quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Eduardo Martínez (Um caso comum)

Eu não sou racista. Estou contra toda forma de racismo e segregação, 
toda forma de discriminação. 
Eu acredito nos seres humanos, 
e que todos os seres humanos devem ser respeitados como tais,
 independentemente da sua cor. (Malcolm X)

Gervásio abriu os olhos e viu uma luz branca. Sentiu que, finalmente, havia chegado ao seu destino, como sua mãe lhe contara nos tempos de menino.

— Seja bom, meu filho, que um dia o Senhor o chamará.

O homem sorriu aquele sorriso de dever cumprido quando, então, percebeu uma voz feminina. Seria Deus uma mulher? A forte luz sob seu rosto o impediu de ver com clareza, mas notou um vulto todo de branco vindo em sua direção. Um calafrio percorreu por toda sua espinha, quando ouviu uma voz doce como a de Veridiana, sua amada esposa.

— Senhor Gervásio, vou acompanhá-lo até o próximo andar.

O sujeito pensou que a mulher fosse um anjo, que certamente o levaria até o Senhor. Sua mãe não havia mentido. Afinal, mães não mentem ou, ao menos, a sua não era afeita a inverdades. 

Enquanto aguardava, Gervásio foi tomado por lembranças que o atormentavam há quase cinco anos, quando Fernando, seu primogênito, se envolveu com Laura, favelada e preta.  E o que parecia apenas mais um namorico, se transformou em paixão, o que, aos olhos de Gervásio, roubou toda a razão do filho, que resolveu se casar com a tal. 

O homem tentou a todo custo demover Fernando daquela insanidade. Entretanto, jovem que era, o rapaz bateu pé e seguiu firme naquele pensamento, que, aos olhos do pai, só poderia dar no que deu. Pois é, caso já não bastasse expor o nome da família perante a sociedade, alguns meses após o casório, Laura desfilava sua prenhez pelo bairro. 

Gervásio, apesar de contrariado, jamais expulsou o filho do convívio familiar. Não que ele não merecesse, mas simplesmente porque, bom pai que era, não poderia abandonar a prole por pior que fosse a desobediência. Dessa forma, Fernando continuou com trânsito livre na casa dos pais. Todavia, nada de trazer aquela fulana, ainda mais porque carregava o fruto do pecado.

Por mais que tentasse desviar o pensamento, Gervásio tinha pesadelos corriqueiros com aquela mucama parindo seres disformes. Certa vez, o pobre homem se deparou com a visão de Laura de cócoras, gargalhando com todos aqueles dentes alvos e beiços grossos, enquanto uma criatura horrenda, da cor de piche, era expelida pelas partes pudendas da mulher.

Gervásio se recordava da visita do filho numa quarta-feira, dia 18 de julho. Fernando parecia radiante, pois fora contar para a família sobre o nascimento não de um mestiço, mas de três criaturas do sexo feminino. Ironia maior é que aqueles seres carregados na cor haviam sido expelidos de Laura justamente no dia do aniversário de 58 anos do sogro. 

Veridiana, para não desagradar o marido, conteve a alegria diante da notícia trazida pelo filho. Entretanto, era nítida em seus olhos castanhos a felicidade de ser avó e, melhor ainda, de três meninas. A mulher, apesar da ânsia de correr para o hospital e conhecer as netas, preferiu manter a cabeça baixa para que Gervásio não notasse as lágrimas que escorreram por sua face.  

Os dias que se seguiram foram repletos de encenações. Gervásio fingia que desconhecia o nascimento da prole de Laura, Veridiana tentava imaginar como eram os rostinhos das netas. Avó que era, precisava ajudar a cuidar dos bebês, sem contar a ânsia de pegá-los no colo, niná-los e lhes contar as mesmas histórias que aprendeu quando ela, ainda neném, fora tantas vezes colocada para dormir no colo da mãe. 

Conheceu o futuro marido em novembro de 1911, pouco antes dos 17 anos. Um ano após, casou-se com Gervásio, que, a princípio, precisou convencer o pai de Veridiana de que era capaz de sustentar uma família. Caráter, nem o futuro sogro duvidava que ele possuísse, apesar de divergências políticas. 

Desconfiança superada, o sogro até ajudou o futuro genro a arrumar uma casa próxima à sua. Desse modo, a família continuaria próxima, e os vínculos com o novo membro seriam fortalecidos. E foi o que ocorreu, com almoços aos domingos, ora na residência do sogro, ora no lar do novo casal.

Os primeiros enjoos de Veridiana ocorreram no início do verão. Ela estava ajudando sua mãe a preparar o ensopado, quando precisou correr para o banheiro. Fora os respingos, bastou que a mulher desse descarga na privada. Foi amparada pela mãe, que pareceu feliz.

— Vá se deitar, que eu cuido do almoço. A primeira vez parece o fim do mundo, mas logo você se acostuma. 

Fernando nasceu em meados do ano seguinte. Robusto que nem o pai, os olhos eram de Veridiana. Primeiro filho, primeiro neto, primeiro tudo, o menino desfrutou de todos os mimos. 

Quando Fernando começou a dar os primeiros passos, Veridiana sentiu novos enjoos, que perduraram pelos meses seguintes. O marido passava o dia inteiro fora, mesmo porque precisava garantir que nada faltasse para a família, que, em breve, ficaria maior. O que Gervásio não esperava é que a esposa parisse gêmeos: Juliana e José.

O parto, além de difícil, fez com que Veridiana não pudesse ter mais filhos. Ela ficou triste, pois esperava poder encher a casa com pelo menos mais três crianças. Entretanto, religiosa que era, entendeu aquilo como vontade de Deus e se conformou. E foi com esse sentimento de resignação que, em 1918, enterrou os dois pequenos, vitimizados pela gripe espanhola. Fernando, apesar de afetado pela terrível doença, conseguiu resistir.

Gervásio se revoltou com Deus nessa época, recusando-se a frequentar a igreja por longo período, até que, já no início de 1920, foi levado pelas mãos da esposa. O homem, a princípio, se sentiu envergonhado aos olhos do padre. Coisa breve, já que o pároco o acolheu de braços abertos. 

— Gervásio, meu filho, apesar de muitas vezes não os entender, jamais devemos contestar os desígnios de Deus. 

Fernando cresceu rápido. Quando os pais perceberam, ele já se transformara em um belo rapaz de cabelos negros. Pouco mais alto do que Gervásio, atraía os olhares das moças e, não tardou, começou a se interessar por Maria de Lourdes, que morava na rua ao lado. A garota parecia corresponder ao interesse do rapaz, e tudo encaminhava para firmar compromisso.

A primeira a notar o interesse do filho por Maria de Lourdes foi Veridiana. Não disse palavra, entendia que, aos 21 anos, Fernando havia se tornado homem. E, quando pensou em conversar com Gervásio sobre o acontecimento, o filho decidiu abrir o coração.

— Mãe, acho que me apaixonei.

— Que notícia boa, meu filho! Bem que notei seu modo de olhar para a Maria de Lourdes.

— Não é por ela que estou apaixonado, minha mãe.

— Não? E por quem é então?

— Pela Laura.

— Laura? Não me lembro de nenhuma Laura, Fernando.

— É uma moça que conheci há pouco tempo. A senhora não conhece.

— Pois traga essa moça aqui para que seu pai e eu possamos conhecê-la.

— Ainda não conversei com os pais dela, mamãe. 

— Pois se você gosta mesmo dessa moça, vá conversar primeiro com os pais dela. E depois a traga aqui em casa, que tenho certeza de que seu pai aprovará o namoro. 

Quase um mês após, Fernando retomou a conversa com a mãe. Disse-lhe que o namoro estava firme, inclusive com a aprovação dos pais de Laura. Era hora de, finalmente, Veridiana e Gervásio conhecer a futura nora. 

— Pode deixar, meu filho, que vou conversar com seu pai ainda hoje. 

Veridiana, ao se deitar naquela noite, puxou assunto com o marido. Contou-lhe as novidades. Gervásio ficou surpreso, mas não desaprovou a conduta do filho. O homem disse para a esposa que poderia marcar o almoço para o sábado seguinte. E que viessem também os pais da moça para conhecê-los. Desse modo, tudo ficaria acertado. 

Fernando recebeu a notícia com entusiasmo e, no mesmo dia, foi contá-la para Laura. Ela ficou encarregada de conversar com os pais, que aceitaram de bom grado o convite. 

Além da macarronada ao molho de tomate, foi servido vinho tinto. Os jovens e as esposas tomaram suco de caju. Entre garfadas e goles dos presentes, Gervásio quase não tocou na comida. Era nítido o descontentamento do dono da casa, enquanto Veridiana procurava afastar qualquer constrangimento colocando mais comida nos pratos e enchendo os copos dos convidados. 

À noite, quando já estavam recolhidos em seus aposentos, Gervásio e Veridiana se entreolharam. O marido parecia furioso e, não tardou, despejou sobre a mulher todo seu desapontamento.

— Uma preta? Como é que o Fernando me aparece aqui em casa com uma preta?

A despeito da desaprovação do pai, o coração do filho falou mais alto e ele prosseguiu com o namoro. Veridiana até tentou demover Fernando daquele amor. Menos por preconceito, mais para acabar com a discórdia em seu lar. Foi em vão, já que os jovens logo firmaram noivado e se casaram em maio.

Nunca houve embate explícito entre Gervásio e Fernando, apesar dos desvios de olhares todas as vezes em que o filho mencionava a agora esposa. O pai chegou a desejar que a nora fosse abalroada por um bonde desgovernado. Que a mulher não sofresse, mas perdesse a vida para, assim, livrar a família de um mal maior. 

Os pensamentos de Gervásio não surtiram efeito. Tanto é que, não tardou, Laura engravidou. Que frutos esperar do ventre de uma preta? O sujeito tinha pesadelos mesmo quando acordado, até que o momento chegou e a ninhada, em número de três, foi jogada neste mundo. 

Gervásio, diante do espelho, jurou que jamais iria ver aquelas aberrações. Ele comunicou sua decisão à Veridiana, que, cabeça baixa, acatou. Que ela pusesse Fernando a par. E foi o que a mulher fez dois dias após. 

Fernando, a princípio, quis explodir. Entretanto, ao perceber a tristeza no rosto da mãe, conteve seu ímpeto e chorou. Chorou copiosamente nos braços da mãe, que aninhou o rebento como outrora o fizera a cada percalço que o menino teve na vida. 

— O seu pai é um homem bom, meu filho. Essa situação vai passar. Tenhamos fé em Deus, que passa.

 Não passou. Tanto é que, para conhecer as netas, Veridiana precisou fazê-lo escondida, enquanto o esposo estava no trabalho. E assim prosseguiu, inclusive recebendo a visita das meninas durante o dia. Mas, assim que a hora do retorno de Gervásio se aproximava, Laura ou Fernando ia buscar as filhas. 

 Não se sabe se Gervásio desconfiava. Na dúvida, Veridiana carregava no alho a janta para sobrepor qualquer resquício de cheiro de criança. Ela, no entanto, levava chorosa aqueles momentos, inclusive buscando nas narinas o cheiro das meninas.

 Veridiana pensou em pedir conselho ao padre. Homem sábio que era, certamente abriria o coração de Gervásio. Todavia, antes que pudesse agir, viu o marido contorcer o rosto e tombar sobre o prato de sopa. Desesperada, tentou acudi-lo, mas não soube como. Correu para casa do filho, que ficava duas ruas abaixo. 

 — Pai! Pai! - Fernando gritou quando viu o corpo de Gervásio caído.

Com a ajuda dos vizinhos, Gervásio foi socorrido ao hospital. O médico foi chamado e, ao se deparar com o quadro do paciente, mandou os enfermeiros o colocarem numa maca.  Não teve dúvida. Típico caso de derrame cerebral. O prognóstico não era dos melhores. 

Há meses, Gervásio pensava em procurar a nora e, principalmente, as netas. Ele, que nunca as havia visto, deseja pegá-las no colo. Nem mesmo sabia o nome das crianças. Decidido, pousou a colher sobre a mesa e, ao tentar se erguer da cadeira, tudo ficou escuro. 

Agora sozinho no quarto, Gervásio conversava com Deus. Não pedia conselhos, mas perdão. Como é que ele, um homem bom, não permitiu a aproximação da nora e, principalmente, das netas? Como elas o receberiam? A dúvida o transtornou até que o homem fechou os olhos pela última vez. 

O enterro se deu dois dias após. Lá estavam Veridiana, Fernando, alguns familiares e amigos. Num canto, Laura segurava as mãos das filhas, enquanto lhes contava sobre o avô.

— Minhas filhas, aquele é o vovô. Ele as amava muito.
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EDUARDO MARTÍNEZ possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Pensamento de Malcolm X adicionado pelo blog.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Adega de Versos 127: Erigutemberg Meneses

 
 

Newton Sampaio (Tragédia das mãos)

| I | 

— Maria! 

Nada.

— Mariiia! 

Nem assim. 

— Mariiiiia!

Atira longe o bagaço, salta em três tempos da laranjeira. 

— Já pra dentro, coisa-ruim!

Vai se chegando, desconfiada. 

— Potranquinha ardida!

O beliscão é aplicado com dignidade. Deixará marca no mínimo por dois dias.

A menina se morde toda, pisca os olhos repetidamente, não diz palavra. Vence num instante a escada do sótão.

— Que fim levou a coalhada daqui? 

— Não sei não, dona Orsina.

— Foi você, negrinho? 

— Juro por Nosso Senhor. 

— Quem foi, siá Chica?

— Não sei dizer. 

— Quero saber, já. (Tem uma ideia).

— Maria! Nada. — Mariia!

A filha continua virando a folhinha, na sala.

— Mariiiia! 

— Sinhora...

— Quem mexeu no armário? 

— Eu.

— Não sabia que a coalhada era pras visitas? 

— Sabia.

— E comeu tudo assim mesmo? 

— Comi.
(Desta vez o beliscão pega só o braço direito).

Dona Orsina não aguenta mais. Diz que a filha é pior que saci, e nem tem mais inocência para andar aí com os moleques, trepando nas árvores, destripando sanhaços e tico-ticos. Opta por um colégio de freiras, daqueles bem fechados.

Indalécio concorda vagamente. Só para não destemperar a mulher.

| II |

— Maria da Luz Fonseca. 

— Presente.

— Os exercícios... 

— Não fiz.

— Outra vez?

— Outra vez. É a quarta...

— Ainda tem o desplante de confessar? 

— Tenho.

(Passa mais uma semana sem marmelada no jantar).

— Maria da Luz… 

— ...

— Ma-ria-a da Luz.

— Não sou surda.

— Compareça ao Gabinete da Madre Superiora. 

— Já vou.

Acaba de arrumar o cabelo, desce ao pátio de recreio, displicentemente.

O brinquedo não dura cinco minutos, porque a vigilante a distingue no centro do grupo.

— Já foi à Madre Superiora? 

— Ainda não.

A disciplina leva um choque...

No Gabinete da Diretoria — bonito, arrumadinho, com um enorme a óleo do Santo Padre Pio XI — o encontro com o pai a surpreende.

O abraço de Indalécio é longo, sentido. Maria apanha, num relance, o significado daquele terno escuro, da gravata preta. Começa a soluçar, baixinho, agarrada ao velho.

Consola-a, como pode, a Madre Superiora. Passada a crise, retoma a severidade habitual. E diz que Maria da Luz era extremamente rebelde, estava em ponto de ser eliminada. Entretanto, a nova situação da família exigia um pouco mais de tolerância.

Pergunta-lhe se modificará a conduta, a partir daquele momento. Não obtém resposta.

(Os dentes da colegial fazem um barulhinho).

| III |

A professora de geografia tira os óculos, zangadíssima. 

— Quem jogou a bolinha?

Ninguém informa.

— Quero saber, imediatamente. Foi a senhora, dona Maria da Luz?

— Não.

— O quê? Perdeu também a coragem de confessar? (Recebe o castigo, sozinha).

O relógio da igreja anuncia duas horas.

Maria da Luz afunda a cabeça no travesseiro, aperta bem os olhos. Inútil.

Vira-se do lado esquerdo, encolhe as pernas, põe as mãos no peito. As mãos sobem e descem com a respiração.

(O sono aonde foi não chegou).

Levanta-se. Vai à única janela aberta do dormitório. A camisola com monograma azul se lhe encosta melhor à pele.

Fica pensando, um tempão. Depois atravessa o corredor, desce cuidadosamente a escada, procura o salão de estudos.

Acende a vela clandestina, sente logo um cheiro de igreja, começa a escrever:

Querido papai. Saúde e felicidades.
Escrevo estas mal traçadas linhas para perguntar como vão todos aí. Tenho muitas saudades de todos. O negrinho já sarou da mordida da cobra? O Gabriel da nhá Chica já voltou do serviço militar?

Quanto a mim, ando muito triste. Não quero mais ficar aqui, por causa da Irmã Teresa, que não me deixa sossegada nunca, me chamou hoje de nervosa e de um nome feio que não entendi bem. Escrevi uma carta ontem, mas elas não quiseram botar no correio e me proibiram de escrever outra vez, mas agora de noite eu resolvi escrever outra, só de raiva, porque me acham culpada de tudo, toda a vida. Juro que não fui eu que roubei o dinheiro da Josefina, mas a irmã não quer acreditar e bateu em mim com a palmatória uma porção de vezes. Isso é demais, eu chorei bastante, chorei, porque nunca neguei minhas feitorias mas agora não tenho culpa, juro por Deus.

Tenho chorado muito; às vezes, não sei por que, começo a chorar”.

O vento fresco agita a chama da vela, e sombras informes tremem na parede, como um aviso.

A menina sente cãibras nos dedos, por isso repousa a caneta até passar o incômodo.

Continua:
Minha mão ficou doendo por demais, inchou mesmo, parece que cresceu, sabe papai?

Larga a caneta, outra vez. Contrai os dedos, inquieta.

Agora eu estava é com medo. Mas isso é impressão, acho, todo mundo está dormindo, sozinha no salão de estudo a gente tem medo. Tive a impressão de que minha mão crescia mesmo, isso é cãibra”.

A impressão não desaparece. Ao contrário, se torna mais nítida.

Credo, papai. Acho que vou parar, minha mão...

De fato, interrompe a carta, solta um grito: — Jesus!

A mão direita cresce ainda, cresce mais, cresce sem parar, esbarra na vela de cera com cheiro de igreja, a chama treme, aumentam na parede as sombras informes, terríveis.

A mão vai à janela, volta à carteira colegial, mergulha nos cabelos de Maria da Luz, alcança a porta, é capaz de tocar os sinos da torre, está agora caminhando no espaço, furando as nuvens, furando tudo histericamente.
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NEWTON SAMPAIO natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Vereda da Poesia = 220

 
Soneto de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009

ARS POÉTICA

Nesse afago do meu fado afogado
as águas já me sabem nadador.
A rês na travessia marejada
gado da grei de um mar revelador.

Vou e volto lambendo o sal do fardo
língua no labirinto, ardendo em cor
furtiva, enquanto messe temperada,
da tribo das palavras sou cantor.

Procuro em frio exílio tipográfico
o verbo mais sonoro em melodia
o ritmo para a cal de um pasto cáustico.

Sou boi e sou vaqueiro dia a dia
no laço entrelaçado fiz-me prático
catador de capins nas pradarias.
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Poema de
SILVIAH CARVALHO
Manaus/AM

ETERNO ARGUMENTO

Já foi o refugo em minha mente
Algo ultrapassado em demasia
Que em mim aflorava livremente
Sempre que de mim, eu me perdia

Elevava-o nos pensamentos meus
Que eram Conflitantes e envolventes
Eram tudo que tinha, quando nada era teu!
Nem meu corpo, minha vida ou minha mente.

Cá estou a falar do Amor que eu maldizia
Do fiel argumento do poeta infiel
Que tira um pedaço do inferno e faz um “céu”

Cá estou a falar do que nunca entendia
Não mais o refugo, agora o bom sabor dor
Infiel e eterno argumento do poeta fiel... O amor!
= = = = = = = = =  

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

O LIVRO ONDE SEPULTE O MEU SOFRER
(Fernandes Valente Sobrinho in "Poemas Escolhidos" p. 93)

O livro onde sepulte a minha dor
Não o lavro com lágrimas de tinta
Pois com medo que invente ou que eu lhe minta
Não achará jamais qualquer leitor.

Seria, com certeza, um fraco autor
E a minha mão de inspiração faminta
Daria, em pouco tempo, por extinta
Essa obra sem ter um editor.

Guardo em pasta de capa dura e preta
Essas folhas que fecho na gaveta
Como os mais crus e tristes documentos.

Um dia, quando o livro estiver feito
Com a pena que usei rasgo o meu peito
E essas páginas rudes solto aos ventos.
= = = = = = = = = 

Soneto de
AFONSO FREDERICO SCHMIDT
Cubatão/ SP, 1890-1964, São Paulo/SP

CARAS SUJAS

Ao longo destas avenidas,
Recordação de velhas lendas,
Cantam as chácaras floridas
Com suas líricas vivendas.

Lá dentro, há risos, jogos, danças,
Crástinas, módulas fanfarras,
Um pandemônio de crianças,
Um zagarreio de cigarras.

Fora, penduram-se na grade
Os pobre, como gafanhotos;
Têm dos outros a mesma idade,

Mas estão pálidos e rotos.
Chora a injustiça da cidade
Na cara suja dos garotos.
= = = = = = 

Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

AMOR

Amor de minha vida, amor ventura,
vem comigo seguir a nossa estrada,
vamos viver a vida simples, pura,
antes que o sol desfaça a madrugada.

E vou te amar assim com tal doçura,
com tanto amor serás a minha amada,
que meus versos repletos de ternura
vão se espalhar em tua caminhada.

Terei em minha vida o teu carinho
e nunca mais me sentirei sozinho
e tu terás o amor mais verdadeiro.

Quando o tempo passar, calmo e sereno,
verás que fui e sou, mesmo pequeno,
teu homem, teu poeta e seresteiro.
= = = = = = = = =  

Poetrix de
THOMAZ RAMALHO
Luanda/Angola

MELANCOLIA

Os cotovelos no parapeito da sacada
e o pensamento apoiado
na linha do horizonte.
= = = = = = 

Poema de
MÁRIO A. J. ZAMATARO
Curitiba/PR

IMPOSTO

Amigo imposto?
Isso é conversa!
- de pronto, digo.
Dá até desgosto,
qual vice-versa:
imposto amigo...
= = = = = = 

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

A VERDADE

Ó querida, quem sabe neste dia
Encontrarei u’ amor que me fascine!
E talvez uma estrela que ilumine
Esta vida cruel que me iludia.

Só tu podes me dar tanta euforia,
Sem impedir, também, que raciocine,
E com meu sentimento me destine
A dor de ser um velho, mas queria...

Coragem pra buscar esta verdade
E talvez, a esperança sem vaidade
De poder te encontrar sem levar foras.

Esperando que agora possas rir
Sem  ilusão, embora possas vir
Com essa liberdade, por quem choras.
= = = = = = = = =  = = = = 

Cantiga Infantil de Roda
SERENO DA MEIA-NOITE 

É uma uma roda de crianças, com uma no centro. Cantam as da roda:

Sereno da meia-noite }
Sereno da madrugada } bis

Eu caio, eu caio }
Eu caio. sereno, eu caio } bis

Responde a menina do centro:

Das filhas de minha mãe }
Sou eu a mais estimada } bis

Eu não m'importo, }
Que da amiguinha, }
Eu seja a mais desprezada } bis
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Coração de sapo morto,
banana não tem caroço.
Garrafão tem fundo largo,
botija não tem pescoço.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

PANDORA

Do escuro da caixa
Voam lágrimas...
Diáfana solidão,
Silencia-se
A Esperança.
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Célio Simões ("O nosso português de cada dia") "Sem eira nem beira"

 
“Eira” é um terreno de chão batido ou rusticamente cimentado onde, em Portugal, os grãos da colheita ficavam ao ar livre para secar. A palavra “eira” vem do latim "área", significando um espaço de terra batida, lajeada ou cimentada, próximo às casas, nas aldeias portuguesas, onde se malhavam, trilhavam, limpavam e secavam cereais. Depois da colheita, os cereais ficavam ao ar livre expostos ao sol, a fim de serem preparados para a alimentação ou para serem armazenados. Quem possuía uma eira era considerado proprietário e produtor, com terras, casa, bens, riqueza, poder e influência social.

E “beira” é a beirada da eira, é a aba da casa, aquela extensão do telhado que serve para proteger da chuva. Quando uma eira não tem beira, o vento leva os grãos e o proprietário suporta o prejuízo. Há regiões em que este ditado tem o mesmo significado, porém com outra e curiosa explicação. Qual seria? 

Antigamente, como dito acima, as casas dos cidadãos endinheirados tinham esse tipo de telhado triplo: a eira, a beira até mesmo a tribeira, como era chamada a sua parte mais alta. E como a camada pobre da população não tinha condições de fazer tal telhado, rebuscado e dispendioso, se limitavam a construir somente a “tribeira”, ficando, por conseguinte, "sem eira nem beira". 

Por aqui, a expressão surgiu no Brasil Colônia, em referência tanto ao estilo arquitetônico como à condição social das pessoas, incorporando-se à linguagem coloquial, pois até hoje se refere a quem é despido de bens materiais, posses ou dinheiro, que vive na condição de extrema pobreza.

Dizer que determinado indivíduo não tinha “eira nem beira”, significava e ainda significa ser ele economicamente carente, despido de patrimônio pessoal, que não tem onde cair morto, que alguns dizem que “não tem onde cair vivo”, porque morto ele cai em qualquer lugar... A rima contida na expressão tem forte conteúdo discriminatório, pois implícita e jocosamente evidencia a condição de grande parte da população do Brasil que infelizmente é muito pobre, daí ser prudente sua não utilização, mesmo que a título de gracejo.

Na música popular brasileira a expressão marcou presença no DVD “PRA TOMAR CACHAÇA”, do cantor, músico e compositor “Luan Estilizado”, ritmo brega forte e marcante, de sugestiva letra:

“Perdeu o seu cobertor
Não tem mais seu lugar
Tá do lado de fora do meu coração.
Tá no frio e não tem fogueira
No relento, sem eira e nem beira
Sem meus braços pra te aquecer
Sem ninguém pra ficar com você (...)”

O sacerdote, evangelizador, escritor, poeta, compositor e cantor brasileiro, José Fernandes de Oliveira, nacionalmente conhecido como Padre Zezinho, um dos maiores nomes da nossa música cristã, atualmente com mais de três mil músicas em seu extenso repertório, também utilizou a expressão vinda de Portugal em uma de suas composições, que ele denominou “SEM EIRA NEM BEIRA”, cujo texto poético alude à vida despojada de Jesus Cristo: 

“José trabalhava na carpintaria,
cuidando zeloso da sua Maria.
Maria esperava chegar sua hora,
no ventre levava seu filho e Senhor.
Mas eis que um decreto os arranca do teto
que foi testemunha do mais puro amor.
E assim foi que antes de haveres nascido,
te vistes banido pelo imperador.
Por longas estradas que ainda não vias,
sem eira nem beira calado seguias (...)”.

Na literatura, o escritor Jorge Menezes lançou o livro “SEM EIRA, NEM BEIRA” (Editora Jorge Menezes, 92 páginas, ano 2020), no qual, em um momento de fantasia, a personagem Antônio lembra de seu passado, invocando momentos de sua via, tanto os bons, como aqueles marcados pela carência de quem nada tinha para chamar de seu.

Outra escritora, Efigênia Zeferina Costa, também nos legou o excelente livro “MINHA INFÂNCIA SEM EIRA NEM BEIRA” (Editora Efigênia Zeferina Costa, 75 páginas, ano 2020) em que narra com leveza, sem mágoas e de maneira quase poética, as vicissitudes de sua infância e a vida social transcorridas na primeira metade do Século XX em Itapecerica, minúsculo vilarejo no interior de Minas Gerais (hoje município), incursionando numa seara modestamente explorada na literatura, mas com relevante papel na cultura brasileira. 

Pode-se dizer que a expressão “SEM EIRA NEM BEIRA” deixou sua marca indelével na poesia, na música, na literatura, nas rodas de conversas em família ou entre amigos, tantas foram as obras que dela se ocuparam desde que aqui chegou de caravela com os portugueses, e de tão utilizada que continua sendo, acabou “dando panos pras mangas”. Opa! Sem querer, acabamos de mencionar outra expressão idiomática do nosso linguajar de cada dia, que bem poderá vir á lume numa terça-feira qualquer...
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Adega de Versos 126: Carolina Ramos

 

José Feldman (A Caixinha de Música)

Era uma manhã ensolarada nas ruas de uma cidade do interior do Estado do Paraná. Entre os prédios imponentes e as pessoas apressadas, havia uma menina de cabelos desgrenhados e roupas puídas. Seu nome era Bela, e sua casa era a calçada. Apesar da dureza da vida, havia uma luz especial em seus olhos, uma chama que a mantinha viva em meio à escuridão.

Bela possuía apenas uma caixinha de música, um objeto simples, mas que guardava todo o seu mundo. Quando a abria, uma bailarina de porcelana começava a rodopiar, enquanto uma melodia suave preenchia o ar. Aquela presença delicada era seu refúgio, o escape de uma realidade dura. Ela sonhava acordada, imaginando-se girando sob os holofotes, vestida com um vestido brilhante, dançando como as estrelas que via à noite.

A cada dia, Bela se sentava em um canto da praça, onde o som das risadas e das conversas se misturava à música da sua caixinha. As pessoas passavam, algumas lançavam olhares de compaixão, outras ignoravam. Mas para ela, nada disso importava. A bailarina dançava, e ela sonhava.

Certa tarde, enquanto o sol começava a se pôr, tingindo o céu de laranja e rosa, ela decidiu que era hora de mostrar sua caixinha a um grupo de crianças que brincavam nas proximidades. Com um sorriso radiante, abriu a caixinha, e a música começou a tocar. As crianças pararam, fascinadas pela dança da bailarina, e ela se deixou levar pela melodia, girando e rodopiando junto com sua criação.

Mas, em um momento de distração, a caixinha escorregou de suas mãos. O tempo pareceu se desacelerar enquanto ela via o objeto precioso cair. O som do impacto foi como um trovão em sua mente. A música parou abruptamente, e a bailarina ficou imóvel, como se tivesse perdido a vida.

Bela sentiu uma onda de desespero invadi-la. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, misturando-se com a poeira da calçada. O que era ela sem sua música? O que era seu sonho sem a bailarina girando? O mundo ao seu redor parecia escurecer, e a tristeza a envolveu como um manto pesado.

Neste momento de dor, um senhor idoso, que sempre passava por ali com sua bengala, notou a cena. Ele se aproximou, agachou-se lentamente e pegou a caixinha do chão. Suas mãos, envelhecidas mas firmes, examinavam o pequeno objeto com cuidado. Ela o observava, a respiração entrecortada pela ansiedade, sem saber o que esperar.

Com um toque suave, o velho abriu a caixinha. Ele olhou para Bela e sorriu, um sorriso que parecia carregar a sabedoria de uma vida inteira. Então, com um gesto habilidoso começou a ajustar a engrenagem. Para a surpresa dela, a música começou a tocar novamente. A bailarina, como por encanto, voltou a girar e a melodia encheu o ar.

— Aqui está, menina — disse o velho, entregando a caixinha de volta a ela. Sua voz era doce, como a brisa suave que soprava entre as árvores. — A verdadeira mágica, menina, é nunca deixar de sonhar.

Ela, com os olhos brilhando de gratidão, segurou a caixinha contra o peito. O senhor a observava, e em seu olhar havia algo que a fez sentir que ele entendia a profundidade de seu sonho. Naquele instante, a tristeza se dissipou, e a esperança floresceu novamente dentro dela.

— Obrigada! — sussurrou, com a voz embargada.

Ele sorriu novamente, e antes de se afastar, acrescentou:

— Lembre-se, os sonhos são como esta música. Às vezes, podem parar, mas sempre podem voltar a tocar. Basta acreditar.

Com o coração renovado, Bela observou o homem se afastar, enquanto a música continuava a tocar. A bailarina girava, e com ela, seus sonhos voltavam a dançar. A caixinha de música não era apenas um objeto, era um símbolo de que mesmo nas sombras da vida, a luz da esperança nunca se extingue.

E assim, todos os dias, ela se sentava na praça abrindo sua caixinha e dançando com a bailarina, sonhando e acreditando  que as dificuldades são passageiras e nunca deixaria que apagassem a música de sua vida.

Os dias passaram e Bela continuava a visitar a praça, sempre com sua caixinha de música. A cada manhã, o velho senhor a encontrava ali, assistindo-a dançar e sonhar. Em uma dessas manhãs, enquanto a música ecoava suavemente, ele se aproximou e se sentou ao seu lado.

— Menina — começou ele, com um olhar gentil —, eu percebo que você ama dançar. O que você sonha em ser quando crescer?

Ela hesitou por um momento, mas a confiança que aquele homem lhe proporcionara a encorajou a abrir seu coração.

— Eu quero ser bailarina, como a da minha caixinha — disse ela, com os olhos brilhando de emoção. — Quero dançar para o mundo todo ver.

O velho sorriu amplamente, seus olhos se iluminando com a determinação da menina. Então, ele decidiu que era hora de transformar aquele sonho em realidade.

— Venha, querida — disse ele, estendendo a mão para ela. — Tenho algo especial para você.

Com um misto de curiosidade e excitação, Ela segurou a mão dele, que era firme e calorosa. O caminho que seguiram levou-os a uma escola de dança, um lugar onde a música preenchia o ar e as crianças se moviam com graça e alegria. Ela ficou maravilhada ao entrar, seus olhos se arregalando ao ver as bailarinas rodopiando e se alongando.

— É aqui que você vai aprender a dançar — disse o senhor, olhando para ela com ternura. — Eu quero que você faça parte deste mundo.

Ela não conseguia acreditar. Olhou para o homem, seu coração acelerado de felicidade. Ele se dirigiu à diretora da escola, e com um tom firme e respeitoso, pediu que aceitassem Bela como aluna. A diretora, tocada pela história do senhor e pela paixão da menina, concordou.

Quando o senhor se virou para Bela, ela estava tão emocionada que lágrimas de alegria escorriam pelo seu rosto. Ela correu até ele e o abraçou com força, sentindo a segurança e o carinho que ele lhe oferecia.

— Obrigada, vovô! — exclamou, a palavra saindo de seus lábios como um sussurro mágico. Ela nunca havia conhecido um avô, mas sentia que aquele homem havia preenchido um espaço vazio em seu coração.

O velho, que sempre vivera sozinho, sentiu uma onda de emoção. Ele nunca imaginou que poderia ter uma neta, alguém para cuidar e amar. A partir daquele dia, Bela tornou-se a luz da sua vida. Ele a acompanhava nas aulas, a incentivava em cada passo e a congratulava por cada conquista.

Os anos se passaram, e Bela cresceu, transformando-se em uma bela jovem com um talento excepcional para a dança. Ela subia ao palco com a mesma alegria que sentia ao rodopiar com sua caixinha de música. Cada apresentação era uma homenagem a sua infância, àquela bailarina que sempre dançava para ela.

Apesar de seu sucesso, ela nunca abandonou sua caixinha. Ela a mantinha em um lugar especial de seu coração. Às vezes, em momentos de dúvida ou cansaço, abria a caixinha e deixava a melodia envolver seu ser. Era um lembrete constante das suas raízes e da importância de acreditar.

Em uma noite especial, quando Bela se preparava para uma grande apresentação, ela olhou nos olhos do seu "vovô", que estava sentado na primeira fila, orgulhoso e emocionado. Ele sempre dizia:

— Lembre-se, os sonhos são como esta música. Às vezes, podem parar, mas sempre podem voltar a tocar. Basta acreditar.

Com essas palavras ecoando em sua mente, subiu ao palco. A luz a abraçou, e a música começou. Ela dançou como nunca antes, cada movimento uma celebração de sua jornada, do amor que a cercava e da mágica que existia em nunca deixar de sonhar.

E no fundo de seu coração, sabia que, independentemente do que acontecesse, sua caixinha de música sempre tocaria, guiando-a por toda a vida.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas, não concluiu o curso superior de psicologia na FMU. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com uma escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil-Suiça, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Brasileira de Letras, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, União Brasileira dos Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, O Voo da Gralha Azul dedicado exclusivamente às trovas e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Divorciado há alguns anos, assina seus escritos por Campo Mourão/PR, onde pertence a entidades da região. Publicou mais de 500 e-books. Dezenas de premiações em trovas e poesias no Brasil e exterior. 

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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