quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Monteiro Lobato (O Luzeiro Agrícola)


Sizenando Capistrano é o inspetor agrícola do vigésimo distrito. Incumbe-lhe fomentar a pecuária, elaborar relatórios, ensinar o uso de máquinas agrícolas, preconizar a policultura, combater a rotina e ao fim de cada mês perceber na coletoria a realidade de setecentos mil-réis.

Antes de inspetor Capistrano fora poeta. Cultivara as musas. Não sabia que coisa era pé de café, mas entendia de pés métricos, pés-quebrados e fazia pé de alferes a todas as divas do Parnaso. Tal cultura, entretanto, emagrecia-o. A sua produção de hendecassílabos, alexandrinos, quadras, odes, sonetos, poemas, vilancetes, églogas, sátiras, anagramas, logogrifos, charadas elétricas e enigmas pitorescos, conquanto copiosa, não lhe dava pão para a boca, nem cigarro para o vício. A palidez de Capistrano, sua cabeleira à Alcides Maia, sua magreza à Fagundes Varela, seu spleen à Lord Byron e suas atitudes fatais, ao invés de lhe aureolarem a face dos nimbos da poesia, comiseravam o burguês, que, ao vê-lo deslizar como alma penada pela cidade, horas mortas, de mãos no bolso e olho nostalgicamente ferrado na lua, murmurava condoído:

— Não é poesia, não, coitado, é fome...

O editor artilhava a cara de carrancas más quando Capistrano lhe surgia escritório adentro com a maçaroca de versos candidatos à edição.

— São versos puros, senhor, versos sentidos, cheios de alma. Virão enriquecer o patrimônio lírico da humanidade.

— E arruinar o meu patrimônio econômico — retorquia a fera. — Do lirismo bastam-me aquelas prateleiras que editei no tempo em que era tolo e não se vendem nem a peso.

— Ó vil metal! — murmurava o poeta, franzindo os lábios num repuxo de supremo enojo. — Ó mundo vil! Ó torpe humanidade! Em que te distingues, Homem, rei grotesco da criação, do suíno toucinhento que espapaça nos lameiros? Manes de Juvenal! Eumênides! Musas de Cólera! Inspirai-me versos candentes com que cauterize até aos penetrais da alma este verme orgulhoso e mesquinho! Baudelaire, dá-me os teus venenos...

— Rapazes — berrava o livreiro à caixeirada —, ponham-me este vate no olho da rua!

Ante o manu militari irretorquível, o poeta apanhava a papelada lírica e moscava-se para a zona neutra do passeio, onde, readquirida altivez ossiânica, objurgava para dentro da loja hostil:

— A Posteridade me vingará, javardos!

E sacudia à porta do editor o pó das suas sandálias, que no caso eram surradas e já risonhas botinas de bezerro. Em seguida, remessando para trás a cabeleira, num repelão, ia fincar-se sinistramente à esquina próxima, em torva atitude, à espera dum conhecido esfaqueável, a quem, com gestos soberbos de Bergerac, extorquisse um níquel.

Cansado, entretanto, de ouvir estrelas em jejum, de amar a lua no céu sem possuir um queijo na terra, acatou a voz do estômago e quebrou a lira — para viver. Meteu a tesoura nas melenas, deu brilho aos sapatos, desfatalizou o semblante, substituiu o ar absorto do aedo pelo ar avacalhado do pretendente, e à força de pistolões guindou-se às cumeadas do Morro da Graça.(1) Todo mundo o recomendou ao Gaúcho Onipotente, porque todos andavam fartos daquela perpétua fome lírica a deambular pelas ruas, caçando rimas e filando cigarros. 

Que fosse acarrapatar-se ao Estado. O Estado é um boi gordo, semelhante àquela estátua equestre de Hindenburg, feita de madeira, em que os alemães pregavam pregos de ouro. A diferença está em que no Estado, em vez de tachas de ouro, pregam-se Capistranos vivos.

Foi apresentado ao Pinheiro.

— Então, menino, que quer?

— Um empreguinho qualquer que Vossa Onipotência haja por bem conceder-me.

— E para que presta você, menino?

— Eu? Eu... fui poeta. Cantei o amor, a Mulher, a Beleza, as manhãs cor-de-rosa, as auroras boreais, a natureza, enfim. Romântico, embriaguei-me na Taverna de Hugo. Clássico, bebi o mel do Himeto pela taça de Anacreonte. Evoluído para o parnasianismo, burilei mármores de Paros com os cinzéis de Herédia. Quando quebrei a lira, estava ascendendo ao cubismo transcendental. Sim, general, sou um gênio incompreendido, novo Asverus a percorrer todas as regiões do ideal em busca da Forma Perfeita. Qual Prometeu, vivi atado ao potro do Inania Verba, onde me roeu o Abutre da Perfeição Suprema. Fui um Torturado da Forma...

O general, que era amigo das belas imagens, iluminou o rosto de um sorriso promissor.

— Poeta — disse ele —, eu também sou poeta. Rimo homens. Componho poemas herói-cômicos. Conheces a Hermeida? É obra minha. Amo as belas imagens e tenho lançado algumas imortais. “A mulher de César!” “Os levitas do Alcorão!” Hein? Tu me caíste em graça e, pois, acolho-te sob o meu pálio. Que queres ser?

— Inspetor.

— De quarteirão?

— Isso não.

— Agrícola?

— Ou avícola...

— De que região?

— Não faço questão.

— Sê-lo-ás do vigésimo distrito. Conheces as culturas rurais?

— Já cultivei batatas gramaticais.

— E de pecuária, entendes? Distingues um Zebu dum galo Brama? Um pampa dum murzelo?

— Já cavalguei Pégaso em pelo.

— Conheces a suinocultura? Sabes como se cria o canastrão?

— Sei trincá-lo com tutu de feijão.

— És um gênio, não há que ver. Talvez faça de ti, um dia, presidente da República. Teu nome?

— Sizenando. Capistrano é sobrenome.

— Cá me fica. Vai, que estás aí, estás fomentando a agricultura como inspetor do vigésimo distrito, com setecentos bagos por mês. Os poetas dão ótimos inspetores agrícolas e tu tens dedo para a coisa. Vai, levita do Ideal…

II

Sizenando Capistrano, mal se pilhou transformado de famélico ouvidor de estrelas em peça mestra do Ministério da Agricultura... casou, luademelou três meses e por fim compareceu perante o ministro para saber em que rumos nortear a sua atividade.

O ministro franziu a testa: é tão difícil dar ocupação aos fósforos ministeriais... Pensou um bocado e:

— Escreva um relatório — sugeriu.

— Sobre que, Excia.?

— Sobre qualquer coisa. Relate, vá relatando. A função capital do nosso ministério é produzir relatórios de arromba sobre o que há e o que não há. Relate.

— Mas, Excia., eu desejava ao menos uma sugestãozinha emanada do alto critério de V. Excia., sobre o tema do relatório que a bem da lavoura V. Excia., com tanto descortino, me incumbe de escrever...

— Já disse: sobre qualquer coisa que lhe dê na veneta. Relate, vá relatando e depois apareça.

Sizenando saiu tonto com os processos expeditos do doutor Grifado (2) com assento na pasta, e passou três meses de papo ao ar, procurando uma tese conveniente.

Como por essa época a lua de mel entrasse em plena minguante, houve certo dia rusga brava ao jantar, e a consorte, mulherzinha de pelo crespo no nariz, pespegou-lhe pela cara com um prato de salada de beldroega. Tal o célebre estalo que abriu a inteligência do padre Antônio Vieira em menino, aquele obus culinário teve a estranha ação de iluminar os refolhos cerebrais do inspetor.

— Eureca! — berrou ele radiante. E com um grande riso de gozo na cara emplastada de verdura, ergueu-se da mesa precipitadamente e correu ao escritório. A mulherzinha, entre colérica e pasmada, perguntou de si para si:

— Estará louco?

Sizenando deitou mãos à tarefa e levou a cabo um estudo botânico-industrial da beldroega, com afã tal que, transcorridos dez meses, dava a prelo o Relatório sobre o Papalvum brasiliensis, vulgo beldroega, e sua aplicação na culinária. 

O ano seguinte gastou-o em rever as provas do calhamaço, a modo de escoimá-lo dos mínimos vícios de linguagem. O antigo torturado da Forma ressurtia ali... Saiu obra papa-fina, em ótimo papel e com muitas gravuras elucidativas. Entre estas, em belo destaque, os retratos do ministro e do diretor da Agricultura, do Marechal Hermes, do tenente Pulquério, do Frontim, do Pinheiro e mais protuberantes beldroegas do momento. Pronta a edição, embaraçou-se Sizenando quanto ao destino a dar-lhe. Que fazer de tanta beldroega?

Foi ao ministro.

— Excelência! De acordo com as sábias ordens de V. Excia., venho comunicar a V. Excia. que se acha pronta a edição do relatório sobre o Papalvum.

— Que papalvo? Que relatório? — inquiriu o ministro, deslembrado.

— O que V. Excia. me incumbiu de escrever.

— Quando?

— Haverá dois anos.

— Não me recordo, mas é o mesmo. Mande a papelada para o forno de incineração da Casa da Moeda.

Sizenando abriu a maior boca deste mundo. Compreendendo aquela estuporação, o ministro sorriu.

— Então? Que queria que eu fizesse de cinco mil exemplares de um relatório sobre a beldroega? Que o pusesse à venda? Ninguém o compraria. Que o distribuísse grátis? Ninguém o aceitaria. Se é assim, se sempre foi assim, se sempre será assim com todas as publicações deste ministério, o mais prático é passar a edição diretamente da tipografia ao forno. Isso evitará a maçada de nos preocuparmos com ela e de a termos por aí a atravancar os arquivos. Não acha vossa senhoria que é o mais razoável? Retire o que quiser e forno com o resto.

— E depois, que devo fazer? — indagou Sizenando, ainda tonto com o expeditismo ministerial.

— Escrever outro relatório — respondeu sem vacilar o ministro.

— Para ser queimado novamente? — atreveu-se a murmurar o poeta inspetor.

— Está claro, homem! Para que diabo despendeu o Governo tanto dinheiro na montagem do forno? Está claro que para incinerar as notas velhas e os relatórios novos. Deste modo se conservam em perpétua atividade o pessoal da Imprensa, o do Forno e o dos Ministérios. Veja como é sábia a nossa organização administrativa! A montagem do forno foi a melhor ideia do Governo passado. Antes dele a Imprensa Nacional vivia entulhada de impressos; a produção de relatórios, função capital deste ministério, periclitava; e era tudo uma desordem, um desequilíbrio capaz de induzir o Governo à supressão da Imprensa e do meu ministério. O forno sanou a situação. O fervet opus é magnífico e a espada de Dámocles está para sempre arredada de nossas cabeças. Hein? Vá. Escreva outro relatório, sobre... sobre... o caruru, por exemplo.

Sizenando deixou o gabinete do ministro profundamente meditativo. S. Excia. derrancara-o! Viu com dor de alma as chamas do Forno lerem aquele relatório tão bem acabadinho, tão de encher o olho... E sacou seis meses de licença com vencimentos para descansar.

Esgotada a licença, ia Sizenando começar a pensar em preparar-se para escolher o papel e a tinta com que relatasse o caruru quando a política apeou da administrança o doutor Grifado. Sizenando deixou que transcorressem mais seis meses, ao termo dos quais se apresentou ao novo ministro para lhe sondar a orientação.

O novo ministro era bacharel em ciências jurídicas e sociais, ex-chefe de polícia e tão entendido em agricultura como em arqueologia inca. Mas lera uns números de Chácaras e Quintais e ali se abeberara de umas tantas noções sobre avicultura, policultura, criação de canários etc. Fez dessas uras o seu programa. 

No discurso de apresentação, ao empossar-se no cargo, emitiu os seguintes conceitos, louvadíssimos pelos circunstantes, empregados no ministério quase todos e verdadeiros hortaliças em matéria agrícola.

— A monocultura, senhores, é o grande mal; a policultura é o grande bem; no dia em que produzirmos cebola, alho, batata, repolho, coentro, alpiste, cerefólio, grão-de-bico, tremoço, quiabo, espargo, espinafre, alcachofra...

(Um arrepio de entusiasmo percorreu a espinha dos assistentes, que se entreolharam gozosos, como quem diz: Temos homem pela proa!)

— ... cebolinha, couve-flor, sorgo, soja amarela, centeio, aveia, figos da Trácia, uvas de Corinto, violetas de Parma...

— Bravíssimo!

— ... violetas de Parma... e outros cereais europeus (vermelhidão no rosto), a prosperidade nacional se assentará num soco basáltico, do qual não a arrancarão as mais rijas lufadas dos vendavais econômicos. Conduzir a pátria a essa Canaã da policultura: eis a mira permanente dos meus esforços, eis o meu programa, eis o fim supremo colimado pela minha atividade. Espero, pois, que etc. etc.

Palmas, bravos, guinchos, silvos e outros sons denunciadores de entusiasmo em grau de ebulição estrugiram pela sala. O ministro foi abraçado e beijado — nas mãos. Aquele salvaria a pátria, não havia a menor dúvida! 

O novo ministro da Agricultura era positivamente uma águia — igual às anteriores. Tinha programa. Visava confundir a rotina monocultora com demonstrações práticas das magnificências da policultura mecânica.

Sizenando recebeu ordem de ir desatolar a vigésima região do atascal da rotina. Aquela gente ainda vivia em pleno período da pedra lascada do café; era mister tangê-la à estação áurea da policultura, da avicultura, da sericultura, da criação de canários hamburgueses etc., preluzida no discurso do ministro.

Chegando à sede do distrito, com séquito numeroso e abundante farragem mecânica, Sizenando distribuiu convites para a inauguração dum curso prático. Escolheu para campo de demonstração um “rapador” a um quilômetro da cidade, e lá, no dia emprazado, reuniu os convivas. Veio o prefeito municipal, o porteiro da Câmara, o coletor federal, o promotor público, três jornalistas, quatro professores, o diretor do grupo escolar com a meninada, o vigário da paróquia, o fiscal da iluminação pública, o zelador do cemitério, o carcereiro, dois guarda chaves da Central, cinco inspetores de quarteirão, o delegado, o cabo do destacamento — e um fazendeiro recém-despojado da sua propriedade por dívidas. A turma docente e os bois do arado formavam grupo à parte.

Sizenando trepou a um cupim e pronunciou breve alocução alusiva à personalidade sobre-excelente do ministro, e ao papel dos novos métodos racionais na agricultura moderna.

— O novo método, meus senhores, é baseado na ciência pura. Vem dos laboratórios de braços dados à química. Começarei pela demonstração do arado, ou charrua, a pedra angular de todo o progresso agrícola. Senhor Primeiro Arador, arado para a frente!

Despegou-se da turma um capataz, que empurrou para perto do cupim tribunício um belo arado de disco. Rodearam-no os circunstantes, como a um animal raro.

— Eis, meus senhores, um arado de disco. Esta parte se chama cabo; esta é a roda, serve para rodar; estas rodelas são os discos, servem para sulcar a terra; este ferrinho é a manivela graduadora; este pauzinho é o balancim. Aqui se atrelam os bois e cá toma assento o condutor.

A assistência abria a boca.

— Vejamos-lo agora em ação. Senhor Primeiro Condutor de Primeira Classe, atrelar!

Adiantou-se da turma um carreiro e tangeu os bois para a máquina, jungindo-os à canga. Os assistentes riram-se. Acharam imensa graça no Tomé Pichorra, que nunca fora senão o Tomé Pichorra, carreiro, transformado em Primeiro Condutor de Primeira Classe! Era de primeiríssima.

— Senhor Primeiro Arador, arar!

O Primeiro Arador saltou à boleia e empunhou as manivelas. O Primeiro Condutor aguilhoou a junta de bois.

— ‘amo, Bordado! Puxa, Malhado!

Os dois caracus moveram-se pesadamente. A terra, sulcada pelo ferro, abriu-se em leivas. Sizenando exultou.

— Vejam, senhores, que maravilha! Faz o trabalho de vinte homens, além de que deixa a terra desatada, com grande receptividade para a meteorização atmosférica — o que equivale a um adubamento copioso.

Este pedacinho encantou sobremodo ao zelador do cemitério, o qual não conteve um sincero “Muito bem!”.

Sizenando agradeceu com um gesto de cabeça. O arado deu umas tantas voltas e emperrou. A banda de música, para disfarçar a entaladela, rompeu o Vem cá mulata. E assim terminou a primeira parte da bela demonstração agrícola.

A segunda constituiu no destorroamento e no gradeamento da terra, feitos com o mesmo luxuoso aparato. Havia Primeiro e Segundo Destorroador, Primeiro e Segundo Gradeador. Um mimo de hierarquia!

Ao terminar o serviço, a banda zabumbou um tanguinho. A terceira parte foi absorvida pelo plantio de cebolas, batatas, alho, alfafa e outras salvações nacionais.

— Os senhores verão — concluiu Sizenando — que maravilhosa messe vai brotar, farta, deste torrão sáfaro e ingrato só porque aplicamos sumariamente os processos modernos da cultura racional, os quais centuplicam a produção e diminuem o trabalho. A máquina agrícola é a verdadeira alavanca do progresso! 

— Protesto! A alavanca do progresso sempre foi a imprensa — contraveio um jornalista, cioso da velha prerrogativa.

— Será — retrucou Sizenando —; mas se uma, a imprensa, alçaprema o progresso moral, a outra, a máquina agrícola, alçaprema o progresso econômico!

— Bravíssimo! — rugiu o zelador do cemitério, inimigo pessoal do Zé Tesoura. — Isto é que é!

— Sim, senhor, muito bem! — grunhiram outros.

Rubro de gozo pelo sucesso da tirada, Capistrano espichou o dedo para a filarmônica, a pedir o hino nacional.

Desbarretaram-se todos. Ereto sobre o pedestal de cupim, Capistrano imobilizou-se em atitude de religiosa unção, de olhos fixos no futuro da pátria. E à derradeira nota pôs fim à festa com um escarlate viva à República com três “erres”.

Acompanharam-no, como um eco, o coletor, o zelador do cemitério, o agente do correio e os funcionários federais demissíveis, além dos bois, que mugiram.

Meses mais tarde procedeu-se à colheita. As cebolas haviam apodrecido na terra, devido às chuvas; os alhos vieram sem dentes, devido ao sol; as batatas não foram por diante, devido às vaquinhas; as outras “policulturas” negaram fogo devido à saúva, à quenquém, à geada, a isto e mais aquilo.

Não obstante, seguiu para o Rio um soporoso relatório de trezentas páginas onde Capistrano, entre outras maravilhas, notava: “Os resultados práticos do nosso método demonstrativo in loco têm sido verdadeiramente assombrosos! Os lavradores acodem em massa às lições, aplaudem-nos com delírio e, de volta às suas terras, lançam-se com furor à cultura poli, em tão boa hora lembrada pelo claro espírito de V. Excia. O Senhor Ministro pode felicitar-se de ter aberto de par em par as portas da idade de ouro da agricultura nacional”.

Os jornais transcreveram com garbos estes e outros pedacinhos de ouro. E o conde de Afonso Celso se encheu de mais um bocado de ufania por este nosso maravilhoso país.
__________________________
Notas:
[1] Residência do general Pinheiro Machado, o mandão da política na época.

[2] Um ministro da Agricultura da época que não era doutor mas não protestava contra o tratamento.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

domingo, 22 de setembro de 2019

Francisca Júlia (O Sabiá Doente)


Era pequeno ainda o sabiá, quase implume, quando caiu do ninho onde nasceu. Curioso, invejando o voo de outros passarinhos menores que ele, tentou também voar: — abriu as asas mal empenadas, fez um esforço e caiu. Ao cair, foi resvalando pelos galhos, pelas folhas da árvore, de modo que a queda foi pequena e não o magoou.

Quando caiu na grama, começou a ensaiar o voo para subir de novo até ao ninho, arrependido de o ter deixado, piando, piando de medo.

Um homem, que passou, levou-o consigo.

O passarinho cresceu preso na gaiola.

À tarde, quando os outros pássaros cortavam o ar em busca do repouso, ele sonhava com a tepidez do ninho escondido num galho, perdido no meio do bosque. Léguas em redor tudo era verde, coberto de folhagens que o vento agitava.

Além, escorregava entre fileiras de murtas, seixos. O ar livre do campo, a frescura das manhãs, o marulho das folhas, tudo acudia ao seu espírito, o fazia sonhar por muito tempo, arrancando-lhe da sonora garganta as mais angustiosas queixas.

E com a cabecinha no ar, os olhos cerrados, os nervos agitados de comoção, traduzindo a tristeza que o invadia, cantava, cantava horas inteiras, às vezes triste, alegre às vezes, executando escalas e gorjeios ou prolongando numa nota toda a amargura de sua alma.

Os que lhe ouviam o canto, paravam a escutá-lo, encantados.

Assim viveu o sabiá por muitos anos, sempre preso, sem conhecer a liberdade de que gozam os outros pássaros que ele via através da grade, a uma vertiginosa altura, espalhados pelo azul.

Voar! Quem lhe dera também um dia em que a porta da prisão amanhecesse aberta, fugir, e, de asas entendidas, voar, voar, ir muito alto, muito alto, e gozar, até à embriaguez, da vertigem de luz que deve haver lá em cima!.

E o pobre pássaro sentia no corpo estremeções de ânsia, agitações de desejo, e abria as asas; mas a ilusão desfazia-se e ele fechava-as de novo, recolhendo-se à sua tristeza de encarcerado.

Então pensava que, quando ficasse velho e sua voz se tornasse rouca, haviam de apiedar-se dele e dar-lhe a tão desejada liberdade. Vivia dessa esperança.

Envelheceu. Sua vista foi-se escurecendo aos poucos. O sabiá estava cego.

Uma manhã, passeando pelo chão da gaiola, aproximou-se da porta, como de costume, a sentir se estava aberta.

Estava aberta a porta.

Pôs a cabecinha de fora, aspirou o ar, agitou o corpo, sacudiu as asas entorpecidas pela velhice e quis voar. Mas, como já estava cego, teve receio de bater-se contra a parede, no ímpeto do voo, em vez de tomar a direção do campo; então recolheu-se de novo e chorou abundantemente .

Daí em diante nunca mais da sua sonora garganta saíram os gorjeios de outrora.

Fonte:
Francisca Júlia César da Silva Münster. Livro da Infância. Revisão ortográfica: Iba Mendes.

Colar de Trovas: Criança

Organização: Adriano Bezerra,  Aurineide Alencar e Maria Zilnete.

01
Urge esperança de um dia
ver criancas a cantar
hinos da democracia,
*declamando o verbo amar*
(Agostinho Rodrigues - RJ)

02

Declamando o verbo amar
com toda sua inocência
criança  vive a sonhar
*tendo paz de consciência.* 
(Neiva Fernandes - RJ)

03

Tendo paz de consciência,
toda criança é feliz,
descobre na eficiência,
*o que a natureza diz.*
(Antônio Cabral Filho - RJ)

05

O que a natureza diz ?
que criança quer um ninho,
que na vida é aprendiz,
*que  precisa de carinho!*
(Gleyde Costa Campos – RJ)

06

Que precisa de carinho
o mundo tem consciência,
criança que tem seu ninho
*cresce com benevolência.*
(Aurineide Alencar - MS)

07

Cresce com benevolência
a criança desde cedo.
Que o sorriso de inocência
*não se apague pelo medo.*
(Antonio Francisco Pereira - MG)

08

Não se apague pelo medo
na vida não é assim;
a criança tem enredo:
*ser amada até o fim!*
(Agostinho Rodrigues - RJ)

09

Ser amada até o fim -
Júlia, de seu pai, o quis.
Ele nunca está a fim!
*Faço-a eu mesmo então feliz!*
(Oliveira Caruso - RJ)

10

Eu a faço,  então  feliz
na proteção  do Senhor...
pois é Deus mesmo  quem diz
*que a criança  tem valor.*
(Neiva Fernandes - RJ)

11

Que a criança tem valor
e precisa ser feliz
livre de qualquer pavor
*e viva como aprendiz.*
(Prof. Roque - RS)
  
12

E viva como aprendiz
na nossa escola da vida
isto o vate sempre diz
*para a criança querida!...*
(Luiz Cláudio - RN)

13

Para a criança querida, 
daremos o nosso amor, 
protegendo a sua  vida,  
*na  Luz que vem do Senhor!*
(Neiva Fernandes - RJ)

14

Na luz que vem do Senhor
sejam sempre iluminadas
com carinho e muito amor
*por seus pais sejam amadas.*
(Adriano Bezerra – RN)

15

 Por seus pais sejam amadas,  
no carinho mais profundo;
jamais ser abandonadas,    
*ao relento deste mundo.*
(Antônio Cabral Filho - RJ)

16

Ao relento deste mundo
vemos data consagrada
p'ra criança é mês fecundo
*chamo Aparecida amada!...*
(Luiz Cláudio – RN)

17

Chamo Aparecida amada
nos momentos de aflição,
para que não falte nada
*para a criança e nação.*
(Maria Zilnete – RJ)

18

Para a criança e nação
venha a paz tão desejada
com a santa intercessão
*da nossa mãe consagrada.*
(Adriano Bezerra – RN)

19

Oh nossa mãe consagrada!
Olhai por nossas crianças,
que façam o que Lhe agrada
*e tenham fé e esperança.*
(Maria Zilnete de M. Gomes - RJ)

20

Que tenham fé e esperança,
no futuro da nação .
Não deixemos a criança,
*sem amor ao nosso Chão!!*
(Gleyde Costa Campos – RJ)
TROVAS DO FECHAMENTO
*A*

*Sem amor ao nosso chão,*
mas fé  na Virgem Maria:
respeitando nosso irmão
*Urge a esperança  um dia.*
(Neiva Fernandes - RJ)

*B*
*Sem amor ao nosso chão,*

crianças sem alegria,
sonho um mundo em união;
*urge esperança um dia.*
(Maria Zilnete de M. Gomes – RJ)

*C*
*Sem amor ao nosso Chão,*

a criança perderia
amor e dedicação
*urge a esperança um dia!*
(Gleyde Costa - RJ)

*D*
*Sem amor ao nosso chão,*  

não há paz nem alegria,
pois a nossa solução,           
*urge a esperança um dia.*
(Antônio Cabral Filho - RJ)

*E*
*Sem amor ao nosso chão*

nada bom se esperaria
ao futuro da nação
*urge a esperança um dia!*
(Adriano Bezerra – RN)

*F*
*Sem amor ao nosso chão*

nada até me arrepia
vamos dar as nossas mãos
*urge a esperança um dia.*
(Madalena Cordeiro – ES)

Fonte:
https://trovadoresdobrasil.blogspot.com/2017/10/8-colar-de-trovas-brasil-trovador-tema.html

Nilto Maciel (Legenda)


De pé, José Cristiano, silaque, calça frouxa. Cigarro pela metade no canto esquerdo da boca, sorriso morrendo nos lábios e nos olhos negros. Cabelo meio assanhado, diferentemente dos demais personagens. Bigode a Estaline e as primeiras rugas identificando muito cansaço para tão pouca vida. Contava então 28 anos de idade, por mais que se queira ou se presuma.

Sentada, pernas estiradas e juntas, Maria Virgínia. Vestido decotado e cheio de voltas, espalhado pelo capim, como uma enorme dália. Não completara ainda 23 anos de idade. Sorriso de meio palmo no rosto belo, como se fosse grande demais a felicidade. No entanto, no dia seguinte foi recolhida a um manicômio, em estado de completa loucura, após a morte do marido.

Aninhado nas coxas grossas de Maria, o pequeno César também sorri. Morreria aos 22 anos de idade, ao participar de uma rixa entre marginais num bar. Sua mãe, ao tomar conhecimento do crime, tornou-se santa. Falam da produção de uma bela imagem sua, a ser adorada pelos cristãos da cidade: os Moretis.

Na fotografia, o menino mostra um ar de estupenda admiração. Olha fixamente para a câmera. Veste calça curta azul-turquesa e blusinha justa de gola larga. Os cabelos longos espalhados pela testa e sobre as orelhas, que não se veem. Calça botinhas pretas e novas, pelo estado.

Depois da morte do pai e da loucura da mãe, César passou aos cuidados de seus avós maternos, por decisão judicial. Apesar da luta dos avós paternos, que alegaram ter sido Maria a causadora direta da morte de Cristiano. Surgiu então a célebre guerra entre Nascimentos e Moretis, de que resultou até agora a morte de mais de vinte pessoas, inclusive mulheres e crianças. A última vítima, provavelmente assassinada por um Nascimento, foi Maria. Aconteceu em agosto do corrente ano, nas dependências do manicômio onde vivia.

Desde criança César viveu de rusgas nas ruas. Vez por outra, sua mãe conseguia burlar a vigilância dos carcereiros e saía a procurá-lo pelas ruas e ruelas da cidade. Um dia se encontraram. Ela já velha, feia, desdentada, suja, magra. Ele violento, robusto, entre a adolescência e a velhice. Abraçaram-se e choraram.

– És tu, meu adorado César Augusto?

– Sim, mãe amada.

– E que fazes no mundo?

– Atiro pedras em monumentos, igrejas, cemitérios...

– Por que não atiras nos homens?

– É verdade! Por que não atirar pedras nos homens?

– São os melhores alvos.

– E tu onde estás?

– Estou presa por loucos.

– E por que não foges para mim?

– Não temos para onde ir. Nosso lugar era meu marido e teu pai.

– E para onde ele foi?

– Para o Paraíso.

– É verdade?

– Sim, foi para o Paraíso, onde habitam as serpentes.

– Irei procurá-lo.

E se despediram, alegres, como nos velhos tempos de mocidade, infância e felicidade.

Ao fundo, a antiga Igreja do Sagrado Coração de Jesus, com suas largas portas abertas. Alguns fiéis voltam para suas casas. Duas velhas de mãos dadas (talvez irmãs), um velho com uma bengala cabo de cabeça de cascavel e outros rostos ainda no interior do templo. No patamar, um carrinho de fazer e vender pipocas e o provável pipoqueiro a coçar o queixo.

Entre as torres, um céu azul como pano de fundo. Nuvens brancas dão ideia de um crocodilo em perseguição a um carneirinho, um elefante e outras diversas figuras decorativas.

Após desembolsar a bagatela de trinta mil réis, José satisfez as insistências de Maria e apareceram na coluna "Society Braziliense", assinada por Miharbi, do jornal “A República”.

Publicada na edição do dia seguinte, 23 de agosto de 1954, traz a seguinte legenda: “Na foto, o Sr. José Cristiano do Nascimento, sua digníssima consorte, D. Maria Virgínia Moreti do Nascimento, que comemoraram ontem mais um aniversário de matrimônio, o terceiro do feliz enlace, e o lindíssimo garotinho César Augusto, filho do casal. O jovem par é muito benquisto em nosso grand monde, razão pela qual foi efusivamente cumprimentado durante todo o dia que passou, em sua mansion, localizada no elegante e fidalgo bairro das Flores”.

No dia 24, José, sem nada pagar, foi notícia em diversos jornais. Desta feita, na primeira página e em letras quase descomunais: SUICIDA-SE CRISTIANO DO NASCIMENTO.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.

sábado, 21 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 74


Chico Anysio (Opção)


Está chovendo há dois dias. Os carros passam devagar pela rua, temendo o buraco possivelmente encoberto pela água em­poçada. A chuva começou farta, afinou na primeira madrugada, recrudesceu o dia seguinte inteiro, amainou às primeiras horas da noite e agora voltou a cair caudalosa, insistente, ininterrupta, bastarda. Há 48 horas chove, e o céu, pesado de cinzento, não promete estiagem para tão cedo. As nuvens grossas encobrem a cidade, entristecendo-a. O sol, tão esperado para o fim de semana, fica para outra ocasião. O sábado será também chovido, como também o domingo, é de se imaginar. Há ruas que já se transformaram em pequenos riachos e há as que já são rios. Passa um homem de calças arregaçadas, sapatos na mão, lenço inútil na cabeça. Tem a água pelos joelhos e a chuva dentro da alma, molhando-lhe o espírito, esfriando-lhe a vida.

O homem vai devagar. Seus joelhos afastam a água, graças aos passos arrastados, sem levantar o pé do chão. Tem a camisa colada ao corpo, transparente, de molhada. Vê-se o bico do peito, enrijecido pelo frio que a chuva lhe traz. O relógio, guardado no bolso, na fuga da água, está tão encharcado quanto estaria se o levasse no pulso.

O homem está chovido, como a cidade. E triste. Mais do que a cidade, que a esta hora lamenta o fim-de-semana inutilizado pelas águas.

— Chuva fora de tempo...

É julho, mês seco, via de regra. Mas chove há dois dias. Chove o que Deus dá — como comentam na cidade.

O jogo de domingo já foi cancelado, e o serviço de me­teorologia não acena com possibilidades de melhora. Ao contrário.

O homem está voltando do trabalho. É ourives, na Rua Uruguaiana. Mora no Catumbi, onde a chuva molha mais, insiste em permanecer, não apenas na rua, na calçada, mas dentro das casas, pela ineficiência dos bueiros.

Ele abre a porta, entra e continua na chuva. Sua casa é um lago. A água supera a mancha antiga da parede, fabricada pela chuva de janeiro. Os móveis, previamente colocados sobre estrados, já têm os pés molhados.

Não há ninguém para o ajudar a remover a água. Os baldes são despejados no pequeno quintal. A água do quintal aumenta e volta à casa.

A madrugada o encontra exausto, dentro da água, vencido pela chuva. O vidro quebrado da janela da sala permite que por ali entre mais chuva. Ele cola um jornal ao vidro. Por algum tempo a água não entrará por ali.

— Que chuva!

Lá fora, por um momento, a chuva arrefece seu ímpeto.

— Acho que vai parar...

Meia hora depois chove mais do que antes. Quase não escuta o motor de carros, na rua. Todos em casa, fugindo da chuva, com medo da água que desaba do céu, sem piedade, sem cuidado, sem pedir licença.

O homem nota a primeira goteira. Depois percebe que as goteiras são dez, trinta, o teto da casa tem, neste momento, a utilidade de um para-quedas num submarino.

— E agora?

Está dois palmos acima da mancha, a água da chuva. Já não é da chuva, é água da casa, alagadiço em que mora há 17 anos, esperando um aumento que lhe permitirá o apartamento sonhado.

Da janela vê um conjunto residencial na quadra seguinte. Inveja os que lá estão, secos, enxutos, saudáveis, sadios.

O balde, esquecido, está sobre a cômoda do quarto. Nada há a ser feito. E chove mais, há ainda o que chover.

Faz 50 horas que este aguaceiro desaba.

— De onde vem tanta água?

As gavetas foram retiradas e empilhadas sobre os móveis mais altos, tentativa de salvaguardar suas coisas.

Maria, agora, faz mais falta do que nunca. Não que ela pudesse conter a chuvarada, mas o ajudaria com as palavras antigas de incentivo.

— Um dia a gente muda.

O homem está sozinho, no meio da chuva, que cai, em casa, na rua. A cidade molhada acorda mais tarde. Até agora não passaram mais de dez carros na rua. O sábado vai em meio. A fibra do homem caminha para o fim. A chuva das goteiras — incerta — molha pior. A água sobe pela parede, apodrece os móveis velhos, inunda o armário, esfria a vida, refrigera os nervos.

Chove. De noite se vê que chove mais forte. O lampião da calçada mostra os pingos caindo na diagonal, assim postos pelo vento que açoita.

— Haja água.

É o que há. O étager, submerso, é adivinhado pelo homem que caminha idiota pela casa, com água à cintura. Anda sem destino, caminhando autômato pelos três cômodos da casa-lagoa. Senta sobre a cômoda, pernas levantadas para não ter os pés enfiados na água. Tem frio. Põe, nas costas, um cobertor úmido e enrola no pescoço um velho cachecol que era de Maria.

— Maria... Maria... por que você foi embora?

Pela primeira vez o homem fica triste. Deixa as lágrimas caírem do rosto, juntarem-se à água da sala, que é tanta quanto a do mundo.

— Maria... você fez bem em ir embora. Se estivesse aqui...

Não havia esta chance. Maria mudara para o morro, na companhia de um mulato, trabalhador do cais do porto. Trocara o conforto de uma casa no Catumbi pela insegurança de um barraco. O primeiro a cair, quando a chuva começou.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

Poesias Gauchescas (2)


BERNARDO TAVEIRA JÚNIOR

O Boleador     


(...)
E o destro campeiro na fúria indomável,
Seguindo o cavalo que vai a fugir,
As bola meneia com braço de ferro,
Enquanto as não deixa certeiras partir.

E a certa distância que mede co'a vista,
O impulso tenteia visando o bagual,
E após, lá consigo, contando com a presa,
Desprende o seu tiro terrível, fatal!

E as bolas tremendas fungando no espaço,
Lá vão zig-zigs formando no ar;
Lá vão implacáveis cair como um raio
Na frente do bicho que intenta escapar.

E as pernas das bolas o bicho mal sente
Nas mãos lhe tocarem, priscando coiceia,
E quanto mais prisca, coiceia ariscado,
Mais ele se enreda, nas bolas se enleia.

E os fortes campeiros que adoram proezas
Soltaram mil vivas naquela amplidão;
Um tiro de bolas há muito não viam
Com mais bizarria, com mais perfeição.

Eu te admiro e saúdo,
Ó destro boleador!
Mais te dera, se o pudesse
O teu modesto cantor.

CHICO RIBEIRO

Negrinho do Pastoreio


A mão da noite fechara
a porta grande do dia,
era noite e dentro dela
a tempestade rugia...

O vento! Como ventava!
A chuva! Como chovia!
O trovão de boca aberta!
O raio, de quando em quando,
Soltando-se do trovão,
corria dentro da noite,
cortando em riscos de fogo
o seio da escuridão!

Ia fundo a tempestade:
O vento ventando mais,
a chuva chovendo mais.
E o Negrinho, como a ronda,
dentro da noite perdido!...

A tempestade crescendo,
cada vez roncando mais!...

E o Negrinho acocorado
entre as macegas, ouvindo,
ouvindo, vendo e sentindo,
o bate-bate da chuva,
o martelar do trovão.
E o raio...com que violência
cortava o raio a amplidão!...

E o Negrinho ouvindo tudo!
Tudo lhe vem aos ouvidos,
enche-lhe a vista, os sentidos,
menos o passo da ronda,
que lhe confiara o -Sinhô-,
a ronda que a tempestade
de vento e chuva espalhou...

A tempestade crescendo,
cada vez roncando mais!...

Depois, depois ... oh! Senhor!
Depois que tudo acabou,
que a chuva não mais choveu,
que o vento não mais ventou
e o raio se terminou
porque o trovão se calou.

E o Negrinho também!
A não ser pelos milagres,
pelo bem que ele nos presta
quando se perde um tareco,
ninguém mais dentro do mundo
no vão dos dias, das noites,
acompanhado ou sozinho,
conseguiu botar os olhos,
pode encontrar o negrinho!

CYRO GAVIÃO

Petiço     


Esse petiço troncho que, ao passito,
Vem chegando co'a pipa, lá da fonte,
Foi quebra noutros tempos... foi bonito,
Foi mestre, num rodeio e num reponte.

Mas, hoje, nem o relho, nem o grito
Da gurizada já lhe altera a fronte
Indiferente a tudo, ao infinito,
A mais um dia que se lhe desconte.

Até dá pena ver esse sotreta,
Trocando perna, ao lado da carreta
Num caminhar tristonho, passo a passo...

Petiço velho... joia do meu pago!
Saudade amarga que, comigo, trago,
Espera... qu'eu também sinto cansaço.

GLAUCUS SARAIVA

Borracho


Pobre borracho... ajoelhado
no oratório do bolicho!
Teu presente é como o lixo
que sobrou do teu passado.
Tens o futuro castrado
de esperança e ilusões.
Te incorporaste aos balcões
das pulperias do pampa...
Se vives a meia guampa
encharcado de bebida,
é pra esquecer a caída
dessa outra bebedeira
que tomas, a guampa inteira,
no copo amargo da vida.

Mastigando o teu silêncio,
como quem reza baixinho,
vais garganteando aos pouquinhos
teu ato de contrição,
feito de canha e limão
por monges de estranha cúria,
nesta liturgia espúria
praticada no balcão.

Mas não tem quem te absorva,
nem que ouça a tua reza...
Geralmente te despreza
a maioria, borracho.
E, assim, vais vivendo guacho
de carinho e compreensão.
Mas eu te respeito, irmão,
pois diz o velho ditado
que até Deus, penalizado,
frente a criança e ao borracho.
Deus coloca a mão por baixo...

Todos nós somos borrachos,
a canha é que é diferente.
Eu conheço muita gente
que rola por este mundo
vivendo dramas profundos,
embriagado de dor.
Outros, borrachos de amor,
dão tudo, dão corpo e alma,
vivendo a íntima calma
que só nos traz a bondade.

Alguns, ébrios de vaidade,
bebem tragos de si mesmo
e vão ostentando a esmo
garrafões de narcisismo,
canha feita de egoísmo,
indiferença e arrogância.
Outros, pobre ignorância,
se embriagam de dinheiro
e fazem da vida celeiro
para amontoar a riqueza,
vivendo a extrema pobreza
da indigência espiritual.
Algum prefere o imortal
licor feito de esperança
e a realidade amansa
bebendo ilusão e sonho.

E, por fim, nos vem tristonho,
empochado em desencanto,
um que bebe o próprio pranto,
destilado, com certeza,
do alambique da tristeza
que bate no peito seu!
Agora peço: por Deus,
bolicheiro do meu pago,
venha no mais outro trago
que este borracho... sou eu!

GLAUCUS SARAIVA

Lenda do Quero-quero


Nos velhos tempos de antanho,
quando o campo era sem dono
O guasca era um rei no trono
verde-escuro das coxilhas...
Sua corte eram tropilhas
selvagens dos potros bravos.
O pampa não tinha escravos,
onde tudo era igualdade,
E o pendão a Liberdade !
A espora que retinia,
a garrucha, a lança esguia
a boleadeira e os cavalos,
eram somente os vassalos
que o gaúcho conhecia.

Mas um dia a prepotência
mostrou as garras malvadas!
Banhou de sangue as estradas,
cobriu de luto a verdade,
e em troca de liberdade,
trouxe grilhões de negreiro.
Porém o guasca altaneiro
boleou a perna no pingo,
E foi pra luta sorrindo,
porque o destino mandou.
Muito gaúcho tombou,
mas, entre os guascas sombrios,
a prepotência caiu
e a liberdade ficou!

E no lombo das coxilhas,
no largo dos descampados,
cabos de lança, quebrados,
apontavam cemitérios.
E os quero-queros gaudérios,
por sobre aquela tristeza,
pairavam sua nobreza,
como por artes divinas.

E, descendo nas campinas
por onde o sangue rolou,
Um bando imenso pousou
e embaixo d'asa escondidas,
guardavam as pontas perdidas
da lança que o índio amou...

Agora, pela amplidão,
na coxilha e o pampa enorme
o quero-quero não dorme,
como eterno guardião.

Às vezes, na noite escura,
Como um grito de amargura,
estridula seu cantar...
É a alma de algum gaúcho,
que, num último repuxo,
se levantou pra pelear!

E qual um centauro alado
que se ergue do banhado
cavalgando uma ilusão,
voará, como a esperança,
guardando, à ponta de lança,
a Gaúcha Tradição!

Fonte:
http://www.paginadogaucho.com.br/poes/lista.htm

Lima Barreto (Sua Excelência)


O Ministro saiu do baile da Embaixada, embarcando logo no carro. Desde duas horas estivera a sonhar com aquele momento. Ansiava estar só, só com o seu pensamento, pesando bem as palavras que proferira, relembrando as atitudes e os pasmos olhares dos circunstantes. Por isso entrara no cupê depressa, sôfrego, sem mesmo reparar se, de fato, era o seu. Vinha cegamente, tangido por sentimentos complexos: orgulho, força, valor, vaidade.

Todo ele era um poço de certeza. Estava certo do seu valor intrínseco; estava certo das suas qualidades extraordinárias e excepcionais. A respeitosa atitude de todos e a deferência universal que o cercava eram nada mais, nada menos que o sinal da convicção geral de ser ele o resumo do país, a encarnação dos seus anseios. Nele viviam os doridos queixumes dos humildes e os espetaculosos desejos dos ricos. As obscuras determinações das coisas, acertadamente, haviam-no erguido até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que ele, ele só e unicamente, seria capaz de fazer o pais chegar aos destinos que os antecedentes dele impunham…

E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos, totalmente escrita em caracteres de imprensa, em um livro ou em um jornal qualquer. Lembrou-se do seu discurso de ainda agora.

“Na vida das sociedades, como na dos indivíduos…”

Que maravilha Tinha algo de filosófico, de transcendente. E o sucesso daquele trecho? Recordou-se dele por inteiro:

“Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como Sólon, Justiniano, Portalis e Ihering, todos os filósofos, todos os juristas afirmam que as leis devem se basear nos costumes…”

0 olhar, muito brilhante, cheio de admiração – o olhar do líder da oposição – foi o mais seguro penhor do efeito da frase…

E quando terminou! Oh!

“Senhor, o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com ele: reformemos!”

A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com que esse final foi recebido.

O auditório delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do grande salão iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda.

O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam como um só traço de fogo; depois sumiram-se.

O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa fosforescente. Era em vão que seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde eles pousassem.

Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma hora e o mesmo minuto da saída da festa.

– Cocheiro, onde vamos?

Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam.

Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente. Gritou ao cocheiro:

– Onde vamos? Miserável, onde me levas?

Apesar de ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu interior fazia um calor de forja. Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem, no peito, as grã-cruzes magníficas. Graças a Deus, ainda não se haviam derretido. O leão da Birmânia, o dragão da China, o língam da Índia estavam ali, entre todas as outras intactas.

– Cocheiro, onde me levas?

Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de nariz adunco, queixo longo com uma barbicha, não era o seu fiel Manuel.

– Canalha, para, para, senão caro me pagarás!

O carro voava e o ministro continuava a vociferar:

– Miserável! Traidor! Para! Para!

Em uma dessas vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que se ia, aos poucos, fazendo quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do guia da carruagem, a brilhar de um brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu-lhe que estava a rir-se.

O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não podendo suportar o calor, despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim, o colete, as calças.

Sufocado, estonteado, parecia4he que continuava com vida, mas que suas pernas e seus braços, seu tronco e sua cabeça dançavam, separados.

Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com uma reles libré e uma grotesca cartola, cochilando à porta do palácio em que estivera ainda há pouco e de onde saíra triunfalmente, não havia minutos.

Nas proximidades um cupê estacionava.

Quis verificar bem as coisas circundantes; mas não houve tempo.

Pelas escadas de mármore, gravemente, solenemente, um homem (pareceu-lhe isso) descia os degraus, envolvido no fardão que despira, tendo no peito as mesmas magníficas grã-cruzes.

Logo que o personagem pisou na soleira, de um só ímpeto aproximou-se e, abjetamente, como se até ali não tivesse feito outra coisa, indagou:

– V. Exa. quer o carro?

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

20 de Setembro (Dia do Gaúcho)



Céu, Sol, Sul, Terra e Cor
letra de Jader Moreci Teixeira, mais conhecido como Leonardo (Bagé, 30 de novembro de 1938 – Viamão, 7 de março de 2010)

Eu quero andar nas coxilhas
Sentindo as flechilhas das ervas do chão
Ter os pés roseteado de campo
Ficar mais trigueiro como o sol de verão

Fazer versos cantando
As belezas dessa natureza sem par
E mostrar para quem quiser ver
Um lugar pra viver sem chorar

É o meu Rio Grande do Sul
céu, Sol, sul terra e cor
Onde tudo que se planta cresce
O que mais floresce é o amor
É o meu Rio Grande do Sul
céu, Sol, sul terra e cor
Onde tudo que se planta cresce
O que mais floresce é o amor

Eu quero me banhar nas fontes
E olhar horizontes com Deus
E sentir que as cantigas nativas
Continuam vivas para os filhos meus

Ver os campos cheios de crianças
Sorrindo felizes a cantar
E mostrar para quem quiser ver
Um lugar pra viver sem chorar

É o meu Rio Grande do Sul
céu, Sol, sul terra e cor
Onde tudo que se planta cresce
O que mais floresce é o amor
É o meu Rio Grande do Sul
céu, Sol, sul terra e cor
Onde tudo que se planta cresce
O que mais floresce é o amor

Assista o vídeo da música, na voz de seu compositor em https://www.youtube.com/watch?v=8vf-m-DbWqw

Trovas sobre o Gaúcho


Irmão do sul, que em teu pago
crioulo tens a existência,
o Minuano é afago
e a pampa é a tua querência.
ANGELINA PEREIRA LEITE
Santos/SP


Na mágoa da tua ausência,
vou bebendo solidão,
rememorando a querência
no verde do chimarrão!
BEATRIZ DE CASTRO 
Porto Alegre/RS


Mate-amargo! Chimarrão!
Tu, que um sangue verde estampas,
és a própria tradição
dos verdes campos dos pampas!
DELCY CANALLES 
Porto Alegre/RS

Apeie, peão, se abanque,
venha tomar chimarrão!
Amarre o pingo ao palanque:
- Aqui, ninguém é patrão!
DORALICE GOMES DA ROSA 
Porto Alegre/RS


Chimarrão, tem mais sabor
quando a bomba prateada
volta trazendo o calor
dos lábios da minha amada!
DORALICE GOMES DA ROSA 
Porto Alegre/RS


Querência... O encanto profundo
dos dias calmos, risonhos...
- Um pedacinho de mundo
no mundo azul dos meus sonhos.
ELISABETH N. PASCHOAL
Taubaté/SP


Marcando suas fronteiras,
as bandeiras eram trapos;
e os sonhos, eram bandeiras,
na querência dos Farrapos!
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP


Potro chucro a galopar,
pela vida eu ando ao léu,
campereando meu lugar
na querência lá do céu.
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP


É na comunhão singela
da cuia do chimarrão,
que nosso pago nivela
o campeiro e seu patrão!
LACY JOSÉ RAYMUNDI 
Garibaldi/RS


Campos distantes do pago
e cantos de liberdade,
são as lembranças que afago
no chimarrão da saudade!
LYDIA LAUER 
Caxias do Sul/RS, ???? – 2004


No pago, noite serena
e um chimarrão bem cevado.
Ao pé de mim, a morena.
Lua cheia do outro lado...
LYDIA LAUER 
Caxias do Sul/RS, ???? – 2004

Eu, bagual sarapantado,
da querência removido,
pela saudade boleado
pareço um potro abatido...
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP


Qual pingaço abichornado,
embretado no caminho,
eu, da querência apartado,
lentamente me definho...
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP


Minha querência, meus pagos,
na minha imaginação,
o céu nasceu nos teus lagos,
e a paz floriu no teu chão...
MANITA
Niterói/RJ, 1922 - 2011


Como dói a tua ausência,
- nuvem negra em céu azul -
meu amor, minha querência...
coxilhas verdes do sul!
PAULINO ROLIM DE MOURA
São Paulo/SP


Esquece esta vida andeja,
vem tomar um chimarrão,
é cedo, a manhã boceja,
na longa esteira do chão!
WILMA MELLO CAVALHEIRO 
Pelotas/RS

Poesias Gauchescas


ANTONIO AUGUSTO CORONEL CRUZ
Gauchesca     


Canto agora nestes versos
com meu grito entusiasmado
a lida e o povo gaúcho
neste rincão abençoado

Quero falar do chimarrão
do churrasco e do gaiteiro
da linda prenda cheirosa
e do ginete faceiro

Das tropas cruzando as coxilhas
na toada mansa do tropeiro
nos tombos nas domas renhidas
e do galpão hospitaleiro

Canto o minuano cortante
o poncho amigo e o laço
a disparada da ema
e a boleadeira cortando o espaço

Exalto a história dessa gente
valente, simples e altiva
que tem a liberdade como semente
brotando da terra nativa

Sendo farrapo, chimango, maragato
ou peleador no Paraguai
são os rebentos deste Rio Grande
os filhos honrando o pai

Canto um tempo iluminado
pelas faíscas das adagas
pela prata dos arreios
e pelos olhares das amadas

Um tempo de muitas distâncias
vencidas num lombo tobiano
das frescas sangas de pedras
e das noites no chão pampeano

Vendo a tapera silenciosa
sinto um aperto no peito
lembrando o fio do bigode
e outras tradições de respeito

E me vem uma nostalgia infinita
dessa vida gaudéria e passada
uma amarga solidão sem consolo
como a perda da mulher amada

Mas sigo alimentando o braseiro
e ao patrão do céu peço, sincero,
que proteja este mundo campeiro
e o grito do quero-quero

ANTONIO AUGUSTO FAGUNDES
Lenço Branco


Nascido de alma caudilha
- nem por isso menos franca -
Deus te deu essa cor branca
que até de noite rebrilha.
Lua do herói na coxilha,
por de eu for, onde eu ande
e sem que ninguém me mande
eu te canto, troféu mudo
que é puro neste Rio Grande!

Do pica-pau ao chimango
vai um pedaço de glória
e engarupo na memória
com um guascaço de mango
recuerdos de algum charango
que no passado ficou.
Se eu sou assim como sou,
entonado e orgulhoso,
devo a ti, lenço glorioso,
que eu herdei do meu avô.

Das lágrimas de uma china
quando seu índio partia,
de uma lua que alumia
debruçada na campina,
de uma sanga cristalina
que murmurava merencória,
do clarão de uma vitória
deste povo leal e franco
nasceste, meu lenço branco,
para bandeira de glória!

Teu gosto é andar voejando
entre guerreiros e lanças
e acalentar esperanças
entropilhadas em bando.
O futuro está chamando,
já cumpriste o teu ideal
porque o Rio Grande imortal
fez de ti o seu retrato:
oposto do maragato,
puro, atrevido e bagual!

APPARICIO SILVA RILLO
Pago Vago


Vago é meu pago.
Este que trago,
cicatriz em mim,
Raiz de minhas íntimas origens,
veio subterrâneo de onde vim.

Vago é meu pago.
Este que trago,
em músculos e ossos.
Inteiro como foi porque é memória,
flor de perenidade entre destroços.

Vago é meu pago.
Este que trago,
como sombra e manto.
É meu destino a cruz de sustentá-lo
nos alicerces de vento de meu canto.

AURELIANO DE FIGUEIREDO PINTO
Romance do Gaúcho Velho Solito

 
dedicado a Eurípedes Jobim de Oliveira

Quando arranchei neste chão
empecei pelas mangueiras
com essas tronqueras que aí 'stão.
- Já mudei muitas madeiras
mas são as mesm'as tronqueras
que do tempo aguentando vão.

Quando a maior ficou pronta
veio um barrero mui ancho,
e empeçou a erguer seu rancho
de uma tronquera na ponta.

Chegou ... Gostou do lugar.
Deixou de ser cruzador.
E, como eu, pegou na lida,
cada um cuidando sua vida
nenhum pedindo favor.
Porque este rincão convida
para ficar morador.

Eu e ele, dois viventes,
dois tentos da mesma trama.
Eu com os braços, êle com as asas,
cada um barreando a sua casa
tudo a capricho e de fama
nesta chapada campera.
A dele - lá na tronquera !
A minha - em riba da grama.

Ele cantava em sobrado,
fachudo moço bonito
mudando pena em agosto.
Eu ... chimarreava com gosto
meu mate de índio solito.

Outubro chegou, trazendo
promessas de nova era.
Ele avoou longe ... E, na vinda,
trouxe uma amiga tão linda
dourada de primavera.

É bicho invejoso o homem!
No redomão Polvadera
me fui ... ! galope ... teatino ...
aventurando o destino
para campear companhera.

Achei... Trouxe ela ... E empecei
a aquerenciar minha flor,
linda triguera paisana.
Mas no olhar de ressolana
tinha algo que não engana
o tino de um domador ...

O barrerito amoroso,
clareando o dia em verão
abria o bico e cantava.
Eu com a prenda chimarreava
sobre o recosto do oitão.

Domei ... Tropiei ... Plantei muito...
Juntei plata, ... Mas despois ...
Cheguei de viage ... Era um frio !
E achei o rancho vazio!
O rancho que eu fiz pra dois ...

E o que eu passei... Ninguém viu!
No pobre rancho vazio!
No rancho que eu fiz pra dois ...

E o par de barreros?... Lindo!
Quanto mais o tempo andava
mais amizade sem fim!
Um do outro não se esquecia.
Se não cantavam, se via
que era por pena de mim!

Segui mateando solito!
Quis tanto bem ... mal me quis !

E irei pensando até à morte:
- Por que é que eu não tive a sorte
do barrerito feliz?! ...

CACO COELHO
Sonhada Querência
 
Queria que, de repente, tudo fosse diferente,
da vida que tenho aqui, da cidade ir me embora,
Viver a vida de outrora, dos meus tempos de guri..

Queria que a minha casa fosse um ranchito campeiro,
Amigos, gente chegando,
E no fogão , um braseiro,
A carne gorda pingando, na festança do assado,
E a gaita velha tocando um chote bem compassado..

Que os espigões que nos cercam,
Fossem Umbus pro aconchego
Dos gaudérios assoleados, descansando nos pelegos,

Que buzinas, telefones, ruídos que nos consomem,
Martirizando a existência,
Fossem pássaros cantores, nativos,
anunciadores de uma sonhada querencia,

Queria que, de repente, tudo fosse diferente,
da vida que tenho aqui,
Da cidade ir-me embora, viver a vida de outrora,
dos meus tempos de guri.

A cambona no costado, do forte calor do fogo,
no terreiro o eterno jogo do sol nascendo e se pondo...
De mão em mão o porongo, no apojo do mate amargo..
Um cusco junto comigo,
Olfateando por churrasco...
Ouvindo o bater dos cascos, de alguém que ao longe se vai ...
Pisando o treval maduro, das barrancas do Uruguai ..

Queria que, de repente, tudo fosse diferente,
Da vida que tenho aqui, da cidade ir-me embora,
Viver a vida de outrora, dos meus tempos de guri ...

INOEMA NUNES JAHNKE
Orgulho gaúcho


No sul quando nasce o dia
Nasce também à magia,
Esta estranha alegria,
Que se tem ao respirar.

Cevo um mate amargo
Do lado do meu amado,
Em silêncio uma oração
Agradece meu coração.

Agradeço minha terra
Meu pampa sul-rio-grandense,
O Patrão velho lá no céu
Por certo está contente.

Por ver tanto orgulho
Pela sua criação,
Que traz cada gaúcho
Dentro do seu coração.

Sou gaúcha, e isso é certo!
Trago a chama da emoção,
O amor por esta terra
Honrando sua tradição.

Reconheço a beleza
Da nossa amada querência,
Ressaltando  na consciência
A minha essência gaúcha.

Fiel as suas tradições
E disso, não abro mão!
Churrasco campeiro...
Fogo de chão...

E um gostoso chimarrão
Nos braços do meu peão.

INOEMA NUNES JAHNKE
Aventuras no Travesseiro

Tive um sonho meio guapo
Sonhei que era maragato,
De lança e espada na mão,
Lenço amarrado ao pescoço
Pelejando que dava gosto.

Meu cavalo ventania
Pingo malhado
Bem postado
Era minha companhia.

Zumbia lanças ao vento,
Retinia o aço da espada,
Daqueles bravos gaúchos
Que lutavam a meu lado,

Anita de Garibaldi
Passou por mim galopando,
Lado a lado com Garibaldi
Pelejando, pelejando.

Lanceiros negros
Lanças na mão
Com o bravo Teixeira Nunes
Lutando por este chão.

Índios guaranis
E seus cavalos
Tinham pra todo o lado,
Flechas cortando o minuano gelado.

Chimangos e maragatos
Escravos e guaranis,
Sepé Tiaraju herói missioneiro,
Todos os bravos guerreiros.

Juntos lado a lado
Lutando por este pago,
Defendendo nosso estado
Este rincão amado.

A história passou por mim
Como um livro desfolhado,
Cruzando época, tempo, espaço...
Fazendo um estardalhaço.

Dormi lado a lado com o passado
Lutando, pelejando,
Neste mundo encantado
Que trago em mim guardado,
Onde todos os nobres guerreiros
Encontrarão-me no entrevero
Em novas aventuraras no meu travesseiro.

Antonio Carlos de Barros (República Rio Grandense)



20 de setembro – Dia do Gaúcho


No ano em curso, 2019, transcorre o 184º (centésimo octogésimo quarto) aniversário do início do Movimento Farroupilha. Esse Movimento custou o sacrifício de muitas vidas ao Império Brasileiro e ao Rio Grande de São Pedro, foi a luta interna Brasileira de maior duração, perfazendo 9 (nove) anos, 5 (cinco) meses e 10 (dez) dias.

O Movimento Farroupilha teve início em 19/09/1835 e encerrou em 28/02/1845. Podemos dividir esse Movimento em duas etapas distintas à saber:
REVOLUÇÃO FARROUPILHA – 1835 a 1836
GUERRA FARROUPILHA        - 1836 a 1845.



A Revolução estava tramada, através dos Irmãos componentes da primeira Loja Maçônica do Rio Grande do Sul, a Philantropia & Liberdade, sob a obediência do Grande Oriente Nacional Brasileiro. Essa Loja se originou da "Sociedade Literária Correntino", embrião e baluarte do Movimento Farroupilha. Bento Gonçalves da Silva foi o seu primeiro Presidente sendo portanto, no linguajar Maçônico, o primeiro Venerável Mestre dessa Loja Maçônica.

O planejamento estratégico e logístico das primeiras ações revolucionárias foi desenvolvido entre as colunas desse Templo Maçônico, que existe até hoje e está sediado em Porto Alegre/RS, tendo ali sido firmado o Pacto Revolucionário Farroupilha em 18 de
setembro de 1835.

As causas do conflito foram várias, políticas, econômicas, militares e sociais, mas foi essa última que reuniu os diferentes seguimentos sociais no ideal comum e revolucionário, unindo negros, índios e brancos.

A província de São Pedro (Estado do Rio Grande do Sul) era totalmente abandonada pelo poder central. Inexistia uma única escola pública, as estradas eram precárias, não havia uma ponte construída, a infraestrutura era nenhuma. O Império, que nem mesmo as fronteiras defendiam, eram alvos constantes de invasões castelhanas.

As milícias formadas por cidadãos comuns que, esporadicamente viam-se obrigados relegar a um segundo plano suas atividades diárias e fazer às vezes de exército para defender a Pátria. Apesar do seu continuado sacrifício nessas batalhas de fronteiras e apesar da riqueza da Corte advinda do cultivo do café, apesar do massacre de sua população masculina dizimada pelas guerras, apesar do infindável luto das mulheres Gaúchas, o Rio Grande do Sul não recebia qualquer atenção ou reconhecimento por parte do Império. O descontentamento do povo era total. Em cada casa luzia um candeeiro revolucionário, iluminando as consciências para a rebelião necessária. Havia necessidade de mudanças imediatas e já que pelas palavras não houvera efeitos, quem sabe pelas armas o Rio Grande do Sul faria valer os seus direitos.

Como sendo o homem indicado para comandar a rebelião, e com o apoio total da Maçonaria Gaúcha, Bento Gonçalves da Silva tudo organizou na campanha, principalmente acercando-se de liberais valorosos, marcando o dia 20 de setembro de 1835 para a definitiva explosão armada, desenvolvendo o seguinte plano militar:

Finalidade. Conquistar Porto Alegre e derrubar o Presidente da Província, expulsando junto com o seu suporte militar o Comandante das Armas e assumir o controle total da Província.

Objetivo. Conquistar o controle de Alegrete, São Borja, Cruz Alta e respectivas áreas de influências. Conquistar ainda o controle político e militar de Bagé, São Gabriel, Rio Pardo, Piratini, Encruzilhada, Triunfo, Cachoeira e Viamão.

Para isto, Bento Gonçalves já contava com o apoio das unidades de linha de Jaguarão, Bagé, Rio Pardo e São Gabriel.

Bento Gonçalves da Silva e demais revolucionários, juntaram-se nas imediações da Azenha, com outros revoltosos, em torno de 400(quatrocentos), comandados por José Gomes Vasconcellos Jardim e Onofre Pires e partiram para atacar Porto Alegre, em 19 de Setembro de 1835.

No Dia 20 de Setembro de 1835, Porto Alegre era tomada pelo exercito Farrapo, deflagrando assim, a mais longa luta armada enfrentada pelo Império Brasileiro: A Revolução Farroupilha.

Na batalha do Seival os Farroupilhas derrotaram as Tropas Imperiais. Aproveitando o entusiasmo da vitória, General Antônio de Souza Neto Proclamou a República Rio-Grandense, em 11 de setembro 1836, lendo o seguinte texto aos cavaleiros que se encontravam em formação: “Bravos Companheiros da 1ª Brigada de Cavalaria!!! Ontem obtivestes o mais completo triunfo sobre os escravos da Corte do Rio de Janeiro! São sem número as injustiças feitas pelo Governo Imperial!!! Seu despotismo é o mais atroz!!! Os Rio-Grandenses não estão mais dispostos a sofrer a prepotência de um Governo tirânico, arbitrário e cruel!!! Em todos os ângulos da Província bradamos por Independência, República, Liberdade ou Morte!!! Camaradas! Gritemos pela primeira vez!
VIVA A REPÚBLICA RIO-GRANDENSE!!!
VIVA A INDEPENDÊNCIA!!!
VIVA O EXÉRCITO REPUBLICANO!!!
 “Proclamamos a Independência desta Província, a qual fica desligada das demais do Império e forma um Estado livre e independente, com o título de República Rio-Grandense”
.

A declaração foi realizada no campo dos Meneses, onde trocaram a Bandeira Imperial pela da Bandeira Nacional da República Rio-Grandense. É realizada a Eleição Presidencial, sendo eleito o General Bento Gonçalves da Silva.

Chegada ao Pampa de BENTO GONÇALVES, fugiu do Presídio da Bahia, com o auxílio da Maçonaria e do Cônego Antônio das Mercês.  Bento Gonçalves assume a Presidência.

Criação do HINO RIO-GRANDENSE, Letra de Francisco Pinto da Fontoura e Música de José Joaquim de Medanha.

Como a aurora precursora
Do farol da divindade
Foi o Vinte de Setembro
O precursor da liberdade.

Refrão
Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra.
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra.
De modelo a toda terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra.

Mas não basta pra ser livre
Ser forte aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo.
Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra.

Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra.
De modelo a toda terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra.


Em 1966, durante o Regime Militar, a seguinte estrofe foi oficialmente retirada.

Entre nós reviva Atenas
para assombro dos tiranos
Sejamos gregos na glória
e na virtude, romanos


A partir de 1836, aqui se instalou a República Rio-Grandense, com Bandeira, Hino, Moeda, Imprensa, Impostos e Instituições Governamentais próprias.

Quis Deus o nosso Grande Arquiteto Do Universo guiar os Contendores Irmãos na mesma Luz, para a busca da PAZ, pela: LIBERDADE, IGUALDADE e FRATERNIDADE.

A então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul voltou a ser integralmente parte do Brasil em 28 de Fevereiro de 1845 pelo lado Farrapo e 01 de março de 1845 pelo lado do Império, quando foi assinada a paz entre Farroupilhas e Imperiais.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Imagem da Revolução Farroupilha: https://escolaeducacao.com.br

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Trova 359 - Milton S. Souza


Carlos Drummond de Andrade (Caso de Ceguinho)


— Não viu o letreiro: “É expressamente proibida a entrada”?

— Desculpe, mas… O senhor não está percebendo?

A bengala branca palpava terreno. Era cego. Um rapaz tão bem-apanhado! Duas ou três funcionárias aproximaram-se, enquanto o servidor que fizera a pergunta, encabulado, ia dando o fora. Os óculos pretos do ceguinho (todo cego é ceguinho, no coração da gente) ocultavam-lhe pudicamente o mal. Cercado de moças, pareceu mais à vontade, e dirigiu-se a uma delas, por acaso a mais bonita:

— Sei que não é permitido, peço mil desculpas… A necessidade me obriga a isso. Não, não é auxílio. Eu vendo blusas, soutiens, essas coisinhas, compreende?

As moças entreolharam-se, o regulamento não admite comércio em repartição, ainda mais repartição da Fazenda. Mas, pode haver regulamento para ceguinhos? E aquele era tão bem-apanhado. E há sempre necessidade, desejo ou curiosidade de uma blusa nova, um baby-doll. Todas estavam precisadas de alguma coisa, todas estavam, por assim dizer, nuas. Então a moça a que ele recorrera tomou a iniciativa de comprar. Os homens fingiram não perceber a infração. O ceguinho abriu a valise de avião e foi tirando seus artigos. Gabava-lhes a renda finíssima, a qualidade da espuma de látex, o elástico substituível. Pedia licença para estender a blusa no peito das moças, para que vissem o efeito.

Compraram tudo de que precisavam ou não, ele agradeceu à madrinha — porque a essa altura já a considerava madrinha:

— A senhorita me deu sorte. Santa Luzia que a faça muito feliz!

E, apertando-lhe o braço, com efusão:

— Posso pedir mais uma caridade?

Podia. Era acompanhá-lo a outras salas. Ele temia ser mal recebido outra vez. Com o seu anjo da guarda não haveria perigo. E lá se foram, ela guiando, ele vendendo. Que confiança adquirira rapidamente na moça! Ia amparado a seu braço, talvez com um pouco de exagero. Ela ia pensar isso — mas arrependeu-se antes de pensar. Um pobre ceguinho!

Quando extirparás de teu coração, Adelaide, a erva má da suspeita?

Pois com tanto cuidado, ainda assim ele tropeçou em alguém no corredor, e teve de agarrar-se a ela, com expressão ansiosa no rosto. Sua respiração era apressada, tinha as mãos quentes. Que susto! Ficou assim algum tempo, como aninhado em sua benfeitora. Não seria tempo demais? Ela ia de novo achar esquisito. Seria mesmo cego, o rapaz? Aqueles óculos indevassáveis… Conteve-se, antes de sentir-se mais uma vez uma infame pecadora:

— Não é melhor o senhor ir embora? Deve estar cansado, já vendeu bastante…

Ele entendia que não, estava disposto a vender até o fim do expediente, com uma fada a protegê-lo, não é todos os dias que se encontra uma fada no caminho. Ela o foi encaminhando para perto do elevador, dizendo-lhe que não era fada coisa nenhuma, era uma simples datilógrafa mensalista, ele protestava, queria de novo sentir-se aconchegado, defendido, gabava-lhe o perfume… O elevador abriu-se. Com suavidade e firmeza ela o impeliu para dentro, pediu ao cabineiro que tivesse cuidado com o ceguinho — se é que ele era mesmo ceguinho.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 historinhas.

Antônio Augusto de Lima (Poemas Escolhidos)


A SERENATA

Plenilúnio de maio em montanhas de Minas!
Canta ao longe uma flauta, e um violoncelo chora.
Perfuma-se o luar nas flores das campinas,
Sutiliza-se o aroma em languidez sonora.

Ao doce encantamento azul das cavatinas,
Nessas noites de luz mais belas do que a aurora,
As errantes visões das almas peregrinas,
Vão voando a cantar pela amplidão afora.

E chora o violoncelo e a flauta ao longe canta.
Das montanhas, cantando, a névoa se levanta,
Banhada de luar, de sonhos, de harmonia.

Com profano rumor, porém, desponta o dia,
E na última porção da névoa transparente,
A flauta e o violoncelo expiram lentamente.

DE TARDE

Eu vi voando caminho do Ocidente,
O bando ideal de minhas ilusões;
Do sol, um raio trêmulo, dormente,
Dourava-as com seus últimos clarões.

Para longe corriam doidamente
A crença, o amor, meigas aspirações...
Creio até, que entre as aves, tristemente,
Iam partindo os nossos corações.

Além, além... e os pássaros risonhos,
Foram-se todos. Vênus lacrimosa
Brilhou. No mais, deserta a imensidade.

Não! No ocaso do sol e de meus sonhos,
Ficou, ainda a pairar triste e formosa,
A ave formosa e triste da saudade.

ESPERANÇA E SAUDADE

Sorte falaz a que nos guia a vida!
Por que há de ser tão rápida a ventura,
Que só a amamos quando é já perdida
Ou depende de uma época futura?

O que ao presente, mal nos afigura,
Era esperança, há pouco apetecida,
E uma vez no passado, eis que perdura
Como saudade que não mais se olvida.

Há sempre queixas do atual momento,
E entre as datas se eleva o pensamento,
Como uma ponte de sombrio aspeto.

Em busca da ventura que ignoramos,
Temos saudade ao bem que não gozamos,
Ilusão de ilusões, sonho completo.

FLOR MARINHA

Há nos seus ademanes curvilíneos,
A doce languidez da vaga esquiva.
Seus olhos são dois fúlgidos escrínios
De gemas com que o afeto nos cativa.

Flor das espumas, dos corais sanguíneos,
Nenhum tem de seus lábios a cor viva.
Quanto aos cabelos, meu amor define-os:
"Fios de ébano em onda fugitiva".

Não sou homem do mar, contudo afago
Na alma um doido capricho, um sonho vago,
Um vago sonho singular talvez:

É de um dia, na praia, surpreendê-la,
E unir minha sorte à sorte dela,
Sobre o dorso espumante das marés.

O CÉTICO

"Percorro da ciência o labirinto,
Em tudo encontro um eco duvidoso:
Matéria vã, espírito enganoso,
Mentis, tudo é mentira, eu só não minto.

Vejo, é verdade, a vida e a vida sinto,
A caloria, a luz, a dor e o gozo,
A natureza em flor, o sol formoso
E o céu das cores da Aliança, tinto.

Mas quem, senão eu mesmo, vê tudo isto
E quem pode afirmar-me que eu existo,
Visões celestes, velhas nebulosas?"

E em seu crânio a razão desponta e morre,
Como o santelmo fátuo, que discorre
Na solidão das minas tenebrosas.

PAISAGEM NOSTÁLGICA

Deixei meu berço por destino incerto,
Mas a paisagem, guardo-a na pupila.
Guardo-a no coração, donde se estila
Toda a essência das lágrimas que verto.

Sons de sino perdidos no deserto...
Campanários da quase oculta Vila...
Serros magoados que a distância anila,
Mais formosos de longe que de perto.

Não vos esquecerei, por me lembrardes,
Enquanto prantear do alto das tardes,
A estrela Vésper que me viu partir.

Do astro do sonho onde minha alma adeja,
Quando colher as asas, só deseja,
No vosso seio maternal dormir.

VOLTA AO PASSADO

Quis rever em memória o santo abrigo
Onde deixei as ilusões dormindo.
"Vou despertá-las", murmurei, partindo,
"E hei de trazê-las outra vez comigo".

Nova e última ilusão. No sítio antigo,
Jardim outrora florescente e lindo,
Já ninguém dorme. Tudo é morto e findo.
Só de cada ilusão resta um jazigo:

Campas sem epitáfio... Agora é tudo
Um cemitério pavoroso e mudo,
Bem que inda de flores se alcatife.

E dos ciprestes na última avenida,
Vejo a última ilusão que me convida,
Martelando nas tábuas de um esquife!

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 73


Cecy Barbosa Campos (O Artista)


Era um menino bonito, quieto, educado. Na escola, cumpria suas obrigações com eficiência, mas nunca mostrava muito entusiasmo. No recreio, ao invés de participar das correrias e brincadeiras usuais aos garotos de sua idade, preferia sentar-se numa pedra grande, que ficava próxima ao campinho de futebol e, com um graveto na mão, absorver-se, elaborando desenhos na terra úmida que havia no local.

Apesar de seu distanciamento, era estimado pelos colegas. Vez por outra, algum deles se aproximava, sentava-se na pedra ou no chão ao lado e conversava com o "artista" - como o chamavam - até que a agitação característica da idade interrompia o assunto, por mais interessante que fosse.

Assim foi levando a vida, e o tempo passando. Como não causava problemas, era aceito pelos pais e irmãos que não se aprofundavam na questão e ignoravam o seu transitar silencioso sem tentar analisar aquela situação ou considerar se ela era, de fato, normal.

Não havia preocupação financeira na família, de modo que os filhos não tinham obrigações além do estudo.

Ingressando na Universidade, após três anos de curso, os pais lhe perguntaram se já estava próxima a formatura. A resposta surgiu com a maior tranquilidade:

– Não vou me formar, O que ensinam lá, não me interessa. Os rumos que vou tomar são diferentes.

Atônitos, os pais não souberam o que dizer. Passadas algumas semanas, o filho avisou que iria viajar para continuar suas pesquisas e observações pelo mundo. Ninguém conseguiu arrancar-lhe explicações. Disse que não se preocupassem, e que enviaria notícias. Não precisava de dinheiro, pois da mesada que recebia pouco gastava.

De fato, ao contrário dos irmãos, nunca fora de pedir nada e parecia não tomar conhecimento dos depósitos que os pais faziam mensalmente, para os filhos. Usava as roupas que ganhava nos aniversários e natais, principalmente dos de casa, que o consideravam relaxado com a aparência, embora, admitindo que ele era dono de uma elegância natural. Mantinha-se limpo, mas, moda para ele, não queria dizer nada.

Por alguns breves telefonemas e mensagens eletrônicas ainda mais sucintas, os pais iam tendo suas notícias. Souberam que fazia sucesso na Europa e nos Estados Unidos quando depararam com uma entrevista cujo título, "Jovem artista brasileiro fala das obras que produz usando elementos da natureza, tais como terra, folhas e sucata em geral", chamou-lhes a atenção.

Tempos depois, reapareceu em seu país. O estilo era o mesmo; roupas despojadas, um tanto ultrapassadas, largas e confortáveis. Os cabelos tinham crescido e passara a usar sandálias. Bonito, quieto, educado, com um olhar sonhador que transmitia ingenuidade quase infantil.

Ganhava muito dinheiro, mas casara-se mal e a mulher, aplicando-lhe um golpe, levou tudo que ele havia adquirido, deixando-lhe os bolsos e o coração vazios. Não ficou muito tempo em casa dos pais. Sentia-se incomodado com a presença daqueles que sempre conhecera e com as perguntas das quais preferia se esquivar. Não entendia porque as pessoas se interessavam tanto pela vida uns dos outros.

Resolveu partir. Desta vez, soube-se que iria rumo à Amazônia, pois a floresta mais diversificada do planeta poderia proporcionar-lhe novas ideias. Como era de seu feitio, não deu indicações de seu destino. Na verdade, nem ele mesmo sabia.

Ao chegar lá, deixar-se-ia levar pelas águas dos rios, ou pelo vento que sacudia os ramos das árvores.    Ficassem tranquilos que suas notícias chegariam.   

Passaram-se meses. Finalmente, o pai recebe um comunicado vindo do Serviço de Saúde de uma cidadezinha do interior do Amazonas. Pediam a presença de alguém que pudesse identificar um homem branco aparentando pouco mais de trinta anos e que, pelas peças que produzia demonstrava ser artista plástico. Como o homem dificilmente pronunciava uma palavra, pois estava muito debilitado, só após várias tentativas e investigações descobriram aquele endereço e solicitavam a vinda de algum conhecido ou pessoa da família que pudesse encaminhá-lo a tratamento ou levá-lo de volta a casa.

Em lá chegando, o pai, que fora acompanhado do filho mais novo, teve um choque. Encontrou o rapaz magro e abatido, definhando sobre um catre mal-cheiroso. Quase nada restava que lembrasse o jovem de porte elegante e olhos sonhadores. Observando mais detalhadamente, notou que a linha do queixo mostrava a obstinação que marcara a sua vida, sempre isolada dos demais.

O reencontro emocionado mostrou ao artista o sofrimento do pai e a existência de um amor que, até então, não havia percebido.

Sem forças para falar, permaneceu em silêncio, condição que, afinal, era a sua característica. Entretanto, o pai percebeu o brilho que ressurgiu em seu olhar e teve certeza de que, com o cuidado e a atenção de todos, o filho renasceria para a vida.

Retirado num pequeno avião daquele humilde barraco em que se alojara, foi conduzido para um hospital em Manaus, do qual, seria transportado para a casa da família logo que o tratamento inicial o permitisse.

A assistência dos pais, a companhia da mãe, que logo veio ao encontro do filho, e as visitas frequentes dos irmãos fizeram com que seu ânimo retornasse surpreendentemente.

A atitude dos pais mudara em relação a ele. Sentia-se amado, o que não havia notado até então. Ele era o filho que passava despercebido, pois, como não dava trabalho e não participava de farras e bebedeiras, propiciara aos pais uma vida confortável à qual o acomodaram, achando que não precisavam preocupar-se com ele.

A indiferença causa o mais doloroso dos sentimentos. Machuca mais do que a raiva ou a agressão. Sentindo-se ignorado, o rapaz sofria com a sua invisibilidade. Contudo, descortinava agora os caminhos que se abriam a sua frente e se sentia feliz e disposto a percorrê-los.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.