Sou oculista.
Dentre
tantas especialidades abertas ao anel de pedra verde, barafustei pela
oftalmologia, movido de nobres razões sentimentais. Lutar contra a
noite, arrebatar presas à treva: poderá existir profissão mais
abençoada? Assim pensei, e jamais me arrependi de o ter pensado. Minha
melhor paga nunca foi o dinheiro ganho em troca dos milagres da faca de
De Graefe[1], senão o êxtase da triste criatura imersa na escuridão ao
ver-se de súbito restituída à luz.
O oculista, fora dos grandes
centros, é um animal andejo. Não pode estacionar permanentemente no
mesmo ponto, a exemplo dos colegas que curam todas as moléstias
conhecidas e quibusdam aliis(algumas outras). Encontra em cada zona um reduzido grupo de
clientes, curados os quais, ou desenganados, força é que se abale de
freguesia.
Fiz-me andejo. Andei de déu em déu, por ceca e meca,
desfazendo cataratas, recompondo nervos ópticos; e se não enriqueci,
vale um tesouro o livro da minha carreira clínica, tão cheio o tenho de
impressões suculentas de psicologia ou pitoresco.
Estampo cá uma
delas: o caso do cego de Rio Manso. Não é caso cômico e não será
trágico; duvido, porém, que me apresentem outro mais humano — e de tão
grande rigor de lógica.
Rio Manso é viloca que os fados plantaram
seis léguas além de Itaguaçu, cidadezinha onde permaneci três meses de
consultório aberto. Parti para Rio Manso — lembro-me tão bem! —
bifurcado em aspérrimo sendeiro de aluguel, avatar evidente do
Rocinante, salvo o trote, que o tinha capaz de desfazer em pandarecos a
nobre vestimenta de lata do herói manchego. Meu Sancho era o Geremário,
excelente cabrocha a quem extirpei uma catarata e que virou desde aí o
meu fidelíssimo escudeiro. Nem eu nem ele conhecíamos o caminho. Não
obstante, funcionou Geremário como perfeita bússola, agudíssimo que é o
senso de orientação adquirido pela gente da roça no traquejo da vida ao
ar livre. A terra é para eles um mapa vivo; e o chão das estradas, um
roteiro luminoso. Conhecem a primor a linguagem dos sinais impressos no
solo vermelho — sulcos de carros, pegadas de animais, galhos partidos,
restos de fogueirinhas — e os leem como nós lemos a letra de forma. Foi
assim que o arguto Geremário em certo ponto da viagem murmurou
convictamente, com os olhos postos no caminho:
— Estamos chegando!
Olhei em redor e nada vi senão a mesma morraria desnuda, as mesmas samambaias. Nada denunciativo de povoado próximo.
— Como sabe, se nunca viajou destas bandas?
O meu cabrocha sorriu com malícia e explicou:
— A estrada está piorando. Estrada ruim, Câmara Municipal perto...
De
fato, o caminho, bom até ali, principiava a esburacar-se. Pus-me a
observar a mudança, rápida transição para pior, até que, dobrada uma
curva, de chofre avistamos as primeiras casas da vila.
— Não disse? — exclamou jubiloso o pajem. — Câmara Municipal é marca que não nega...
Ri-me por fora, e por dentro admirei a suave ironia daquela agudeza de altos quilates.
Todos
os nossos povoados possuem o mesmo aspecto suburbano — a mesma
somática, como diria o meu velho professor de patologia, no seu
preciosismo de acadêmico.
A estrada principia de repente a
margear-se de humildes casebres de sapé e barro, com cercas de bambu
atrepadas do melão-de-são-caetano, ou cercas vivas de
pinhão-do-paraguai, cactos e outras plantas da zona. Aos poucos os
casebres melhoram. Começam a surgir casas de telha, já rebocadas, já
caiadas; e vendinhas; e tendas de ferradores; e assim vai em gradação
insensível até virar rua, com passeios e espaçados lampiões de
querosene.
Também a categoria social dos moradores acompanha tal
ascensão. De mendigos, de velhos negros capengas, de sórdidas pretas que
se espiolham ao sol — perfeita varredura humana de entristecedor
aspecto —, a população passa a jornaleiros, a gente pobre mas
arranjadinha, até chegar à “gente limpa”. E como a rua, no crescendo em
que vai, desfecha em praça — o largo da matriz, com gramados, coreto de
música e casas de comércio —, assim também as “almas” sobem do mendigo
roto ao senhor doutor delegado e ao excelentíssimo senhor coronel N. N.,
chefe da política local, semideus, dono e tutu-marambaia da terra.
Ao
entrar em Rio Manso, vencidos os primeiros casebres, chamou-me a
atenção um berreiro. Em certa casinhola fechada ia rolo velho, surra ou
luta, a avaliar pelos gritos que de lá vinham. Não posso ver dessas
coisas sem intervir. Parei à porta e com rompante de autoridade dei com a
argola do relho.
— Que é lá isso aí?
O rumor interno cessou, mas ninguém me respondeu. Nisto aproximaram-se alguns vizinhos, de mãos no bolso e ar velhaco.
— Que terra é esta? — gritei. — Mata-se gente dentro das casas e ninguém se move?...
Retrucou-me um deles:
— Se a gente fosse se incomodar cada vez que o Bento Cego desce o guatambu nos filhos...
Bento Cego... O caso interessava-me. Pedi informações.
—
É um cego que mora aqui, o Bento. Ele gosta da sua pinguinha. Bebe às
vezes demais, vira valente e mete a lenha nos filhos. Tranca a porta e
é, como diz o outro, pancada de cego!
Fiquei na mesma e, vendo
que o sujeito não me adiantava o expediente, bati de novo na porta com o
cabo do relho. Abriu-me dessa feita um rapazinho aí dos seus catorze
anos. Interpelei-o. O menino, a coçar-se, olhou para a gente reunida
atrás de mim e riu-se.
— Bem se vê que o senhor não é daqui.
Papai é assim mesmo. Bebe seus martelinhos e quando esquenta a cabeça o
gosto dele é bater. Nós deixa, e até se diverte com isso...
Assombrei-me.
Um pai cujo gosto é bater na prole e filhos que se divertem com a
surra! Mas como cada roca tem seu fuso e eu não conhecia o uso daquela
terra, não pedi mais — toquei para o hotel, vivamente interessado pelo
estranho costume daquela família.
Armei tenda em Rio Manso e
pus-me a consertar olhos. Entrementes, enfronhei-me na história do Bento
Cego. Nascera arranjado, filho dum fiscal da Câmara, e quando casou
morava em casa própria, legada pelo pai e sita em rua de procissão. Maus
negócios fizeram-no perdê-la e passar à rua mais modesta. Vieram
filhos, vieram doenças, macacoas de toda espécie, urucas, e Bento, a
decair mais e mais, foi rolando para pior até acabar cego, à beira da
cidade, na zona da mendicância. Como e por quê?
Era Bento um
triste incapaz. Não prestava para coisa nenhuma. Começasse por onde
começasse, seu destino seria sempre aquele, acabar na rua chorando
esmolas. Bobo em negócios, tinha, entretanto, fumos de esperto. Piscava o
olho a cada transação que fazia, e quando os arregalava via-se logrado,
tungado, embrulhado, furtado pelos “passadores de perna”.
Fez-se
barganhista, e jamais a barganha lhe deu o menor lucro. Começou pela
casa. Barganhou-a por outra, muito inferior, tentado pela “volta”. Em
três meses comeu a “volta” e ficou a nenhum em matéria monetária. Mas a
tentação da “volta” não o abandonou mais. Iria barganhando e comendo as
“voltas”: solução mirífica, pensou ele piscando o olho. E assim fez.
Casão
por casa, casa por casinha, casinha por dois carros e quatro juntas de
bois, os carros por dois cavalos, os dois cavalos por uma besta de fama
que fazia e acontecia e não sei quem dava por ela oitocentos “bagos” —
um negocião, sempre um negocião!
A ciganagem espigatória viu nele uma perfeita mina incapaz de resistir ao sésamo “volta”!
E
tantas voltas deram no pisca-olho, que Bento se viu por fim com toda a
herança paterna reduzida à mula, que não valia nem metade do preço. O
freguês dos oitocentos bagos era fantástico e por muito feliz se deu ele
de passá-la adiante por duzentos e sessenta mil-réis, mais uma garrucha
velha de lambuja.
Os filhos, já taludos por esse tempo, saíram
ao pai. Nunca frequentaram escolas, nem queriam saber de trabalho. Não
se “sojeitavam”. Pelas vendas, à toa pelas ruas, viraram os piores
moleques da terra e transformaram num inferno a casa do Bento.
Exigências, brigas diárias, palavrões imundos e uma lambança das mais
sórdidas. E como o pai, frouxíssimo de caráter, nunca tivesse ânimo de
lhes torcer o pepino, eles acabaram torcendo o pepino ao pai.
Tratavam-no como alguém trata cachorro, aos pontapés, e por fim, quando a
miséria chegou e faltou um dia feijão à panela, foram às últimas —
espancaram-no.
Bento não reagiu. Reagir como, se eram três e ele
não chegava a um? Resignou-se. Estimulados por tamanha covardia,
entraram os filhos a repetir as doses, a amiudarem-nas, até o meterem
para ali, num canto, bode expiatório e armazém de pancadas.
Bento
deixou de ser homem. Passou a coisa humana, triste molambo de carne
pensante, tímida, apavorada; desprezado de todos, seu consolo único era o
álcool, em cujo sopor vivia agora imerso. Tal situação durou até a
venda da besta. Aí explodiu. Quando entraram em casa os duzentos e
sessenta mil-réis, mais a garrucha, Bento anunciou que ia aplicá-los num excelente negócio. Fartos de excelentes negócios, os filhos opuseram-se. Ele havia que repartir o cobre.
Bento
resistiu, retesando as vagas fibras da energia ainda restante em sua
alma. Os filhos quebraram-lhe a cara com o cabo da garrucha e fugiram
com o dinheiro. Datou daí a cegueira do homem; do espancamento resultou
traumatismo do nervo óptico e consequente catarata. Bento passou a
mendigo.
Viúvo que era, sem cão em casa, arranjou um cão, um
porrete, um negrinho sarambé para guia e iniciou vida nova. Como em Rio
Manso não existissem cegos, todos se apiedaram dele. Davam-lhe roupas
velhas, chapéus, mantimentos, dinheiro — afora consolações verbais.
Resultou
disso que uma relativa abundância veio substituir-se à miséria de até
então. Chapéus, possuía-os às dúzias, e de todos os formatos, inclusive
cartola! Calças, paletós e coletes, às pilhas. Até fraques e uma formosa
sobrecasaca de debrum vieram enriquecer-lhe o guarda-roupa.
Bento dizia:
— Deus dá nozes a quem não tem dentes. Agora que é um corpo só na casa, tanta roupa, até fraque...
Mas
os filhos marotos cheiraram de longe a reviravolta da fortuna e
bateu-lhes a pacuera do arrependimento. Hoje um, amanhã outro, vieram os
três, cabisbaixos e humílimos, implorar perdão ao velho. Que não
perdoará um cego, inda mais pai? Bento perdoou-os e readmitiu-os em
casa. A esmola sempre farta havia de dar para todos. E deu. Nunca daí
por diante faltou feijão à panela, nem roupa ao corpo, nem dinheirinho
para o resto, inclusive cachaça e fumo.
Milagre! Aquele homem que
de olhos perfeitos jamais conseguira coisa alguma na vida além do
desprezo público e da pancada dos filhos recebia agora provas de
carinho, gozava certa consideração, fazia-se chefe da casa, respeitado,
ouvido — e até temido!
Acostumou-se a mandar e a ser obedecido. E
não o fizessem! E não o fizessem depressa! Sua mão, outrora tão frouxa,
esmagava agora todas as resistências. Sua vontade encorpou, enrijou,
deitou os galhos da veneta. Até da viuvez se remendou o Bento. Surgiu
logo uma parenta pobre que lhe escreveu propondo-se a morar com ele e
cuidar da casa. Veio a mulher, arrumou-se, deu boa aparência de limpeza e
ordem ao tugúrio da lambança e do desmazelo, fazendo coisa fina, que a
toda gente causava pasmo. Bento chegou a pensar na aquisição da casinha,
e para isso foi apartando cobres.
Mais tarde, novo parente em
petição de miséria veio achegar-se à sua sombra — um misantropo que lhe
contava lorotas e lia capítulos do Bertoldo e da história de Carlos
Magno e os doze pares de França. Bento era fanático de Roldão e nunca
admitiu que fosse lida a segunda parte do livro, em que Bernardo Del
Carpio vence os doze pares.
— Mentira! Não venceu nada — dizia
ele. — Veja se um Bernardo, seja donde diabo for, é lá capaz de aguentar
uma só lambada da durindana de Roldão! Venceu coisa nenhuma...
Uma
nuvem apenas toldava a paz da família restaurada. Bento bebia, e se
errava a dose, sorvendo a mais um martelo que fosse, esquentava a
cabeça. Aspectos da vida antiga vinham-lhe então à memória: o caso da
besta, a cena da pancadaria, e Bento, com grande furor, apostrofava os
filhos criminosos. Em seguida castigava-os. Corria os ferrolhos das
portas e, chispando maldições tremendas, deslombava-os à cega.
Os filhos suportavam o tratamento sem a mínima reação. Mereciam-no e, além disso, era tão gostosa aquela vidinha esmolenga...
Foi
por essas alturas que cheguei a Rio Manso, e o caso do Bento, que desde
o primeiro dia me interessara à curiosidade, interessou-me depois à
piedade. Resolvi curá-lo. Examinei-o e vi que cegara em virtude de
catarata de origem traumática, sob forma de fácil remoção. A faca de De
Graefe punha-o bom em três tempos.
Propus-lhe o tratamento.
—
Deus que o abençoe! Que vontade tenho de ver de novo o sol! O sol, as
cores, as gentes... Só quem perdeu a vista sabe o que valem os olhos.
Esta noite sem fim...
— Terá fim a tua, meu velho. O caso é
simples e tenho a certeza de por-te sãozinho como dantes. Apronto-te um
quarto em minha casa, donde só sairás curado.
— Deus o ouça!
Sempre pensei em procurar curar-me. Mas não havia médico por aqui, era
preciso ir longe, viagem cara... Se os “videntes” soubessem o que é a
cegueira...
“Videntes”! Ele chamava videntes aos que enxergam...
— Pois está combinado. Amanhã cedo vais ao meu consultório e amanhã mesmo te opero. E verás de novo o sol, as flores, o céu...
A fisionomia do cego irradiava.
—
Sabe o que mais desejo ver? — disse revirando nas órbitas os olhos
branquicentos. — A cara dos meus filhos. Eram tão maus e são hoje tão
bonzinhos...
No dia seguinte, cedo, preparada a ferramenta, fiquei à espera do meu homem.
Oito, nove horas, dez, onze e nada. Bento não aparecia.
— Geremário, já aprontou o quarto do cego?
— Não, senhor.
— Por quê? Não ordenei isso ontem?
Geremário sorriu maliciosamente.
— O homem não vem, seu doutor. Vai ver que não vem. Pois se a sorte dele é ser cego...
Revoltou-me
aquele cinismo de opinião e ordenei-lhe com rispidez que cumprisse
minhas ordens sem mais filosofias. E inda de vincos na testa saí de rumo
à casa do Bento. Encontrei-a fechada. Bati e ninguém me respondeu.
Insistia nisso quando à janela do casebre fronteiro assomou a trunfa
duma bodarrona em camisa.
— Pode dizer-me que fim levou a gente desta casa? — perguntei-lhe.
— Seu Bento? Seu Bento foi-se embora. Ali pelas dez da noite os filhos “vinheram” com um carro de boi e um recado seu.
— Meu?...
—
Seu sim! Que o doutor mandou dizer que fosse já, já, por causa da
operação — uma história comprida. Seu Bento trepou no carro, com aquela
coruja que mora com ele, mais o leitor de livros, e as roupas, e o
cachorro, e o negrinho, e a cacaria inteira. Até uma cartola desta
altura levaram! Depois o carro seguiu por esse mundo afora. Os filhos
consumiram com ele...
Fiquei parvo, inteiramente desnorteado de ideias.
A boda prosseguiu:
— Mas se ele só presta porque é cego... Se sarasse, toda a família afundava na miséria outra vez...
No
meu primeiro ímpeto de dar queixa à polícia disparei para a casa do
delegado. A meio caminho, porém, estava arrefecida essa inspiração e, ao
chegar à delegacia, gelada de todo. Parei à porta. Vacilei. Em seguida
dei de ombros, convencido de que o Geremário tinha razão e tinha razão a
boda, e os filhos do cego tinham razão, e todo mundo tem razão.
Polícia! A polícia viria romper ineptamente esse maravilhoso equilíbrio
das coisas de que resulta a harmonia universal.
Rodei para casa.
Logo ao entrar apareceu-me o Geremário com ar de quem adivinhou tudo.
— Ponha o almoço — ordenei-lhe secamente.
— Sim, senhor. E... posso desarrumar o quarto do cego?
Olhei
bem para ele, ainda irritado. Mas a irritação caiu logo. Que culpa
tinha o Geremário de conhecer a vida melhor do que eu? Humilhei-me e
respondi apenas:
— Desarrume…
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Nota:
(1) Faca de Graefe: instrumento cirúrgico usado nas operações de catarata.
Fonte:
Monteiro Lobato. O Macaco que se fez Homem. Publicado em 1923.