Apavorado, eu já ia tratando de me afastar, quando surge à minha frente um sujeito enorme, que mais parecia um gorila: olhos dilatados; cabelos revoltos, mãos crispadas, braços estendidos para a frente como se estivesse para se abater sobre mim. Era, certamente, um louco fugido daquele hospício. Antes que ele me agredisse, todavia, ocorreu-me a ideia salvadora:
— Enquadre-se! — ordenei, numa voz de comando que não admitia vacilações: — Apresente-se ao comandante de sua unidade!
O louco imediatamente se perfilou, fazendo-me continência:
— Pois não, meu coronel.
Fiz-lhe também uma continência, já contendo o riso, e o vi dar meia-volta, para logo se recolher ao hospício de onde fugira. Não resisti mais e abri numa gargalhada. A essa altura minha mulher me acordou, assustada, perguntando o que se passava, pois me vira fazer dormindo uma continência e depois começar a rir ruidosamente, como um idiota.
Contei mais tarde o sonho a meu amigo Hélio Pellegrino e pedi que me desse, como psicanalista, uma interpretação. Ele não vacilou:
— Quer dizer simplesmente isto: o doido que existe em você é trazido num verdadeiro regime de disciplina militar, com exercícios de ordem unida e tudo mais. O diabo vai ser o dia em que ele descobrir que você não é coronel.
O doido que existe em mim. Em todos nós — inclusive no Hélio Pellegrino, no entanto mais sensato e equilibrado que muito coronel. O ser humano ainda não conquistou um mínimo de equilíbrio mental que justifique a sua pretensão de civilizado — nem sequer de ser racional, feito à imagem e semelhança de Deus. Perdeu no pecado a divina condição de sua origem. Perdeu tudo, menos a razão, como na célebre definição de Chesterton. Não passa de rei dos animais, com desdouro para o leão, na sua autêntica e incontrastável realeza. Basta um olhar ao redor, para nos certificarmos que é tudo tantã — como dizia aquele doido do programa de televisão. O único homem equilibrado e perfeito que jamais existiu na face da terra foi Jesus Cristo — e esse, como sensatamente dizia aquele outro doido, olhem só o fim que ele teve.
Basta observar este ser dos mais puros, na flor da sua inocência, que é uma criança. Se a criança é mesmo o pai do homem, então estamos bem servidos, porque menino e doido é a mesma coisa. Menino fala sozinho, rasga dinheiro, bota fogo na casa e acha sempre que tem um jacaré debaixo da cama,
O pior é que às vezes tem.
Pois então deixa eu dizer que o doido que existe em mim é o responsável pelas emoções mais puras que a vida me deu. Foi ele, este monstro oligofrênico de olhos cintilantes e cabelos desgrenhados, que um dia saltou dentro de mim e gritou basta! num momento em que meu ser civilizado, bem penteado, bem vestido e ponderado dizia sim a uma injustiça. Foi ele quem amou e se apaixonou e possuiu a mulher e lhe fez filhos. Foi ele quem sofreu quando jovem a emoção de um desencanto, e chorou quando menino a perda de um brinquedo, debatendo-se na camisa de força com que os mais velhos procuram conter o seu protesto. E é ele que dorme dentro de mim o seu sono cheio de pesadelos, pronto a despertar a qualquer momento para reivindicar o direito de ir aonde levem os seus passos e fazer ouvir o som inarticulado de suas palavras. Este ser engasgado, contido, subjugado pela ordem iníqua dos racionais é o verdadeiro fulcro da minha verdadeira natureza, é o cerne da minha condição de homem, herói e pobre-diabo, pária, negro, judeu, santo e débil mental, soldado raso submetido ou beneficiado pela hierarquia dos privilégios, escravizado à férrea disciplina das conveniências, mas que um dia há de rebelar-se, enfim liberto, poderoso na sua fragilidade, terrível na pureza da sua loucura ao descobrir enfim que nunca fui nem serei coronel.
Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.