sexta-feira, 14 de março de 2025

Monteiro Lobato (A rainha que saiu do mar)

Houve um rei que encasquetou casar-se com a moça mais bonita que houvesse. Seus oficiais já tinham percorrido todas as cidades, e esmiuçado todas as casas, sem que descobrissem a beleza que o contentasse. Só faltava serem apresentadas ao rei as filhas de um lavrador, as únicas que ele não tinha visto. Estavam as coisas nesse pé quando entrou na igreja um rapaz de ar abobalhado, que olhou para a imagem de uma santa e pôs-se a chorar.

Perguntaram-lhe o que era, se estava sentindo alguma dor.

— Não sinto dor nenhuma — respondeu o rapaz — mas é que olhei para aquela imagem ali e senti grandes saudades de minha irmã, que é o retrato da santa.

Todos comentaram aquelas palavras, uns caçoando, outros a sério, e de tanto diz-que-diz o caso chegou aos ouvidos do rei, o qual fez vir o moço à sua presença e lhe perguntou se era verdade o que dissera na igreja.

— É, sim — respondeu o rapaz — tenho uma irmã muito linda, o retrato daquela santa da igreja.

— E onde mora?

— Nas grotas do monte Escarpado, a dez mil léguas daqui, por terra, ou cinco mil por mar.

O rei mandou preparar uma esquadra que levasse os seus mensageiros ao pai da moça, a fim de pedi-la em casamento — e o rapaz que dera a informação seguiu junto.

Quando a esquadra chegou à terra do monte Escarpado, os mensageiros desceram, seguindo para a tal grota. A moça estava à janela. Oh, que maravilha! Todos ficaram tontos diante de sua beleza. Os mensageiros entregaram a carta do rei e o pai concordou em dá-la em casamento. Feitos os preparativos, a linda criatura entrou num dos navios e a esquadra partiu.

Em certo ponto da viagem o mar ficou tão bravo que os emissários resolveram descer com a moça em terra, por algum tempo. Recolheram-se à casa de uma velha que morava por ali. Mas a velha não passava da pior das pestes, pois tendo ouvido a história da moça, convidou-a a um passeio pela horta, e lá zupt! — jogou-a dentro de um poço.

Quando chegou a hora do embarque a velha levou à esquadra uma filha sua, muito feia, com a cara coberta por um véu, de modo que os emissários não perceberam a troca. A esquadra partiu.

Assim que os navios desapareceram ao longe, a peste foi ao poço e pescou a moça, cortou-lhe o cabelo, furou-lhe os olhos e botou-a dentro dum caixão, que lançou ao mar. Esse caixão foi parar no reino do rei antes que os navios chegassem, sendo recolhido por um pescador.

Mas alguém que viu o pescador recolhendo o caixão deu denúncia ao rei, o qual mandou investigar. As autoridades vieram, abriram o caixão e muito se assombraram de ver dentro uma tão linda moça, de olhos furados e cabelos cortados.

Lá levaram a cega para o palácio, mas por esse tempo também os navios já tinham chegado e os emissários iam entrando com a filha da velha. O chefe do grupo, muito desapontado, declarou ao rei:

— Fui alegre, senhor, e volto triste. Muito esperei e pouco alcancei, e se nisto há culpa minha, pronto estou para sofrer o castigo que Vossa Majestade haja por bem impor-me.

O rei, entretanto, era homem de bem. Apenas disse:

— Ninguém tem culpa de nada. Prometi, cumpro. Casar-me-ei com esta moça feia.

E casou-se na maior tristeza, vestido de luto. Só depois disso é que lhe apresentaram a moça de olhos furados. Mas o irmão dela, que estava presente, reconheceu-a de pronto e contou ao rei o desembarque no meio do caminho, a ida à casa da velha, o passeio da velha pela horta e por fim falou da substituição da sua irmã pela filha da velha.

O rei mandou trazer a velha à sua presença. A peste negou tudo e até renegou a própria filha, dizendo que nunca tinha visto semelhante feiura. Mas a semelhança de traços entre a mãe e filha era muito grande para que alguém pudesse ter a menor dúvida, e o rei deu ordem para que cortassem os cabelos e furassem os olhos da velha.

Assim que isso foi feito, os olhos da moça bela ficaram perfeitinhos, e sua cabeleira cresceu num instante. Virou uma criatura ainda mais formosa do que havia sido. Estava tudo salvo. As duas embusteiras foram lançadas ao mar e o rei viu-se, finalmente casado com a criatura mais linda que havia.

Fontes:
Monteiro Lobato. Fábulas. Publicado originalmente em 1922.
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quinta-feira, 13 de março de 2025

Adega de Versos 134: Washington Daniel Gorosito Pérez

 

Geraldo Pereira (O Pranto da Caatinga)

O homem de estático semblante, sem a dinâmica que os traços da face oferecem, recostado à porteira, como se fosse possível ao inteiramente inerte suportar o peso dos vivos, mesmo que os vivos sejam quase mortos, assistia ao drama que a terra passava. As plantas e os bichos em prolongada agonia da fome e da sede, a tombarem nos sertões sob os acordes mais do que fúnebres da seca desoladora. Do lado de fora da cerca uma grande árvore de galhos desfolhados parecia abrir os braços em súplicas dos horrores, clamando por água que pudesse sanar a secura das raízes ou sarar as feridas do calor abrasante. Sob o vegetal, morreu a vaca malhada, de couro branco e manchas negras que desenhavam o mapa de todas as desditas. E o predador dos céus, de um preto muito preto, um desses com a marca da realeza no encarnado da cabeça, desceu para cumprir o desiderato da hora: limpar o mundo das podridões e das carniças.

Rios que secaram e inúteis barreiros, leitos expostos aos ares do nada, infeliz momento da natureza chorando o pranto seco da caatinga, sem lágrimas! A mulher morena, de pele curtida, segurava nas mãos os filhos que tinha! Crianças tristonhas, de semblantes parados, olhando o infinito das coisas em busca de um sinal que fosse, de nuvens chegando. Nada para ver e nada para olhar! O caçador que armou a espingarda com a pólvora e o chumbo não encontrou a caça do dia e de volta pra casa, com o vazio no bornal, fez a mãe de sua prole cozer a palma endurecida e amarelada de antigo plantio. O mandacaru na panela deixou-se virar em baba, imitando a quiabada bem cuidada, alimentou a família e sufocou o grito enorme dos estômagos em contrações do oco. Há muito não se tem por cá, nessas bandas do Sertão, Canindé acima e Canindé abaixo, comida de gente que mate a fome. E na mesa do almoço, o menino de olhar pidão fitava o prato, absorto! O homem, então, sofre a metamorfose de sua natureza e em bicho se transforma!

O cavalo mais que esquálido, de costelas à mostra e de pernas cambaleantes, passou à frente do carro, atravessando lentamente a rodovia, buscando, na verdade, um lugar no qual pudesse expirar definitivamente. Entregar-se ao destino cruel do tempo e da hora! Ao longe, a égua e o seu filhote procuram na terra um resto de relva, do verde viçoso de um antes de esperanças nascentes, mas é a palha do chão que engana o herbívoro animal, adulto e velho, de cujas tetas não goteja mais o branco do leite. Resistem os carneiros, o bode e a cabra, mesmo que magros, sem a lã das friorentas paragens e de pelos quebradiços, indeléveis marcas das secas vividas, da água faltando e do capim rareando. Se agrupam e o rebanho segue, investindo aqui e ali na amarelada penugem que ainda resta no solo. Comem até pedra, explica o moço, justificando o pouco de vida na paisagem desgraçada dos sertões esturricados.

O Velho Chico, porém, nas proximidades daquela secura, corre caudaloso e fértil, traz nas águas o húmus que faz a terra parir comida para alimentar a gente e o gado, para nutrir o homem trabalhador e o bicho pachorrento, a vaca e o boi, mas também a galinha poedeira e o peru de roda. Se à força da bomba a água sai e vai regar o roçado, cresce o quiabo e o milho brota, o feijão desabrocha e a mandioca mergulha nas intimidades do telúrico, a cebola ganha peso, cheiro e cor para temperar na cozinha a costela ou a cabidela, a buchada ou a dobradinha, o sarapatel de sangue pisado ou o fígado reluzente do criatório de casa. Não é à-toa que as experiências da Companhia Hidroelétrica do São Francisco mostram a valia da irrigação, complementando a geração de energia, dando à criatura a completude do humano. Engenheiros humanizados, inquietos com a natureza, insatisfeitos com a dignidade do habitante das desprezadas margens do grande rio. Gerentes dos convívios, das vivências e das convivências tupiniquins!

Eis o pranto da caatinga, que é o choro dos sertões, que vi e que ouvi em minha viagem a Xingó!
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* Crônica de uma viagem a Xingó. Um diário da paisagem e da gente simples nos caminhos de Canidé. Visões que tive de uma seca enorme, contrastando com a fartura das margens do rio São Francisco.
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GERALDO JOSÉ MARQUES PEREIRA nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.

Fontes:
Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público
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Aparecido Raimundo de Souza (Rito pagão)

VEJO-ME neste momento, como se estivesse deslumbrantemente perdido num jardim tipo o de Epicuro. Não estou só. No vai e vem do imenso florido, dois corações dançam ao ritmo de um pêndulo magnânimo.  Eu e Tatá. Essa jovem é aquela menina linda cujo perfil é idêntico ao da garrafinha de iogurte sabor morango. Morango é a minha fruta preferida. Como duas partículas perdidas em um universo só nosso, fomos atraídos um pelo outro não como o Roberto Carlos, de 83 pela Tamara Angel de 28. Tatá não me vê como o rei.  Não sou rico, nem moro na Avenida Portugal, na Urca. Tatá é humilde como seu bairro simples de Santa Cruz, na zona oeste do Rio. Eu, 71 e ela 25, dividimos um momento especial, um instante mavioso e lisonjeiro, um quadrado imedível, só nosso, e juro por tudo quanto é sagrado: não vivemos em um tresloucado incessante de aproximação e afastamento. 

Tatá é magra como minha conta bancária. Seus olhos fartos e verdes, profundos como um oceano infinito. Seu rosto de boneca e seu sorriso encantam a minha alma até os cafundós de um universo perdido em distâncias milenares. Seu sorriso tímido me leva à loucura, uma espécie de doideira tão desvairada e enlouquecida, que quando seu corpo me abraça ou me agarra, me sinto como descreveu Apuleio, em seu “Asno de Ouro,” com a diferença que na “Metamorfose” desse escritor nascido em Madoura, hoje colônia romana da Numidia, o animal  principal não ia além de um minotauro que se relaciona com uma  mulher. Na minha história, a beldade-princesa se assemelha a uma joia de raro valor, tipo a Paolla Oliveira, e eu, como disse e repito, não um monstro cretense, tampouco um jumento, mas a bem da verdade, no fundo, um cavalo manga larga marchador tipo o Diogo Nogueira.

Tatá me vivifica com um alento velado, uma paz inquietante que me faz questionar os próprios anseios que me assaltam. Ela, além de bela e encantadora, é uma centelha de luz em meio às sombras que tento desvendar quando ela não está por perto. Nos conhecemos coisa de uns cinco meses, numa churrascaria. Foi amor ao primeiro gole de uma coca-cola bem gelada. Como o pêndulo que nunca encontra descanso, nossos corações oscilaram entre a paixão avassaladora e o medo mórbido do desconhecido. Ela estava com umas amigas e, de repente, se levantou, e partiu para o abate, digo, para o ataque. Nosso primeiro esbarrão se deu em direção às toaletes. Antes de entrar, joguei nas mãos dela o meu cartão e meia dúzia de palavras: “Vou te esperar lá fora, em frente à farmácia. Estarei disfarçado de bebê chorão”. Ela riu. Completei: “Venha se encontrar comigo e vamos ver no que dá”. 

Vinte minutos depois, lá fora, ao sabor das vinte horas, sob o céu de lua afogueada, um calor que molhava o coração e inundava a alma, nos esbarramos “enfim sós”. Caminhamos de mãos dadas até a praça repleta de crianças, cachorros, gritos, risadas, moradores de rua, e barraquinhas diversificadas vendendo os mais engordantes tipos de comes e bebes. Quando nos sentamos num banco de cimento, meu relógio marcava o tempo de maneira imprecisa, quase zombeteiro. Ficamos um tempo sem dizer nada, colados, um no outro. O silêncio, entre nós se fazia confortante. Apesar do calor, de repente nos envolvemos num abraço silencioso que dizia mais do que mil palavras poderiam expressar. Ela me disse seu nome e eu o meu. “Vou lhe chamar de Tatá.”  Com um sorriso doce, cinco minutos depois o silêncio se viu totalmente quebrado. 

“Sabe — observou ela — às vezes me sinto como um pêndulo, oscilando entre a certeza de querer você por perto e o medo de perder a mim mesma no processo de te conhecer.” 

Interessante — falei pressuroso — “eu também estava com esse mesmo pêndulo na cabeça.” Segurei a mão dela com delicadeza, e respondi: “Talvez o segredo esteja em encontrarmos nosso próprio ritmo, sem pressa, sem medo. Deixemos o Foucault oscilar, e façamos do nosso amor um refúgio, um lugar onde o tempo parece, assim do nada, estancar.” 

Nesse primeiro dia, não fomos além de beijos e abraços. Os dias seguintes passaram, e continuamos a dançar ao som de conversas triviais, beijos, abraços, batatas fritas, refri e pizzas. Algumas vezes, o acaso nos aproximava com fervor, compartilhando sonhos e confidências. Outras vezes, medrados (*sic), nos afastávamos nos perdendo em nossas próprias incertezas. 

Pois bem! Entre tapas e beijos, percebi, nesse interregno de tempo, e aqui, de novo, voltando ao pêndulo, sempre que ele oscilava de retorno, a gente se encontrava novamente, e o mais engraçado, nos sentíamos mais fortes, mais certos de que o amor, mesmo com seus altos e baixos, usque (**) suas oscilações, a meu entender, o fio tênue do nosso gostar se fortalecia num elo inquebrantável que nos mantinha vivos. No fim, coisa de três semanas depois, descobrimos que o amor não precisava ser linear, ou se mover de maneira constante. Ele podia realmente se apresentar como aquela peça móvel formada por um corpo pesado suspenso em um ponto fixo, e que, sob a ação da própria esquisitice realizava movimentos isócronos de vaivém, ou aquele mecanismo que oscilava de um lado para o outro, entretanto, nunca deixava de regressar ao ponto de onde partiu. 

Concluí também que nesse balanço, encontramos um ritmo que havia nascido de nós, ou dito de forma mais sucinta: um compasso que nos guiaria para um “sempre-pronto” que estava ali, apenas alguns passos adiante. No vai e vem do tempo, assim do nada, nossos corações passaram a dançar ao ritmo de um objeto ocioso. Nós dois nos tornamos duas partículas perdidas em um universo caótico, atraídas, todavia, um pelo outro em um movimento incessante de aproximação e desaceleramento. Tatá, com seus olhos profundos e sorrisos tímidos, encontrava em meu “eu” um alento, uma paz inquietante que a fazia questionar os próprios anseios. Por minha vez, via em Tatá, uma centelha de luz em meio às sombras que necessitava desvendar. Resumindo a nossa historinha, nós sabíamos um do outro desde sempre, ou pelo menos assim, tudo para nós parecia surreal.

Como o pêndulo que nunca encontrava descanso, oscilavam incansavelmente a paixão avassaladora e o medo do desconhecido. Os meses passaram, e continuamos a dançar ao som do fabuloso objeto. Algumas vezes, a gente se aproximava com fervor, compartilhando sonhos e confidências. Noutras nos afastávamos perdendo um tempo enorme em nossas próprias incertezas. Sempre que o pêndulo oscilava de volta, a gente se encontrava novamente, mais fortes, mais certos de que o amor, mesmo com seus altos e baixos, culminava no ponto nevrálgico que nos mantinha vivos. A paixão entre nós dois cresceu como uma chama ardente, alimentada pelos momentos de desejo e saudade. Cada encontro um reencontro, um redescobrimento do que sabíamos: fomos feitos um para o outro. Nas noites em que nos víamos, o mundo ao redor deixava de existir. 

Os beijos, os abraços, as noites dormindo juntos, se tornavam mais intensas, obviamente, os toques e carícias mais urgentes e necessários. Por fim, entregamos nossos medos e receios de espírito e alma ao “seja o que Deus quiser”, permitindo, com isso, que o amor, o nosso amor, fluísse como um rio de sensações imorredouras. 

E o pêndulo, como ficou? Serviu de ponto de partida. Introduziu com sucesso a sua munição total dentro da nossa fortaleza. Se tornou um símbolo de estreita relação. Ora suave e romântico, ora selvagem e apaixonado. Mas indestrutível. Tatá aprendeu que, mesmo nos momentos de incerteza, seu amor se agitava de maneira mais constante e isso se consubstanciava no segredo que nos mantinha juntos. E na pulsação desse pêndulo, ainda que imaginário, encontramos não apenas a paz; também a excitação de viver um amor que balouçava, mas nunca se apagava. Ou melhor, nunca se extinguiu.
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Notas:
* Medrado =Medrado é o mesmo que: fomentado, desenvolvido, crescido, florescido, progredido, melhorado, aumentado, expandido. 
Coloquei sic (sic erat scriptum), expressão traduzida como "assim estava escrito, pois pode ser um erro do autor ao digitar, pois a palavra não tem nenhum sentido no texto em questão. Creio que seria amedrontado.
** Usque = é uma palavra latina, que significa até, utilizado em termos jurídicos.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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quarta-feira, 12 de março de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 25 *

 

José Luiz Boromelo (Ferrugem)

O arrependimento já incomodava. As filas imensas e o calor insuportável se encarregavam de fornecer os ingredientes necessários para testar os limites da paciência. A balconista mostrava-se incapaz de resolver uma simples adição e com a calculadora na mão atrapalhava-se ainda mais, voltando inexplicavelmente ao ponto de partida. Irritou-se com a oferta de ajuda externa (a minha), sem conseguir contabilizar o valor final dos produtos. Sua teimosia mostrou-se infinitamente maior que o pífio conhecimento de cálculos elementares, apesar da impossibilidade momentânea de uso do tradicional sistema de leitura por código de barras, em virtude da falta de energia elétrica. Para sorte de minha “vítima” o socorro providencial chegou a tempo de viabilizar a transação comercial, deixando o cliente “plenamente satisfeito” com a inesquecível demonstração da invejável capacitação profissional, proporcionada pela empresa a seus funcionários.

Cada vez mais sou levado a acreditar no conhecido ditado popular da época de nossas avós que garante: “Tudo o que não se usa, enferruja”. Nada mais verdadeiro, constatado ao vivo e em cores naquele supermercado. O uso da tecnologia facilitou de tal forma as atividades cotidianas que deixamos de exercitar o cérebro, transferindo essa função aos incontáveis meios disponíveis para tal. Em todos os setores sobressaem as mais diferentes possibilidades da modernidade, em que o usuário só tem o trabalho de digitar alguns caracteres e pronto: tudo está à mão em questão de segundos. Mas nem só o cérebro foi afetado pela tecnologia. Há muito deixamos de exercitar os músculos por conta do vidro elétrico, da direção hidráulica e do câmbio automático. Ou os tendões e o sistema cardiorrespiratório ao preterir a escada e utilizar constantemente o elevador. Ou ainda quando perdemos a oportunidade de caminhar algumas quadras para atender a algum compromisso, preferindo o conforto do ar condicionado e do som automotivo.

Às vezes sou acometido pela nostalgia dos tempos da adolescência, quando frequentava o curso de datilografia. A disciplina rígida imposta pelo professor culminava com a habilidade necessária para concluir os exercícios com eficiência (fico inconformado com o humilhante “cata-milho” exibido por alguns “experts” da tecnologia). Sinto saudades do tempo da chamada oral para a tabuada (imagino o sentimento do educador diante do aluno que manipula descaradamente o telefone celular em sala de aula), da disciplina de Educação Moral e Cívica; do emprego correto da crase, do trema, do acento agudo. Coisas que não voltam mais.

Ainda hoje procuro preservar aqueles valores quase esquecidos, mesmo que para isso seja considerado ultrapassado (os mais jovens empregam maldosamente outros termos pejorativos). Minha velha e boa Remington acabou empoeirada na prateleira, depois de quatro décadas de bons serviços prestados. Decerto também já apresenta vestígios de ferrugem. Para mim e para ela, não há desengripante que dê jeito. Sinal de que o nosso tempo já se foi.
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José Luiz Boromelo, é de Marialva/PR, policial rodoviário aposentado, escritor, cronista e agricultor, colaborador da Orquestra Municipal Raiz Sertaneja.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Vereda da Poesia = 225


Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

A DESCONHECIDA

De onde ela veio os riscos eram poucos;
cais de sossego e amores comedidos…
porto seguro…, mas de ouvidos moucos
aos seus anseios, sempre preteridos.

Um dia, enfim, nos descobrimos loucos,
incendiando instintos escondidos
e nos amando entre os gemidos roucos
das feras que contêm suas libidos.

Aos poucos pude ver que descobrimos
detalhes tão comuns de um sonho imenso,
motivos pelos quais nós nos unimos…

E agora a vejo triste e dividida
entre as surpresas deste amor intenso
e o porto que acolheu a nau transida!
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Poema de
CARLOS LÚCIO GONTIJO
Santo Antônio do Monte/MG

ORAÇÃO DOS CASAIS

Meu bem, sei que Deus protege os casais
Semeia trigais de ternura na pele
Para que o amor sele as marcas da procura
Então, na hora em que a gente for dormir
Façamos jus aos cuidados do Senhor
Por favor, acenda-me quando apagar a luz!
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

O TEU ROSTO DE SAL NA PRAIA VÃ
(José Charles González in "Cem Sonetos Portugueses", p. 148)

O teu rosto de sal na praia vã
Filtrava a luz do sol nesse cristal
E lá do sul, subindo o areal
Vinha a lua dizer que é tua irmã.

Sendo a razão de ser desta manhã
Silhueta esculpida num vitral
Serias Virgem numa catedral
Se não tivesses já coroa de romã.

És sereia que o mar azul trouxesse
Uma rosa de orvalho que amanhece
E, por milagre, a Terra iluminasse.

És aragem lembrando borboleta
Vestida de amarelo, azul, violeta
E que ao bater das asas nos deixasse.
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Soneto de
AFONSO FREDERICO SCHMIDT
Cubatão/ SP, 1890-1964, São Paulo/SP

ROSAS LOUCAS

A rosa louca é a rosa mais singela
de todas as rosas, mas é bela
porque nasce nas cercas, nos caminhos
e conta menos flores do que espinhos.

A rosa louca é a rosa mais plebeia
dentre todas as rosas, traz à ideia
a moçoila do bairro, tão bonita
com vestidos de cor, feitos de chita.

A rosa louca é a rosa que se olha
sem tirar do pé, porque desfolha;
ela pede perdão de não ter graça;

desponta, desabrocha, encanta... e passa.
Estas rosas são breves e são poucas,
como o riso feliz em nossas bocas…
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Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

ELOGIO AO SONETO

No meu viver de agitação, proscrito,
eu busco a paz para escrever um verso
e de alma pura, coração contrito,
procuro a melhor rima do Universo.

O desespero aperta, estou aflito…
Como escrever num mundo tão perverso?
A inspiração me acode com um grito,
e o meu soneto nasce, incontroverso…

Ao verbo de Camões me fiz escravo.
em busca da palavra me fiz bravo,
para dar ao soneto nova aurora…

Que o pavilhão tremule lá na praça,
e brilhando, qual pérola sem jaça,
reine o soneto pelo mundo afora!
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Soneto de
MIGUEL RUSSOWSKY
Santa Maria/RS (1923 – 2009) Joaçaba/SC

ORAÇÃO DO POETA

– Que me darás, Senhor, pela jornada
de dores, privações e misereres?
– Eu te darei a noite salpicada
de estrelas e silêncio. Que mais queres?

– E para a solidão da madrugada?
– Já fiz o mundo cheio de mulheres.
procura e encontrarás a tua amada.
Faz os mais lindos versos que puderes.

– Mas como irei, Senhor, reconhecê-la?
– Há no céu, entre todas, uma estrela
que apenas tu verás. Que mais perguntas?

– E este frio e esta angústia que ora sinto?
– Quando ela penetrar em teu recinto
a primavera e a paz hão de vir juntas.
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Cantiga Infantil de Roda
PEZINHO 

Ai bota aqui 
ai bota ali 
o teu pezinho
O teu pezinho 
bem juntinho 
com o meu

Ai bota aqui ai bota ali 
o teu pezinho
O teu pezinho o teu pezinho 
ao pé do meu

E depois não vá dizer 
que você já me esqueceu
E depois não vá dizer 
que você já me esqueceu

E no chegar deste teu corpo, 
uma abraço quero eu
E no chegar deste teu corpo, 
uma abraço quero eu

Agora que estamos juntinhos, 
da cá um abraço e um beijinho
Agora que estamos juntinhos, 
da cá um abraço e um beijinho

E depois não vá dizer 
que você já me esqueceu
E depois não vá dizer 
que você já me esqueceu
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Teu coração bem amado,
é de tão grande doçura,
que se fosse esquartejado
parecia rapadura.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

O PORTÃO E O VENTO

Num piscar de olhos
Distancia-se o pensamento,
Busco encontrar-te
Em cada folha do Plátano
E pétalas de rosa que guardei...
Imagino que esteja próximo a esquina
Vindo em minha direção,
Mas, num piscar de olhos.
Você retorna aos meus sonhos,
E o portão abre-se com o vento...
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Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Mão de Vaca”

A expressão idiomática MÃO-DE-VACA indica pessoa egoísta, extremamente apegada ao dinheiro e que faz de tudo para economizar até os centavos nas compras mais insignificantes. É também conhecido como avarento, sovina, unha de fome, miserável, agarrado, cobiçoso, forreta, cúpido ou casquinha. Tem origem no formato da pata da vaca, que é fechada como a mão do indivíduo pão-duro, que não admite gastar dinheiro nem que a “vaca tussa”. 

Tem o mesmo significado de “mão fechada” se refere especificamente a alguém que mesmo dispondo de recursos, não solta a grana, não gasta, se escora nos outros, não contribui com nada e por vezes atrasa ou não honra suas obrigações financeiras como taxas condominiais, mensalidades escolares, de clubes e associações, foge de despesas com festas, passa longe de restaurantes ou confraternizações entre amigos, das quais, quando raramente vai, sai sorrateiramente antes que peçam a conta.

Há uma ligeira diferença entre as expressões ser “muquirana” e “mão-de-vaca”. Enquanto aquela se refere a quem não gosta de emprestar dinheiro a terceiros, esta retrata o tipo miserável, mesquinho, forreta e pão-duro. Tal expressão ganhou até mesmo uma série na Discovery denominada “OS MÃOS DE VACA” narrando a saga de quatro famílias que chegam ao limite de vasculhar o lixo e reformar a casa com as próprias mãos para economizar, levando assim vida monástica, com o mínimo de desembolso ou sofisticação. 

A propósito, todo aglomerado humano tem os seus mão-de-vaca e sobre eles, contam-se episódios quase inacreditáveis, mercê de sua costumeira aversão a qualquer gasto, embora não dependam disso para viver. Ficou famoso entre familiares e vizinhos, o sujeito que tapava vários orifícios do chuveiro elétrico, para economizar na conta de energia elétrica. Mas há situações até histriônicas, que vão da alimentação à higiene pessoal, nenhuma despesa passando ilesa pelos que adotam artifícios até bizarros, contanto que resultem na economia de alguns trocados. 

Tem gente muito criativa concebendo métodos para não gastar, como aprender a reformar casa para não contratar pedreiro, consertar o carro para não chamar o mecânico e até arriscar levar choques reparando a fiação elétrica para não contratar eletricista. Outras situações, por hilárias, merecem registro. 

Na década de 60 as compras ainda eram feitas nas mercearias da esquina. Vizinho de uma delas, um conhecido forreta ia até lá comprar leite Ninho, àquela época ainda vendido em latas. Ele colocava de duas em duas latas nos pratos da balança e ficava observando qual delas era mais pesada que a outra. Repetia sistematicamente a experiência e só depois pagava e ia embora, levando a que lhe parecia conter alguns gramas a mais de leite que as outras.

A forretice dos “mão-de-vaca” inspirou um dos quadros mais engraçados na célebre Escolinha do Professor Raimundo, exibida na TV Globo até maio de 1995, programa criado por Chico Anysio e Haroldo Barbosa, reunindo um seleto grupo de humoristas, dentre os quais o comediante Marcos Plonka (26/09/1939 - 06/09/2011) que encarnava a personagem "Samuel Blaustein", comerciante avarento que usava o bordão “fazemos qualquer negócio”. Errava todas as respostas da arguição e quando recebia nota “zero” do professor, comemorava dizendo “mas antes zero na nota do que prejuízo na bolsa”.

Segundo a gozação popular, quando o rei Roberto Carlos compôs em 1978 o grande sucesso que foi “Café da Manhã”, na verdade tinha em mente um apaixonado “mão-de-vaca”, que em vez de presentear sua amada com uma sofisticada cesta de café da manhã, optou por algo bem mais barato, achando que apenas um café dava para os dois, que ainda ficou esfriando na mesa: 

AMANHÃ DE MANHÃ
VOU PEDIR O CAFÉ PARA NÓS DOIS
TE FAZER UM CARINHO E DEPOIS
TE ENVOLVER EM MEUS BRAÇOS

Fazendeiro afortunado, senhor de terras e gado, o Major Salustiano - oficial da antiga Guarda Nacional - no fastígio da borracha adquiriu uma imponente embarcação para visitar seus vastos seringais no alto Rio Purus e para se auto homenagear, resolveu batiza-lo com o seu próprio nome e sua patente militar, da qual muito se orgulhava. Porém, vítima de atávica sovinice, o mão-de-vaca mudou de ideia quando soube que o serviço de pintura era cobrado por cada letra desenhada no casco da embarcação. Depois de muita barganha com o pintor, de “MAJOR SALUSTIANO” o majestoso barco passou a se chamar simplesmente de “SALU”, obviamente bem mais barato para o dono. 

Episódios como esse evidenciam que os mão-de-vaca são facilmente identificáveis em quaisquer grupos sociais, pela psicótica aversão que tem a qualquer desembolso, mesmo quando o gasto se mostra absolutamente necessário, pois é sabido que eles jamais abrem a mão para nadar, dar adeus aos poucos amigos ou mesmo para cigana ler a sorte...
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras. Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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terça-feira, 11 de março de 2025

Adega de Versos 133: Clevane Pessoa

 

José Feldman (Um dia… um tanto quanto bagunçado na praia)


Era uma manhã com um sol vibrante no céu, quando Aparecido e Lindolfo decidiram ir à praia na Vila das Velhas. Enquanto Aparecido carregava uma expressão de desânimo, Lindolfo pulava de entusiasmo, quase derrubando a bolsa de praia.

— Olha, Aparecido! Hoje vai ser um dia incrível! — disse Lindolfo, animado.

— Incrível até você fazer alguma besteira, como sempre — resmungou Aparecido.

Chegando à praia, o primeiro desafio foi montar o guarda-sol. Lindolfo, com seu jeito atrapalhado, logo começou a lutar com a estrutura.

— Deixe que eu ajudo, Lindolfo! — Aparecido disse, tentando consertar o guarda-sol.

— Não precisa, eu sou um mestre em guarda-sóis! — respondeu Lindolfo, confiante.

Assim que Aparecido segurou o guarda-sol, um vento forte soprou e, com violência, o guarda-sol voou das mãos deles.

— Ah, não! — gritou Aparecido. 

Mas era tarde demais. O guarda-sol saiu deslizando e colidiu com uma tenda onde várias pessoas faziam ioga.

— O que foi isso?! — gritou uma instrutora, enquanto algumas pessoas caíam de costas, outras rolavam e batiam em uma barraca de bebidas.

— Ai, meu Deus! — exclamou Lindolfo, tentando ajudar, mas acabou tropeçando em um tapete de ioga. Ele caiu, e junto com ele, um grupo inteiro de praticantes de ioga desmoronou.

— Olha o que você fez! — Aparecido gritou.

As bebidas ficaram espalhadas pela areia, encharcando várias pessoas que estavam em suas esteiras.

— Essa é a melhor aula de ioga que já fiz! — alguém comentou, rindo, enquanto tentava se levantar.

Lindolfo, ainda tentando se recuperar da queda, disse:

— Vamos para o mar! O banho vai nos refrescar!

Os dois correram em direção à água, mas, ao chegarem à beira, perceberam que a areia estava escaldante.

— Ai, ai! Como está quente! — reclamou Aparecido, pulando de um pé para o outro.

— Pula como um saci, Aparecido! — brincou Lindolfo, que estava pulando de forma desengonçada.

Ao fazer um salto, Lindolfo, em sua típica falta de coordenação, acabou tropeçando em um cachorro que passava.

— Cuidado! — Aparecido gritou, mas já era tarde. Lindolfo caiu na areia, derrubando Aparecido junto, que foi parar de cara na água.

— Eu sabia que você ia fazer alguma besteira! — resmungou Aparecido, com a cara encharcada e enlameada.

— Foi só um pequeno acidente! — defendeu-se Lindolfo, rindo enquanto tentava se levantar.

No entanto, ao se levantar, Lindolfo escorregou na areia molhada e caiu novamente, agora em cima de Aparecido.

— Você está me afundando! — gritou Aparecido, tentando empurrá-lo.

— Desculpa! É tudo culpa do cachorro! — disse Lindolfo, se agitando descontroladamente.

Depois de muitas trapalhadas, finalmente conseguiram se limpar e foram para a água. O mar estava delicioso, e Aparecido até começou a relaxar um pouco.

— Olha, Aparecido! Estamos nos divertindo, não estamos? — disse Lindolfo, mergulhando.

— Se você não parar de fazer besteira, talvez sim! — Aparecido respondeu, tentando manter a calma.

Depois de um tempo, eles decidiram voltar para a areia. Mas, ao chegarem, perceberam que a confusão ainda não havia acabado. A tenda de ioga estava cheia de pessoas tentando se secar e algumas ainda confusas com a situação.

— Eles parecem estar se divertindo com o "aula de ioga aquática" — Aparecido comentou, tentando não rir.

— Olha, quem sabe isso não vira uma nova tendência? — sugeriu Lindolfo, piscando o olho.

— Tendência ou não, eu só quero um pouco de tranquilidade! — Aparecido resmungou.

Quando finalmente se prepararam para ir embora, Aparecido estava ainda mais irritado com as trapalhadas de Lindolfo.

— Você sempre arruma confusão, não é? — Aparecido reclamou.

— Mas pelo menos é divertido! — respondeu Lindolfo, rindo.

— Divertido para você! Eu acabei de passar por uma "experiência de areia" — Aparecido disse, enquanto se sacudia.

— Vamos fazer disso uma tradição! — sugeriu Lindolfo, enquanto caminhavam para o carro.

— Tradicionalmente, eu prefiro um dia tranquilo em casa — Aparecido resmungou, mas não pôde evitar um sorriso ao olhar para o amigo.

E assim, entre risadas e trapalhadas, os dois amigos foram embora da praia, mesmo que Aparecido ainda achasse que a próxima saída deveria ser para um lugar bem longe de qualquer guarda-sol.

Depois de um dia cheio de trapalhadas na praia, Aparecido chegou em casa ainda resmungando sobre as aventuras de Lindolfo. Enquanto se aprontava para tomar um banho, Lindolfo, entusiasmado, começou a mexer no celular.

— Olha, Aparecido! As fotos da praia estão incríveis! — disse Lindolfo, piscando para o amigo.

Aparecido saiu do banheiro, com a toalha na cabeça, e olhou para o telefone.

— Fotos? De que fotos você está falando? — perguntou, já prevendo mais confusões.

— Das nossas aventuras! — respondeu Lindolfo, passando rapidamente pelas imagens. — Olha essa aqui: você caindo de cara na areia!

Aparecido se aproximou, e a imagem era realmente hilária. Ele estava com um olhar de espanto, coberto de areia, e Lindolfo, ao lado, rindo descontroladamente.

— Isso é ridículo! — Aparecido exclamou. — Eu pareço um polvo!

— E essa aqui? — continuou Lindolfo, mostrando outra foto. — Olha a cara de quem estava "mergulhando" na água, com areia na cara!

Aparecido olhou para a foto e teve que admitir que, embora fosse constrangedor, era engraçado.

— Tudo bem, essa é engraçada. Mas e a parte em que você derrubou todo mundo na tenda de ioga?

Lindolfo começou a rolar as imagens e, em seguida, apareceu uma foto com várias pessoas deitadas na areia tentando se levantar.

— Olha, — disse Lindolfo. — você não pode negar que foi uma grande aventura!

— Grande aventura? Você quer dizer "grande desastre"! — Aparecido rebateu, mas com um sorriso involuntário.

Lindolfo finalmente encontrou uma foto que o fez rir ainda mais. Era uma selfie deles, com Aparecido de cara emburrada e Lindolfo com um sorriso enorme, coberto de areia.

— Essa é a melhor! — disse Lindolfo. — "Aparecido, o campeão da praia e eu, seu fiel escudeiro!"

— Fiel escudeiro? Você quer dizer "criador de problemas"! — Aparecido respondeu, mas já não continha as risadas.

— Vamos postar no grupo! — sugeriu Lindolfo, já pronto para compartilhar.

— Não! — Aparecido gritou. — Não quero que todos vejam isso!

— Ah, vai! Todos vão adorar! É um momento especial! — insistiu Lindolfo.

— "Especial"? Se você acha que eu quero ser conhecido como o cara que caiu na areia e foi atingido por um guarda-sol, você está muito enganado! — Aparecido retrucou.

— Mas é isso que faz a vida divertida! — disse Lindolfo, finalmente convencendo Aparecido a deixar ele postar as fotos.

Assim que Lindolfo publicou as imagens, rapidamente começaram a chegar comentários dos amigos.

— "Aparecido, você é um artista da areia!" — comentou um amigo.

— "O que aconteceu com o guarda-sol?!" — outro perguntou, rindo.

Aparecido olhou para Lindolfo, que estava quase se engasgando de tanto rir.

— Ok, você ganhou essa! — disse Aparecido, rendendo-se à situação. — Mas não quero mais aventuras como essa!

— Prometo que na próxima vamos apenas relaxar! — disse Lindolfo, com um sorriso travesso.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Sílvio Romero (Amiga raposa e amigo corvo)

Amiga raposa convidou amigo corvo para fazerem uma viagem. A raposa convidou o gambá para seu companheiro, e o corvo convidou o caracará*. Partiram. Chegando no meio dos montes, veio a noite e foram pedir rancho na casa da amiga onça. A onça andava por fora atrás de um rebanho de carneiros, e chegou na casa muito tarde, trazendo um grande carneiro morto. Os hóspedes, que se achavam em casa, ficaram com medo.

Disse a raposa:

— Compadre corvo, as coisas não estão boas.

Disse o caracará:

—Ora, esta é boa, não temos de que temer; mas você, comadre raposa, é que deve estar em maus lençóis, sem ter onde se meter!

A raposa deu uma gargalhada e disse:

—Serei eu pior do que compadre cachorro?

O caracará:

— Comigo ninguém pode, não corro por terra, porque não corto bem o chão, mas corto o vento. Você, amiga raposa, e compadre gambá, é que têm de se ver hoje, quando ela pegou o compadre carneiro, que é maior de que vocês, quanto mais!

Chegou a hora da ceia. A onça convidou os seus hóspedes para cearem. Só a raposa é que pôde comer, por causa do feitio do prato. A onça fez mais mingau e espalhou numa pedra, e a raposa tornou a lamber. Depois o corvo disse:

— Comadre onça, eu não acho boa esta moda: quem lambe, come,  quem pinica com fome fica! Foram todos dormir.

O corvo disse para o caracará:

— Nós não havemos de ficar com fome.

Quando a onça pegou no sono, o corvo agarrou nos filhotes da onça, e os devorou com o bico; o caracará fez o mesmo. Safaram-se, deixando a raposa e o gambá dormindo. 

Quando a onça acordou, procurou os filhotes e só viu os ossos, e investiu para a raposa, que escapou-se e foi ao encontro de seus companheiros de viagem e os encontrou na casa do macaco. 

A raposa disse:

—Agora é ocasião de vingar-me do que vocês me fizeram.

Mas como era hora de jantar, ela esperou. No fim do jantar viu um cachorro, teve medo e despediu-se. Foram o corvo e o caracará para a casa do galo e a raposa já lá estava, esperando pela ceia. 

Chegada a hora, foram todos cear. O galo espalhou milho por toda a casa e disse: 

Venham de bico
Que me despico:
Quem tem focinho.
Nem um tico. 

A raposa meio desconfiada: 

Façam o que quiser,
Durmam vocês, é que se quer. 

Foram todos dormir, e a raposa foi convidar mais amigas para virem dar cabo de seus inimigos de penas. Deram cabo de todos, só deixando o gambá, por ser muito fedorento.
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* Caracará = ave de rapina semelhante ao falcão.
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SÍLVIO VASCONCELOS DA SILVEIRA RAMOS ROMERO (1851-1914) foi crítico e historiador da literatura brasileira. Fundador da Academia Brasileira de Letras. Pensador social, folclorista, poeta, jornalista, professor e político. Era sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Nasceu na vila de Lagarto, Sergipe, 1851. Em 1868 mudou-se para o Recife e ingressou na Faculdade de Direito. Polêmico, combativo e contraditório, foi influenciado por seu conterrâneo Tobias Barreto. Juntos, lideravam uma escola que reunia jovens inteligentes e destemidos, que se encarregavam de irradiar as recentes ideias vindas da França. Quando estava no 2. Ano da faculdade, Sílvio Romero colaborou com vários jornais, entre eles, o Diário de Pernambuco, a República, o Liberal, o Correio de Pernambuco e o Americano. Em 1873 concluiu o curso de Direito. Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro onde obteve a cátedra de filosofia. Ao defender sua tese, travou uma discussão com um de seus examinadores, o professor Coelho Rodrigues. A agressão resultou em um processo, que não teve consequências. Romero foi também professor da Faculdade Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Como poeta, teve uma breve carreira. O primeiro livro de poemas foi Cantos do Fim do Século, lançado em 1878, em uma tentativa de aderir poesia filosófica científica que pregava desde 1870 em artigos, mas que não obteve êxito. Em 1883 publicou Últimos Arpejos, seu segundo e último volume de poesia. Desenvolveu intensa atividade como escritor. Escreveu vários livros que abordavam praticamente tudo que se referia à realidade cultural brasileira como: filosofia, literatura, folclore, educação, política e religião. Publicou assuntos ligados à cultura popular revelando-se um grande folclorista. Escreveu sobre filosofia no Brasil e sobre escolas filosóficas diversas. Em 1878 escreveu Filosofia no Brasil, publicado em Porto Alegre. Sua obra História da Literatura Brasileira (1888), em dois volumes, menos uma história literária do que uma enciclopédia de conhecimentos sobre o Brasil, a origem e evolução de sua cultura, suas raízes sociais e técnicas, foi considerada sua obra mais revolucionária. Deixou uma vasta obra culturalmente valiosa e pioneira em muitos aspectos. Respeitado pela imprensa nacional, conquistou seu lugar como um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura brasileira do século XIX. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1914.

Fontes:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1883.
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