Antes da conquista francesa, havia, na Argélia, uma família composta de
um velho pai doente e seis filhos varões. Desde muito que o pai, devido aos
achaques da idade, não se entregava diretamente aos trabalhos da sua lavoura;
mas, sempre que o seu estado de saúde lhe permitia, tinha o cuidado de correr
as suas terras com plantações, que eram de tâmaras, alfa, oliveiras,
laranjeiras, havendo somente uma parte que era destinada à criação de ovelhas,
cabras e bezerros. As plantações e a criação estavam entregues a cinco dos seus
filhos, pois o mais velho, ele o tinha mandado ao Cairo, para estudar
profundamente, na respectiva universidade, a lei do Profeta e vir a ser um
ulemá digno e sábio no Corão.
Áli Bâlec Al-Bâlec era o nome desse filho do velho árabe e esteve de
fato no Cairo; mas, bem depressa, abandonou o estudo das santas leis de Alá e
do Profeta e procurou a sociedade dos infiéis.
Foi ter nas suas aventuras à Grécia, onde se demorou muito tempo e
adquiriu dos gregos muitos hábitos, costumes e vícios. Não se pode em confiança
dizer que os atuais sejam bem netos dos antigos; mas são aparentados. A finura
e sagacidade dos últimos para abstrações filosóficas, para especulações
científicas, para a análise dos sentimentos e paixões, do que dão provas as suas
obras de filosofia, as suas criações científicas e as suas grandes obras
literárias, empregam nos nossos dias os atuais na mercancia, no tráfico, no
escambo, em que sempre procuram, com a máxima habilidade e sabedoria enganar
não só os estrangeiros, como os seus próprios patrícios.
No Oriente, só há um traficante que não seja enganado pelo grego: é o
armênio. Diz-se mesmo lá: o judeu é enganado pelo grego, mas o armênio engana
ambos.
Os turcos, de onde em onde, matam estes últimos aos milheiros, não tanto
por motivos religiosos, mas por ódio do comprador cavalheiresco, do homem leal
e crédulo, que se vê enganado despudoradamente, e sente que não há, no outro
que o ludibriou, nenhum princípio de honra, de lealdade, de honestidade, que as
relações entre os homens o exigem.
Ali Bálec AI-Bálec, apesar de ser muçulmano, foi atraído para o meio dos
gregos e, com eles, aprendeu as suas espertezas, maroscas e habilidades para
enganar os outros.
E assim foi que ele andou fora da casa paterna, fazendo o escambo dos
mares do Levante, indo de Alexandria para Constantinopla, dai para Jafa, deste
porto para Salônica, desta cidade para Corfu, perlustrando todos aqueles mares
azuis, cheios de história, de lenda, de sangue e piratas, comerciando e mesmo
pirateando quando a ocasião se lhe oferecia.
Ao saber da morte do pai, vendeu logo a faluca (1) que possuía e correu a
receber a herança. Coube-lhe uma grande data de terra, coberta de pés de
tâmaras, enquanto os irmãos tinham as suas cultivadas com alfa, com
laranjeiras, oliveiras e um mesmo recebeu a sua parte em terrenos de pastagens
magras, onde pascentavam rebanhos enfezados de ovelhas e cabras.
Todos, porém, ficaram contentes com a partilha e iam vivendo.
Áli Bálec Al-Bálec trouxera como sua mulher uma israelita que renegara o
Talmude pelo Corão, mas, apesar disso, tinha o maior desprezo pelos muçulmanos,
aos quais considerava grosseiros, convencendo de tal coisa o marido a ponto
dele não dar mais importância aos seus próprios irmãos.
Logo ao voltar ainda os atendia e os visitava; mas a mulher lhe dizia
sempre:
— Esses teus irmãos são uns brutos! Parecem mochos! Uns bobos! Que
sandálias! O pano das suas chechias (2) é barato e sempre está sujo! Deixa-os lá!
Aos poucos, devido aos conselhos de sua mulher, Salisa, da sua insistência,
ele deixou de procurar os irmãos, fez-lhes má cara, embora os filhos deles
viessem de quando em quando, à casa do tio, para ver o primo Hussein, que se ia
criando mais pérfido que o pai e mais orgulhoso que a mãe.
Em pouco, Ali ficou inteiramente convencido da sua imensa superioridade
sobre os seus humildes e resignados irmãos.
Por ter na sua sala um tapete de Esmirna, serem as suas armas de aço de
Damasco, tauxiadas de ouro, julgava os seus manos, que se tinham habituado á
simplicidade e à modéstia, como inferiores, iguais aos das tribos negras que
viviam para além do deserto. Julgando-os assim, esquecia-se que, enquanto ele
viajava, enquanto ele aprendia aquelas coisas finais, os irmãos plantavam,
ceifavam e colhiam, para ele aprender.
Além disso, Ali, como falasse alguns patoás levantinos, julgava-se muito
mais que todos os do vilaiete (3) e também, por possuir joias de ouro e pedras
caras, valendo muitas piastras, imaginava que tudo podia.
Por esse tempo, chegaram os franceses e o caid (4) apelou para todos, a fim
de socorrer o bei (5) com homens e valores. Ali ofereceu uma das joias do seu
tesouro e quase por isso foi empalado. O joalheiro do palácio verificou que as
joias eram inteiramente falsas e, vindo o bei a saber disso, tomou a cousa como
afronta e mandou castigar severamente o doador.
Salisa, sua mulher, ficou, ao conhecer a notícia, no mais completo
desespero, não porque o marido estivesse em risco de vida, mas pelo fato que a
fortuna representada por aquelas joias não era mais que fumaça.
Ali foi solto e jurou que havia de enriquecer de novo. Aceitou sem
resistência a dominação francesa e, com alegria, viu que essa dominação trazia
uma grande alta para as tâmaras que o seu terreno produzia prodigiosamente.
Seus irmãos, a seu exemplo, aceitaram os francos e continuaram na sua
modéstia, observando muito religiosamente as leis do Corão. Ali, já habituado,
em pouco se misturou com os infiéis a quem vendia as tâmaras por bom preço e
gastava o grosso do rendimento que ia tendo em bebidas, apesar da proibição do
Corão, em orgias com os oficiais e funcionários franceses. Construiu um palácio
que ele pretendia parecido com aquele do grande califa. Harum Al-Rachid, em
Bagdá, conforme é descrito no livro de histórias da princesa Sherazade.
Vendo que as tâmaras eram muito procuradas pelos francos que, por elas,
pagavam bom dinheiro, por toda a parte começaram a plantar tâmaras; os irmãos
de Ali, porém, não quiseram fazer tal, pois sabiam por experiência de seu pai,
que, desde que houvesse muitas tâmaras para vender e, não se precisando desse
fruto para o nosso comer diário, não era possível que muita gente as quisesse
comprar tão caro. Abundando tinham que vendê-las mais barato, para atingir e
provocar os compradores mais pobres.
Continuaram com a sua alfa, as suas laranjeiras, a pascentar os seus
rebanhos, sem nenhuma inveja do irmão que parecia rico e os desprezava.
Os seus sobrinhos, de quando em quando, iam às terras do tio e ele, por
ostentação, por vaidade e para mostrar riqueza, lhes dava uma libra turca e as
crianças voltavam para casa dos pais, dizendo:
— Tio Ali é que é gente! Tem tudo! Como ele é rico, por Alá!
Os seus pais respondiam:
— Cada um se deve conformar com o que Alá lhe dá! É bom que prospere,
pois tem família… Deus é Deus e Maomé é seu profeta.
Veio a morrer Ali, quando as tâmaras começaram a cair de preço.
Herdou-lhe os bens, além da mulher, o seu único filho Hussein Ben-Ali Al-Bálec
que tinha todos os defeitos do pai aumentados com os de sua mãe.
Era vaidoso, presunçoso, ávido, desprezando os parentes, para os quais
era avaro, desprezando-os como se fossem animais imundos e tidos em
maldição pelas Leis do Profeta. Com os franceses, entretanto, era mais pródigo
do que o pai e fingia ter as suas maneiras e usos.
Nas gazetas que começaram a aparecer em Argel, Hussein Ben-Áli AI-Bálec
era gabado e, apesar das leis do Corão proibirem a reprodução da figura humana,
uma delas lhe publicou o retrato. As tâmaras começaram a descer; e, como
Hussein tivesse notícias que, duas léguas próximas, um outro muçulmano possuía
uma grande plantação delas, começou a pensar que era esta que fazia descer o
preço das suas.
Em Argel, sobretudo no vilaiete de Hussein, personificam-se sempre os
fenômenos e a sutileza de um plantador de tâmaras não pode bem conhecer, apesar
de raça árabe, o filigranado das induções da economia política…
Imaginou logo destruir a plantação e mesmo toda aquela que aparecesse na
redondeza. Supôs de bom alvitre ir com alguns homens e queimar os coqueiros. O
dono certamente queixar-se-ia ao caide às autoridades francas; e seria uma
complicação. Homem de expedientes, lembrou-se de conseguir do capitão francês
da guarnição, AL-Durand OU Al-Burhant, a destruição do plantio rival.
Habitualmente, fez-se amigo do rume, encheu-o de presentes, de festas, de
bebidas, pois seguia o exemplo de seu pai nesse tocante; e o “cão do cristão”
se fez afinal seu amigo. Um dia, depois de uma festa, o militar, que pisava
indignamente a terra onde estavam os ossos do seu pai, após muitas queixas de
Ali, apiedado do árabe, apressou-se em ir à plantação do vizinho e castigá-lo.
Assim fez, com os seus soldados e os ferozes serviçais de Hussein. Houve
queixa; o capitão foi punido; mas o saás de tâmaras não subiu nem meio gourde (moeda).
As suas finanças iam de mal a pior, a casa magnífica ia dando mostras de
ruína e os seus móveis e alfaias deterioravam-se com o tempo. Sua mãe não
cessava de censurar-lhe pelas faltas que não lhe cabiam. Ela, com aquela
arrogância muito sua e inveja também muito sua, repreendia-o:
— Vês: as tâmaras caem de preço e tu não tomas providência alguma. Os
meus não são assim… Mas tens o sangue de teu pai… E verdade que teus tios estão
vendendo alfa, oliveiras, gado e laranjas e ganham… Se tu não fizeres esforço
algum, ficarás como eles, uns macacos a viver em tocas e a dormir em pelegos de
cameiro… Xmed, o teu segundo tio, ganhou duzentas piastras em azeitonas e ficou
contente. Queres ser como ele?
— Que hei de fazer, mãe?
— Pensa; e não fiques aí a chorar como mulher. Saul chorou? Davi chorou?
Só o Deus dos cristãos chorou: Jeová não ama o choro. Ele ama a guerra e o
combate, até o extermínio. Lê os livros, os que foram os meus e os teus que são
também agora os meus. Lembra-te de Débora e de Judite e eram mulheres!
Hussein Ben-Ali AI-Bálec não podia dormir com a impressão das palavras
de sua mãe. O saás de tâmaras continuava a descer de gourde em gourde, e ele só
se lembrava de Áli, de Ornar, de todos aqueles de sua raça que as tinham levado
em meio século, do Ganges ao Ebro. Mas o saás de tâmaras parecia não temer
aquelas sombras augustas e ferozes. Descia sempre.
Certo dia, apareceu-lhe um homem que queria falar a sua mãe, Salisa. Era
o irmão dela, Miquéias Habacuc. A irmã e o sobrinho acolheram muito bem tão
próximo parente e lhe falaram na baixa das tâmaras que os atormentava.
Miquéias, que era homem esperto em negócios, disse para o sobrinho:
— Filho de minha irmã, tens meu sangue, mas não a minha fé nos livros
santos da sinagoga; mas teus avós Isaac, Baruc, Daniel, Azaf, Etã, Zabulon,
Neftali e tantos outros mandam que eu te auxilie nesse transe da tua vida que é
preciosa a eles e a mim, pois ela é deles e também minha. Portanto, tal forem
os presentes que tu me fizeres, eu posso purificar-me de ter socorrido um ente
que não é de Israel. Dize-o que o rabino me perdoará.
Hussein ficou de pensar e, à noite, conferenciou com sua mãe Salisa.
— Filho, dá-lhe alguns cequins turcos e aquelas joias falsas que quase
custaram a morte de teu pai. Porque — ouve bem — o conselho dele pode ser
falaz.
Despertando Miquéias, logo Hussein foi ter com ele e propôs-lhe o
escambo. O israelita, ao ver as joias, nem olhou mais os cequins. Ficou com os
olhinhos fosforescentes de tigre na escuridão. Era como se fosse dar um salto
de felino. Contou então ao sobrinho como devia proceder.
— Tu que tens o sangue de minhas avós Micaia, que era da tribo de
Jeroboão, e de Azarela, que era da casa de Leedã, ouve, comprarás todas as
tâmaras que houver na redondeza, mesmo antes de amadurecerem, ficando elas nos
pés. Quando for época de colhê-las, colhe-las-ás todas, guardando em surrões
nos armazéns de tua casa e não venderás senão quando te oferecerem um lucro que
dê a fartar para gastares…
— Tio amado e sábio: elas não apodrecerão?
— Não importa. As poucas “medidas” em que isto acontecer darão prejuízo,
mas tu marcarás o lucro de modo que o cubras.
Hussein Ben-Ali Al-Bálec descansou um instante a cabeça sobre o peito,
depois a ergueu de repente e exclamou:
— Falas com a sabedoria do Profeta, Miquéias Habacuc. Que Alá seja
contigo!
Miquéias Habacuc, filho de Uriel de Sepetai, não se quis demorar mais e
partiu despedindo-se da irmã Salisa e do sobrinho Hussein Ben-Áli AI-Bálec com
lágrimas nos olhos, canastras pesadas com os cequins turcos e as joias falsas
com que o sobrinho lhe pagara o seu profundo conselho de economia política
hebraica.
Hussein fez o que lhe foi aconselhado; e as tâmaras começaram a ter mais
oferta de preço. Vendeu-as com grande lucro no primeiro ano; no segundo, se
sentia uma certa resistência no mercado, ele as reteve em grande parte; mas, no
terceiro ano, ele teve que comprar a produção e viu que ia aumentando o estoque
do que, se pode chamar de valorização das tâmaras. Viu bem que se continuasse a
comprar a produção, ficaria com ele demasiado aumentado, a sua fortuna
comprometida e que fez? Cedeu. As tâmaras começaram a descer gourde a gourde.
Teve uma ideia que um sargento francês lhe indicou. Vendo que elas encalhavam
nos seus armazéns e os pedidos cresciam lentamente; vendo, pouco a pouco, os
seus coquinhos perdendo o valor, alugou alguns gritadores que berrassem, nas
ruas de Argel, a guerreira:
— Vivam as tâmaras! Não há cousa melhor que as tâmaras de Hussein
Ben-Áli Al-Bálec!
Nas gazetas, ele pagava anúncios das suas tâmaras, mas não vendia mais
que dantes. Deu-as de graça e, como toda coisa dada de graça, elas só agradavam
desse modo.
Em se tratando de vendê-las, nada! Os surrões de tâmaras aumentavam nos
seus armazéns, pois teimava em comprá-las e guardá-las, para que elas não
viessem afinal a não valer nada.
O tapete de Esmirna que o pai lhe deixara desfiava-se, empenhou as armas
preciosas, também a herança do pai, para comprar mais sacas de tâmaras. Comprou
um tapete falso e umas armas vagabundas de um cabila (6) mais vagabundo ainda, para
pôr no lugar das antigas preciosidades. Os outros plantadores, que se tinham
limitado a colher e vender, iam vivendo das suas modestas plantações; ele,
Hussein Ben-Áli AI-Bálec, corria para a ruína certa.
Foi por ai que, novamente, lhe apareceu Miquéias Habacuc, seu tio, homem
hábil e esperto nos negócios. Hussein ficou espantado, mas o tio lhe disse:
— Rebento da minha querida irmã, pelo Deus de Abraão, de Israel e de
Jacó, não te amedrontes: vendi as joias por um bom preço a um grego, com o que
ganhei duas coisas: dinheiro e a glória de ter enganado um cão dessa espécie.
Mas, pelo Eterno! Esta ideia de pagar-me o conselho em joias falsas não é tua…
Isto tem dedo de pessoa inteiramente da minha raça de Mardoc e Malaquias… Isto
é de minha irmã! Não foi tua mãe quem…
— Foi. E que fizeste do dinheiro, tio amado da minha alma; socorro da
minha vida?
— Emprestei-o aos turcos com bons juros e quando os cobrei, quase me
esfolaram. Muito tem sofrido a raça de Israel; mas o que sofri deles, nem
contar te posso — ó descendente do grande Al-Bâlec, companheiro de Musa —
conquistador das Espanhas!
Acabava de dizer estas palavras, quando entra no aposento em que estavam
Salisa, a feroz Judite, a eloquente Débora — que, ao dar com o irmão, se põe em
prantos, exclamando:
— Irmão do coração, sábio Miquéias! Tu que descendes como eu de Micaia,
da tribo de Jeroboão, e de Azarela, que era da casa de Leedã, salva-me pelo
nosso Deus de Abraão, de Israel e de Jacó — salva-me!
E a feroz Judite e eloqüente Débora chorou não a sua dor, nem a dos
outros, mas o dinheiro que se sumia.
Contou, então, Hussein ao tio, como a ruína se aproximava; como a
valorização das tâmaras, no começo dando tão bom resultado, viera a acabar, no
fim, em desastre completo.
O velho Miquéias, filho de Uriel de Sepetai, coçou as barbas hirsutas;
os seus olhinhos luziram naquele quadro de pelos cerdosos; depois, faiscando-os
malignamente, perguntou ao sobrinho:
— Com que dinheiro tu, sobrinho meu; com que dinheiro fizeste a
operação?
Hussein disse-lhe que fora com o dinheiro dele e o da sua mãe. Miquéias
Habacuc, judeu de Salônica, homem esperto e hábil em negócios, sorriu com gosto
e demora, dizendo após:
— Tolo que és!
— Por quê?
Habacuc assim falou de súbito, logo imediatamente á pergunta:
— Que me darás em troca pela explicação?
— A última bolsa de cequins de ouro que me resta.
— És generoso e grande, sobrinho meu, filho de Salisa, minha irmã,
guarda-a. Ganharemos mais. Fizeste mal em empregar o teu dinheiro e o da tua
mãe. Devias empregar o dos outros.
— Como, tio Miquéias?
— Tu não sabes, meu sobrinho, essas operações de câmbio e de banco. Eu
as sei. Nós agora vamos organizar a defesa das tâmaras, isto é, impedir que
especuladores reduzam à miséria e à desolação esta rica região do Magreb, como
dizia o teu grande avô, Al-Bálec. Vamos pedir dinheiro aos seus habitantes,
para que não morram de fome e não pereçam à míngua por falta de trabalho.
— Não me darão, tio.
— Dar-te-ão, sobrinho do meu coração; dar-te-ão. Chama teus tios, irmãos
de teu pai, e os filhos, e convence-os que devem dar as economias que têm, em
moeda, para poderes lutar com os que querem acabar com as plantações de tâmaras
do vilaiete. Dize-lhes que se não o fizerem as plantações morrerão, os
habitantes fugirão, aqui ficará tudo deserto, sem água e sem pastagens; e os
bens deles nada valerão e serão também eles obrigados a fugir, perdendo muito,
senão tudo.
— E em troca?
— Tu lhes darás vales que vencerão juros e pagarás os vales em certo
prazo.
— Mas…
Nada objetes, meio do meu sangue de Sepetai, mas meu sobrinho
inteiramente. Não sabes o que é a cobiça; não sabes o que é querer ter dinheiro
sem trabalhar. Eles aceitarão na certa e, não sendo ricos em breve precisarão
de dinheiro. Eu vou pôr um “bazar” com o saco de cequins d’ouro que te resta e
farei saber que desconto esses vales teus, em dinheiro ou em mercadoria. O
pouco dinheiro que tens atrairá o deles, tu comprarás tâmaras, mas pagarás em vales
que vencerão o juro de dois por cento, mas que eu descontarei a vinte, trinta e
mais por cento.
— Se não quiserem descontar, tio que és sábio como o mais sábio dos
ulemás, como há de ser?
— Tens o dinheiro dos teus parentes. Em começo, pagarás tudo em
dinheiro. Mas teus parentes, precisando de dinheiro, irão, como te disse,
procurar-me. Eu os atenderei imediatamente. A fama correrá e ninguém temerá
receber os teus vales.
— Compreendo. E as tâmaras?
— Irás vendendo a bom preço e guardando o dinheiro, deixando que uma
grande parte apodreça. Tu viverás na pompa, na grandeza, e um belo dia, em vez
de eu descontar vales, adquiro-os com ágio. Toda a gente quererá os teus vales
e encheremos as arcas de dinheiro.
— E no fim, no pagamento, como será?
— Marcarás um prazo longo, pela festa do Beirão, e daqui até lá teremos
tempo de agir.
Hussein Ben-Áli AI-Bálec empregou todas as lábias que lhe ensinou
Miquéias Habacuc. Seus tios e primos entregaram-lhe as economias, pois ficaram
muito contentes que ele se lembrasse de defendê-los, de impedir a ser completa
a miséria. Tio e sobrinho encheram os simplórios homens de todos os afagos, de
todas as blandícias, e iniciaram a defesa das tâmaras, que era a própria defesa
do vilaiete.
Um único não quis entregar as terras de pastagem. Foi o tio que herdara
as terras de pastagem. Dissera o velho:
— As tâmaras não são do gosto de todo o mundo e as que se colhem são de
sobra para os que gostam delas. Hão de se as vender barato por força, pois são
demais.
Hussein Ben-Áli AI-Bálec, porém, deu inicio à sua obra de grande
eficácia para todo o vilaiete, ostentando uma riqueza, um luxo e uma
magnificência que reduziram, fascinaram a imaginação do povo do lugar e das
circunvizinhanças.
O seu palácio foi aumentado; as suas estrebarias ficaram cheias de
soberbos ginetes do Hedjaz, nas suas piscinas só corriam águas perfumadas —
tudo ficou sendo um encanto no seu alcáçar e dependências.
A fama de sua riqueza corria por toda a parte e até, em Argel, a branca,
a guerreira, seu nome era falado. Dizia a boca do povo:
— Se todos fossem como Hussein Ben-Ali AI-Bâlec conquistaríamos todo o
Magreb, expulsando os rumes.
O seu crédito ficou sendo tal que todo o dinheiro que havia naquelas
terras entrou para as suas arcas.
As tâmaras subiram de preço, de fato; mas pouco. Entretanto, enquanto
vendia um terço, guardava dous. Miquéias Habacuc exultava, com os descontos que
fazia e com o dinheiro que era trazido para as mãos do sobrinho. Só a irmã, a
feroz Salisa, temia o fim e perguntava ao irmão:
— Como pagaremos tantos vales, se já gastamos o dinheiro deles e temos
mais tâmaras guardadas que vendidas?
— Cala-te, irmã que és minha. Ai é que está a minha grande sabedoria.
O dinheiro amoedado desapareceu e os vales de Hussein corriam como
moeda. No começo equivaliam ao seu valor em cequins; mas, bem depressa, para se
comprar com eles um saás de trigo, tinha-se de gastar o duplo do que se gastava
antigamente. O povo começava a desconfiar, quando veio rebentar a guerra de
Abdelcáder, emir de Mascara. Andava ele precisando de homens e víveres. O emir,
que sabia do prestígio de Hussein naquele vilaiete, oferece-lhe alguns milhares
de libras turcas, para que mandasse homens.
Miquéias, que sabe do caso, intervém, e propõe que o sobrinho aceite,
contanto que o emir lhe compre as tâmaras. O emir acede, paga as mil libras
turcas, compra as tâmaras de que não precisava.
E Hussein convence os parentes que devem partir para os goums. Para isso
falou como um santo marabuto.
Antes da festa do Beirão, época que era marcada para o vencimento dos
vales, fugia, com a mãe, a feroz Salisa, o tio Miquéias Habacuc, homem hábil e
esperto em negócios — cheios todos de ouro, ricos de apodrecer.
No vilaiete a população caiu na miséria, menos aquele tio de Hussein
Ben-Áli Al-Bálec, que não quis entrar na defesa das tâmaras.
Durante muito tempo, pastoreou as suas ovelhas e tosou os seus
carneiros. Os seus netos ainda hoje fazem a mesma coisa naquele lugarejo
argelino, onde as inocentes tamareiras, se não constituem objeto de maldição,
são tidas como simples árvores de adorno.
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Notas (fonte: wukipedia):
(1) Faluca ou Feluca - é
um barco à vela tradicional de madeira usado em águas resguardadas do mar
Vermelho e Mediterrâneo Oriental, nomeadamente Malta e particularmente no rio
Nilo no Egito, Sudão e também no Iraque e na Sicília.
(2) Chechia - é um chapéu
tradicional masculino usado por numerosos povos islamizados. É
o chapéu nacional da Tunísia. Aparentada
com aboina europeia, a chéchia é basicamente um gorro cilíndrico en
forma de barrete. É de cor vermelhão
na Tunísia, no leste da Líbia e na região de Bengasi (onde é
chamada chenna); no resto da Líbia é negro.
(3)
Vilaiete - é uma divisão administrativa existente em diversos países
africanos e asiáticos. Corresponde ao que em outros países se chama região,
província ou estado.
(4) Caid - Na África, designava um notável que acumulava funções
administrativas, judiciárias,
financeiras e por vezes um chefe tribal.
(5) Bei – é um título nobiliárquico.
(6) Cabila - Os cabilas ou cabildas são um povo berbere
que habita tradicionalmente a região montanhosa da Cabília, no nordeste da
Argélia.