segunda-feira, 28 de abril de 2014

Thalita Moraes Guimarães (Análise do conto machadiano D. Paula)

O conto D. Paula, de Machado de Assis, escrito em 1884, foi publicado na obra Várias Histórias e percebe-se neste relato um tema que j fora desenvolvido em O Enfermeiro e outros contos: a desconexo entre o externo e o interno, pois se dizia e pregava o moralismo, no seu íntimo desejava, ou pelo menos deliciava-se com algo imoral.

Em D. Paula, Machado descreve o ambiente propício às abordagens amorosas “...o corredor, os pares que saíam, as luzes, a multidão, o rumor das vozes...”

Na obra em análise, o narrador faz uma focalização externa de Venancinha, com a intenção de mostrar ao leitor que algo estava acontecendo: “a sobrinha enxugava os olhos cansados de chorar”, mas não revela o porquê de tantas lágrimas da moça, fazendo assim uma paralipse que representa um recurso retórico em que a narrativa não salta, como na elipse, por cima de um momento, passa ao lado de um lado.
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Dessa forma a paralipse causa um breve enigma, pois não revela o motivo de tantas lágrimas derramadas pela sobrinha quando D. Paula a encontra. Nesse instante o enunciador volta-se para o leitor instigando-o a desvendar o que realmente teria acontecido, “quando Venancinha atirou-lhe aos braços, as lágrimas vieram-lhe de novo”. Mas em seguida, o leitor recebe a informação de que quando a senhora envolveu a moça em um jogo de gestos carinhosos e de palavras doces e confortáveis, Venancinha confiou à tia tudo o que havia acontecido. Trata-se de uma briga que a moça teve com o marido porque este achava que ela cometera adultério.

Esta crença do marido é revelada sumariamente:

Desde muito que o marido embirrava com um sujeito; mas na véspera à noite, em casa do C..., vendo-a dançar com ele duas vezes e conversar alguns minutos, concluiu que eram namorados.

O sumário aumenta a velocidade discursiva, distanciando o leitor dos fatos, pois não se sabe até então se era “birra” do marido ou algo semelhante.

D. Paula, agora envolvida na situação em que o casal encontrava-se, decide ajudá-los. A princípio ela vai ao escritório de Conrado para conversar e ver se há possibilidades, entre o casal, de reconstituir a paz conjugal. Quando a senhora está de partida, a sobrinha acrescenta-lhe que: “apesar de tudo” adorava-o, gerando aí uma ambiguidade, permitindo ao leitor pensar que ela realmente traiu o marido ou estava dissimulando para se mostrar arrependida de tal situação, diante da tia. Neste momento, o narrador instiga o enunciatário a refletir se realmente houve ou não adultério, criando assim uma postura depreciativa sobre a moça em relação ao seu caráter. Esta passagem pode ser identificada quando a jovem jura que “apesar de tudo, adorava o Conrado”.

Na verdade o que se nota é que o discurso toma um rumo, quando na verdade seu foco é outro. Ou seja, o sujeito da enunciação também é um dissimulador, pois focaliza o adultério de Venancinha sendo que a trama está em volta da figura de D. Paula. Porém, isso está latente na narrativa.

D. Paula segue o seu destino a caminho do escritório do rapaz, para que possa tentar promover a paz entre a moça e Conrado, “não digo desconfiada, mas curiosa”, esta focalização interna não é tão reveladora assim, pois a tia, a partir de então, passa a possuir dúvidas a respeito da traição da sobrinha e fica instigada em saber se houve, ou não o adultério.

Quando a senhora chegou ao escritório não precisou explicar o motivo de sua visita, porque o sobrinho adivinhara tudo e em seguida “confessou que fora excessivo em algumas cousas”. Por intermédio do narrador o leitor descobre que Conrado tinha certeza de que sua mulher o traía devido a pessoa de quem se tratava. Sendo assim, pode-se observar que o moço tinha certo conhecimento do caso, para afirmar com tanta firmeza sobre a situação. Ou ainda, pode ser que ele conhecesse o caráter do sujeito; levando em consideração também a leviandade de sua esposa, e chegou a esta conclusão de que eram namorados.

Após uns minutos de conversa, a senhora propõe ao moço que a jovem passasse alguns dias com ela, em sua casa, para a recuperação de caráter. E ainda deu-lhe conselhos de brandura e prudência e também alertou-o de que esse homem não merecia todo esse cuidado que estavam tomando.

Percebe-se então que nesta circunstância a senhora não tinha o conhecimento de quem se tratava, pois até neste ponto o enunciador não estava completamente voltado para D. Paula, e sim para Venancinha. Ou seja, o narrador prende a atenção do enunciatário que está concentrado na situação em que a moça se encontra, mas isso é até o momento em que a tia descobre de quem se tratava, pois, a partir daí o sujeito da enunciação volta-se para a senhora.

Na continuidade da narrativa o narrador conta que na hora da despedida, de D. Paula com Conrado, o nome do rapaz envolvido na separação temporária entre o casal, é pronunciado e de imediato “D. Paula empalideceu”. Diante desta reação mostrada através de uma focalização externa o leitor prossegue com um mistério em mãos. Afinal por que D. Paula ficou pálida? Que valor tem o nome do rapaz na vida dela? Neste momento do enunciado começa o enigma em torno da personagem.

Para reafirmar o grande significado que este nome representa para a senhora, o sujeito da enunciação associa o modo pelo qual ela retira-se do local, usando uma focalização externa: “com a mão trêmula e um pouco de alvoroço na fisionomia”. Em relação a este tipo focalização, pode-se dizer que ela é geradora de significados para o leitor, pois a personagem age na frente do enunciatário sem que ele tenha o conhecimento dos seus sentimentos ou pensamentos.

Na sequência do conto o narrador utiliza outra paralipse, mas desta vez omitindo os sentimentos da tia quanto ao Vasco Maria Portela, sendo este o nome revelado na despedida. Com isso gera outro enigma na diegese, só que agora em relação à senhora.

Então D. Paula após o choque que tomara, foi encontrar-se com a sobrinha para notificar-lhe a sentença final, a moça por sua vez aceitara tudo. Após este fato o narrador utiliza a elipse para omitir o que acontece nos dois dias que antecede a ida de Venancinha para a casa da tia. Finalmente a jovem segue para a casa da senhora, que com ajuda desta, tem a intenção de modificar-se e reconciliar-se com o marido.

Quando a tia e a sobrinha estão a caminho da casa, o enunciador usa outra estratégia para que o leitor possa imaginar o que teria acontecido nos dias anteriores.

Através do discurso modalizante da ordem do crer na expressão “pode ser também que algumas saudades”, o narrador sabe o que realmente se passa na cabeça da moça, mas não afirma e ainda não identifica de quem são estas possíveis saudades sentidas, se pelo marido ou pelo amante.

Na proporção em que o nome do Vasco foi revelado, D. Paula não teve sossego em seus pensamentos, pois a partir daí começou a escutar espécies de ecos, que a conduziam a seu passado, às suas aventuras do tempo de moça. Entende-se nesse momento, que a senhora também foi leviana, assim como a sobrinha é no presente; e que agora a tia é: “uma pessoa austera e pia, cheia de prestígio e consideração”. Com isso D. Paula deparava-se com as lembranças do passado identificando-se com Venancinha na situação em que está vivendo.

Na sequência dos fatos o narrador revela ao leitor o que de fato aconteceu com D. Paula e Vasco Maria Portela, que consiste em uma aventura com sucessões de horas doces e amargas, de delícias, de lágrimas, de cóleras, de arroubos, e que foram momentos vividos intensamente. Com a intenção de anunciar que foi apenas uma aventura, o sujeito da enunciação nos fornece, em seguida, a informação do fim do relacionamento entre a tia e Vasco, e revela também que a senhora mantinha este caso “à sombra do casamento, durante alguns anos”. Aqui no tempo da enunciação o narrador sugere que no passado, no tempo da diegese, a personagem, D. Paula, não era uma figura prestigiada devido à postura que apresentava, mas que no tempo presente constitui-se de um caráter sério, digno de considerações.

Desta forma o enunciador caracteriza duas personalidades distintas referentes à senhora, sendo uma de quando era jovem e apresentava atos de leviandade; e a outra, a de agora que adquiriu experiências da vida e compõe-se de uma postura séria. Considerando este aspecto podemos chegar a conclusão de que a tia na sua juventude, mantinha uma postura não recomendável em que descaracterizava os “bons costumes” da época e consequentemente, colocava em risco sua reputação. Por outro lado nota-se o oposto, porque D. Paula atribuiu outro caráter, em relação ao que tinha, fazendo assim com que o leitor tenha uma visão apreciativa sobre ela, no presente, com isso o enunciatário passa a depositar mais confiança na senhora em relação a recuperação de caráter de Venancinha.

Na proporção em que a sobrinha relatava os fatos para a tia, esta voltava, em seus pensamentos, para o tempo passado relembrando, ou até mesmo revivendo, as suas aventuras. Diante deste processo pode-se afirmar que a moça é quem levou a senhora a recuar-se para as emoções ocorridas.

Durante uma conversa com a sobrinha, a tia percebe a dissimulação da jovem quando lhe responde uma pergunta que diz respeito às saudades da Tijuca, e a moça para dar mais intensidade à resposta faz gestos que D. Paula acompanhou, observando cada detalhe com seus olhos sagazes. Os mesmos que se mostram na conversa com Conrado, reafirmando, portanto, que ela está sempre atenta ao que acontece ao seu redor.

Diante da dissimulação de Venancinha, a senhora chega a concluir que: ”eles amam-se”. Esta descoberta fez com que avivasse ainda mais suas lembranças. Apesar de lutar contra esses pensamentos, nada adiantou, pois o passado voltara de manso ou de assalto. Desta maneira o narrador faz uma analepse sumarizada, registrando alguns momentos vividos pela tia:

D. Paula tornou aos seus bailes de outro tempo, às suas eternas valsas que faziam pasmar a toda a gente, às mazurcas, que ela metia à cara da sobrinha como sendo a mais graciosa cousa do mundo, e aos teatros, e às cartas, e vagamente, aos beijos.

Desde que a tia retornou ao tempo passado não pôde mais concentrar-se totalmente em sua missão para atingir seu objetivo, isso porque ficava dividida entre o presente e o passado. Contudo:

D. Paula mostrava à sobrinha a superioridade do marido, as suas virtudes e assim também as paixões, que podiam dar um mau desfecho ao casamento, pior que trágico, o repúdio.

Na continuidade do discurso o narrador utiliza uma elipse que é caracterizada como “um segmento nulo de narrativa que corresponde a uma qualquer duração da história.”. “Nove dias depois”, Conrado fez a sua primeira visita à sua esposa e à tia. Durante essa visita ele manteve a mesma conduta de quando chegou até a sua saída; caracterizando-se em uma postura fria. Esse procedimento do marido resume-se em uma dissimulação para atingir os sentimentos de Venancinha, e assim aconteceu pois ela ficou sem reação ao vê-lo daquele jeito, que até temeu a perda do marido e a partir daí tornou o seu principal motivo de sua transformação, ou seja, quando viu o marido naquele estado, decidiu lutar pelo seu casamento.

Após dois dias do ocorrido, a jovem e a senhora vão para um passeio, como de costume, e viram em suas direções, um cavaleiro, em que Venancinha após fixar seus olhos nele, escondeu-se atrás de um muro enquanto D. Paula manteve-se em seu lugar observando-o. Com a reação da mocinha a tia pôde perceber de quem se tratava e que este relacionamento chegou a um grau perigoso, porque a reputação de sua sobrinha estava em risco.

Na mesma noite em que a jovem avistou o rapaz, a senhora com toda a sua experiência manipulou a sobrinha para lhe contar tudo o que aconteceu. O sujeito da enunciação faz neste instante um sumário caracterizando a história da moça, acelerando o tempo do discurso.

O sumário em questão mostra ao leitor o quanto a jovem se encantou com o sujeito, a ponto de comentar dele para o marido que ao escutar “franziu o sobrolho” e que “foi este gesto que lhe deu uma idéia que até então não tinha”. Ou seja, a mulher falou com tanta graça sobre o rapaz, que despertou em Conrado uma certa desconfiança que antes não tinha.

Ainda na residência da tia, Venancinha continuava a revelar à D. Paula os fatos e a senhora escutava-os prestando atenção em cada detalhe pronunciado, fazendo assim com que voltasse a seu espírito jovem, criando, no entanto, mais confiança à moça. Nestas circunstâncias a sobrinha “achou ali uma confidente e amiga”. Na verdade o não julgamento pela tia era mais um ato egoísta do que humano, pois ela encontrou naquele momento em seu passado, mesmo que por alguns instantes. Para melhor exemplificar esta passagem o narrador compara a senhora “a um general inválido, que forceja por achar um pouco do antigo ardor na audiência de outras campanhas”. É como se a senhora tentasse perdoar ela mesma.

Ao longo da confissão Venancinha contou à tia que gostou do rapaz, mas agora estava arrependida e assim foi contando-lhe mais coisas. À medida em que a sobrinha revelava os acontecimentos, D. Paula deliciava-se com as confissões retornando ao seu passado, e no final do discurso da jovem a senhora conclui que esta situação não passava de um prólogo (começo), interessante e violento. Enfim, a tia consegue colocar na cabeça da sobrinha a ideia do erro que quase cometera. Mas para a senhora esta história ainda se passava em sua mente fazendo-a viajar no tempo, isso pode ser notado quando ela “gastou vinte minutos, ou pouco menos, em beber uma xícara de chá e roer um biscoito”.

Em seguida o narrador faz uma alegoria que refere-se exatamente ao que se passou com D. Paula: “esta é a particularidade das folhas, as gerações que passam contam às que chegam as cousas que viram”, que neste caso a senhora viveu a mesma situação em que a sobrinha vive atualmente. Porém D. Paula prefere dissimular ao invés de revelar à sobrinha que passou por experiência similar.

Voltando ao início do conto nota-se uma frase interessante: “Não era possível chegar mais a ponto”, que se repete no decorrer da história. No entanto com esta expressão pode-se observar que Venancinha e D. Paula encontram-se em um ponto em comum. Ou seja, ambas as personagens têm uma história semelhante, a diferença é apenas temporal, uma aconteceu no passado e a outra ocorre no presente.

Partindo da análise do conto referido, verifica-se que o adultério cometido pela personagem que protagoniza o conto foi mais extenso do que da moça, pois este foi apenas um começo e com a ajuda da senhora não foi prolongado.

Contudo, nota-se que apesar de D. Paula ter solucionado o caso de Venancinha, fica para ela a incômoda, inquietante e impossível de ser “resolvida” lembrança do passado.

Tendo em vista nosso interesse em compreender a construção ambígua da personagem D. Paula, percebemos no conto analisado que a perspectiva que prevalece para gerar efeito ambivalente ao comportamento da personagem, que nomeia o conto, é a focalização externa, permitindo assim a visualização do aspecto físico em que se encontra a personagem analisada, o que consequentemente, contribuiu para o estudo do seu comportamento.

Neste texto também foram usados os recursos anisocrônicos, como os sumários e as elipses, com a finalidade de economizar tempo e espaço, simplificando os fatos da diegese. A presença das anacronias e modalidades básicas acrescentam-se também no decorrer do conto em quantidade mínima.

Em relação aos estudos realizados em D. Paula, podemos encontrar uma chave de interpretação para o clássico Dom Casmurro e uma preocupação central da obra de Machado de Assis. Ora, se inicialmente (como em Dom Casmurro) pensamos ser a questão central do conto um dado de enredo (o adultério), logo percebemos o interesse real do escritor que se caracteriza-se em deslocar a atenção do leitor para o efeito que este dado provoca na vida interior da personagem. Ou seja, Machado de Assis direciona o conto, e paralelamente ao que acontece, há sempre o que parece estar acontecendo.

Fonte:
Créditos: Thalita Moraes Guimarães, Letras UEMG, in Passeiweb

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Nilto Maciel (A Fila)

Esbaforido, Luís se aproximou do fim da fila e se postou atrás de um homem. Ah! Se tivesse chegado antes! Mas o ônibus rodou devagar pelas ruas, repleto de passageiros. Meia hora atrás talvez encontrasse apenas vinte pessoas na fila. Tentou contar as cabeças: uma, duas, três... Homens e mulheres, cabelos negros, loiros e até brancos. Ora, o que faziam aquelas pessoas idosas numa fila para emprego? Melhor assim. Seriam eliminadas de pronto. A empresa não trocaria um jovem saudável e disposto a trabalhar dia e noite por um senhor grisalho, já sem forças, talvez doente, cheio de catarro, pernas bambas. Boa ideia para trocar com o homem à sua frente. Quem teria mais chance de ganhar a vaga: ele ou aqueles senhores de cabelos brancos? O homem virou a cabeça para trás: vaga de quê? Ora, do emprego de encarregado de distribuição de senhas. Não era isto que constava do anúncio no jornal? O homem não sabia de anúncio nenhum. E estava ali pensando tratar-se de quê? Luís olhou para trás. Mais de dez pessoas atrás dele. O mais próximo quis saber se a fila não andava. Queixou-se da demora do ônibus. Carros passavam diante da calçada. Luís coçava a orelha. Aquele barulho contínuo o deixava impaciente, nervoso. Nem sabia mais por que se chamava Luís. Às vezes pensava besteiras. As pessoas dentro dos automóveis olhavam para as filas como quem olha para as pernas das moças. O rapaz sorriu. Também se chamava Luís. Poderiam chamar aquilo de fila dos luíses. Eu sou o Luís I e você o Luís II. Quem seria o terceiro? E os outros também se chamavam Luís? E se fizessem a pergunta a cada um? Besteira! Luís II sorriu de novo. Carros passavam em disparada. Ao pé do meio-fio acumulavam-se pontas de cigarro, papéis rasgados e sujos, latas. Se o emprego fosse para gari? Luís I quis saber se o outro sabia distribuir senhas. A moça atrás de Luís II olhava atentamente para ele e para Luís I. Não havia tarefa mais fácil do que distribuir senhas, mas preferia não fazer nada. Como se chamava? Luzia da Silva. A mãe fizera promessa a Santa Luzia: se ela, a menina, nunca ficasse cega, a mãe jamais olharia para o Sol. Ela pagou a promessa? Não, e já morreu, a coitadinha. E você sabe distribuir senhas? Não sabia e não queria saber. Quando lhe entregassem a senha, entraria correndo no teatro. Havia dias só pensava naquela peça. Quando chegava a vez dela, as portas se fechavam. Sempre assim. Mas hoje contava com a sorte. O homem à frente de Luís I se irritou. Parassem com tanta conversa besta. E saiu da fila, a gesticular. Pareciam doidos. Os luíses e a moça riram. Fosse então embora, deixasse a vaga para quem queria trabalhar. Fosse embora, deixasse a vaga para quem gostava de teatro. Luís II esfregou os olhos com as mãos. Por que a fila não andava? Ou o velório já tinha se encerrado? Quem morreu? O governador. Luís I arregalou os olhos e se retirou. Ia averiguar direito aquilo. Atrás de Luiza um rapaz falou em exposição de fotografias. Os jornais falavam em fotos de guerra. Luís se dirigiu a outro. Queria jogar numa loteria. Ou aquela não era a fila da loteria? Luís II e Luiza conversavam animadamente. Todos mentiam. Ou inventavam histórias para engabelar os idiotas. Riram de novo. Outros também riram. Luís I voltou para perto de Luís II. Sentia fome. Guardassem o seu lugar. Em quinze minutos estaria de volta. A moça falava de teatro e parecia num palco: To be or not to be, that is the question. Os carros passavam em disparada pela rua. A fila andava lentamente. Homens e mulheres pediam licença e furavam a fila: precisavam entrar na loja cuja porta não conseguiam ver. Luiza repetia Hamlet: Vamos, vamos, sentai-vos: não vos movereis, nem saireis daqui, sem que eu vos ponha aos olhos um espelho onde vejais o fundo de vossa alma. Houve vaias e aplausos. Luís I apareceu no meio da rua, entre os carros. Procurava Luís II e Luiza. Andava para lá e para cá, a fazer perguntas irrespondíveis. Onde se achava a moça do teatro? Riam dele. Correu em busca do início da fila. À porta um guarda impedia a entrada de quem não fosse chamado. Por favor, é preciso preencher alguma ficha? O guarda se irritou: procurasse o final da fila. Luís se exasperou e correu pela calçada. Chegou ao fim da fila. Quem viu Luís II e Luíza? Riam, respondiam com gestos, chamavam-no de doido. Voltou devagar, a olhar demoradamente para os rostos. Fila para comprar ingressos para o jogo de futebol. Andou, andou, andou, voltou ao guarda, recebeu ameaças. Fila para marcar consulta médica. Coçava a cabeça, puxava as orelhas, amassava o nariz. Ia ser entregador de senhas. Luiza surgiu do outro lado da calçada. Gritou por ela. Os carros passavam entre ele e ela. Luís quis atravessar a rua. Gritou por Luiza. Depois não a viu mais. Voltou-se de novo para a fila. E se fosse para o fim?

Fonte:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 7


Marcelo Spalding (Figuras de Linguagem e a Escrita Criativa)

Figuras de linguagem: algo fundamental para quem quer escrever um texto com literariedade (o que não se aplica apenas para escritores, pois de um texto jornalístico, publicitário ou acadêmico também se requer alguma literariedade).

Figuras de linguagem, como se sabe, são estratégias/recursos que o escritor pode aplicar no texto para conseguir um efeito determinado na interpretação do leitor. São formas de expressão mais localizadas em comparação às funções da linguagem, que são características globais do texto. Reconhecer figuras de linguagem, ainda que sem saber os seus nomes técnicos, ajuda a compreender a linguagem literária e o que torna um texto mais criativo.

A grosso modo, podemos dividir essas figuras em quatro grandes grupos, as de construção, de som, de palavra e de pensamento. A lista das figuras é inesgotável, mas compartilhamos alguns dos mais importantes com nosso leitor.

    Figuras de construção:

Paralelismo sintático:
encadeamento de funções sintáticas idênticas ou encadeamento de orações de valores sintáticos iguais. Exemplo: Funcionários cogitam nova greve e isolamento do governador. Observe que a construção "Funcionários cogitam nova greve e isolar o governador" está errada devido à falta de paralelismo.

Elipse:
consiste na omissão de um termo facilmente identificável pelo contexto.
Exemplo: "Na sala, apenas quatro ou cinco convidados." (omissão de havia)

    Zeugma:
consiste na elipse de um termo que já apareceu antes. Exemplo: "Ele prefere cinema; eu, teatro." (omissão de prefiro).

    Anáfora:
consiste na repetição de uma mesma palavra no início de versos ou frases. Exemplo: "Amor é um fogo que arde sem se ver; / É ferida que dói e não se sente; / É um contentamento descontente; / É dor que desatina sem doer". Este poema de Luís de Camões tem quase 500 anos e até hoje é considerado um dos melhores poemas de amor da história da literatura de língua portuguesa.

  Polissíndeto:
consiste na repetição de conectivos ligando termos da oração ou elementos do período. Exemplo: "E sob as ondas ritmadas / e sob as nuvens e os ventos / e sob as pontes e sob o sarcasmo e sob a gosma e sob o vômito (...)"

    Inversão:
consiste na mudança da ordem natural dos termos na frase. Exemplo: "De tudo ficou um pouco. Do meu medo. Do teu asco."

    Silepse:

consiste na concordância não com o que vem expresso, mas com o que se subentende, com o que está implícito. A silepse pode ser: de gênero: Vossa Excelência está preocupado; de número: Os Lusíadas glorificou nossa literatura; de pessoa: O que me parece inexplicável é que os brasileiros persistamos em comer essa coisinha verde e mole que se derrete na boca.

    Anacoluto:
consiste em deixar um termo solto na frase. Normalmente, isso ocorre porque se inicia uma determinada construção sintática e depois se opta por outra. Exemplo: A vida, não sei realmente se ela vale alguma coisa.

    Pleonasmo:
consiste numa redundância cuja finalidade é reforçar a mensagem. Exemplo: "E rir meu riso e derramar meu pranto.".

    Figuras de som:

    Aliteração:
consiste na repetição ordenada de mesmos sons consonantais.
    Exemplo: "Esperando, parada, pregada na pedra do porto."

    Assonância:
consiste na repetição ordenada de sons vocálicos idênticos.
    Exemplo:
    “Sou um mulato nato no sentido lato
    mulato democrático do litoral."

    Paronomásia:
consiste na aproximação de palavras de sons parecidos, mas de significados distintos. Exemplo: "Eu que passo, penso e peço."

    Figuras de palavra:

    Metáfora:
empregar um termo com significado diferente do habitual, com base numa relação de similaridade entre o sentido próprio e o sentido figurado. A metáfora implica, pois, uma comparação em que o conectivo comparativo fica subentendido. Exemplo: "Meu pensamento é um rio subterrâneo."

    Metonímia:
como a metáfora, uma palavra que usualmente significa uma coisa passa a ser usada com outro significado. A metonímia explora sempre alguma relação lógica entre os termos. Exemplo: Não tinha teto em que se abrigasse. (teto em lugar de casa)

    Catacrese:
ocorre quando, por falta de um termo específico para designar um conceito, torna-se outro por empréstimo. Exemplo: O pé da mesa estava quebrado.

    Antonomásia ou perífrase:
consiste em substituir um nome por uma expressão que o identifique: Exemplo: ...os quatro rapazes de Liverpool (em vez de os Beatles)

    Sinestesia:
trata-se de mesclar, numa expressão, sensações percebidas por diferentes órgãos do sentido. Exemplo: A luz crua da madrugada invadia meu quarto.

    Figuras de pensamento:

    Antítese:
consiste na aproximação de termos contrários, de palavras que se opõem pelo sentido. Exemplo: "Os jardins têm vida e morte."

    Ironia:
é a figura que apresenta um termo em sentido oposto ao usual, obtendo-se, com isso, efeito crítico ou humorístico. Exemplo: "A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças."

    Eufemismo:
consiste em substituir uma expressão por outra menos brusca; em síntese, procura-se suavizar alguma afirmação desagradável. Exemplo: Ele enriqueceu por meios ilícitos. (em vez de ele roubou)

    Hipérbole:
trata-se de exagerar uma ideia com finalidade enfática. Exemplo: Estou morrendo de sede. (em vez de estou com muita sede). A música "Exagerado", do Cazuza, é quase um hino da hipérbole.

    Prosopopéia ou personificação:
consiste em atribuir a seres inanimados predicativos que são próprios de seres animados. Exemplo: O jardim olhava as crianças sem dizer nada.

    Gradação ou clímax:
é a apresentação de ideias em progressão ascendente (clímax) ou descendente (anticlímax). Exemplo: "Um coração chagado de desejos / Latejando, batendo, restrugindo.”

    Apóstrofe:
consiste na interpelação enfática a alguém (ou alguma coisa personificada). Exemplo: "Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus!"

Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4049/figuras-de-linguagem-e-a-escrita-criativa

I Troféu Falando de Amor (Categoria: Poesias)

LÚCIA PÉRISSÉ

Só ilusão  


Te vejo em meu sono
  te sinto no ar;
  teu rosto tão meigo em meu peito...
  é lindo te amar...

  Te quero tão perto,
  te sonho tão doce,
  tuas mãos em meus dedos,
  te toco com amor...

  Mas...
  não tenho teu rosto,
  não tenho teu corpo,
  não tenho sequer um só pensamento teu.
  Te lembras de tudo
  mas nunca de mim...

  Te vejo no sol
  e o sol se escondeu...
  te vejo na lua
  e é noite de chuva,
  nas nuvens, no céu
  na azul melodia
  que embala meu sonho
  que é pura magia...
  que é pura ilusão...
  que é apenas
  sonhar...

LUCIANE VIANA BRAGA DE CARVALHO

Ainda hoje



 Ainda hoje
Houve um momento,
em que tudo parecia singelo

Todo ato ou gesto seu
me deixava em devaneio
Meu pensamento era só seu
Pertencia-lhe por inteiro

Você sorria e me agradava
Ao mesmo tempo me deixava
Pairando em expectativas

Dias felizes. Noites tão tristes
Você foi embora... Sem mim
Procurei um motivo. Árduo desatino
Minha sina começava, enfim

Partida em duas em suas mãos
Vi minha alma escorrer pelo chão
Em forma de lágrimas

Eu chorei...Indubitavelmente... Chorei
Nada na vida havia me preparado para aquele momento
Uma parte de mim foi com você...
Eterno tormento

As lágrimas, enfim, secaram
Venci a mim mesma, superei essa etapa
Tudo que começa tende a um fim

Jurei esquecer todos aqueles dias
A alegria do primeiro reconhecimento
O tormento da expectativa
A dor da despedida

E falhei...

Falhei miseravelmente
Ainda hoje, amo você

MARÍA CRISTINA DRESE

Vestimenta

 

Teu corpo e o meu
se fundem
crisol
estátua
metade cobre, metade prata

fogaréu inapagável
cárcere  de sonhos

prata-cobre
derretida
derramada
lava acesa que endurece

seremos caminhos
rocha
prata
cobre
eternidade.

FERNANDO CATELAN

Amor maior


Amor maior, qual se em pauta difuso,
na música derramas teu ardil, gemido
Se o pouco em mim havido ora eu uso
já isso ido não me faz de culpa remido!

Amor maior, dum algo em ti selenita,
como se o próprio São Jorge detiveste
Vê, se nos era certa essa tua saga finita,
agora aberto o teu mundo, o teu Leste!

Amor maior, ‘inda careço desses lábios
beijos que deem à lida o sabor, feitiço
que misturem aos teus vaticínios sábios
o quanto de crepitante venho, lhes atiço!

Amor maior, se bem entendes pecado
um tal ardor puxado dessa comunhão,
tenho pântanos d’alma tanto vadeado
a ver como seres quais tu e eu se dão!

Amor maior, muito faz que te conheço,
quando, a meus pés, tu ’inda a criança,
que se grande nasceste em teu começo
jamais deste com minh’alma algo rança!

Amor maior, me sendo tu o pleno gozo
te busco onde habitam os nossos cernes
Estás no âmago dum alguém estrepitoso,
conquanto em meu seio, vê, hibernes!

Amor maior, se me avultas tu escudeiro,
que traduzir de algo em céu esperançoso?
Me és amado amor maior, e por inteiro,
face a amores menores gigante colosso!

Fonte:
http://www.reinodosconcursos.com.br

Machado de Assis (Elogio da Vaidade)

Logo que a Modéstia acabou de falar, com os olhos no chão, a Vaidade empertigou-se e disse: I Damas e cavalheiros, acabais de ouvir a mais chocha de todas as virtudes, a mais pêca, a mais estéril de quantas podem reger o coração dos homens; e ides ouvir a mais sublime delas, a mais fecunda, a mais sensível, a que pode dar maior cópia de venturas sem contraste.

Que eu sou a Vaidade, classificada entre os vícios por alguns retóricos de profissão; mais na realidade, a primeira das virtudes. Não olheis para este gorro de guizos, nem para estes punhos carregados de braceletes, nem para estas cores variadas com que me adorno. Não olheis, digo eu, se tendes o preconceito da Modéstia; mas se o não tendes, reparai bem que estes guizos e tudo mais, longe de ser uma casca ilusória e vã, são a mesma polpa do fruto da sabedoria; e reparai mais que vos chamo a todos, sem os biocos e meneios daquela senhora, minha mana e minha rival.

Digo a todos, porque a todos cobiço, ou sejais formosos como Páris, ou feios como Tersites, gordos como Pança, magros como Quixote, varões e mulheres, grandes e pequenos, verdes e maduros, todos os que compondes este mundo, e haveis de compor o outro; a todos falo, como a galinha fala aos seus pintinhos, quando os convoca à refeição, a saber, com interesse, com graça, com amor. Porque nenhum, ou raro, poderá afirmar que eu o não tenha alçado ou consolado.

II Onde é que eu não entro? Onde é que eu não mando alguma coisa? Vou do salão do rico ao albergue do pobre, do palácio ao cortiço, da seda fina e roçagante ao algodão escasso e grosseiro. Faço exceções, é certo (infelizmente!) ; mas, em geral, tu que possuis, busca-me no encosto da tua otomana, entre as porcelanas da tua baixela, na portinhola da tua carruagem; que digo? busca-me em ti mesmo, nas tuas botas, na tua casaca, no teu bigode; busca-me no teu próprio coração. Tu, que não possuis nada, perscruta bem as dobras da tua estamenha, os recessos da tua velha arca; lá me acharás entre dois vermes famintos; ou ali, ou no fundo dos teus sapatos sem graxa, ou entre os fios da tua grenha sem óleo.

Valeria a pena ter, se eu não realçasse os teres? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que mandaste vir de tão longe esse vaso opulento? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que encomendaste à melhor fábrica o tecido que te veste, a safira que te arreia, a carruagem que te leva? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que ordenaste esse festim babilônico, e pediste ao pomar os melhores vinhos? E tu, que nada tens, por que aplicas o salário de uma semana ao jantar de uma hora, senão porque eu te possuo e te digo que alguma coisa deves parecer melhor do que és na realidade? Por que levas ao teu casamento um coche, tão rico e tão caro, como o do teu opulento vizinho, quando podias ir à igreja com teus pés? Por que compras essa jóia e esse chapéu? Por que talhas o teu vestido pelo padrão mais rebuscado, e por que te remiras ao espelho com amor, senão porque eu te consolo da tua miséria e do teu nada, dando-te a troco de um sacrifício grande benefício ainda maior? III Quem é esse que aí vem, com os olhos no eterno azul? É um poeta; vem compondo alguma coisa; segue o vôo caprichoso da estrofe. — Deus te salve, Píndaro! Estremeceu; moveu a fronte, desabrochou em riso. Que é da inspiração? Fugiu-lhe; a estrofe perdeu-se entre as moitas; a rima esvaiu-se-lhe por entre os dedos da memória. Não importa; fiquei eu com ele — eu, a musa décima, e, portanto, o conjunto de todas as musas, pela regra dos doutores de Sganarello. Que ar beatífico! Que satisfação sem mescla! Quem dirá a esse homem que uma guerra ameaça levar um milhão de outros homens? Quem dirá que a seca devora uma porção do país? Nesta ocasião ele nada sabe, nada ouve.

Ouve-me, ouve-se; eis tudo. Um homem caluniou-o há tempos; mas agora, ao voltar a esquina, dizem-lhe que o caluniador o elogiou.

— Não me fales nesse maroto.

— Elogiou-te; disse que és um poeta enorme.

— Outros o têm dito, mas são homens de bem, e sinceros. Será ele sincero? — Confessa que não conhece poeta maior.

— Peralta! Naturalmente arrependeu-se da injustiça que me fez Poeta enorme, disse ele? — O maior de todos.

— Não creio. O maior? — O maior.

— Não contestarei nunca os seus méritos; não sou como ele que me caluniou; isto é, não sei, disseram-mo. Diz-se tanta mentira! Tem gosto o maroto; é um pouco estouvado às vezes, mas tem gosto. Não contestarei nunca os seus méritos. Haverá pior coisa do que mesclar o ódio às opiniões? Que eu não lhe tenho ódio. Oh! nenhum ódio. É estouvado, mas imparcial.

Uma semana depois, vê-lo-eis de braço com o outro, à mesa do café, à mesa do jogo, alegres, íntimos, perdoados. E quem embotou esse ódio velho, senão eu? Quem verteu o bálsamo do esquecimento nesses dois corações irreconciliáveis? Eu, a caluniada amiga do gênero humano.

Dizem que o meu abraço dói. Calúnia, amados ouvintes! Não escureço a verdade; às vezes há no mel uma pontazinha de fel; mas como eu dissolvo tudo! Chamai aquele mesmo poeta, não Píndaro, mas Trissotin. Vê-lo-eis derrubar o carão, estremecer, rugir, morder-se, como os zoilos de Bocage. Desgosto, convenho, mas desgosto curto. Ele irá dali remirar-se nos próprios livros. A justiça que um atrevido lhe negou, não lha negarão as páginas dele. Oh! a mãe que gerou o filho, que o amamenta e acalenta, que põe nessa frágil criaturinha o mais puro de todos os amores, essa mãe é Medéia, se a compararmos àquele engenho, que se consola da injúria, relendo-se; porque se o amor de mãe é a mais elevada forma do altruísmo, o dele é a mais profunda forma de egoísmo, e só há uma coisa mais forte que o amor materno, é o amor de si próprio.

IV Vede estoutro que palestra com um homem público. Palestra, disse eu? Não; é o outro que fala; ele nem fala, nem ouve. Os olhos entornam-se-lhe em roda, aos que passam, a espreitar se o vêem, se o admiram, se o invejam. Não corteja as palavras do outro; não lhes abre sequer as portas da atenção respeitosa. Ao contrário, parece ouvi-las com familiaridade, com indiferença, quase com enfado. Tu, que passas, dizes contigo: — São íntimos; o homem público é familiar deste cidadão; talvez parente. Quem lhe faz obter esse teu juízo, senão eu? Como eu vivo da opinião e para a opinião, dou àquele meu aluno as vantagens que resultam de uma boa opinião, isto é, dou-lhe tudo.

Agora, contemplai aquele que tão apressadamente oferece o braço a uma senhora. Ela aceita-lho; quer seguir até a carruagem, e há muita gente na rua. Se a Modéstia animara o braço do cavalheiro, ele cumprira o seu dever de cortesania, com uma parcimônia de palavras, uma moderação de maneiras, assaz miseráveis. Mas quem lho anima sou eu, e é por isso que ele cuida menos de guiar à dama, do que de ser visto dos outros olhos. Por que não? Ela é bonita, graciosa, elegante; a firmeza com que assenta o pé é verdadeiramente senhoril. Vede como ele se inclina e bamboleia! Riu-se? Não vos iludais com aquele riso familiar, amplo, doméstico; ela disse apenas que o calor é grande. Mas é tão bom rir para os outros! é tão bom fazer supor uma intimidade elegante! Não deveríeis crer que me é vedada a sacristia? Decerto; e contudo, acho meio de lá penetrar, uma ou outra vez, às escondidas, até às meias roxas daquela grave dignidade, a ponto de lhe fazer esquecer as glórias do céu, pelas vanglórias da terra. Verto-lhe o meu óleo no coração, e ela sente-se melhor, mais excelsa, mais sublime do que esse outro ministro subalterno do altar, que ali vai queimar o puro incenso da fé. Por que não há de ser assim, se agora mesmo penetrou no santuário esta garrida matrona, ataviada das melhores fitas, para vir falar ao seu Criador? Que farfalhar! que voltear de cabeças! A antífona continua, a música não cessa; mas a matrona suplantou Jesus, na atenção dos ouvintes. Ei-la que dobra as curvas, abre o livro, compõe as rendas, murmura a oração, acomoda o leque. Traz no coração duas flores, a fé e eu; a celeste; colheu-a no catecismo, que lhe deram aos dez anos; a terrestre colheu-a no espelho, que lhe deram aos oito; são os seus dois Testamentos; e eu sou o mais antigo.

V Mas eu perderia o tempo, se me detivesse a mostrar um por um todos os meus súditos; perderia o tempo e o latim. Omnia vanitas. Para que citá-los, arrolá-los, se quase toda a terra me pertence? E digo quase, porque não há negar que há tristezas na terra e onde há tristezas aí governa a minha irmã bastarda, aquela que ali vedes com os olhos no chão. Mas a alegria sobrepuja o enfado e a alegria sou eu. Deus dá um anjo guardador a cada homem; a natureza dá-lhe outro, e esse outro é nem mais nem menos esta vossa criada, que recebe o homem no berço, para deixá-lo somente na cova. Que digo? Na eternidade; porque o arranco final da modéstia, que aí lês nesse testamento, essa recomendação de ser levado ao chão por quatro mendigos, essa cláusula sou eu que a inspiro e dito; última e genuína vitória do meu poder, que é imitar os meneios da outra.

Oh! a outra! Que tem ela feito no mundo que valha a pena de ser citado? Foram as suas mãos que carregaram as pedras das Pirâmides? Foi a sua arte que entreteceu os louros de Temístocles? Que vale a charrua do seu Cincinato, ao pé do capelo do meu cardeal de Retz? Virtudes de cenóbios, são virtudes? Engenhos de gabinete, são engenhos? Traga-me ela uma lista de seus feitos, de seus heróis, de suas obras duradouras; traga-ma, e eu a suplantarei, mostrando-lhe que a vida, que a história, que os séculos nada são sem mim.

Não vos deixeis cair na tentação da Modéstia: é a virtude dos pecos. Achareis decerto, algum filósofo, que vos louve, e pode ser que algum poeta, que vos cante. Mas, louvaminhas e cantarolas têm a existência e o efeito da flor que a Modéstia elegeu para emblema; cheiram bem, mas morrem depressa. Escasso é o prazer que dão, e ao cabo definhareis na soledade. Comigo é outra coisa: achareis, é verdade, algum filósofo que vos talhe na pele; algum frade que vos dirá que eu sou inimiga da boa consciência. Petas! Não sou inimiga da consciência, boa ou má; limito-me a substituí-la, quando a vejo em frangalhos; se é ainda nova, ponho-lhe diante de um espelho de cristal, vidro de aumento.

Se vos parece preferível o narcótico da Modéstia, dizei-o; mas ficai certos de que excluireis do mundo o fervor, a alegria, a fraternidade.

Ora, pois, cuido haver mostrado o que sou e o que ela é; e nisso mesmo revelei a minha sinceridade, porque disse tudo, sem vexame, nem reserva; fiz o meu próprio elogio, que é vitupério, segundo um antigo rifão; mas eu não faço caso de rifões. Vistes que sou a mãe da vida e do contentamento, o vinculo da sociabilidade, o conforto, o vigor, a ventura dos homens; alço a uns, realço a outros, e a todos amo; e quem é isto é tudo, e não se deixa vencer de quem não é nada. E reparai que nenhum grande vício se encobriu ainda comigo; ao contrário, quando Tartufo entra em casa de Órgon, dá um lenço a Dorina para que cubra os seios. A modéstia serve de conduta a seus intentos. E por que não seria assim, se ela ali está de olhos baixos, rosto caído, boca taciturna? Poderíeis afirmar que é Virgínia e não Locusta? Pode ser uma ou outra, porque ninguém lhe vê o coração. Mas comigo? Quem se pode enganar com este riso franco, irradiação do meu próprio ser; com esta face jovial, este rosto satisfeito, que um quase nada anuvia, que outro quase nada ilumina; estes olhos, que não se escondem, que se não esgueiram por entre as pálpebras, mas fitam serenamente o sol e as estrelas? VI O quê? Credes que não é assim? Querem ver que perdi toda a minha retórica, e que ao cabo da pregação, deixo um auditório de relapsos? Céus! Dar-se-á caso que a minha rival vos arrebatasse outra vez? Todos o dirão ao ver a cara com que me escuta este cavalheiro; ao ver o desdém do leque daquela matrona. Uma levanta os ombros; outro ri de escárnio. Vejo ali um rapaz a fazer-me figas: outro abana tristemente a cabeça; e todas, todas as pálpebras parecem baixar, movidas por um sentimento único. Percebo, percebo! Tendes a volúpia suprema da vaidade, que é a vaidade da modéstia.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Tiradentes em Trovas


ALMIRA GUARACY REBÊLO

Herói de sonhos ardentes,
de liberdade e de glória,
o nome de TIRADENTES
ficou gravado na História.
----
ARLINDO TADEU HAGEN

TIRADENTES, tua glória
com teu corpo não morreu
e, em torno de tua história,
nossa história se escreveu.
----
CAMPOS SALES

Seus carrascos inclementes
não suspeitaram, suponho,
que matando TIRADENTES,
davam mais vida ao seu sonho.
----
CAROLINA RAMOS

No rol dos inconfidentes,
fiel à sua verdade,
deu a vida TIRADENTES
por amor à Liberdade!
----
FLORESTAN JAPIASSÚ MAIA

Ainda forte na lembrança,
como a luz na escuridão,
TIRADENTES é a esperança
que ilumina o coração!
----
FRANCISCO ASSIS MENEZES

TIRADENTES, de alma pura,
morre, crendo na verdade::
"Nem mesmo a força segura
o ideal de liberdade!
----
GENY NAGEN ASSAD SABBAGH

Tendo ideal, confiança,
TIRADENTES em verdade
foi um mártir de esperança,
com sonhos de liberdade...
----
HELOÍSA ZANCONATO PINTO

TIRADENTES foi o laço
de uma corda, e teu fanal...
E o corpo, em cada pedaço,
tornou-se um nome imortal!
----
JOAMIR MEDEIROS

Vencendo a força ultrajante
e a vileza da traição,
foi TIRADENTES gigante
doando a vida à Nação!
----
MARCÍLIO NASCIMENTO FERNANDES

O sangue de TIRADENTES
não foi derramado em vão...
Fertilizou as sementes
da nossa libertação!
----
MARIA DA GRAÇA O. SIKORSKI

Pensaste sonhos valentes,
sonhaste dias de glória,
serás sempre, TIRADENTES,
o exemplo de nossa História.
----
MARIA LÚCIA DALOCE CASTANHO

Que o exemplo de TIRADENTES,
ao morrer por liberdade,
germine eternas sementes
de civismo... e lealdade!
----
MARIA REGINATO LABRUCIANO

Quando subiu ao patíbulo,
TIRADENTES teve a glória
de atravessar o vestíbulo
do augusto Templo da História.
----
MARLÊ BEATRIZ J. DE ARAÚJO

TIRADENTES, tua imagem
atesta a notoriedade
de Herói de extrema coragem,
de garra e brasilidade!
----
NEOLY DE OLIVEIRA VARGAS
Herói dos Inconfidentes,
não conheceste a vitória,
mas teu nome, TIRADENTES,
ficou gravado na história.
----
NEWTON MEYER AZEVEDO

Lampeja em cada soldado,
que o Brasil defende agora,
um brilho do gesto ousado
do TIRADENTES de outrora!
----
OSCAR VIEIRA SOARES

No patíbulo medonho,
- fronte erguida, peito aberto -
TIRADENTES vive o sonho
de ver seu povo liberto!
----
OSWALDO EVANDRO C. MARTINS

Prosseguindo a trajetória
que leva aos Inconfidentes,
abrem-se as portas da glória
para o mártir TIRADENTES.
----
REBECCA LAVRADOR S. CARVALHO

TIRADENTES - monumento
do herói que não vacilou
e até seu último alento
ao Brasil glorificou!
----
SANTOS TEODÓSIO

Que estejam sempre presentes
na memória nacional,
os feitos de TIRADENTES,
o grande herói imortal!
----
SÉRGIO BERNARDO

TIRADENTES guarda a imagem
de uma verdade cabal:
- Jamais se enforca a coragem
nem se esquarteja o ideal!
----
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

TIRADENTES não duvida
que a sua morte, em verdade,
apaga a chama da vida
e acende a da liberdade!
----
THEREZINHA ZANONI FERREIRA

O sangue que TIRADENTES
derramou pela cidade,
foi irrigando as sementes
de justiça e liberdade.

Fonte:
I Concurso de Trovas do Clube Militar do Rio de Janeiro/RJ, 1996.

Wagner Marques Lopes/MG (Poema histórico: As gerais minas de uma estrada real)

Catas Altas – 
um das localidades da Estrada Real
(Instituto Estrada Real) 
foto Luiz Mascarenhas

Vem lá dos campos de Piratininga
um audaz bandeirante, intemerato:
Fernão Dias Paes Leme, um sonhador!...
Logo ao sul, o primeiro arraial vinga:
Ibituruna – o marco fundador.

Para além do Rio Grande, Paes avança
para alcançar ao norte o Sumidouro...
Esmeraldas!...  O sonho que trazia,
guardando para si toda a esperança
de se apossar da verde pedraria...

Eis a Vila Real de Nossa Senhora
da Conceição de Sabarabussu!...
Na Roça Grande de suaves colinas
a lei é Borba Gato, àquela hora
do nascer social de toda a Minas!...

Em solos de ouro, sob os mesmos céus,
gentes de muitas terras e etnias:
aportam os reinóis, com altas vistas...
São índios, angolanos e guineus...
Baianos, cariocas e paulistas...

Eis Ivituruí – o “Serro Frio” –
na língua dos indígenas locais!...
Lavras do Serro Frio!... Um sino em dobre!...
Há timbres de ouro nas fainas a fio!...
Eis a Vila do Príncipe, tão nobre!...

As bandeiras na Serra do Lenheiro:
lado norte – há ouro, e mais... Ao sul.
Avançam sobre o chão de Tomé Portes
Del Rey – quem por ali chegou primeiro...
Arraial Novo do Rio das Mortes!...

Serro, Diamantina, Pitangui...
Caminhos e picadas a ligá-los -
os núcleos do ouro e dos diamantes!...
Caminho do Sabarabussu ali...
Passagem de Caeté mais adiante.

Caminho Novo!... Ouro em nova estrada -
distante de São Paulo e Paraty.
Em tempo bem mais curto vai-se ao Rio.
Abrevia-se em muito as cavalgadas.
Mais depressa o metal chega aos navios!...

Fulguram Vila Rica, Mariana...
E a Barbacena de sustentação!...
Na Estrada Real, ouro a se escoar...
Lisboa... Londres... Muito se engalana -
“barões assinalados além-mar”!...

A Estrada Real que viu transitar
para o desterro nossos insurgentes,
agora, dá caminho à Humanidade,
que busca conhecer cada lugar
(que o ouro perdeu)... Não a liberdade!...

Fonte:
O Autor

Luiz Eduardo Caminha (Poemas Escolhidos)

IMPRECISÕES

Quem sou eu,
este ser inerme,
que faz da voz,
arma contusa?

Quem sou eu,
este ser inerte,
que mexe, remexe,
látego impiedoso?

Quem sou, afinal,
este ser sereno,
que num ímpeto se faz,
irascível mordaz.

Oh, cruel, inominado e controverso ser,
Verso, reverso, homo erraticus et perdidit!

Acaso uma criatura?
Erro da Criação,
insigne animal,
pedestal de areia?

Quiçá um dia,
de tanto me procurar,
alcance, almejo,
lugar pra descansar.

Desta busca infindável,
deste contínuo rebuscar.
Neste dia, quiçá, porvir,
Deus se ponha a me perdoar.

VELEJADOR

Um barco.
Uma vela (branca).
Uma aragem.
Oceano.

Lá se vai,
o poeta velejador!

Um lápis.
Uma folha (em branco).
Um sopro.
Pensamento.

Lá se vai,
velejando o poeta!

Mar.
Vela.
Folha.
Versos.
Tudo se lhe assemelha!

Um remo.
Um lápis.
Um, quase nada.
Outro, quase tudo.

OUTONO

O compasso da vida
Me abre os olhos,
A bruma cobre,
Densa, silente,
O leito do rio,
A roupagem da mata.

A brisa fresca da manhã,
Faz a pele aquecida,
Contrastar com a natureza,
O calor do corpo, da noite.

A vida,
Parte deste ar outonal,
Desperta alegre,
Aos primeiros raios,
Do astro rei.

Num cochilo do tempo,
De repente,
Como se um hiato houvesse,
A névoa some,
A mata descortina seu verde,
É manhã.

O céu azul límpido,
Perpassa à bicharada,
A onda cálida,
Do novo dia.

A sinfônica dos pássaros,
A voz dos bichos,
A melodia das águas,
Serpenteando a corrida do rio,
Misturam-se ao som,
Barulho da cidade.

O tempo passa,
A tribo humana,
Segue seu passo.
A natureza aguarda,
Como mágica,
A volta do crepúsculo,
O sumir do novo dia.

AMIZADE

Uma estrada que acaba,
Num ponto do horizonte.
Um cais que finda, no infinito
Que é mar,
Um feixe doirado refletido. Do sol.
No oceano sem fim,
Uma canoa, um pescador. Solitários,
Solidários navegam.

Como guia o feixe prateado.
Da lua,
O luar.

Tudo, tudo é infinitude,
Tudo, tudo leva. (Todos).
A algum ponto. Distante.
Horizonte de esperança.

Um fio, como se fosse de espada,
Conduz, passo a passo.
Qual equilibrista,
Na corda de arame.

Certeza mesmo, uma só.
Haverá lá no fim,
Alguém.
Um amigo,
Um abraço,
Um ombro,
Um teto a nos colher.

Amizade.
Um meio?
Um fim.

NATAL MENDIGO

Natal lembra um novo rebento,
Esperança que o mendigo sente
Triste alegria que se faz semente
Fé convertida, novo advento.

Natal estrela que lhe alumia
Por mais que lhe sofra a dor parida
Molhe o rosto a lágrima furtiva.
É menino, caminho que nos guia.

Natal é partilha do pão dormido
Que aplaca a fome do desvalido.
É felicidade quase certa.

Até que soe o sino da manhã,
Que volva mendaz a esperança vã.
Sonho vai. O mendigo desperta.

RAÍZES

Que seja ela,
A poesia,
Firme como a árvore.
Embora estática
Finca raízes,
Suga da terra...

E mostra, um dia
Nas folhas e frutos,
A razão que a move.

Que exprima ela,
A poesia,
Como a árvore,
Da seiva, o fruto.
Rabiscos de letras,
Amores e paixões,
No leito virgem, papel,
O seu doce cantar.

Sobretudo,
Que seja ela,
A poesia,
Como a água
Que se move
Corredeira abaixo.
Busca mar oceano,
Onde singram velas,
Horizontes sem fim...

FONTES

Lua cheia,
Estrelas que faíscam,

Sol nascente,
Poente eterno,

Fontes inspiram,
Respiram,
Poesias.

SONHOS

Estás louco poeta?
Queres tu imaginar,
Que o imponderável
Acontece?

Sonha, sonha, oh! Poeta.
Ainda bem que dormes,
Melhor: existes.

E sonhas...
Poesias!

PRENÚNCIO DE VERÃO

Que os ventos de Agosto,
Tão frios cá no Sul,
Tragam breve, a gosto,
O céu de Primavera, azul.

Pássaros a cantar,
Ninhos a fazer, então,
Amores a desbravar,
Prenúncio de verão.

POEMÍNIMO


no
sul
é

frio
que

quiçá
saudade
do
verão

é
tão
frio
que
não

pra
mim
mas

um
bom
surf
prá
pinguim

RODA DE VIOLA

O som,
Enche de romantismo,
O ambiente cálido
Da cantina acolhedora.

Lá está êle,
Cinquenta anos após,
A dedilhar as notas
Que lhe mandam o coração.

Olhos cerrados,
Cabeça inclinada,
Violeiro e Violão,
Misturam-se ao transe,
Da platéia; apoteose.

As mãos,
Aquelas mãos cheias de rugas,
Dedos finos,
Mostram um movimento frenético.

O toque suave,
Compasso a compasso
Sobre as cordas do violão,
Embaraçam solos e arpejos,
Maviosa sinfonia.

A seu lado,
Um copo de cerveja,
Um bandolim afinado,
Uma mesa vazia.

A platéia delira,
Canta contente :
Naquela mesa,
Êles sentavam sempre...

(Homenagem aos anônimos boêmios, a Jacó do Bandolim e a Velha Guarda, que fizeram da música brasileira, o romantismo, que até hoje, embalou tantas décadas.)

Fonte:
http://caminhapoetando.blogspot.com

Augusto dos Anjos (Santuário de Poesias) 6

BARCAROLA

Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas.

Espelham-se os esplendores
Do céu, em reflexos, nas
Águas, fingindo cristais
Das mais deslumbrantes cores.

Em fulvos filões doirados
Cai a luz dos astros por
Sobre o marítimo horror
Como globos estrelados.

Lá onde as rochas se assentam
Fulguram como outros sóis
Os flamívomos faróis
Que os navegantes orientam.

Vai uma onda, vem outra onda
E nesse eterno vaivém
Coitadas! não acham quem,
Quem as esconda, as esconda...

Alegoria tristonha
Do que pelo Mundo vai!
Se um sonha e se ergue, outro cai;
Se um cai, outro se ergue e sonha.

Mas desgraçado do pobre
Que em meio da Vida cai!
Esse não volta, esse vai
Para o túmulo que o cobre.

Vagueia um poeta num barco.
O Céu, de cima, a luzir
Como um diamante de Ofir
Imita a curva de um arco.

A Lua — globo de louça —
Surgiu, em lúcido véu.
Cantam! Os astros do Céu
Ouçam e a Lua Cheia ouça!

Ouça do alto a Lua Cheia
Que a sereia vai falar...
Haja silêncio no mar
Para se ouvir a sereia.

Que é que ela diz?! Será uma
História de amor feliz?
Não! O que a sereia diz
Não é história nenhuma.

É como um requiem profundo
De tristíssimos bemóis...
Sua voz é igual à voz
Das dores todas do mundo.

“Fecha-te nesse medonho
Reduto de Maldição,
Viajeiro da Extrema-Unção,
Sonhador do último sonho!

Numa redoma ilusória
Cercou-te a glória falaz,
Mas nunca mais, nunca mais
Há de cercar-te essa glória!

Nunca mais! Sê, porém, forte.
O poeta é como Jesus!
Abraça-te à tua Cruz
E morre, poeta da Morte!"

— E disse e porque isto disse
O luar no Céu se apagou...
Súbito o barco tombou
Sem que o poeta o pressentisse!

Vista de luto o Universo
E Deus se enlute no Céu!
Mais um poeta que morreu,
Mais um coveiro do Verso!

Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas!

TRISTEZAS DE UM QUARTO MINGUANTE

Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d’Arco é muito triste...
Nos engenhos da várzea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!

Do observatório em que eu estou situado
A lua magra, quando a noite cresce,
Vista, através do vidro azul, parece
Um paralelepípedo quebrado!

O sono esmaga o encéfalo do povo.
Tenho 300 quilos no epigastro...
Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro
Lembra a metade de uma casca de ovo.

Diabo! não ser mais tempo de milagre!
Para que esta opressão desapareça
Vou amarrar um pano na cabeça,
Molhar a minha fronte com vinagre.

Aumentam-se-me então os grandes medos.
O hemisfério lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento de borracha,
Variando à ação mecânica dos dedos!

Vai-me crescendo a aberração do sonho.
Morde-me os nervos o desejo doudo
De dissolver-me, de enterrar-me todo
Naquele semicírculo medonho!

Mas tudo isto é ilusão de minha parte!
Quem sabe se não é porque não saio
Desde que, Sexta-feira, 3 de maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!

A lâmpada a estirar línguas vermelhas
Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
Como um degenerado psicopata
Eis-me a contar o número das telhas!

— Uma, duas, três, quatro... E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,
A conta recomeço, em ânsias: -- Uma...
Mas novamente eis-me a perder a conta!

Sucede a uma tontura outra tontura.
— Estarei morto?! E a esta pergunta estranha
Responde a Vida — aquela grande aranha
Que anda tecendo a minha desventura!—

A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as fases de um eclipse...
Começo a ver coisas de Apocalipse
No triângulo escaleno do ladrilho!

Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho.
Cinco lençóis balançam numa corda,
Mas aquilo mortalhas me recorda,
E o amontoamento dos lençóis desmancho.

Vêm-me à imaginação sonhos dementes.
Acho-me, por exemplo, numa festa...
Tomba uma torre sobre a minha testa,
Caem-me de uma só vez todos os dentes!

Então dois ossos roídos me assombraram...
— “Por ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já não querem mais comer-nos
E os formigueiros já nos desprezaram.”

Figuras espectrais de bocas tronchas
Tornam-me o pesadelo duradouro...
Choro e quero beber a água do choro
Com as mãos dispostas à feição de conchas.

Tal uma planta aquática submersa,
Antegozando as últimas delícias
Mergulho as mãos — vis raízes adventícias —
No algodão quente de um tapete persa.

Por muito tempo rolo no tapete.
Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio
Cai sobre o meu estômago vazio
Como se fosse um copo de sorvete!

A alta frialdade me insensibiliza;
O suor me ensopa. Meu tormento é infindo...
Minha família ainda está dormindo
E eu não posso pedir outra camisa!

Abro a janela. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulcral Quarto Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.

Pelos respiratórios tênues tubos
Dos poros vegetais, no ato da entrega
Do mato verde, a terra resfolega
Estrumada, feliz, cheia de adubos.

Côncavo, o Céu, radiante e estriado, observa
A universal criação. Broncos e feios,
Vários reptis cortam os campos, cheios
Dos tenros tinhorões e da úmida erva.

Babujada por baixos beiços brutos,
No húmus feraz, hierática, se ostenta
A monarquia da árvore opulenta
Que dá aos homens o óbolo dos frutos.

De mim diverso, rígido e de rastos
Com a solidez do tegumento sujo
Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo
Naturalmente pelos mata-pastos.

Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros,
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funerais de Hamleto!

Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!
Quisera ser, numa última cobiça,
A fatia esponjosa de carniça
Que os corvos comem sobre as jurubebas!

Porque, longe do pão com que me nutres
Nesta hora, oh! Vida, em que a sofrer me exortas
Eu estaria como as bestas mortas
Pendurado no bico dos abutres!

MISTÊRIOS DE UM FÓSFORO

Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o
Depois. E o que depois fica e depois
Resta é um ou, por outra, é mais de um, são dois
Túmulos dentro de um carvão promíscuo.

Dois são, porque um, certo, é do sonho assíduo
Que a individual psiquê humana tece e
O outro é o do sonho altruístico da espécie
Que é o substractum dos sonhos do indivíduo!

E exclamo, ébrio, a esvaziar báquicos odres:
— “Cinza, síntese má da podridão,
Miniatura alegórica do chão,
Onde os ventres maternos ficam podres;

Na tua clandestina e erma alma vasta,
Onde nenhuma lâmpada se acende,
Meu raciocínio sôfrego surpreende
Todas as formas da matéria gasta!”

Raciocinar! Aziaga contingência!
Ser quadrúpede! Andar de quatro pés
É mais do que ser Cristo e ser Moisés
Porque é ser animal sem ter consciência!

Bêbedo, os beiços na ânfora ínfima, harto,
Mergulho, e na ínfima ânfora, harto, sinto
O amargor específico do absinto
E o cheiro animalíssimo do parto!

E afogo mentalmente os olhos fundos
Na amorfia da cítula inicial,
De onde, por epigênese geral,
Todos os organismos são oriundos.

Presto, irrupto, através ovóide e hialino
Vidro, aparece, amorfo e lúrido, ante
Minha massa encefálica minguante
Todo o gênero humano intra-uterino!

É o caos da ávita víscera avarenta
— Mucosa nojentíssima de pus,
A nutrir diariamente os fetos nus
Pelas vilosidades da placenta! —

Certo, o arquitetural e íntegro aspecto
Do mundo o mesmo inda é, que, ora, o que nele
Morre, sou eu, sois vós, é todo aquele
Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto!

É a flor dos genealógicos abismos
— Zooplasma pequeníssimo e plebeu,
De onde o desprotegido homem nasceu
Para a fatalidade dos tropismos: --

Depois, é o céu abscôndito do Nada,
É este ato extraordinário de morrer
Que há de, na última hebdômada, atender
Ao pedido da célula cansada!

Um dia restará, na terra instável,
De minha antropocêntrica matéria
Numa côncava xícara funérea
Uma colher de cinza miserável!

Abro na treva os olhos quase cegos.
Que mão sinistra e desgraçada encheu
Os olhos tristes que meu Pai me deu
De alfinetes, de agulhas e de pregos?!

Pesam sobre o meu corpo oitenta arráteis.
Dentro um dínamo déspota, sozinho,
Sob a morfologia de um moinho,
Move todos os meus nervos vibráteis.

Então, do meu espírito, em segredo,
Se escapa, dentre as tênebras, muito alto,
Na síntese acrobática de um salto,
O espectro angulosíssimo do Medo!

Em cismas filosóficas me perco
E vejo, como nunca outro homem viu,
Na anfigonia que me produziu
Nonilhões de moléculas de esterco.

Vida, mônada vil, cósmico zero,
Migalha de albumina semifluida,
Que fez a boca mística do druida
E a língua revoltada de Lutero;

Teus gineceus prolíficos envolvem
Cinza fetal!... Basta um fósforo só
Para mostrar a incógnita de pó,
Em que todos os seres se resolvem!

Ah! Maldito o conúbio incestuoso
Dessas afinidades eletivas,
De onde quimicamente tu derivas,
Na aclamação simbiótica do gozo!

O enterro de minha última neurona
Desfila... E eis-me outro fósforo a riscar.
E esse acidente químico vulgar
Extraordinariamente me impressiona!

Mas minha crise artrítica não tarda.
Adeus! Que eu vejo enfim, com a alma vencida,
Na abjeção embriológica da vida
O futuro de cinza que me aguarda!

Fonte:
Augusto dos Anjos. Eu e outras poesias.

Machado de Assis (Decadência de Dois Grandes Homens)

Os antigos frequentadores do Café Carceller hão de recordar-se de um velho que ali ia todas as manhãs às oito horas, almoçava, lia os jornais, fumava um charuto, dormia cerca de meia hora e saía. Estando de passagem no Rio de Janeiro, aonde viera para tratar questões políticas com os ministros, atirei-me ao prazer de estudar todos os originais que encontrava, e não tenho dúvida em confessar que até então só tinha encontrado cópias.

O velho apareceu a tempo; tratei de analisar o tipo.

Era meu costume — costume das montanhas mineiras — acordar cedo e almoçar cedo.

Ia fazê-lo ao Carceller, justamente à hora do velho, dos empregados públicos e dos escreventes de cartório. Sentava-me à mesa que enfrentava com a do velho, e que era a penúltima do lado esquerdo contando do fundo para a rua. Era ele homem de seus cinquenta anos, barbas brancas, olhos encovados, cor amarela, algum abdome, mãos ossudas e compridas. Comia vagarosamente algumas fatias de pão-de-ló e uma chávena de chocolate. Durante o almoço não lia; mas apenas acabado o chocolate, acendia um charuto que tirava do bolso, que era sempre do mesmo tamanho, e que no fim de certo tempo tinha a virtude de o fazer adormecer e deixar cair das mãos o jornal que estivesse lendo. Encostava então a cabeça à parede, e dormia plácido e risonho como se algum sonho agradável lhe estivesse dançando no espírito; às vezes abria os olhos, contemplava o vácuo, e continuava a dormir tranquilamente.

Indaguei do caixeiro quem era aquele freguês.

— Não sei, respondeu; almoça aqui há quatro anos, todos os dias, à mesma hora.

— Tem ele por aqui algum conhecido? — Nenhum; aparece só e retira-se só.

Aguçava-me a curiosidade. Ninguém conhecia o velho; era mais uma razão para conhecê-lo eu. Procurei travar conversa com o desconhecido, e aproveitei uma ocasião em que ele acabava de engolir o chocolate e procurava com os olhos algum jornal.

— Aqui está este, disse-lhe eu, indo levar-lhe.

— Obrigado, respondeu-me o homem sem levantar os olhos e abrindo a folha.

Não obtendo mais nada, quis travar conversa por outro modo.

— Traz hoje um magnífico artigo sobre a guerra.

— Ah! disse o velho com indiferença.

Nada mais.

Voltei ao meu lugar disposto a esperar que o velho lesse, dormisse e acordasse.

Paciência de curioso, que ninguém a tem maior, nem mais fria. Ao cabo do tempo do costume tinha o homem lido, fumado e dormido. Acordou, pagou o almoço e saiu.

Acompanhei-o imediatamente; mas o homem tendo chegado à esquina, voltou e foi até à outra esquina, aonde se demorou, seguiu por uma rua, tomou a parar e a voltar, a ponto que eu desisti de saber onde iria ele ter, tanto mais que nesse dia devia entender-me com um dos membros do governo, e não podia perder a ocasião.

Quando no dia seguinte, eram 15 de março, voltei ao Carceller, encontrei lá com o meu homem, assentado no lugar do costume; estava acabando de almoçar, almocei também; mas desta vez guardou-me o misterioso velho uma surpresa; em vez de pedir um jornal e fumar um charuto, encostou a cara nas mãos e começou a olhar para mim.

— Bom, disse eu; está amansado. Naturalmente vai dizer-me alguma coisa. Mas o homem nada disse e continuou a olhar para mim. A expressão dos olhos, que de ordinário era morta e triste, nessa ocasião tinha um quê de terror. Supondo que ele quisesse dizer-me alguma coisa, fui o primeiro a dirigir-lhe a palavra.

— Não lê hoje os jornais? — Não, respondeu-me ele com voz sombria; estou pensando...

— Em quê? O velho fez um movimento nervoso com a cabeça e disse: — São chegados os idos de março! Estremeci ouvindo esta singular resposta, e o velho, como se não visse o movimento, continuou: — Compreende, não? É hoje um tristíssimo aniversário.

— A morte de César? perguntei eu rindo.

— Sim, respondeu o velho com voz cavernosa.

Não tinha que ver; era algum homem maníaco; mas que haveria de comum entre ele e o vencedor das Gálias? A curiosidade cresceu; e aproveitei a disposição em que o velho estava de travar conhecimento. Levantei-me e fui sentar-me à mesa dele.

— Mas que tem o senhor com a morte de César? — O que tenho com a morte daquele grande homem? Tudo.

— Como assim? O velho abriu a boca e ia responder, mas a palavra ficou-lhe no ar e o homem voltou à taciturnidade habitual. Ocupei esse tempo em contemplá-lo mais detidamente e de perto.

Olhava ele para a mesa, com as mãos postas debaixo das orelhas; os músculos do rosto estremeciam de quando em quando, e os olhos rolavam dentro das órbitas como favas nadando em prato de molho. No fim de algum tempo olhou para mim, e eu aproveitei a ocasião para dizer-lhe: — Quer um charuto? — Obrigado; eu só fumo dos meus; são charutos opiados, grande recurso para quem quer esquecer um grande crime. Quer um? — Não tenho crimes.

— Não importa; colherá prazer em fumá-lo.

Aceitei o charuto, e guardei-o.

— Consente que o guarde? — Pois não, respondeu ele.

Outro silêncio mais prolongado. Vi que o homem não estava para conversa; a fronte se lhe entristecia cada vez mais como a Tijuca quando está para cair temporal. Ao cabo de alguns minutos, disse-lhe eu: — Simpatizo muito com o senhor, quer que eu seja seu amigo? Luziram os olhos do homem.

— Meu amigo? disse ele; oh! por que não? preciso de um, mas de um amigo verdadeiro.

Estendeu-me a mão, que eu lhe apertei com afeto.

— Como se chama? perguntei eu.

Sorriu o velho, soltou das cavernas do peito um longo e magoadíssimo suspiro, e respondeu-me: — Jaime. E o senhor? — Miranda, doutor em medicina.

— É brasileiro? — Sim, senhor.

— Meu patrício então? — Creio.

— Meu patrício!...

E dizendo isto o velho teve um sorriso tão infernal, tão sombrio, tão lúgubre, que eu tive idéia de me ir embora. Reteve-me a curiosidade de chegar ao fim. Jaime não prestava atenção ao que se passava ali; e exclamava de quando em quando: — Os idos de março! os idos de março! — Olhe, meu amigo sr. Jaime, quer ir dar um passeio comigo? Aceitou sem dizer palavra. Quando nos achamos na rua perguntei-lhe se preferia algum lugar.

Respondeu-me que não.

Andamos ao acaso; eu procurava travar conversa a fim de distrair o homem dos idos de março; e consegui a pouco e pouco que se tornasse mais conversador. Era então apreciável. Não falava sem gesticular com o braço esquerdo, com a mão fechada, e o dedo polegar aberto. Contava anedotas de mulheres e mostrava-se grande apreciador do sexo amável; era exímio na descrição da beleza feminina. A conversa passou à história, e Jaime exaltou os tempos antigos, a virtude romana, as páginas de Plutarco, Tito Lívio e Suetônio. Sabia o Tácito de cor e dormia com Virgílio, disse ele. Seria um doido, mas conversava com muito juízo.

Sobre a tarde tive fome e convidei-o a jantar.

— Comerei pouco, respondeu Jaime; estou indisposto. Ai! os idos de março! Jantamos em hotel, e eu quis acompanhá-lo a casa, que era na Rua da Misericórdia.

Consentiu nisso com verdadeira explosão de alegria. A casa dizia com o dono. Duas estantes, um globo, vários alfarrábios espalhados no chão, uma parte sobre uma mesa, e uma cama antiga.

Eram seis horas da tarde quando entramos. Jaime tremia quando chegou à porta da sala.

— Que tem? perguntei-lhe eu.

— Nada, nada.

Mal entrávamos na sala, pulou da mesa, onde se achava acocorado, um enorme gato preto. Não fugiu; saltou aos ombros de Jaime. Este tremeu todo e procurou aquietar o animal passando-lhe a mão pelo lombo.

— Sossega, Júlio! dizia ele, enquanto eu com o olhar inspecionava o albergue do homem e procurava cadeira onde me sentasse.

O gato pulou depois à mesa e fitou em mim dois grandes olhos verdes, fulminantes, interrogadores; compreendi o susto do velho. O gato era modelo na espécie; tinha certo ar de ferocidade da onça, de que era miniatura acabada. Era todo preto, pernas compridas, longas barbas; gordo e alto, tendo uma extensa cauda que brincava no ar dando saltos caprichosos. Tive sempre antipatia aos gatos; aquele causava-me horror. Parecia-me que ia saltar sobre mim e esganar-me com as largas patas.

— Mande o seu gato embora, disse eu a Jaime.

— Não faz mal, respondeu-me o velho. Júlio César, não é verdade que tu não fazes mal a este senhor? O gato voltou-se para ele; e Jaime beijou repetidas vezes a cabeça do gato. Do susto passara à efusão. Compreendi que seria pueril assustar-me quando o animal era tão manso, ainda que não compreendi o medo do velho quando entrou. Haveria alguma coisa entre aquele homem e aquele bicho? Não pude explicá-lo. Jaime acariciou o gato enquanto eu por me distrair lia o título das obras que estavam nas estantes. Um dos livros tinha no lombo este título: Metempsicose.

— Acredita na metempsicose? perguntei eu.

O velho, que estava ocupado em tirar o paletó e vestir um chambre de chita amarela, interrompeu aquele serviço, para dizer-me: — Se acredito? Em que queria o senhor que eu acreditasse? — Um homem instruído, como o senhor, não devia crer em tolices desta ordem, respondi abrindo a livro.

Jaime acabou de vestir o chambre, e veio a mim.

— Meu caro senhor, disse ele; não zombe assim da verdade; nem zombe nunca de filosofia nenhuma. Toda a filosofia pode ser verdadeira; a ignorância dos homens é que faz de uma ou de outra crença da moda. Contudo para mim, que as conheci todas, só uma é a verdadeira, e é essa a que alude o senhor com tanto desdém.

— Mas...

— Não me interrompa, disse ele; quero convencê-lo.

Levou-me a uma poltrona de couro e obrigou-me a sentar ali. Depois foi sentar-se ao pé da mesa, em frente a mim e começou a desenvolver a sua teoria, que eu ouvi sem pestanejar. Jaime tinha a palavra fácil, ardente, impetuosa; animavam-se-lhe os olhos, tremia-lhe o lábio, e a mão, a famosa mão esquerda, agitava no ar o dedo polegar aberto e curvo como um ponto de interrogação.

Ouvi o discurso do homem, e não ousei contestar-lhe. Era evidentemente um doido; e ninguém discute com homem doido. Jaime acabou de falar e caiu numa espécie de prostração. Cerrou os olhos e ficou insensível alguns minutos. O gato saltou à mesa, entre mim e ele, e começou a passar a mão pela cara de Jaime, o que o fez despertar daquele abatimento.

— Júlio! Júlio! exclamava ele beijando o gato; será hoje? será hoje? Júlio não parecia entender a pergunta; alteou o lombo, descreveu com a cauda algumas figuras geométricas no ar, deu dois saltos e pulou ao chão.

Jaime acendeu um lampião, enquanto eu me levantava para me ir embora.

— Não se vá, meu amigo, disse-me Jaime; peço-lhe um favor.

— Qual? — Fique comigo até a meia-noite.

— Não posso.

— Por quê? não imagina que favor me faria! — Tem medo? — Hoje tenho: são os idos de março.

Consenti em ficar.

— Não me dirá, perguntei eu, que tem o senhor com os idos de março? — Que tenho? disse Jaime com os olhos em fogo. Não sabe quem sou? — Pouco sei.

— Não sabe nada.

Jaime inclinou-se sobre a mesa e disse-me ao ouvido: — Sou Marco Bruto! Por mais extravagante que estas palavras pareçam ao frio leitor, confesso que me causaram profunda sensação. Recuei a cadeira e contemplei a cabeça do velho.

Pareceu-me que a iluminava a virtude romana. Os olhos tinham fulgores de padre conscrito; o lábio parecia estar fazendo uma oração à liberdade. Durante alguns minutos saboreou ele silenciosamente a minha silenciosa admiração. Depois, sentando-se outra vez: — Marco Bruto sou, disse, ainda que esta revelação lhe cause espanto. Sou aquele que encabeçou a momentânea vitória da liberdade, o assassino (em que me pese o nome!), o assassino do divino Júlio.

E voltando os olhos para o gato, que estava sobre uma cadeira, entrou a contemplá-lo com urna expressão de arrependimento e dor. O gato fitou nele os olhos verdes, redondos, e nesta contemplação recíproca ficaram até que eu para obter maior explicação do que presenciava, perguntei ao velho: — Mas, sr. Bruto, se é aquele grande homem que assassinou César por que receia os idos de março? César não voltou cá.

— A causa do meu receio ninguém a sabe; mas eu lhe direi francamente, pois é o único homem que tem mostrado interesse por mim. Receio os idos de março, porque...

Estacou; enorme trovão rolou nos ares e pareceu abalar a casa até os alicerces. O velho ergueu os braços e os olhos para o teto e fez mentalmente uma prece a algum deus do paganismo.

— Será a hora? perguntou ele baixinho.

— De quê? perguntei.

— Do castigo. Ouça, mancebo; o senhor é filho de um século sem fé nem filosofia; não conhece o que é a cólera dos deuses. Também eu nasci neste século; mas trouxe comigo as virtudes da minha primeira aparição na terra: corpo de Jaime, alma de Bruto.

— Então já morreu antes de ser Jaime? — Sem dúvida; é sabido que morri; ainda que eu desejasse negá-lo, aí estaria a História para dizer o contrário. Morri; séculos depois, voltei ao mundo com esta forma que vê; agora voltarei a outra forma e...

Aqui o velho começou a chorar. Consolei-o como pude, enquanto o gato, trepando à mesa, veio acariciá-lo com uma afeição bem contrária à índole de uma onça. O velho agradeceu as minhas consolações, e as carícias de Júlio. Aproveitei a ocasião para lhe dizer que efetivamente eu imaginava que o ilustre Bruto devia ter aquela figura.

O velho sorriu.

— Estou mais gordo, disse ele; naquele tempo eu era magro. Coisa natural; homem gordo não faz revolução. Bem o compreendia César quando dizia que não temia a Antônio e Dolabela, mas sim àqueles dois sujeitos amarelos e magros e éramos Cássio e eu...

— Pensa então o senhor que...

— Penso que homem gordo não faz revolução. O abdome é naturalmente amigo da ordem; o estômago pode destruir um império; mas há de ser antes de jantar. Quando Catilina encabeçou a célebre conjuração a quem foi procurar? Foi procurar a gente que não tinha um sestércio de seu; a turba dos clientes, que vivia de espórtulas, não os que viviam pomposamente em Túsculo ou Baïas.

Achei curiosa a doutrina e disse a propósito algumas palavras que nos distraíram do assunto principal.

O genro de Catão continuou: — Não lhe contarei, pois sabe a História, a conjuração dos idos de março. Apenas lhe direi que eu entrara naquela sinceramente, porquanto, como muito bem disse um poeta inglês, que depois me meteu em cena, eu matei César, não por ódio a César, mas por amor da República.

— Apoiado! — O senhor é deputado? perguntou o velho sorrindo.

— Não, senhor.

— Pensei. Aproveito a ocasião para dizer-lhe que a tática parlamentar de tomar tempo com discursos até o fim das sessões não é nova.

— Ah! — Foi inventada por meu ilustre sogro, o incomparável Catão, quando César, voltando vencedor da Espanha, queria o triunfo e o consulado. A assembléia inclinava-se a favor do pretendente; Catão não teve outro meio: subiu à tribuna e falou até a noite, falou sem parar um minuto. Os ouvintes ficaram estafados com a arenga, e César vendo que não podia ceder a um homem daquele calibre, dispensou o triunfo, e veio pleitear o consulado.

— De maneira que hoje quando um orador toma o tempo até o fim da hora?...

— Está na altura de Catão.

— Tomo nota.

— Ah! meu rico senhor, a vida é uma eterna repetição. Todos inventam o inventado.

— Tem razão.

— Matamos o divino Júlio, e mal lhe posso dizer o assombro que se seguiu ao nosso crime... Crime lhe chamo porque reconheço hoje que o era; mas sou obrigado a dizer que o ilustre César ofendera a majestade romana. Eu não fui o inventor da conjuração; toda a gente estava inspirada dos meus desejos. Eu não podia entrar no senado que não achasse essa cartinha: “ ou então: “. De toda a parte me instigaram. Uniram-se todos os ódios ao meu, e o mundo presenciou aquela tremenda catástrofe...

Jaime ou Bruto, que eu realmente não sei como lhe chame, concentrou um pouco o seu espírito; depois levantou-se, foi à porta, espiou, deu uma carreirinha e veio sentar-se defronte de mim.

— Há de ter lido que a sombra de César me apareceu depois duas vezes, sendo que, da segunda, veio silenciosa e silenciosa foi. É um erro. Da segunda vez foi que eu ouvi tremendo segredo que lhe vou revelar. Não o disse a ninguém por medo, e medo do que se dissesse de mim. Vá, abra os ouvidos...

Nesse momento o gato começou a dar saltos vertiginosos.

— Que diabo é isto? disse eu.

— Não sei; creio que está com fome. São horas de cearmos.

Jaime-Bruto foi buscar a ceia do gato, e trouxe para a mesa um assado frio, pão, queijo inglês, e vinho italiano e figos secos.

— Os vinhos italianos são uma recordação de minha vida anterior, disse ele. Quanto aos figos, se não são de Túsculo, ao menos os fazem lembrar.

Comemos tranquilamente; eram então oito horas, e o velho estava ansioso que batessem as doze. Ao cabo de meia hora acendeu ele um charuto, e eu o mesmo que ele me havia dado de manhã, e continuamos a falar de César.

— Apareceu-me a sombra, disse ele, e desenrolou um libelo dos males que eu havia feito à República com a morte dele, e ao mesmo tempo acrescentou que o meu crime nada salvara, pois era inevitável a decadência da República. Como eu respondesse um pouco irritado, a sombra soltou estas fatídicas palavras: “ Tirei o charuto da boca, e contemplei a cara do meu interlocutor. Era impossível que não estivesse próximo um acesso de loucura; mas o olhar do homem conservava a mesma inteligência e serenidade. Ele respirava a fumaça com delícias e olhava, ora para o teto, ora para o gato.

— É um doido manso, pensei eu, e continuei a fumar enquanto o velho continuou: — Compreende o senhor por que motivo receio esses malditos idos de março, aniversário do meu crime.

Atirou fora o charuto.

— Não fuma? perguntei eu.

— Destes não fumo hoje.

— Quer dos meus? — Aceito.

Dei-lhe um charuto, que ele acendeu, e eu continuei a fumar o dele, que me fazia sentir delícias inefáveis. Ia-se-me o corpo ficando mole; estendi-me na poltrona e prestei ouvidos ao anfitrião.

Este passeava vagarosamente, gesticulando, rindo sem motivo, outras vezes chorando, tudo como quem tem alguma mania na cabeça.

— Não me dirá, perguntei eu, se é neste gato que está a alma de Júlio? — Sem dúvida, é neste bicho que se meteu a alma daquele grande homem, o primeiro do universo.

O gato não pareceu reparar nessa adulação póstuma do nobre Bruto, e foi colocar-se no sofá em ação de querer dormir. Pus os olhos no animal, e admirei o que eram os destinos humanos. César estava reduzido à condição de animal doméstico! Aquele gato, que estava ali diante de mim, tinha escrito os Comentários, subjugado os Gauleses, vencido Pompeu, destruído a República. Saciava-se agora com uma simples ceia, quando outrora queria dominar todo o universo.

Jaime veio tirar-me das minhas cogitações.

— Poderia eu ter alguma dúvida acerca da identidade deste animal, disse ele; mas tudo me prova que é ele o meu divino Júlio.

— Como? — Apareceu-me aqui uma noite sem que a porta estivesse aberta e começou a olhar para mim. Quis pô-lo fora; impossível. Então lembrou-me a ameaça da sombra. — “, disse eu, chamando o gato; e imediatamente começou ele a fazer-me festas. Era fado ou ocasião: mais tarde ou mais cedo o meu túmulo é o ventre deste nobre animal.

— Acho que não tem razão de crer...

— Ah! meu caro doutor... é razão e mais que razão. Quer ver? Júlio César! O gato, apenas ouviu este nome, pulou do sofá e começou a dar saltos mortais por cima de um Niágara imaginário, a ponto de me obrigar a sair da cadeira e ir para o sofá.

— Aquieta-te, Júlio! disse o velho.

O gato sossegou; trepou para uma poltrona e ali arranjou como a seu gosto.

Quanto a mim, sentindo no corpo um delicioso torpor, estendi-me no sofá e continuei a pasmar ouvindo a narração do meu Jaime-Bruto.Durou esta ainda uma boa meia hora; falou-me o homem das coisas da República, da timidez de Cícero, da versatilidade do povo, da magnanimidade de César, da política de Otávio. Elogiou muito a antiga esposa de quem conservava eternas saudades; e por fim calou-se.

Nenhum rumor, o trovão não trouxera chuva; as patrulhas andavam por longe; nenhum caminhante feria as pedras da rua. Eram mais de dez horas. O meu anfitrião, sentado na cadeira de couro, olhava para mim, abrindo dois grandes olhos e eis que estes começam a crescer lentamente, e já ao fim de alguns minutos pareciam no tamanho e na cor as lanternas dos bondes de Botafogo. Depois, começaram a diminuir até ficarem muito abaixo do tamanho natural. A cara foi-se-lhe alongando e tomando proporções de focinho; caíram as barbas; achatou-se o nariz; diminuiu o corpo, assim como as mãos; as roupas desapareceram; as carnes tomaram uma cor escura; saiu-lhe uma extensa cauda, e eis o ilustre Bruto, a saltar sobre a mesa, com as formas e as visagens de um rato.

Senti os cabelos eriçados; tremia-me o corpo; batia-me o coração.

No mesmo instante, o gato saltou à mesa e avançou para ele. Fitaram-se alguns instantes, o que me trouxe à memória aqueles versos de Lucano, que o sr. Castilho José nos deu magistralmente assim: Nos altos, frente a frente, os dois caudilhos, Sôfregos de ir-se às mãos, já se acamparam.

Após curto silêncio, o gato avançou para o rato; o rato pulou ao chão, e o gato atrás dele.

Subiu o rato ao sofá, e o gato também. Onde Bruto se escondesse, lá se metia César, às vezes o primeiro encarava de frente o segundo, mas este não se assustava com isso, e avançava sempre. Gemidos e roncos ferozes eram a orquestra desta dança infernal.

Exausto de uma luta impossível, o rato deixou-se cair arquejante, e o gato pôs-lhe a pata em cima.

Que pena descreveria o olhar triunfante de César quando viu debaixo de si o miserando Bruto? Não conheço nada em poesia ou pintura — nem sequer na música chamada imitativa —, nada conheço que produza a impressão que me produziu aquele grupo e aquele olhar. De uma rivalidade secular, que lutou à luz do sol e da História, passava-se ali o último ato, dentro de uma sala obscura, tendo por espectador único um provinciano curioso.

O gato tirou a pata de cima do rato; este deu alguns passos; o gato tomou a pegá-lo; repetiu a cena uma porção de vezes; e se isto era natural de um gato, não era digno de César. Acreditando que me ouvissem, exclamei: — Não o tortures mais! O gato olhou para mim e pareceu compreender-me; efetivamente atirou-se ao rato com uma ânsia de quem esperava há muito aquela ocasião. Vi — que horror! — vi o corpo do nobre Bruto passar todo ao estômago do divino César, vi isto, e não lhe pude valer, porque eu tinha a presunção de que as armas da terra nada podiam contra aquela lei do destino.

O gato não sobreviveu à vingança. Apenas comeu o rato, caiu trêmulo, miou alguns minutos e faleceu.

Nada mais restava daqueles dois homens de Plutarco.

Contemplei o quadro algum tempo; e fiz tais reflexões acerca das evoluções históricas e das grandezas humanas, que bem podia escrever um livro que faria a admiração dos povos.

De repente, duas luzes surgiram dos restos miserandos daquele par da Antiguidade; duas luzes azuis, que subiram lentamente até o teto; o teto abriu-se e eu vi distintamente o firmamento estrelado. As luzes subiram no espaço.

Força desconhecida me levantou também do sofá, e eu acompanhei as luzes até meio caminho. Depois seguiram elas, e eu fiquei no espaço, contemplando a cidade iluminada, tranquila e silenciosa. Fui transportado ao oceano, onde vi uma concha à minha espera, uma verdadeira concha mitológica. Entrei nela e comecei a andar na direção do oeste.

Prossegui esta amável peregrinação de um modo verdadeiramente mágico. De repente senti que o meu nariz crescia desmesuradamente; admirei o sucesso, mas uma voz secreta me dizia que os narizes são sujeitos a transformações inopinadas — razão pela qual não me admirei quando o meu apêndice nasal assumiu sucessivamente a figura de um chapéu, de um revólver e de uma jaboticaba. Voltei à cidade; e entrei nas ruas espantado, porque as casas me pareciam todas voltadas com os alicerces para cima, coisa sumamente contrária à lei das casas, que devem ter os alicerces embaixo. Todos me apertavam a mão e perguntavam se eu conhecia a ilha das chuvas, e como eu respondesse que não, fui levado à dita ilha que era a Praça da Constituição e mais o seu jardim pomposamente iluminado.

Nesta preocupação andei até que fui levado outra vez à casa onde se passara a tragédia referida acima. A sala estava só; nem vestígio dos dois homens ilustres. O lampião estava a expiar. Sai aterrado e desci as escadas até chegar à porta onde achei a chave. Não dormi nessa noite; a madrugada veio surpreender-me com os olhos abertos, contemplando de memória o miserando caso da véspera.

Fui almoçar ao Carceller.

Qual não foi o meu espanto quando lá encontrei vivo e são aquele que eu supunha na eternidade? — Venha cá, venha cá! disse ele. Por que saiu ontem de casa sem falar? — Mas... o senhor... pois César não o engoliu? — Não. Esperei a hora fatal, e apenas ela passou, dei gritos de alegria e quis acordá-lo; mas o senhor dormia tão profundamente que achei melhor ir fazer o mesmo.

— Céus! pois eu...

— Efeitos do charuto que lhe dei. Teve belos sonhos, não? — Todos, não; sonhei que o gato o engolia...

— Ainda não... Agradeço-lhe a companhia; agora esperarei o ano que vem. Quer almoçar? Almocei com o homem; no fim do almoço ofereceu-me ele um charuto, que eu recusei dizendo: — Nada, meu caro; vi coisas terríveis esta noite...

— Falta de costume...

— Talvez.

Saí triste. Procurava um homem original e achei um maluco. Os de juízo são todos copiados uns dos outros. Consta-me até que aquele mesmo homem de Plutarco, freguês do Carceller, curado por um hábil médico, está agora tão comum como os outros. Acabou a originalidade com a maluquice. Tu quoque, Brute?

Fonte:
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