e XIII) para alcançar, enfim, a Rússia.

Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

sábado, 7 de novembro de 2009

Carlos Drummond de Andrade (Campo de Flores)

Jardim Florido (Van Gogh)
Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus-ou foi talvez o Diabo-deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde
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Fonte:
CD Carlos Drummond de Andrdade por Paulo Autran. Coleção Poesia Falada vol.13. 1988.

Aglaé d Ávila Fontes (Crenças e Simpatias)



Quando no nordeste, começamos a sentir um cheirinho de milho no ar, é porque chegou o tempo dos louvores e festas. É o mês de junho com seus sabores, cores, sons e fogos, carregando nas suas entranhas uma história cultural de grande significado.

No ciclo junino ou joanino como se diz em Portugal, há uma fusão de celebrações sagradas e profanas que nos remetem a épocas muito mais antigas do que a estabelecida pelo cristianismo entre nós.

Na verdade é “muito antes do antes”, como fala o povo na sua sabedoria. A história vem da antiguidade, quando povos como celtas, bretões, bascos, egípcios e sumérios, faziam suas invocações aos deuses para que terra se fizesse fértil, e lhes oferecesse fartura.

Depois, à época do solstício de verão-junho no hemisfério Norte-vinha os agradecimentos, quando louvavam, dançavam e se embriagavam em verdadeiras orgias profanas.

As mudanças climáticas provocadas pela posição do sol em sua órbita alteravam a duração do dia e a intensidade do calor, o que naturalmente influenciava no plantio e na colheita e eram consideradas por eles como resultantes da interferência dos deuses sobre a natureza.

Assim a festa do solstício, era a festa da fertilidade, o que fazia com que vivessem atentos às mudanças da natureza e organizassem rituais propiciatórios para os deuses como forma de obter fartura. Esse espírito voltado para as soluções mágico-religiosas, sem se fez presente na história da humanidade desde os tempos mais longínquos, quando os fenômenos da natureza não eram visto como naturais.

Vale ressaltar que o ser humano sempre teve uma forte necessidade de apelar para seres superiores para nos momentos aflitivos, buscar soluções, vez que seu imaginário sempre foi povoado por divindades, mitos, deuses ou santos e até mesmo forças da natureza e orixás.

Nas mais diversas épocas, e de acordo com as diversas culturas, o homem sempre buscou se aninhar nos braços de Minervas, Apolos e Dianas, Dionísios, Osíris, Hermes ou Zeus, habitantes mágicos do Olímpio, para ter seus desejos de poder, amor ou vitória realizados, usando para isso peditórios e promessas. Alcançada a graça, ganhavam os deuses, altares, tempos magníficos, colunas votivas, a depender do acordo firmado entre deuses e homens.

O costume de pedir e fazer promessas para alcançar graças, também se incorporou ao cristianismo em suas variadas vertentes através dos santos da predileção de cada um, ou no culto negro seus orixás. Mas para combater as celebrações pagãs dos povos antigos, a Igreja lançou um véu cristão sobre a festa louva tória da fertilidade, e encontrou no mês de junho datas significativas, para a substituição.

Nascimentos e mortes de santos como Santo Antonio, São João e São Pedro passaram a marcar com suas práticas sagradas o período junino.

No bojo das caravelas, o costume louva tório dos portugueses chegou até nós ensinando práticas sagradas como procissões, romarias, novenários e trezenários, como um devocionário que encontrou no nordeste campo fértil para sua implantação.

E vieram também as práticas advinha tórias, as crenças populares, as supestições, rituais de magia que se somando à nossa diversidade étnica, deixou marcas profundas em nossa identidade cultural, O solstício de verão europeu, em nós, é tempo de inverno, chuvas e fartura também na terra e seu cultivo.

Na composição do nosso ciclo junino, duas forças se interligam: o sagrado e o profano. Louvores aos santos, procissões, novenas e trezenas, pagamentos de promessas. Mas também herdamos crenças populares remanescentes de cultos antigos a divindades, que se cristianizaram. E como não podia deixar de ser, cantamos, dançamos e fazemos da fartura do ciclo, não só o sabor especial da mesa, mas a dança, a festa, onde estão presentes também os fogos.

Com a mesma crença que dedicamos ao “pão de santo Antonio” para que guardado junto aos nossos alimentos, não permita que nos falte comida, assim mesmo acreditamos que o pio da coruja é “agourento”.

Usamos crucifixo no pescoço, e também um “patuá” para nos livrar de “mau olhado”. Plantamos espada de São Jorge na frente da casa para nos livrar de “olho grosso”. E numa herança medieval, ainda fustigamos o corpo, em celebrações penitentes para limpar o corpo do pecado.

Dentre as crenças populares, estão as Advinhas e Simpatias, herdadas dos oráculos da Europa, antes do cristianismo, e que ainda alimenta nosso imaginário não só no ciclo junino, mas na Páscoa, e entrada de um ano novo, embora que por sua ligação com a magia, não sejam aceitas pela igreja católica.

A SIMPATIA ou magia simpática se caracteriza como um ritual que pode forçar poderes ocultos a realizar algo desejado.

Assim ela se caracteriza pela utilização de palavras e ações que levam algum desejo a se concretizar. O que desejamos pode envolver tanto pessoas como objetos através de poderes superiores. É uma magia simpática daí o seu nome.

Mas para ter segurança na sua realização, é preciso contar com dois elementos: segredo e fé. Acreditar que vai realmente acontecer o que se pede é fundamental

Fonte:
http://www.sociedadesemear.org.br/

Aglaé d’ Ávila Fontes



Aglaé d’ Ávila Fontes professora; escritora; folclorista; historiadora; uma das maiores pesquisadoras do folclore do estado de Sergipe; apresentadora e produtora de um programa na TV Caju, chamado “Andanças do Folclore Sergipano”; diretora do Centro de Criatividade de Sergipe; sócia do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe; Chegou a ser secretária de Estado 3 vezes. Integrante da Academia Sergipana de Letras. Ajudou muito a ingressar na vida artística, com sua escolinha de música, lá por volta de 1950. Ela é sem dúvidas, uma mulher de grandes talentos!

Quando criança ganhava livros de presente dos pais, o que já lhe incentivava, quanto à literatura; folclore; a cultura do povo de um modo geral.

Sua mãe levava para cantar nas igrejas católicas. Com esse incentivo a arte da música, fez um curso de educação musical na Bahia, e escrevia textos teatrais para as escolas. Isso foi o inicio para sua carreira de contadora de histórias. Talento reconhecido! Ganhadora do prêmio Contadora de Historias do Banco Real, com “O Menino que Sabia Demais e o Padre”.

Nasceu em Lagarto município do estado de Sergipe, morou em várias outras cidades devido à profissão do seu pai, que era Funcionário Federal. Mas não teve jeito, sua grande paixão mesmo era lecionar e diz, se nasce-se novamente, faria a mesma coisa, pois ser professora é o que mais gosta.

Mesmo aposentada ainda leciona, musica e teatro são os alicerces de sua vida. Grande palestrante , sempre preocupada em manter viva a cultura e tradição sergipana e conscientizar as pessoas desta importância, alerta a todos que as novas gerações tenham um referencial cultural.

Membro da Academia Sergipana de Letras.
Presidente da Comissão Sergipana de Folclore.
Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Membro do Conselho de Cultura do Estado de Sergipe.
Palestrante e Consultora em Arte-Educação.
Escritora e Pesquisadora em Cultura Popular.
Vencedora de vários prêmios literários.
Entre as diversas condecorações, Medalha Sylvio Romero, da Academia Sergipana de Letras.
Possui várias obras publicadas.

Fonte:
http://aglaefontes.blogspot.com/

Leonardo Da Vinci (Contos I)



A ÁGUA

Certo dia, um pouco de água desejou sair de seu lugar habitual, no lindo mar, e voar para o céu.
Então a água pediu ajuda ao fogo. O fogo concordou e, com seu calor, transformou a água em vapor, tornando-a mais leve que o ar.

O vapor partiu para o céu, subindo cada vez mais alto, até finalmente atingir a camada mais fria e mais rarefeita da atmosfera. Então as partículas de água, enregeladas de frio, tornaram a se unir e voltaram a ser mais pesadas que o ar. E caíram sob a forma de chuva. Não se limitaram a cair, mas jorraram como uma cascata em direção a terra.

A arrogante água foi sugada pelo solo seco e, pagando caro por sua arrogância, ficou aprisionada na terra.
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A ÁGUIA

Certo dia uma águia olhou para baixo, do alto do seu ninho, e viu uma coruja.

- Que estranho animal! – pensou consigo mesma. Certamente não se trata de um pássaro.

Movida pela curiosidade, abriu suas grandes asas e pôs-se a descer voando em círculos. Ao aproximar-se da coruja perguntou:

- Quem é você? Como é seu nome?

- Sou a coruja – respondeu o pobre pássaro em voz trêmula, tentando esconder-se atrás de um galho.

- Há, há! Como você é ridícula! – riu a águia – sempre voando em torno da árvore. Só tem olhos e penas Vamos ver – acrescentou, pousando num galho – vamos ver de perto como você é. Deixe-me ouvir sua voz. Se for tão bonita quanto sua cara vou ter que tapar os ouvidos.

Enquanto isso a águia tentava, por meio das asas, abrir caminho por entre os galhos para apanhar a coruja.

Porém um fazendeiro havia colocado, entre os galhos da árvore, diversos ramos cobertos de visgo, e também espalhara visgo nos galhos maiores.

Subitamente a águia viu-se com as asas presas à arvore, e quanto mais lutava para se desvencilhar, mais grudadas ficavam suas penas.

A coruja disse-lhe:

– Águia, daqui a pouco o fazendeiro vai chegar, apanhar você e trancá-la numa grande gaiola. Ou talvez a mate para vingar-se pelos cordeiros que comeu. Você, que passou toda a sua vida no céu, livre de qualquer perigo, tinha alguma necessidade de vir até aqui para caçoar de mim?
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A ARANHA E A ABELHA

Certo dia uma aranha encontrou um local onde havia muitas moscas. Imediatamente pôs mãos à obra, tecendo uma teia. Escolheu dois galhos como apoio e começou a trançar para lá e para cá, entre um e outro galho. Tecendo seu fio de prata, construiu sua teia. Quando terminou o trabalho escondeu-se atrás de uma folha.

A espera foi breve. Logo uma mosca curiosa viu-se presa à teia. A aranha precipitou-se e devorou a mosca.
Porém uma vespa, pousada numa flor, a tudo assistira. Imediatamente vôou para cima da aranha e furou-a com uma ferroada.
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A ARANHA E AS UVAS

Uma aranha observou durante dias a fio os movimentos dos insetos, e notou que as moscas ficavam em torno de um grande cacho de uvas muito doces.

- Já sei o que fazer – disse ela para si mesma.

Subiu para o alto da parreira e, por meio de um tênue fio, desceu até o cacho de uvas, onde instalou-se num pequenino espaço entre duas frutas.

De dentro do esconderijo começou a atacar as pobres moscas que vinham em busca de alimento. Matou muitas delas, pois nenhuma suspeitava que houvesse ali uma aranha.

Porém em breve chegou a época da colheita.

O fazendeiro foi para o campo, colheu o cacho de uvas e atirou-o para dentro de uma cesta, na qual se viu espremido junto com os outros cachos.

As uvas foram a armadilha fatal para a aranha impostora, que morreu exatamente como as moscas que enganara.
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A ARANHA E O BURACO DA FECHADURA

Após ter explorado a casa toda, por dentro e por fora, uma aranha resolveu esconder-se no buraco da fechadura.

Que esconderijo ideal! Pensou ela. Quem jamais havia de imaginar que ela estava ali? E além disso podia espiar para fora e ver tudo o que acontecia.

Ali em cima disse ela para si mesma, olhando para o alto da porta:

- Vou fazer uma teia para moscas ali embaixo. – olhando a soleira, observou: - Farei outra para besourinhos ali. Ao lado da porta, vou armar uma teiazinha para os mosquitos.

A aranha estava exultante. O buraco da fechadura proporcionava-lhe uma nova e maravilhosa sensação de segurança. Era tão estreito, escuro, e era revestido de ferro. Parecia-lhe mais inexpugnável que uma fortaleza, mais garantido que qualquer armadura.

Imersa nesses deliciosos pensamentos, a aranha ouviu o som de passos que se aproximavam. Correu de volta para o fundo de seu refúgio.

Porém a aranha esquecera-se de que o buraco da fechadura não havia sido feita para ela. Sua legítima proprietária, a chave, foi colocada na fechadura e expulsou a aranha.

Fontes:
– Covil do Orc
– Imagem = http://contosdafloresta.blogspot.com

Felliciano (Ainda Durmo)



Poesia sob o pseudônimo Felliciano, de Londrina (PR) para o I Premio Talentos de Poesia 2009

Ainda durmo meu amor
Não me acorde
Mesmo que os acordes
Da nossa canção
Toquem mais forte
Não me acorde...
Apenas me beije
E deixe
Que o sono dos sonhos
Envolva, aporte e nos reporte
Para mais uma vez amar
Não me deixe acordar...
Sinta o cheiro do amor
Misturado ao gosto e sabor
Das palavras, planos,
Desejos, loucuras e rendição
Não me acorde não...
Envolva-se em meu ser
Até que eu não saiba dizer
Quem sou eu
Quem é você
Deixe-me viver...
Os sussurros rompem as barreiras do som
Damos para o amor um novo tom
Compomos as mais lindas melodias
Dedilhadas na sintonia
Cantadas em nosso olhar....
O infinito nesse momento tem seu fim
Deixe-me continuar a dormir
Eu te peço: Não me acorde...
Até que minh’alma suporte
Saber que não te tenho mais.
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Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte III



CAPÍTULO III
INTERPRETAÇÃO DAS LENDAS
I. — Sentido profano

As lendas são sujeitas a interpretações bastante diferentes que se contradizem ou se completam. Loeffler-Delachaux (Symbolisme des contes de fées (Simbolismo dos contos de fadas, 1949) interpreta-as no sentido profano, sacro ou iniciático.

1. Teorias astrais ou naturalista

Os povos divinizaram as grandes manifestações da natureza. Se Max Müller e Bréal Mélanges de mythologie et de línguistique (Miscelânia de mitologia e lingüística), cogitam nos fenômenos solares e no combate à escuridão, Kuhn e Schwartz são de opinião de que não foram os fenômenos regulares que chocaram a imaginação mas sim os espetáculos raros e inesperados (relâmpago, trovão); é, pois, a escola meteorológica. Para Ploix (La nature des dieux - A natureza dos deuses) a luz é que é adorada e conduz ao estudo dos fenômenos crepusculares. Mannhardt encontra nas lendas explicação dos mistérios da vegetação, enquanto que Regnaud e Renel Evolution d’un mythe (Evolução de um mito) pensam no mito do fogo. Saintyves descobriu nesse mito antigas cerimônias estacionárias praticadas por ocasião do ano novo e da primavera.

Deulin em Contes de ma mere l’Oye (Contos de minha mãe gansa) refere-se a Husson para quem as sete esposas de Barba Azul tornam-se as sete auroras da semana. Deulin mostra que com um pouco de imaginação é possível provar que Virgínia é uma aurora que procura esconder-se de Paulo, que nesse caso seria o sol. Dupuis (Origine de tous les cultes - Origem de todos os cultos) mostra que Napoleão só pode existir sob a forma de um deus solar. Entretanto, prosseguindo-se o trabalho de Afanassiev Contes populaires russes (Contos populares russos), em 8 volumes, Miller (1833-1889) compara as variantes entre si.

É todavia verdade que o fetichismo foi criado para isolar essas forças invisíveis e que sua influência sobre as lendas é certa.

Os mitos meteorológicos, os mitos do fogo, da origem e da morte humana podem pois basear-se nessas criações literárias, mas outras teorias vieram modificar esses temas iniciais.

2. — Teoria mitológica

Os irmãos Grimm elevaram a criação dos contos à infância pré-histórica da pátria. Chega-se assim à escola precedente Gubernatis Mythologie Zoologique (Mitologia Zoológica), acha que esses mitos pertencem a um naturalismo infantil; dá, enfim, grande importância às formas animais e chega, com seus três livros, à tese da reencarnação: Schelling Essai sur les mythes (Ensaio sobre os mitos) (1793), vê nesses mitos a consciência individual de um povo aliada a uma significação religiosa.

3. — Teoria lingüística. Escola Filológica

Os trabalhos de Baudry, Darmesteter, Van den Heyn e Angelo de Gubernatis, são trabalhos de lingüistas. Com Max Müller esses homens estudam as lendas desde a deformação de algumas palavras que puderam provocar um obscurecimento do sentido primitivo original. Max Müller, por aproximações forçadas, procura demonstrar no sentido da tese solarista. Desta forma se Dyaus na época védica significava céu, transforma-se em Zeus. Dontenville explica assim a lenda de Gargântua. O russo Marr estudando Tristão e Isolda cria sua sessão de Semântica.

É muito possível que os povos tenham empregado termos que, no curso de suas migrações, perderam o sentido ou foram desnaturados; a lenda grega fez empréstimos da Índia e é muito provável que essa confusão tenha sido voluntária. Os filólogos, comparando as raízes das línguas entre si com as do sânscrito, propuseram sábias etimologias que foram substituídas por outras mais sábias ainda; e assim tudo encaminhou-se para o ceticismo geral.

4. — Teoria antropológica (ou geração espontânea dos assuntos)

Para Taylor, Mannhardt, Andrew Lang, Gaidoz os contos e as lendas refletem modos de pensar primitivos. Os povos civilizados herdaram esses contos e lendas do passado; são sobrevivências religiosas e culturais extremamente elementares fundadas no animismo, espiritualização dos fenômenos da natureza ambiente.

Mas, as leis do desenvolvimento da humanidade nos levaram a não mais considerar as civilizações anteriores como épocas de barbárie. O totem, objeto-tabu, a palavra misteriosa, representam valores mágicos que a escola antropológica não soube definir. Frazer, no seu Le rameau d’or (O ramo de ouro) (12 volumes, 1911-1915) afirma que a magia precede o animismo, isto é, a espiritualização da natureza; a magia é, portanto, o embrião da ciência e da religião. Essa Teoria prosetivista é combatida pelos etnógrafos soviéticos.

5. — Escola Alegórica

Creuzer vê no mito, uma alegoria moral, o símbolo de uma antiga filosofia, nascida no Oriente e divulgada na Grécia em linguagem figurada. Aí aparece novamente a opinião dos filósofos neoplatônicos da escola de Alexandria (Platão e Porfírio), Frazer: The origin of totemism (A origem do totemismo) mostra a conexão do mito com o totemismo primitivo.

6. — Teoria orientalista ou teoria dos empréstimos

O orientalista alemão Benfey, quando publicou em 1859 a coleção de contos hindus o Pantchatantra, descobriu uma extraordinária semelhança entre os contos sânscritos e os europeus.

Essas narrações, que circulavam oralmente, foram compiladas na Índia; o budismo tibetano mostrou-se particularmente ativo. Contudo, não seria possível afirmar com segurança que esses contos tenham sido criados na Índia. Bizâncio e a literatura mongólica desempenharam papel importante na exportação dessas lendas que, da Síria e da Pérsia, se infiltraram no mundo árabe; as cruzadas relataram esses contos maravilhosos e a Espanha, com as invasões sucessivas, usufruiu todo o seu encanto.

Pictet: Origines indo-européennes (Origens indo-européias) (1858) apoia Benfey e mostra a importância da cultura dos árias primitivos. Esses trabalhos foram continuados por Cosquin, Gaston Paris, Charles Bédier, Gédéon, Huet, Bouslaiev e Afanassiev.

7. — Teoria geográfico-histórica ou Escola Finesa

Anderson e H. Gaidoz contribuíram com um exame sistemático e escrupuloso das variantes, com diagramas cronológicos e mapas geográficos dos itinerários percorridos pelos assuntos. O catálogo dos contos de Aarne (1867-1925) é arbitrário na sua divisão, mas facilitou a tarefa de Andreiev (1929), que adaptou esse livro ao folclore russo. Não se desvendando a forma primitiva, Sidow tentou comparar os contos entre si.

8. — Escola poética-histórica. Teoria comparativista

Criada por Vassélovski (Index bibliographique, 1921), esta teoria trata da influência oral e escrita da poesia e depois do papel da religião cristã. E a procura do gênero poético (epopéia, poesia, lírica, drama), das variedades, das formas. Vsevolod Miller, abandonando a Escola dos Empréstimos procura analisar os costumes nas canções de gesta: Études de la littérature populaire russe (Estudos sobre a literatura popular russa); a análise crítica foi a obra de Orestes Miller. Essas aproximações contraditórias, essas comparações arbitrárias, foram postas em evidência por Skafttymov: Poétique et Genèse dos Bylines (Poética e Gênese das Bilinas, 1924). A escola russa moderna preocupa-se com o meio (folclore dos camponeses e dos operários), que traduz a vida do povo com Sokolov: Le folklore russe (O folclore russo, 1945) e Pryjov.

9. — Teoria psicológica. Escola de Freud

Wundt: Psychologie des peuples (Psicologia dos povos) analisa os mitos com as condições psicológicas do povo (estados de sonho, alucinação mórbida). Laistner, von der Leyen não conseguem dar grande importância à sua teoria.

Freud, com seus alunos Abraham, Rank, Riklin, vê nos mitos a expressão de desejos persistentes da mesma natureza dos que se manifestam nos sonhos. Quanto mais a censura social se desenvolve, mais a civilização se complica. Freud mostra ainda que “as aspirações fundamentais da humanidade, que encontram satisfação nas diferentes crenças religiosas e os vários estados emocionais têm como fonte conflitos intrapsíquicos que, do ponto de vista ontogênico remontam à nossa primeira infância e, do ponto de vista filogênico, aos nossos primeiros ancestrais humanos.”

A escola austríaca, porém, abusou demasiadamente dos fenômenos de ordem sexual e Regnaud: Le Rig-Veda et les origines de la mythologie (O Rig-Veda e as origens da mitologia) é de opinião que o cérebro humano não evoluiu há milhares de anos: Renel, Evolution du mythe (Evolução do mito).

Loeffler-Delachaux: Symbolisme des légendes (Simbolismo das lendas, 1950) pensa num fascínio curativo, num poder terapêutico para as doenças da alma. Os contos servem para manter o equilíbrio psicológico e é assim que os Faraós enganados por suas esposas, as ascensões milagrosas nas situações inesperadas, as jovens grávidas milagrosamente fecundadas pelo deus Nauli ou Júpiter e todas essas ficções nasceram de circunstâncias precisas. Essas narrações imaginárias são pois a compensação dos nossos sentimentos de inferioridade e o subconsciente acrescenta-lhes uma “supercompensação”.

10. — Origem histórica. Escola Evemérica

Schelling publica em 1793 um ensaio sobre as lendas históricas. O cerne do mito contém a verdade sob uma forma histórica. Spencer crê que o culto dos antepassados origina-se nas religiões. A escola Evemérica, século IV a. C. já pretendia serem os mitos provenientes de acontecimentos históricos e que seus personagens reais haviam sido elevados à dignidade de deuses. Essa teoria foi retomada por Hoffmann.

Realmente, nossos heróis épicos são a combinação de diversos personagens históricos e se nossas canções de gestas comportam inexatidões, esses protagonistas convergem para a individualidade do herói.
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Parte I – http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/10/jean-pierre-bayard-historia-das-lendas.html
Parte II – http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/10/jean-pierre-bayard-historia-das-lendas_31.html
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

Maria José Lindgren Alves (Vida Mansa)

Lavrador de Café (Cândido Portinari)
(Uma das Crônicas vencedoras do 4º. Concurso Literário Cidade de Maringá - 2008)
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Plantar, regar, colher, palavras mágicas de efeito esperado. Quando chove e não há seca, certo. Não foi o que sempre aconteceu com Tio Maneco. Só que o homem, apegado à terra, viveu fincado no pedaço de chão da família até à morte. Gente danada essa que fica. Gosto pelo cheiro da terra mesmo esturricada de seca, pela vida de vaca, galinha, porco e olhe lá. Sem jogo de bicho.

Nos anos 40, 50, era assim. Ele e mais o vizinho de mais perto, que nem “cumpade” era. Dois homens e nenhuma mulher. Quase não falavam, nem se falavam. Pitavam cachimbo tosco ou cigarro de palha na porta de casa, depois da lida do dia. Na casa, nem rádio. Novidade nenhuma, salvo alguém morto, trazido em boca de vizinho de léguas adiante.

Na paz do Senhor, nem Nele precisavam pensar muito. Rotina de sempre: ao primeiro raio de sol, levantar, depois, café com broa e pé na estrada até a plantação de milho. Pedacinho de terra que nem dele era. Tio Maneco não tinha bens. A casa era de sapé e dava pro gasto. A do patrão, boa moradia de fazenda. Era natural, era Dono. Com terra a valer, o patrão tinha plantação de cana, o que viria a ser a principal depois, no Norte Fluminense. E tratava seus peões ali, na dureza. Tio Maneco não reclamava de nada. Cordato por natureza, aceitava o que lhe dessem para não morrer de fome. Doença cuidava com as ervas do mato e pronto.

Um dia, a confusão quase o atinge. Choveu demais e a plantação acabou tal e qual na seca. Tio Maneco viveu “de teimoso”. Passou pela chuvarada como quem sai debaixo de chuva fininha. Nem bola.

Aos oitenta anos, apareceu numa reportagem da tevê do governo sobre coisas do Brasil. Queriam mostrar aos da cidade como e o quanto se vive no interior. Assustado, Tio Maneco foi respondendo lacônico, meio desconfiado daquela gente da cidade. – O senhor gosta daqui? – Gosto? Quer mudar pra cidade? – Não. O senhor sabe que vão trazer máquinas pra cá? – Não. O senhor não tem medo de ficar sem sua roça? – Não. Que tal dar um sorriso pra o pessoal que vai ver o senhor na televisão?

Aí foi que Tio Maneco encrencou. Tinha poucos dentes na parte de cima da arcada dentária e nenhum em baixo. Apertou os lábios, não sorriu. E é claro, estragou a reportagem do homem feliz do interior.
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Maria Lindgren
Rio de Janeiro/RJ
Sou uma mulher, que atura a terceira idade sem gostar. Ensinei pouca coisa durante muitos anos. Escrevo muitos escritos para escassa publicação em papel e abundante na internet, o que é absolutamente sinal de minha modernice. Nada me apavora a não ser a violência descarada do mundo de hoje, a solidão e alguns quilos a mais, talvez, algumas rugas. Preciso de gente a meu redor, pois viver só é para macambúzios e eu gosto de gargalhar com os outros. Leio e escrevo, mas necessito de ginástica, ar, sol, brisa fresca, cinema, jantar fora e uma ou outra festinha...Adoro meus amigos virtuais-reais e os reais-reais. Fazem-me falta, como a família.

Fontes:
http://odiariomaringa.com.br/noticia/219511
http://mariajoselindgren.blogspot.com/

Palavras e Expressões mais Usuais do Latim e de outras linguas (Letra R)


rapere in jus
Latim: Conduzir a juízo.

rapel de ton
Francês: Chamada de cor. Retoques distribuídos em um quadro para salientar a tonalidade principal dele.

rari nantes in gurgite vasto
Latim: Poucos nadando no imenso abismo. Verso de Virgílio (Eneida, I, 118), que descreve a situação de alguns náufragos. Aplica-se diversamente no sentido figurado, citando-se, muitas vezes, apenas as duas primeiras palavras.

ratio juris
Latim: Razão do direito. Direito: Motivo que o hermeneuta encontra no direito vigente para justificar a interpretação ou solução que dá a uma regra jurídica ou a certo caso concreto.

ratio legis
Latim: A razão da lei. Direito: Espírito que inspira a lei e deve ser objeto de investigação dos intérpretes e comentadores que procuram esclarecer o seu texto.

ratio summa
Latim: Razão superior. Direito: Espírito de eqüidade que deve determinar a escolha da solução mais benigna, dentre as duas resultantes da interpretação estrita de determinada regra jurídica.

ratione materiae
Latim: Em razão da matéria. Direito: Razão resultante da matéria.

ratione officii
Latim: Direito: Em razão do ofício.

regis ad exemplar
Latim: A exemplo do rei. Citada para satirizar aqueles que pautam seus atos pelos do rei ou do chefe.

relicta non bene parmula
Latim: Abandonado vergonhosamente o escudo. Refere-se Horácio à fuga por ele empreendida na batalha de Filipos (Odes, II, 7-10).

rempli de soi-même
Francês: Cheio de si; convencido.

requiescat in pace
Latim: Descanse em paz. Prece recitada no ofício dos mortos e muitas vezes gravada em pedras tumulares.

res integra
Latim: Direito: A coisa inteira.

res inter alios judicata aliis neque nocet neque prodest
Latim: Direito: A coisa julgada não pode aproveitar nem prejudicar senão às próprias partes.

res judicata est quae finem controversiarum pronuntiatione judicis accipit
Latim: Direito: Coisa julgada é a que, pelo pronunciamento do juiz, põe fim às controvérsias.

res judicata pro veritate habetur
Latim: A coisa julgada é tida por verdade. Axioma jurídico, segundo o qual aquilo que foi objeto de julgamento definitivo não pode ser novamente submetido a discussão.

res non verba
Latim: Fatos e não palavras. Citada quando se pleiteia a ação imediata e não promessas.

res nullius
Latim: Direito: Coisa de ninguém, isto é, que a ninguém pertence.

res sacra miser
Latim: O infeliz é coisa sagrada. Palavras de Sêneca que patenteiam o seu respeito para com os infelizes.

restons telles que Dieu nous a faites
Francês: Fiquemos como Deus nos fez. Máxima que serviu de base a campanha das mulheres francesas contra o uso do espartilho.

rira mieux qui rira le dernier
Francês: Ri melhor quem ri por último.

risum teneatis?
Latim: Sofrereis o riso? Pergunta feita por Horácio, após descrever um quadro cuja figura se compõe de partes disparatadas (Arte Poética, 5).

rudis indigestaque moles
Latim: Massa confusa e informe. É como Ovídio (Metamorfoses I, 7) descreve a matéria caótica.

rule, Britannia
Inglês: Governa, Inglaterra. Palavras iniciais de uma canção patriótica inglesa que exalta o domínio britânico nos mares.
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LETRA A http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do.html
LETRA B http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do_07.html
LETRA C http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do_21.html
LETRA D http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/palavras-e-expresses-mais-usuais-do.html
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LETRA P http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/10/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do.html
LETRA Q http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/10/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do_17.html

Fonte:
Por Tras das Letras
http://www.portrasdasletras.com.br

Hans Christian Andersen (O Duende da Mercearia)


Era uma vez um estudante, um autêntico estudante; vivia num sótão e não possuía nada. E era uma vez um merceeiro, um autêntico merceeiro; vivia no rés-do-chão e era dono do prédio inteiro. E foi por isso que o duende decidiu morar com o merceeiro. Além disso, todos os Natais recebia uma tigela de papa de aveia com um grande pedaço de manteiga lá dentro. O merceeiro tinha posses para isso, de maneira que o duende continuava a morar na loja. Há por aqui algures uma moral, se a procurarem bem.

Uma noite, o estudante entrou na mercearia pela porta das traseiras para comprar um pedaço de queijo e velas. Fez as compras e depois pagou, e o merceeiro e a mulher acenaram-lhe com a cabeça e disseram «boa noite». A mulher, contudo, era bem capaz de fazer mais do que acenar; era muito faladora — falava, falava, falava. Tinha o que se chama o hábito de falar pelos cotovelos, disso não havia dúvida. O estudante também fez um aceno — e foi nessa altura que viu qualquer coisa escrita no papel que embrulhava o queijo e parou para ler. Era uma página de um velho livro de poemas, uma página que nunca devia ter sido arrancada.

— Tenho aqui mais desse livro, se quiser — disse o merceeiro. — Dei a uma velhota alguns grãos de café por ele. Pode ficar com o resto por seis dinheiros, se estiver interessado.

— Obrigado — respondeu o estudante. — Dê-mo em vez do queijo. Passo bem só com pão. É uma pena usar um livro destes para papel de embrulho! O senhor é muito boa pessoa e bastante prático, mas percebe tanto de poesia como aquela banheira ali ao canto.

Ora isto foi uma frase indelicada, especialmente aquela parte respeitante à banheira, mas o merceeiro riu-se, e o estudante também; afinal de contas, fora apenas uma brincadeira. Mas o duende ficou aborrecido por alguém se atrever a falar assim com o merceeiro — ainda por cima o senhorio, uma pessoa importante que era dono do prédio todo e vendia manteiga da melhor qualidade.

Nessa noite, quando a loja estava fechada e toda a gente, exceto o estudante, estava na cama, o duende entrou no quarto do merceeiro em bicos de pés e roubou à mulher do merceeiro o dom de falar pelos cotovelos, porque ela não precisava dele enquanto dormia. A seguir, fez com que cada objeto em que tocava ficasse capaz de exprimir as suas opiniões tão bem como a mulher do merceeiro. Mas só podia falar um de cada vez, o que era uma bênção, se não desatavam todos a falar ao mesmo tempo.

Primeiro, o duende deu o dom de falar pelos cotovelos à banheira onde se guardavam os jornais velhos.

— É mesmo verdade que não percebes nada de poesia? — perguntou.

— Claro que percebo! — respondeu a banheira. — A poesia é uma coisa que vem no fim das folhas dos jornais e que as pessoas costumam recortar. Acho até que tenho mais poesia dentro de mim do que o estudante; e, apesar disso, sou apenas uma humilde banheira, comparada com o merceeiro.

Depois, o duende deu o dom de falar pelos cotovelos ao moinho de café. Meu Deus, que confusão! Depois, deu-o ao pote de manteiga, e depois à caixa registadora. Todos eram da mesma opinião da banheira e as opiniões da maioria têm de ser respeitadas.

— Agora posso pôr o estudante no seu lugar! — exclamou o duende.

E lá foi em bicos de pés, pela escada das traseiras acima, até ao sótão onde morava o estudante. Havia luz lá dentro. O duende espreitou pelo buraco da fechadura e viu o estudante a ler o velho livro da loja.

Que grande claridade havia no quarto! Do livro saía um brilhante raio de luz, que se tornou num tronco de árvore, de uma nobre árvore que subiu e espalhou os seus ramos por cima do estudante. As folhas eram novas e verdes, e cada flor tinha o rosto de uma linda rapariga, algumas com olhos escuros e misteriosos e outras com olhos azuis cintilantes. Cada fruto era uma estrela luminosa e o ar estava impregnado de um belo som de canções.

O duende nunca tinha visto nem ouvido falar de tais maravilhas; e muito menos seria capaz de as imaginar. Portanto, ficou ali à porta, em bicos de pés, a espreitar, de olhos muito abertos, até que a luz se apagou. O estudante devia ter assoprado a vela e ido para a cama — mas o duende continuava sem ser capaz de arredar pé. Parecia-lhe ouvir a linda música, que ainda ecoava no ar, ajudando o estudante a adormecer.

— Isto custa a crer — murmurou o duende para consigo. — Nunca esperei nada do gênero. Acho que vou ficar no sótão com o estudante. — Depois pensou um bocado e suspirou: — Tenho de ser sensato; o estudante não tem papas de aveia.

E portanto, é claro, voltou para baixo, para a mercearia. Ainda bem que o fez, porque a banheira tinha quase esgotado o dom de falar pelos cotovelos, contando todas as notícias dos jornais que estavam guardados dentro dela. Tinha falado para um lado e estava prestes a virar-se para o outro e a continuar quando o duende devolveu o dom de falar pelos cotovelos à mulher do merceeiro adormecida. E, a partir dessa altura, todas as coisas da loja, desde a caixa registadora até à lenha, seguiram as opiniões da banheira; tinham-lhe tanto respeito que, depois daquilo, quando o merceeiro lia nos jornais críticas de peças ou de livros, pensavam que ele tinha aprendido tudo com a banheira.

Mas o duende já não aguentava ficar ali sentado a ouvir toda a sabedoria e bom senso pronunciados na loja; assim que via luz através das frestas da porta do sótão, parecia ser atraído para lá por cordelinhos, e tinha de subir a escada e pôr-se a espreitar pelo buraco da fechadura. Sempre que o fazia, sentia-se invadido por uma sensação de indizível grandeza — a espécie de sensação que se tem quando se vê o mar encapelado com ondas tão fortes que o próprio Deus podia vir montado nelas! Que maravilha seria sentar-se debaixo da árvore com o estudante! Mas era impossível.

Entretanto, contentava-se com o buraco da fechadura. Olhava através dele todas as noites, ali parado no patamar deserto, mesmo quando o vento do Outono começou a soprar pela clarabóia, fazendo-o quase morrer de frio. Mas ele nem o sentia até a luz se apagar no quartinho do sótão e a música se calar a pouco e pouco, ficando apenas o uivar do vento. Brr! Então, sentia como estava gelado e descia sem fazer barulho para o seu canto secreto da loja, quente e confortável. Em breve viria a tigela de papas de aveia do Natal, com o seu grande pedaço de manteiga. Sim, o merceeiro era a escolha certa.

Mas uma noite, já bem tarde, o duende acordou com uma grande agitação à sua volta. Estavam pessoas a bater nas persianas, o guarda-noturno apitava: havia fogo, e toda a rua parecia estar em chamas. Que casa é que estava a arder? Aquela ou a do lado? Onde era o fogo? Que gritos! Que pânico! Que agitação! A mulher do merceeiro estava tão desorientada que tirou os brincos de ouro das orelhas e meteu-os num bolso, para salvar pelo menos alguma coisa… O merceeiro foi a correr buscar os seus valores, a criadinha foi buscar o seu xale de seda que tinha comprado com o ordenado. Toda a gente foi a correr buscar aquilo a que dava mais valor.

E o duende fez o mesmo. Num pulo ou dois subiu a escada e entrou no quarto do estudante, que estava calmamente à janela, vendo o incêndio na casa em frente. O duende pegou no livro maravilhoso, que estava em cima da mesa, meteu-o dentro do boné vermelho e agarrou-se a ele com os dois bracinhos. A coisa mais preciosa da casa estava salva!

Depois, foi a correr para cima do telhado, mesmo para o alto da chaminé, e ficou ali sentado, iluminado pelas chamas da casa a arder do outro lado da rua, sempre firmemente agarrado ao boné vermelho com o tesouro lá dentro.

Agora sabia para onde o seu coração o puxava: estudante?, merceeiro? — a escolha era clara.

Mas, quando o fogo ficou extinto e o duende já tinha tido tempo para pensar com mais calma, bem…

— Divido o tempo entre eles — decidiu. — Não sou capaz de abandonar o merceeiro, por causa das papas de aveia.

Mesmo coisa de ser humano, francamente! Também nós gostamos de nos dar bem com o merceeiro por causa das papas de aveia.

Fonte:
ANDERSEN, Hans Christian. Historias do Cisne. Companhia das Letrinhas.

José Feldman (Paraná em Trovas)



1
Numa tarde tu chegastes,
viestes bem de mansinho.
Meu coração envolvestes
no calor de teu carinho.

2
Doce flor que desabrocha
Perfumando seu cantinho
Envolvendo toda rocha
Com doçura e carinho.

3
Vivi em busca de carinho
Em castelos de ilusão
Tanto tempo estou sozinho
Quem me aquece é a solidão.

4
Uma chave carregamos
Porta de um mundo melhor
Entretanto não largamos
A muleta de um bem pior.

5
Música na madrugada
Chovia em meu coração
Ao saber que minha amada
Perdeu-se numa canção…

6
Num retrato amarelado,
a saudade em mim se deu.
Ontem tinha meu pai ao lado
Hoje, sem ele…o pai sou eu.

7
Nas minhas tardes de criança
Brincadeiras de corrida.
Hoje danço em outra dança,
Danço no circo da vida.

8
Tanto mal nós infligimos
Em todos que bem nos queira,
E o perdão que lhes pedimos
É uma nuvem passageira.

9
Tanta gente só num canto
Perdidos no desamor
Contendo em si tanto encanto
No coração de um sofredor.

10
Tanta gente em si perdida
Entre sombras se escondendo
Cada dia é outra vida
Em disfarces vai morrendo…

11
Ah! Nos meus tempos de criança
Brincadeiras sem cansar.
Foi-se o tempo de balança
E fazer castelos no ar.

12
No teu corpo perfumado,
No brilho de teu olhar
Tem um castelo encantado,
Castelo do eterno amar.

13
No imenso palco, o amor
Destaca nos jardins meus
Um carvalho com fulgor
Na ponte entre mim e Deus…

14
Ontem plantaste uma flor
Na rocha da solidão.
Hoje dou-te com amor
Um postal do coração.

15
Caminhei por esta rua
Procurando o teu calor.
Ontem te prometi a lua
Hoje te prometo meu amor.

16
Tantos passos caminhei
Por labirintos incertos
Hoje nas trovas achei
Como vencer os desertos.

17
Jardineira de meu amor
Regaste-me em seus canteiros.
Hoje dou-te o meu calor
Na alameda de pinheiros…

18
Ontem…Florestas…Encanto…
Flores a desabrochar.
Hoje pinheiros em pranto
Um grito parado no ar.

19
Vejo o mar beijando a areia
No raiar de um novo dia
Ouço o canto da sereia
Com promessas de alegria…

20
Meu coração em pedaços
Tinha um céu tão estrelado
A esperança em teus abraços
E brisa de apaixonado.

21
Quando se faz a tolice
De entregar-se na paixão
Vive-se tanta meiguice
Mas, no fim… só decepção!
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Isaac Asimov (Uma Noite de Música)



Tenho um amigo que insinua, às vezes, que é capaz de conjurar espíritos do além.

Ou pelo menos um espírito. Um espírito pequeno, com poderes limitados. Na verdade, ele só fala a respeito depois do quarto uísque com soda. É um equilíbrio delicado: com três drinques, não sabe nada a respeito de espíritos; com cinco ele pega no sono.

Naquela noite, achei que ele estava bem no ponto, de modo que puxei o assunto:

- Você se lembra daquele espírito seu amigo, George?

- Hein? – disse George, olhando para o seu drinque como se não soubesse do que eu estava falando.

- Aquele pequeno espírito de dois centímetros de altura, que uma vez você disse que era capaz de chamar na hora que quisesse. Aquele que possui poderes paranormais.

- Ah! – exclamou George. – Está falando de Azazel! é o nome dele, é claro. Não seria capaz de pronunciar o nome verdadeiro. É por isso que o chamo de Azazel. Sim, eu me lembro.

- Você recorre muito a ele?

- Não. É perigoso. Muito perigoso. Há sempre a tentação de brincar com o poder. Sou muito cauteloso com isso.

- Sabe, tenho altos padrões morais. Foi por isso que me senti na obrigação de ajudar um amigo em dificuldades. Foi grande erro! Não gosto nem de pensar…

- Que aconteceu?

- Acho que estou mesmo precisando desabafar cora alguém – disse George, pensativo. – Talvez isso faça com que eu me sinta melhor…

Eu era bem mais moço [disse George], e naquele tempo as mulheres eram uma parte importante da vida dos homens. Parece tolice agora, mas me lembro nitidamente de pensar, naquela época, que não me interessaria por qualquer mulher.

Hoje em dia, a gente fica com que a que aparecer, não faz muita diferença, mas naquele tempo…

Eu tinha um amigo chamado Mortenson. Andrew Mortenson. Acho que você não o conhece. Há anos que não o vejo.

Acontece que Mortenson estava caído por uma mulher, uma mulher em particular. Ela era um anjo, dizia meu amigo. Não podia viver sem ela. Era um ser único no universo. Você sabe como falam as pessoas apaixonadas.

O problema é que ela o havia deixado, e de uma forma particularmente cruel e humilhante. Começara um namoro com outro homem bem na frente dele, estalando os dedos na cara dele e rindo impiedosamente das lágrimas dele.

Não estou falando de forma literal. Estou apenas tentando transmitir a impressão que ele me causou. Estava aqui sentado, bebendo comigo, neste mesmo bar. Fiquei com muita pena e disse para ele:

- Sinto muito, Mortenson, mas você não deve se deixar abalar desse jeito. Quando puder pensar com clareza, verá que ela é apenas uma mulher. Se olhar para a calçada, verá centenas como ela.

Ele protestou, com amargura:

- De agora em diante, meu amigo, não quero saber mais de mulheres…, com exceção, é claro, da minha esposa, que de vez em quando não consigo evitar. Só que eu gostaria de fazer alguma coisa para ela.

- Para sua mulher? – perguntei.

- Não, não, por que eu estaria querendo fazer alguma coisa para minha esposa? Estou falando daquela mulher que me tratou de forma tão impiedosa.

- O que você faria com ela?

- Sei lá…

- Talvez eu esteja em condições de ajudá-lo – disse eu, ainda com pena do meu amigo. – Posso recorrer a um espírito com poderes extraordinários. Um espírito pequeno, é claro – mostrei-lhe o polegar e indicador, separados por uma distância de uns dois centímetros, para ter certeza de que estava me entendendo -, que também tem suas limitações.

Contei-lhe a respeito de Azazel e ele, é claro, acreditou. Já reparei que quando conto uma história, todos acreditam em mim. Agora quando você conta uma história, amigo velho, o ar de incredulidade que paira sobre a sala é de dar gosto. Nada como uma reputação de probidade e um ar de decência.

Quando lhe contei sobre Azazel, seus olhos brilharam. Perguntou-me se ele poderia fazer alguma coisa para a ex-namorada.

- Depende do que for, amigo velho. Espero que não esteja pensando em algo como fazê-la cheirar mal ou cuspir um sapo toda vez que tentar falar.

- Claro que não! – protestou, indignado. – Quem pensa que sou? Ela me deu dois anos de felicidade e quero recompensá-la. Você disse que os poderes do seu espírito são limitados?

- Ele é deste tamanhinho – disse eu, mostrando de novo o polegar e o indicador.

- Poderia dar a ela uma voz perfeita? Nem que fosse temporariamente? Nem que fosse para uma única apresentação?

- Vou perguntar a ele.

A proposta de Mortenson parecia muito cavalheiresca. Sua ex-namorada cantava na igreja. Naquela época, eu tinha um bom ouvido e costumava freqüentar a mesma igreja (mantendo distância da caixa de oferendas, é claro). Gostava de ouvi-la cantar e acho que os outros fiéis também. Talvez a sua conduta moral não estivesse de acordo com o ambiente, mas Mortenson me explicou que, no caso de sopranos, eles estavam dispostos a ser bastante compreensivos.

De modo que consultei Azazel. Estava ansioso para ajudar. Nada daquelas bobagens de exigir minha alma em troca. Lembro-me de que uma vez perguntei a Azazel se ele queria minha alma e ele me perguntou o que era alma. Não soube o que responder. Acontece que ele é um ser insignificante em seu próprio universo e se sente muito importante podendo fazer coisas grandiosas no nosso universo. Ele gosta de ajudar.

Azazel me disse que poderia fazer com que ela cantasse com perfeição durante três horas. Contei a Mortenson, e ele me disse que estava ótimo. Escolhemos uma noite em que ela estaria cantando Bach, Haendel ou outro daqueles velhos batucadores de piano, e daria um solo longo e difícil.

Mortenson foi à igreja naquela noite e, naturalmente, eu fui também. Sentia-me responsável pelo que estava para acontecer e achei que era melhor ver a situação de perto.

Mortenson me disse, em tom sombrio:

- Assisti aos ensaios. Ela estava cantando da mesma maneira que antes. Você sabe, como se tivesse um rabo e estivessem pisando nele.

Não era assim que costumava descrever a voz da moça. A música das esferas, era como se referira a ela em várias ocasiões. Daí para mais. Naturalmente, ele tinha sido passado para trás, o que pode distorcer o senso crítico de um homem.

Olhei-o com ar de censura.

- Isso não é jeito de falar de uma mulher a quem você está prestes a oferecer um grande presente.

- Aí é que está. Quero que a voz dela seja perfeita. Simplesmente perfeita. E agora compreendo, agora que meus olhos estão livres do manto diáfano do amor que os cobria, que a voz dela está longe da perfeição. Acha que seu amigo pode fazer isso para mim?

- A mudança vai ocorrer exatamente às 8:15 da noite. – Senti uma ponta de suspeita. – Você não estava pretendendo usar a perfeição no ensaio para depois desapontar a audiência?

- De jeito nenhum – disse ele.

A coisa começou antes da hora, e quando ela se levantou para cantar, toda vestida de branco, eram 8:14 pelo meu velho relógio de bolso, que nunca está errado mais que dois segundos. Ela não era um daqueles sopranos raquíticos; pelo contrário, tinha um físico avantajado, com muito espaço interno para conseguir aquele tipo de ressonância que se torna necessário para sustentar uma nota aguda sem se deixar abafar pela orquestra. Quando inspirou profundamente para dar o primeiro agudo, pude ver o que Mortenson via nela, mesmo descontando as várias camadas de tecido.

Ela começou a cantar normalmente, mas, exatamente às 8:15, foi como se uma segunda voz tivesse entrado em cena. Vi quando leve um sobressalto, como se não acreditasse no que estava acontecendo; a mão, que estava na altura do diafragma, começou a tremer.

A voz aumentou de volume. Era como se tivesse se transformado em um órgão. As notas eram perfeitas, límpidas, irretocáveis. Diante delas, todas as notas anteriores pareciam imitações grosseiras.

Cada nota era emitida com o vibrato correto, se é esta a palavra, aumentando ou diminuindo de intensidade com um controle perfeito da emissão.

E ela melhorava a cada nota. O organista não estava olhando mais para a partitura, e sim para ela, e não posso jurar, mas acho que parou de tocar. Mesmo que estivesse tocando, ninguém notaria. Ninguém ouviria nenhum outro som enquanto ela estivesse cantando.

O olhar de surpresa desapareceu do rosto da moça e foi substituído por uma expressão de júbilo. Ela também pôs de lado a partitura que estava segurando; não precisava mais dela. Cantava sem nenhum esforço, sem pensar no que estava fazendo. O maestro estava paralisado, e os membros do coro pareciam atônitos.

Afinal, o solo acabou e o coro começou a cantar de forma tímida, titubeante, como se estivessem com vergonha de que suas vozes fossem ouvidas na mesma igreja e na mesma noite.

O resto do programa foi todo dela. Quando cantava, era a única a ser ouvida, mesmo que o coro e a orquestra a estivessem acompanhando. Quando calava, era como se estivessemos no escuro e não pudéssemos suportar a ausência da luz.

E quando a audição terminou… eu sei que não é costume aplaudir na igreja, mas todo mundo bateu palmas. Todos se puseram de pé como se fossem marionetes e aplaudiram freneticamente. Era evidente que continuariam aplaudindo até que ela cantasse de novo.

Ela cantou de novo; desta vez, sozinha, acompanhada apenas pelo órgão e iluminada pelo projetor de luz. O coro tinha desaparecido.

Cantava sem nenhum esforço. Era impressionante. Tento observar sua respiração, surpreendê-la tomando fôlego, descobrir quanto tempo conseguiria sustentar uma nota a todo volume com apenas um par de pulmões para fornecer o ar.

Mas não podia durar para sempre, e não durou. Até os aplausos cessaram. Só então me dei conta de que, ao meu lado, Mortenson parecia estar em transe, com o olhos fixos, todo o seu ser concentrado no sentido da audição. Só então comecei a compreender o que havia acontecido.

Afinal de contas, sou uma pessoa reta, sem nenhuma malícia, de modo que posso ser desculpado por não perceber qual era a intenção real de meu amigo. Você, por outro lado, um tipo tão tortuoso que é capaz de subir uma escada em espiral sem virar o corpo, já deve saber há muito tempo o que ele pretendia.

A ex-namorada havia cantado com perfeição… mas nunca mais seria capaz de repetir a façanha.

Era como se fosse cega de nascença e de repente, por apenas três horas, fosse capaz de ver. Ver tudo que existe para ver, todas as cores, formas e maravilhas que nos cercam e que não nos despertam a atenção porque já estamos acostumados. Suponha que você pudesse ver tudo que existe durante três horas… e depois ficasse cego outra vez!

É relativamente fácil suportar a cegueira se você nunca enxergou. Mas saber por alguns instantes o que é ver e depois ficar cego de novo? Ninguém suportaria isso.

Aquela mulher nunca mais tornou a cantar, naturalmente. Mas isso é apenas parte da história. A tragédia real foi para nós, para a platéia.

Tivemos uma música perfeita durante três horas. Uma música perfeita. Acha que desse dia em diante podemos nos contentar com menos que isso?

Até hoje, meus ouvidos se recusam a ouvir música. Recentemente, fui a um desses festivais de rock, que estão tão na moda, só para experimentar. Você não vai acreditar, mas não consegui distinguir uma nota musical. Para mira, era apenas ruído.

Meu único consolo é que Mortenson, que escutou com mais ansiedade e concentração do que todo mundo, foi a pessoa mais atingida da platéia. Ele passa o tempo todo usando tampões nos ouvidos. Qualquer som o deixa nervoso.

Bem feito!

Fontes:
ASIMOV, Isaac. Azazel. RJ: Record, 1988
Imagem = http://besalielmania.zip.net

Paulo Monteiro (A Trova no Espiríto Santo – Parte X, final)

Água Doce do Norte, ES
SILVANO THOMES

Silvano César Thomes nasceu no dia 24 de agosto de 1964, em Cariacica, Espírito Santo. Reside em Vila Velha. É estudante, tendo sido revelado para a trova com o CTC.

Adeus, escola querida,
eu digo com muito amor;
nesta hora de despedida
enalteço o Seu valor.

Vitória, és um encanto
e cidade de esplendor!
Presépio maravilhoso
que eu amo com muito ardor!

SOLIMAR DE OLIVEIRA

Mineiro de Juiz de Fora e filho de poeta, Solimar Braga de Oliveira, nasceu no dia 5 de agosto de 1913. Desde menino reside no Espírito Santo. Pertence a diversas entidades culturais do país. É um dos melhores trovadores e sonetistas do Espírito Santo. Jornalista e funcionário público. Há muitos anos vem divulgando a trova no Estado em que reside. Sua produção literária é vasta e valiosa.

Anda a honra tão sem jeito,
neste mundo camuflada,
que, agora, qualquer sujeito
a exibe como fachada!

As pessoas geralmente
deixam seu rastro no chão;
- o teu rastro unicamente
ficou no meu coração...

Na velhice a gente vela,
talvez pensando, acordado:
- a vida não era aquela
que eu esbanjei no passado...

As redondilhas que amamos,
e têm realce e frescor,
são sempre aquelas que armamos
com o cimento do amor...

Chegando ao fim da jornada,
sem passado e sem futuro,
no presente encontro o nada
porque nada mais procuro...

A verdade seja dita
numa trova sem valor:
- em cada mulher bonita
se encontra um verso de amor.

Conhecerás pelos frutos
as plantas, boas ou más:
- vê que os homens dissolutos
não darão frutos de paz...

Meu destino nesta vida
há de sempre ser assim:
- sempre a lembrar-te, querida,
sempre a fugires de mim...

Na vida, oceano inclemente,
de engano e tantos escolhos,
navega a infância inocente
tendo a esperança nos olhos.

Cultiva, amigo, a bondade,
E algum dia entenderás
que a maior felicidade
está no bem que se faz...

Tudo ilude, tudo mente,
na vida cheia de escolhos:
muita gente há descontente
com um sorriso nos olhos...

Eu levo a vida cismando
no tempo todo perdido
do tempo em que andei sonhando
um tempo nunca vivido.

Uma verdade parece
muita gente definir:
- quem muito sobe se esquece
que também pode cair...

Tenho o coração magoado,
não que me julgue infeliz,
mas por nunca ter amado
como devia e não quis...

VALSEMA RODRIGUES DA COSTA

Nascida em Sacramento, Minas Gerais, no dia 5 de novembro de 1943, Valsema Rodrigues da Costa é professora, especialista em musicaterapia. Reside em Vila Velha e tem desenvolvido trabalhos de divulgação e prática da trova entre estudantes daquela cidade. Tem duas filhas pequenas que já fazem trovas.

Minha vida, nossa vida...
oh, meu Deus! que confusão!
Todo mundo na cabeça,
só você no coração!

O mundo está sempre em guerra,
mas todos querem a paz.
Se a vida faz nossa terra,
a morte... o que ela faz?

VICENTE VASCONCELOS

Nascido em Campos, Rio de Janeiro, no dia 29 de maio de 1905, o poeta e trovador Vicente Vasconcelos, que também usa o pseudônimo De Vivas, reside há muito tempo no Espírito Santo, onde publicou diversos trabalhos em prosa e verso. Magistrado, foi desde Promotor de Justiça até Presidente do Tribunal de Justiça do Estado.

Mandam princípios gerais,
para grandes e pequenos:
- dar menos a quem tem mais
e dar mais a quem tem menos.

Para haver bom julgamento
boa regra sempre ouvi:
agir com discernimento,
julgar os outros por si...

Proclama o "mandão" sisudo
que é preciso economia,
mas sobe o preço de tudo
e não cessa a mordomia...

Não há quem não tenha errado,
pois o erro em todos medra:
- quem se julgar sem pecado
atire a primeira pedra.

O homem manda em todo mundo,
em quase tudo que quer,
mas, na verdade, no fundo,
quem manda mesmo é mulher.

É preciso distinguir
da palavra o seu sentido:
- para não se confundir
um cúpido com cupido.

ZEDÂNOVE TAVARES

Zedânove Tavares Sucupira nasceu em Vila Velha, no dia 11 de outubro de 1948. É funcionário do Banco do Brasil. Presidiu a UBT de Vitória, há vários anos. É autor do três centenas de poemas.

O besouro, na vidraça,
pulula, esbate-se, lida,
tal qual o homem na desgraça,
nessa muralha da vida.

Ao ver na novela, enfim,
o "cara" e a empregada - a sós -
a Maria olhou pra mim,
e minha mulher... pra nós!?...

Fontes:
http://www.usinadeletras.com.br/
Imagem = http://www.gazetaonline.globo.com/

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Carlos Drummond de Andrade (Caso Pluvioso)


A chuva me irritava.
Até que um dia descobri que maria é que chovia.

A chuva era maria.
E cada pingo de maria ensopava o meu domingo.

E meus ossos molhando, me deixava
como terra que a chuva lavra e lava.

Eu era todo barro, sem verdura...
maria, chuvosíssima criatura!

Ela chovia em mim, em cada gesto,
pensamento, desejo, sono, e o resto.

Era chuva fininha e chuva grossa,
matinal e noturna, ativa...Nossa!

Não me chovas, maria, mais que o justo
chuvisco de um momento, apenas susto.

Não me inundes de teu líquido plasma,
não sejas tão aquático fantasma!

Eu lhe dizia em vão - pois que maria
quanto mais eu rogava, mais chovia.

E chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,

que não aquece, pois água de chuva
mosto é de cinza, não de boa uva.

Chuvadeira maria, chuvadonha,
chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!

Eu lhe gritava: Pára! e ela chovendo,
poças d’água gelada ia tecendo.

Choveu tanto maria em minha casa
que a correnteza forte criou asa

e um rio se formou, ou mar, não sei,
sei apenas que nele me afundei.

E quanto mais as ondas me levavam,
as fontes de maria mais chuvavam,

de sorte que com pouco, e sem recurso,
as coisas se lançaram no seu curso,

e eis o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvisco.

Os seres mais estranhos se juntando
na mesma aquosa pasta iam clamando

contra essa chuva estúpida e mortal
catarata (jamais houve outra igual).

Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas d’água mais deliram,

e maria, torneira desatada,
mais se dilata em sua chuvarada.

Os navios soçobram. Continentes
já submergem com todos os viventes,

e maria chovendo. Eis que a essa altura,
delida e fluida a humana enfibratura,

e a terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência,

e Deus, piedoso e enérgico, bradou:
Não chove mais, maria! - e ela parou.
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Fontes:
CD Carlos Drummond de Andrade por Paulo Autran. Coleção Poesia Falada – vol 13. 1988.
Imagem = http://essenciafeminina1.spaces.live.com/