quarta-feira, 8 de março de 2023

George Abrão (A perfeição)

Certo dia um grande e renomado pintor foi instado se já havia pintado a perfeição. Ele pensou e respondeu:

- Não, pois por mais que a procurasse não a encontrei.

Então ele foi desafiado a realizar tal obra e o desafio foi prontamente aceito.

A partir daquele momento tal pintura tornou-se uma obcecação para ele. Começou a pintar belas paisagens, aves de rara beleza, frutos, flores, rios e cascatas, lagos, enfim, tudo o que lhe parecia belo e fascinante. Mas tudo em vão, nada lhe parecia próximo à perfeição, nada agradava a seus olhos e ao seu prazer.

Foi ficando a cada vez mais convencido de que a perfeição física não existia, era algo etéreo e impossível de ser retratado. E já estava desistindo do desafio quando lhe veio à ideia uma figura e essa sim representaria o grau máximo da virtude.

Pegou, então, a tela, a paleta, as tintas e os pinceis, e simplesmente pintou a MULHER!

Fonte:
Enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

segunda-feira, 6 de março de 2023

Tertúlia da Saudade 02: Amália Max

 

Aparecido Raimundo de Souza (Uma parte de mim acabou de morrer...)

UMA PARTE DE MIM se atirou num buraco sem volta. A partir desse evento inesperado, uma lacuna pungente se abriu ferida e acabou em chaga dentro de meu peito. Tudo por causa de meus livros. Eu tinha uma biblioteca e tanto. Causava inveja às pessoas que vinham me visitar e ficavam abismadas com tantos volumes ocupando um espaço tão imenso. Nossa!  Dava gosto chegar na minha sala, à noite, e depois do banho e do jantar, sentar no meu sofazinho de um lugar só, acionar o som baixinho e, ao acaso, passar as mãos num dos mais de trezentos bambas da literatura e me deleitar... 

Os temas variavam, igualmente como os autores: José Lins do Rego, Jorge Amado, Luís F. Veríssimo, Paulo Coelho, Nélida Pinõn, Ferreira Gullar, Moacyr Scliar, Humberto de Campos, Cassandra Rios, Rubem Braga, Adelaide Carraro, Graciliano Ramos, Gabriel Garcia Márquez, Chico Xavier, e tantos mais, lembrando, de cada escritor acima citado as obras completas. A contra gosto, precisei me desfazer do acervo. Quando não se tem a casa própria, se vive de aluguel, ou de favores, jogado por aí, em moradas alheias, algumas coisas “importantes” que fazem parte da nossa vida cotidiana, precisam ser descartadas. As pessoas que nos rodeiam, mesmo os parentes mais próximos, não se importam com os nossos cacarecos. Nos chamam de “bestas quadradas” e de “acumuladores de tranqueiras”, por mantermos um amontoado de lixo ocupando um quadrado que bem poderia ser destinado a coisas mais importantes.  

Lembro, dias antes de me desfazer das relíquias (para mim, eram relíquias), liguei para as minhas filhas Amanda e Luana. Falei que estava precisando urgentemente me divorciar de todas as coleções de escritores que sempre fizeram parte constante da minha vida. Talvez, amanhã, ou depois, meus netos se interessassem pelas “coisas do velho avô” e seguissem pelo mesmo caminho que sempre pontilhei desde que me entendo por gente. Amanda se prestou a perguntar, em retorno, pelos títulos. Eu disse alguns. Rezei um terço. São mais de “trocentos” e ela, em resposta, indagou se nessa leva iriam os livros de E. L. James e L. J. Smith, respectivamente a trilogia dos “Cinquenta Tons de Cinza” e os “Diários do Vampiro”. Esse último em quatro volumes. 

Uma semana se passou e eu, apalavrado em compromisso com a pessoa que viria resgatar os volumes (encaixotados previamente), não podia deixar furo e confirmei uma data para que buscasse toda a biblioteca. Voltei a ligar para a Amanda numa última tentativa e ela “ironicamente” me jogou na cara dizendo que “não esperei por ela, nem falei que iria disponibilizar todos os livros”. Ora, quando alguém quer doar alguma coisa em caráter urgente e nos pergunta se temos interesse, qual é a resposta mais sensata? “Não, claro, vou buscar hoje à noite, depois do serviço, ou pedirei para alguém que vá até você e cuide da remoção”.  Ainda mais em se tratando de cultura. Resumindo: minha filha não deu as caras. Luana idem.

Os livros se foram, entre outros cacarecos que estavam em linha de dispensados. Como não guardo raiva (aos setenta anos a gente aprende que o furor e o rompante só trazem dissabores e contrariedades, mágoas e angústias) separei, num canto, os tais livros que a minha filha Amanda mencionou. Não sei, se um dia, virá buscá-los, ou se ainda haverá de se lembrar que somente pelo fato de aventar os nomes, eu os deixei num canto, à espera de serem resgatados. Quando a galera da instituição chegou com a Kombi para a retirada das muitas e muitas caixas, entreguei às chaves do apartamento e sai a dar uma volta. 

Seria penoso demais, custoso, embaraçoso e torturante ver meus livros (companheiros de tantos anos) indo embora, num adeus para sempre, sem que eu nada pudesse fazer para que ficassem e permanecessem ao manejo de minhas mãos carentes por uma boa leitura. Depois dos livros, outras coisas seguiram o mesmo destino. Roupas, sapatos, móveis, louças, quadros, um aparelho de som, enfim... a limpeza se fez completa. Contudo, nada me doeu tanto na alma, quanto a agonia cruciante de saber que os meus livros iriam, a partir daquele momento, ter outro endereço, outro dono, outras mãos os pegando e os manuseando, enfim, outros olhares percorrendo as suas páginas... 

Talvez essas criaturas não tenham o mesmo objetivo que eu. A bem da verdade, nada me dói mais na alma e no coração, saber que eles (meus velhos e queridos livros) não voltarão... que seguiram por sendas diferentes e que os meus sonhos nunca mais voltarão a ser divagados junto aos autores que me fizeram, por tantos janeiros, viajar em quimeras e embevecimentos jamais imaginados. Confesso, outrossim, sem me envergonhar, morreu em mim, um pouco da alegria. Lá no fundo, enterrei uma parte da minha existência. Sepultei à terra fria, uma quota bastante significativa da minha história. 

Acredito, será difícil me recompor quando a saudade vier bater à porta procurando uma aventura nova, um romance, uma crônica, que seja, acaso não lida, para me encantar e me encorajar a voar por mundos e planetas que nunca foram por meus pés pisados. Bem sei, o que está feito, remediado está. Infelizmente, uma parte de mim, repito, se atirou num buraco sem volta. A partir desse inesperado, uma lacuna pungente abriu uma ferida e acabou em chaga dentro de meu coração. Tudo por causa de meus livros.  É como se eu olhasse para dentro de mim mesmo e não desse de cara com os gritos lamuriantes de meu próprio “corpo” se decompondo em frangalhos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.  

domingo, 5 de março de 2023

Alberto Braga (A volta das andorinhas)

Ficava no beiral do meu telhado o ninho das andorinhas. Quando o trolha (pedreiro) vinha remediar os estragos da invernia e então, no Minho, quando o vento sopra do Gerez, oh! Pai do céu! por mais bem construída que seja uma casa, as telhas vão todas pelo ar, como se fosse um pobre telhado de levadia (telhas soltas)!) eu tinha sempre o cuidado de lhe recomendar:

— Se ainda lá topar o ninho, mestre, deixe-o ficar.

Imagine-se quanto custaria aquilo a um trolha, a um trolha que guarda sempre contra um passarinho o mesmo ódio que um velho lobo de mar conserva implacável contra um rato! Ter de remendar um telhado inteiro — façam ideia! — sem destruir um ninho fofo, pendurado num beiral!

Como eu morava só, aquele ninho, ali, era quase como um outro andar da casa, onde vinha passar o verão uma família minha conhecida. E eu tinha tanto zelo e canseira em conservá-lo no mesmo sítio, muito arranjado e pronto, como se fosse o caseiro daqueles alegres inquilinos!

As pessoas da cidade não dão valor nenhum a estas coisas, e até se riem delas; mas nós, os que vivemos na aldeia, temos um grande afeto pelas andorinhas, pelos melros, pelas toutinegras, pelos pintassilgos, pelos rouxinóis, enfim, por toda a passarada.

Os pardais, esses então, é que não gostam nada dos figurões da cidade. E a gente do campo, que lhes conhece o fraco, assim que eles espreitam cobiçosos as searas, dentre os ramos folhudos dos carvalhos, dizem logo:

— Esperai, que já vos arranjo.

E espetam no meio do campo um pinheiro muito alto, penduram-lhe uma vestia (jaqueta de couro) e põem-lhe por cima, de um modo arrogante, um pouco para o lado, como se aquilo fosse um grande janota — um enorme chapéu alto! Oh! fica admirável!

Poucos pardais, por mais audaciosos que sejam, se atrevem com o figurão. E a gente, vendo-os, à tardinha, todos a chilrear na copa frente do arvoredo, até parece que os ouve dizer:

— Ainda lá está o espantalho?

— E estará, compadre, e estará!

— Se ainda se conservar até amanhã — acode o mais atrevido — diabos me levem, se lhe não prego uma peça!

— Sempre queríamos ver isso! — desafiam os outros.

— Pois então…

No dia seguinte, quando o sol radiante inundava todo o trigal, às onze horas da manhã, estava tudo a postos, tudo silencioso, para ver a partida. O arrojado observou atentamente pelos atalhos — que não fosse vir a rapaziada da escola — e voou rápido dentre um sobreiro, como se o tivesse desferido o arco de uma seta. Foi pousar direito na copa do chapéu alto do espantalho, e voltou-se depois para os amigos, a chilrear com uma grande troça.

Por toda a devesa (arvoredo) estalou então uma gargalhada frenética dos outros, que observavam, cheios de alegria, a imobilidade do janota!

Daí por meia hora — é sabido! — estava a sementeira desvastada!

Uma bela manhã, em meado de março, quando abri a janela do meu quarto, ouvi pipilar em cima. Debrucei-me no peitoril, olhei para o beiral, e lá vi a andorinha, que tinha chegado na véspera, à boca da noite, enquanto eu andava por fora.

— Bem! — disse eu comigo — já sei que tenho de ir fazer uma visita.

Ao cabo de meia hora, peguei no meu bordão, e pus-me a caminho pelo meio de uma bouça (terreno baldio com plantas agrestes), que ia dar à estrada. Eu ia visitar a sra. viscondessa, uma gentil viscondessa minha amiga, que chegava sempre quando chegavam as andorinhas e floresciam as amendoeiras.

Ao atravessar o pátio lajeado, que precedia o velho solar da fidalga, estavam ainda os criados, vestidos com blusas de riscadinho azul, atarefados na limpeza da carruagem e dos cavalos. As janelas da casa estavam todas abertas. Sentia-se que havia lá dentro uma criatura delicada, sequiosa dos perfumes balsâmicos dos pinheirais, do ar puro, da luz, como aquelas plantas aquáticas, as ninfas, que sobem do fundo escuro dos lagos à tona d'água para receber os raios quentes do sol do meio dia!

Apenas entrei no pátio, deparou-se-me a sra. viscondessa; e era mesmo uma pintura vê-la, como eu a vi então, com a cabeça lançada para trás, os braços muito erguidos, os seios arfantes, a aprumar-se, a subir, fincada no bico dos pés, para lançar o painço (tipo de milho) na gaiola dourada de um canário, que estava pendurada, em cima, entre os cortinados da janela!

Era lindo! lindo!

Quem primeiro aparecia a cumprimentar a fidalga era o sr. abade. E, então, conhecia-se logo que havia novidade na terra, porque o viam sair da residência todo asseado, de chapéu alto, cabeção de renda, a sua antiga sobrecasaca muito comprida a bater-lhe no cano das botas, e apanhado na mão direita, de um modo solene, o enorme lenço de seda da Índia com ramalhoças (estampado com ramagens) amarelas.

Feitos os cumprimentos do estilo, o sr. abade sacava da algibeira a sua caixa de tartaruga, e oferecia-a respeitosamente à viscondessa, como sinal da máxima etiqueta. E depois, ia falando e cheirando alternadamente.

— Pois minha senhora…

E fungava pela venta esquerda uma pitada de simonte (tabaco de pó fino), continuando:

— Este ano, o inverno, minha senhora, correu mal! E Jesus! muito mal!

Depois, ao outro dia, vinha a sra. morgada do areal flanqueada das suas duas filhas. Aquilo é que era luxo! chapéus de plumas, vestidos de nobreza com três folhos, manteletes de moir antique (tipo de xale), e então o bonito era a profusão de pulseiras, de broches, de brincos, tudo ouro antigo, ouro de lei, maciço, mas muito feio!

As meninas não tiravam os olhos da viscondessa; e, como ficavam uma junto da outra, acotovelavam-se às vezes, e segredavam:

— Vê, mana?…

— O que é? — perguntava a mais velha por entre dentes.

— Agora já se não usa cuia! Ora repare.

A morgada falava do amanho (cultura) das terras, do peso da derrama, e às vezes para variar, dizia:

— Ora, não estar cá pelo Santo Amaro! Havia de gostar. É uma festa como poucas! Faça ideia, viscondessa: há arraial três dias, há fogo preso, missa cantada, sermão…

E arregalando os olhos, e meneando pausadamente a cabeça, exclamava:

— Sermão! Mas que sermão!…

Quando chegava a vez da minha visita, já a sra. viscondessa sabia todas as grandes novidades da terra. Era assim castigada a minha preguiça!

— Então já sabe, — principiava eu — o comendador Antunes este ano despica-se (vinga-se)!

— Ah! já me disseram, — atalhava logo a viscondessa — é ele o juiz da festa.

— É isso, minha senhora, é isso…

Veem? Sabia sempre tudo aquilo que eu tinha para lhe dizer!

Ora sucedeu, que de uma vez, indo lá passar a noite, encontrei a viscondessa sentada em uma voltaire (poltrona), com a cabeça reclinada no espaldar, as pernas estendidas e os seus pés graciosos pousados no rebordo de um braseiro.

— V. exa. contradiz as tradições da primavera! — principiei eu, sentando-me ao seu lado.

— Não contradigo, meu caro — respondeu ela, removendo com a pá o rescaldo esmorecido — a primavera é que está agora conspirando contra os poetas, que lhe atribuem doçuras que não tem! Se o calendário não me desmentisse, estava a jurar que o janeiro deste ano aumentou, pelo menos, mais sessenta dias!

— Mas não está tanto frio, que se não prescinda do fogão!

— Não está calor que o dispense.

— Pois não é das melhores coisas para a saúde!

— Ora que ideia! — opôs ela, a rir — Não me consta que o fogão tenha sido o assassino de ninguém, tirante nos velhos dramas, em que a heroína ludibriada pelo amante, procurava no ácido carbônico a solução do problema.

Suponham como eu fiquei radiante de júbilo! Até que se me deparava ensejo de contar à sra. viscondessa uma história que ela desconhecia!

— Pois, minha senhora, — principiei eu com desvanecida firmeza — Filipe III, de Espanha, foi vítima do calor de um fogão! E, se v. exa. me permite, eu vou referir-lhe como o caso se passou.

Aproximei a minha cadeira do braseiro, expus os meus pés ao calor do rescaldo, para contradizer com a postura o que afirmava com a palavra, e prossegui:

– Estava El-Rei, assistindo a um conselho de ministros. Como fazia muito frio, diante de Sua Majestade tinham colocado um braseiro enorme. Passado pouco tempo, principiou El-Rei a transpirar, a transpirar cada vez mais e as faces a tornarem-se-lhe muito vermelhas. O conde de Pobar, que viu no rosto de Sua Majestade a aflição que ele sentia, dirigiu-se ao duque de Alba, gentil-homem, e disse-lhe baixo que mandasse retirar o braseiro.

— É contra a etiqueta — respondeu serenamente o duque de Alba. — Isso compete ao duque de Uzeda.

— Filipe III voltava para o lado os olhos suplicantes; mas não se atrevia a quebrar as regras da etiqueta atirando um pontapé ao braseiro e aos cortesãos que o cercavam.

Mandou-se chamar à pressa o duque de Uzeda; mas, por fatalidade, o duque de Uzeda nesse dia não estava no palácio!

— E depois? — perguntou aflita a sra. viscondessa, afastando-se do braseiro.

— Depois — continuei eu pausadamente estirando mais as pernas — quando o duque de Uzeda chegou ao palácio…

— Hein? — perguntou de súbito a fidalga, pondo-se de pé.

— El-Rei estava morto! — conclui eu com voz sinistra.

Apenas proferi esta frase, abriu-se de repente a porta e entrou na sala o criado com a bandeja do chá.

A sra. viscondessa ordenou logo:

— André, amanhã não acenda o braseiro.

E eu, oferecendo-lhe uma chávena, disse-lhe então baixinho:

— Já vê que se devem apagar os fogões, quando voltam as andorinhas!
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Alberto Braga foi secretário do Instituto Comercial de Lisboa. Ao longo da sua carreira assinou diversas crônicas literárias em jornais portugueses e brasileiros. Como autor, escreveu peças de teatro e livros de contos sendo reconhecido pelo seu estilo direto e claro, pela sobriedade na escrita e pelo tom sentimental que imprimiu a algumas das suas obras. Desenvolveu peças teatrais com uma forte raiz romântica e com pendor naturalista. Foi diretor da revista A semana de Lisboa (1893-1895) e colaborou em várias publicações periódicas, nomeadamente nas revistas Brasil-Portugal (1899-1914), Ilustração portugueza (1903-1980), Serões (1901-1911) e A risota (1908).

São suas obras:
Contos da Aldeia (1916), Contos da Minha Lavra (1879), Os Confidentes (1887), e teatro: A Estrada de Damasco (1892), A Irmã (1894), O Estatuário (1897).
(fonte da biografia: Wikipedia)

Fonte:
Alberto Braga. Contos d' Aldeia. Publicado originalmente em 1916.
Disponível em Domínio Público.

Augusto de Lima (Poemas Escolhidos) 2


A DESCIDA


Homem, remove este rochedo e a rara
galeria interior contempla e estuda;
desce, e da terra pela ossada muda
leva tua razão de ciência avara.

Na treva expira a luz há pouco clara,
o ar em sulfúreo gás já se transmuda:
coragem! desce, e os séculos saúda,
desce mais, desce mais... agora para.

Mas não! Lá fulge um fogo subterrâneo:
– e mergulhas no cérebro do globo,
– e lhe penetras de outro lado o crânio.

Desce! não! Sobe agora; um brilho intenso
banha-te o corpo, e num heroico arroubo
eis-te boiando no oceano imenso.
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AMIGO

O rochedo é deserto. Ele avança.... recua...
e é preciso morrer, contudo. O vento geme
pavorosas canções nas árvores; a lua
pela face cio mar, triste, indecisa treme.

Ele vacila; o abismo é pérfido, quem sabe
se a morte não será pior que a própria vida,
que a vida tormentosa e estúpida que cabe
àquele, cujo peito é uma aberta ferida?

Porém, silêncio – um grito ao longe como um canto
de saudade gemeu, um lamento de dó,
e logo um cão chegava, em cujo olhar o pranto
parecia pedir que o não deixasse só.

Ansiava soturno, o olhar na imensidade,
o tronco erguido ao vento, o aspecto hirto, selvagem;
meditou: vida... morte... inferno... eternidade...
– o corpo ergueu, volteou e... tombou na voragem.

Por um momento o cão esperou anelante;
pressentindo, porém,
que ele não vinha mais, num uivo lancinante,
atirou-se também.
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CÓLERA DO MAR
(A Assis Brasil)

Disse o rochedo ao mar, que plácido dormia:
“Quantos milênios há que, tu, negro elefante,
tragas covardemente esses, cuja ousadia
se arriscou em teu dorso enorme e flutuante?”

O mar não respondeu; mas um tufão horrendo
cavou-lhe a entranha e fez estremecer de medo
o coração do abismo. Então o mar se erguendo,
atirou um navio aos dentes do rochedo!
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O POLVO

Polvo da eterna dor, debalde apertas
em teus fortes tentáculos sedentos
a humana essência, contra a qual despertas
em teu furor os vários elementos.

Por mais que o gosto em rudes sofrimentos,
por mais que em cardos os rosais convertas,
hão de ao Homem jorrar novos alentos
da consciência as termas sempre abertas.

Assim ao mar, que canta, estua e brama,
há séculos o sol, polvo de chama,
em cada raio suga-lhe uma gota.

Mas a seus pés, batidos, noite e dia,
os continentes bradam à porfia:
“Rios ao mar!” e o mar nunca se esgota.
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OS FERREIROS

Ó vultos varonis, resplandecentes
ao rutilar fecundo do trabalho,
que à pobreza buscastes agasalho
nas forjas inflamadas e candentes:

Sois os Messias, que ensinais às gentes
a despir do Passado o vil frangalho:
rompe um sol, cada vez que tomba o malho,
porque sois outros tantos orientes.

Fazei rolar a esplêndida cascata
do trabalho incessante pelas vazas
das rochas da Matéria, a progredir...

Que essas chispas ardentes, que desata
vossa bigorna, orvalho são de brasas
para a flor luminosa do Porvir.
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VOGANDO
(A Afonso Celso Júnior)

Desliza rio abaixo incerta proa:
ninguém a bordo: preso a duro laço,
chora um caído remo ausente braço.
Que porto busca a singular canoa?

Mas eis que além, com rápido fracasso,
um rochedo invisível a abalroa,
e momentos após, de espaço a espaço,
fragmentos soltos vão boiando à toa...

Mais infeliz do que o baixel sombrio,
vou eu singrando da existência o rio,
tendo a bordo o cadáver do Passado.

E não achar, como ele, um arrecife
que despedace as tábuas deste esquife,
na corrente sem fim arrebatado!

Fonte:
Augusto de Lima. Contemporâneas. Publicado originalmente em 1887.
Disponível em Domínio Público.

sábado, 4 de março de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 1

 

Milton S. Souza (Ainda existe poesia)

Poetas do Brasil inteiro comemoraram em 14 de março o Dia Nacional da Poesia. Através da internet, choveram mensagens poéticas de todos os cantos, colorindo os olhos e os corações daqueles que ainda cultivam a arte de fazer poesias ou que possuem a sensibilidade para ler e saborear os encantos de um poema.

Algumas pessoas menos sensíveis chegam a perguntar como pode alguém pensar em fazer poesias vivendo neste mundo onde as notícias horríveis ganham todos os espaços, invadindo as almas e os corações e, praticamente, liquidando com todas as possibilidades de inspiração. Pode até parecer impossível. Mas nos corações dos poetas a inspiração é uma fonte inesgotável e todos os acontecimentos – alegres ou tristes – servem como desafios para mostrar que ainda existe poesia.

Existe poesia no gesto de ofertar uma flor para a pessoa que a gente ama ou até mesmo para aquela pessoa que a gente ainda não teve coragem para amar de verdade.

Existe poesia em cada carícia trocada entre dois amantes naqueles momentos em que os lábios calam porque as palavras não conseguem expressar as belezas que brotam dos corações.

Existe poesia em cada gesto de amizade que serve para aproximar as pessoas e perpetuar a crença de que um mundo melhor só será construído através do entendimento.

Existe poesia na doação dos pais e das mães pelos filhos que colocaram no mundo ou que Deus colocou nas suas mãos.

Existe poesia na solidariedade, na mão estendida, no ouvido atento para o problema alheio e nas ações concretas para semear sementes de amor.

Existe poesia sobrando, para tudo e para todos, até mesmo para aqueles que ainda não acreditam na poesia.

Mas para que serve a poesia? Eu respondo esta pergunta com outra pergunta: para que servem as flores? Ora, as flores servem para enfeitar jardins, colorir vidas e repassar para os corações aquelas mensagens que as nossas palavras não conseguem traduzir nas horas alegres ou tristes. Um mundo sem flores não passaria de um grande deserto. Um coração sem poesia também fica muito parecido com um deserto. Com a diferença de que é muito difícil fazer florir um deserto. Mas é muito fácil colocar as belezas da poesia dentro de um coração, por mais árido que ele seja.

E como para nós, poetas, todo o dia é Dia da Poesia, fica aqui o meu apelo para os leitores: façam a poesia chegar até os corações daquelas pessoas que vocês mais amam ou com quem vocês repartem amizade. Provem, com um gesto de carinho, a doação de uma flor ou até mesmo a entrega de um poema, que ainda existe poesia e que ela é fundamental para quem acredita no amor e tenta viver semeando amor pelos caminhos da vida.

Fonte:
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/123904

Lima Barreto (Babá)

Por aqueles tempos, eu era interino no hospital da Misericórdia e, embora não fosse naturalmente mau e frio, era do meu grau cético ser um pouco indiferente ao sofrer das muitas criaturas que se achavam na minha enfermaria.

Mas não sei por que, ao entrar aquela nova doente, a minha habitual indiferença de profissional afeito à dor ficou esquecida e comecei a me inteirar pelo seu martírio e sofrimento.

Era uma preta velha, velha de mais de cem anos, africana que, ferida por um achaque próprio da sua alta velhice, vinha morrer ali aos meus olhos e aos meus cuidados. Era de ver a sua cabecinha pequena empastada de cabelos brancos, tecidos como uma rama de algodão, alvejando tristemente no fundo negro de seu rosto, encavado, chupado, esteiriçado, onde dois olhinhos castanhos quase sem brilho passeavam languidamente, dolorosamente.

No começo fiz-lhe perguntas. Indaguei-lhe de sua idade, de sua origem, se não possuía prole. E ela vagarosamente, aos pingos, deixava escorrer fracas respostas na sua meia língua, agora muito enfraquecida pela moléstia e pela idade.

Era da África, soube, de Moçambique, viera ainda rapariguinha para aqui, onde tivera por seu primeiro senhor os Carvalhos de São Gonçalo; conhecera d. João VI e, sobre ele, desconexamente, contava uma ou outra coisa avaramente guardada naquela estragada memória. Tivera filhos e dizia-me ela, pitorescamente, de várias cores.

Uns morreram e outros, me informava a Quirina (era seu nome), se foram por este mundo de Cristo, não havendo mais deles, nem novas nem mandadas, pois que as vicissitudes do cativeiro os transportava aos quatro cantos do Brasil.

Já há muitos anos, ela vivia encostada numa velha senhora, viúva de seu último senhor, a quem há poucos dias ela vira morrer trocando antes a última apólice que restava.

E quando, naquele dia, ao saber aquilo, eu fui à noite repousar no meu quarto, não me saía da imaginação aquela figura doida, cheia de sofrimento e de resignação, que, durante um longo prazo de seu século fornecera aos que lhe cercavam ternura, amor e trabalho e que agora, como um esquife vivo, já sem memória e quase sem viver, vinha morrer sem uma lágrima, sem um ai de alguém, de alguma criatura deste enorme planeta sublunar.

Estranho destino o daquela mulher. A raça lhe dava a doentia resignação para morrer miserável, na mesma terra que o sangue dera o que havia de requerer para amar e de humildade para obedecer e trabalhar.

E estas considerações fizeram-me ficar, olhos no teto, parados e presos, a fumar nervosamente, sonhando na ventura dos bons, dos mesquinhos e dos oprimidos.

Nada lhes dava a terra, o resto dos seus semelhantes, como naquela pobre negra, chupava-lhes, sugava-lhes avidamente, constantemente, reavivamente durante uma longa existência a doçura afetuosa do coração e, arrancava-lhe, até o último dia da existência, a réstia fraquíssima de energia que restasse porventura aos músculos, para depois atirar-lhes o corpo a morrer num hospital, tal como um delicioso fruto gozado que se atira depois o bagaço ao lixo. E eu pensava assim, quando, tomado de um cuidado estranho, levantei-me e fui, atravessando salas e leitos, salas de um ar soturno de catacumbas e leitos semelhantes a campas mortuárias, fui até a cama da mãe Quirina, levado até ela irresistivelmente por uma força rara, que me impelia doidamente, furiosamente.

E como era tudo em volta seu catre e, delicadamente, nos bicos dos pés, eu, em poucos instantes, me acerquei dele. O seu corpo magro saía lividamente do aconchego dos lençóis, ali, a meus olhos, placidamente dormindo, tinha na quietude de morto, naquela sua velhice venerável, o aspecto de uma múmia. Aquele fardel de carnes magras, de peles enrugadas, coladas aos ossos, embrulhada no linho dos lençóis, me pareceu ser o cadáver embalsamado de uma antiga rainha da Núbia que a curiosidade moderna houvesse trazido, de aventura em aventura, de escambo em escambo, até a estas remotas plagas da Guanabara.

Logo que cheguei ao leito ela dormia, mas minutos depois despertou e eu, a quem nunca intimidara o olhar de moribundos, temi ao ferir-me em cheio o dela, que vinha muito fora do esperado cheio de energia, de ódio, de angústia e de mistério.

Durou algum tempo isso, bem depressa, ela, se esticando toda, num esforço violento, se pôs em pé sobre o leito, permaneceu assim calada instantes e depois, uma voz dolorosa, cheia de modulações de mágoa e ódio, às vezes, outras de desconsolo e pranto, foi solenemente dizendo em frase que não lhe era isso que ouvi.

Fonte:
Lima Barreto. Conto publicado originalmente em 1903. Disponível em Domínio Público.

sexta-feira, 3 de março de 2023

Daniel Maurício (Poética) 48

 

Aparecido Raimundo de Souza (Vício frenético)

O TELEFONE toca e a velhinha leva uma eternidade enorme para se levantar do sofá e caminhar até o aparelho que se esgoela ao lado da cristaleira. Finalmente consegue atender:

— Alô, quem é? Quer falar com quem?

— Boa noite, minha senhora. Por favor, é da residência do seu Noronha?

— Aqui não tem ninguém com esse nome. O senhor ligou para a residência errada. 

— Quem mora aí, senhora?

— Orfeu.

— Morfeu?

— Orfeu, senhor, Orfeu. Mas ele não está.

— Estranho! Me falaram que nesse número eu falaria com o Noronha...

— Quem lhe passou essa informação?

— Um tal de Bigorna.

— Bigorna? Bigorna... não conheço. Ele é seu amigo?

—  Quem? O Noronha?

— Não, moço, o Bigorna.

— Nem sei quem é. 

— Como esse Bigorna lhe passou então o número do Orfeu?

— Foi assim, madame. Eu liguei para um número e atendeu uma menina. Procurei pelo Noronha e ela me passou para o pai. O sujeito, por sua vez veio ao aparelho. Foi até um tanto indelicado comigo e depois de um curto diálogo que tivemos me informou que aquele número já havia sido do Noronha e agora não mais. Nessa confusão, me passou o seu telefone. Por essa razão estou ligando.

— O senhor ligou os números corretamente?

— Por certo, senão não estaria falando com a senhora.

— Vai ver o senhor discou algum algarismo errado. No lugar de discar um, discou oito, ou no lugar do três riscou cinco. Às vezes, na pressa, a gente acaba fazendo isso... eu mesma passei por esse incômodo por diversas vezes.

— Não acredito nessa possibilidade, madame.

— E por que não?

— Seu número de telefone não tem os algarismos oito e cinco. 

— Falei aleatoriamente. Não especifiquei nenhum número em particular. Como mencionei esses, poderia ter dito zero, quatro ou dois...

— Ainda que desta forma seu telefone não possui nenhum desses números.

— Então, meu amigo. Não vamos bater em ferro frio, nem gastar vela com defunto ruim. Como lhe falei, e agora repito. Aqui não tem nenhum Maconha. Passe bem. Boa...

— Espere, espere. Por favor, senhora. Não é Maconha, é Noronha. Olha só. Eu não sou criança. A madame menos ainda. Claro, não fosse tão urgente não estaria importunando. Mas veja só. O seu Bigorna me garantiu que esse número seria do Noronha. Assim, eu insisto...

—  Senhor, como é a sua graça?

— Sham Chum Chimchim madame.

— O senhor é japonês?

— Chinês.

— Entendo. Veja bem, seu Sam. Esse número está aqui em casa há exatamente vinte e cinco anos. O senhor não acha que é um tempo mais que suficiente para alguém garantir, com exatidão, ao prezado, que esse terminal é ou deixa de ser do tal do... Harmonia?

— Noronha, madame. O nome da pessoa é Noronha. E o meu, Sham. A senhora pronunciou meu nome de forma errada. Me chamou de Sam.

— Não é Sam?

— Não, senhora. É Sham.

— Desculpe, eu lhe chamei de Sam? Que loucura... 

— Chamo Sham. Tudo bem. Deixa pra lá. Voltando ao Noronha. Puxe pela memória... de repente...

— Noronha, Noronha...

— Isso. Noronha. Talvez por lapso tenha se esquecido. Pode ser que ela faça parte do seu circulo de amizades, ou do seu relacionamento familiar, uma...

— O senhor me ofende falando assim. Está me chamando de velha gagá?

— Em absoluto. De onde a madame tirou essa ideia absurda?

— O senhor acabou de frisar: “por um lapso”. Não tenho lapso, senhor Sam. Estou em pleno gozo das minhas faculdades mentais. Imagine se iria esquecer o nome de alguém, ou de uma pessoa que faz ou fez parte do meu circulo de amizades? Se ainda fosse um nome difícil, como o seu, vá lá, mas Colônia...?

— Madame, Noronha. Noronha. Lembra do Fernando?

—- Fernando? Que Fernando?

— De Noronha.

— Não conheço nenhum Fernando de Pamonha.

— Meu Deus do céu, madame. Tem alguém em casa junto com a senhora?

— Sim!

— Quem?

— Para que o senhor quer saber?

— De repente, se a senhora chamasse...

— Outra vez me taxando de maluca? Escuta aqui seu Sam...

— Sham, senhora. Sham... por tudo quanto é mais sagrado. É a terceira ou a quarta, vez, sei lá, que a madame esquece meu nome.

— Pois então, seu... seu...

— Está vendo? Na mosca!

— Calma. Não precisa repetir. Concordo que seu patronímico seja um pouco fora do comum, mas... como lhe falei e volto a repetir, pela quinquagésima vez, seu Vam. Aqui não tem nenhum Bolonha. O senhor, efetivamente ligou para o lugar errado.

— Dona... perdão... madame... meu nome é Sham, Sham, Sham. E o cidadão que procuro não se chama Bolonha e sim Noronha.

— Então, isso mesmo: aqui não tem nenhuma pessoa com esse nome. Passe bem, seu Pam.

Inopinadamente a velhinha desliga na cara do cidadão. 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – III – Madrigais

GEMA DE AMOR
"O seu fruto é doce à minha boca." (Ct. 2.3)

Cálida gema, feita de amor,
Quero sentir todo o seu sabor;
Vou dar-lhe beijos apaixonados,
E você, seus lábios abrasados.

Você é doce - feita de mel,
Real geleia - pedaço do céu;
Quanta delícia no saborear,
Que bom se o tempo não mais passar!

Você está trêmula de emoção,
Sinto o pulsar do seu coração...
Perdi o controle, perdi meu senso
Por este amor de prazer imenso.

O que acontece? - Você suspira!
O que é isso? - Você delira!
Eu estou suando - quanto calor!
Estou feliz... Obrigado, amor!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

SE...
''Põe-me como um selo sobre o teu coração, 
porque o amor é forte como a morte." (Ct.8.6)

Se fossem apagados meus olhos,
Se a língua não mais eu movesse,
Se a voz que acalenta morresse,
Sem versos pra te comover...
Se o meu coração não pulsasse,
Se a vida a existência deixasse,
Seria tristeza em teu ser.

Se não me fluíssem as letras,
Se o cérebro aceso apagasse,
Não mais a emoção me tocasse,
Sem lábios de amor pra aquecer-te,
Sem nada de odor pra sonhar,
Sem mãos para mãos encontrar,
Então... como, ainda, querer-te?I

Se ouvidos não mais te ouvissem,
Se o ser que há em mim terminasse,
Se o néctar não mais eu tomasse,
Se nada, mais nada, a rimar,
Se ausente me fosse o carinho
- Passado saudoso em meu ninho,
Com que poderia te amar?

Se a Lua eu não mais contemplasse,
Se a lira calasse pra mim,
Se a noite me fosse sem fim,
Se tudo esvaísse em meu ser,
Minh'aura, sozinha, apagada,
Saudade esmagando meu nada,
Seria só dor teu viver.

Ainda que assim ocorresse,
Teria a memória em teu nome;
E o tempo que o tempo consome,
Iria seu ciclo encerrar;
Na vida do além-infinito
Teu ser ser-me-ia bendito,
Pra sempre eu iria te amar.

Ainda que tudo passasse
E o corpo pro nada partindo,
Minh'alma só luz refletindo
- Reflexo de um novo luar;
Seria esplendor de visão
- Eterna, infinita paixão:
Tu' alma poder contemplar,

Ainda que eu fosse só cinza,
Teria uma flor neste mundo
- Semente de amor tão profundo,
Espírito oculto a me amar;
Além, muito além, com fulgor,
Há forma, há pureza, há amor:
Tu' alma eu iria abraçar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

SÚPLICAS
"Enquanto o rei descansa em seu divã, 
meu nardo exala seu perfume." (Ct. 1.12)

Não me ames jamais
Pela magia dos meus olhos;
Que a luz do meu olhar
Não te seja a tramontana,
A guiar teus passos
Rumo ao norte da felicidade.

Não contemples nunca
As pétalas do meu sorriso,
Com visões de rubros pomos
De um eterno outono.
Que o timbre sonoro
De aveludada voz
Não seja sereia"
A te encantar
Em visionário céu.

Jamais faças teu ninho
Nos frágeis caracóis
De cabelo algum.
Não te apaixones nunca
Por um rosto, apenas,
Onde o tempo, ainda,
Não deixou sua marca.

Que a postura artística
De um corpo atlético
Te seja descolorido sonho.
Esqueça, em tempo,
Do artificial perfume
Que te trouxe êxtases.

Não me ames jamais
Pelo tom do belo,
Que me julgas ter,
Mas que nunca tive.
Esqueça a imponência
Deste meu púlpito,
Pois tudo está passando
Com o passar das horas...

E tudo o que passa
É vaidade,
Vaidade de um tempo fortuito.
Não me ames, então,
Pelo que se transforma
E passa...
E, no tempo, morre.

Contudo,
Ama-me,
Ama-me com força irresistível!
Ama-me pela bondade
Que, porventura,
Exista em mim.
Ama-me pela felicidade
Do teu ser
E pela harmonia
Do teu viver.
Ama-me pelo caráter
Que, aos poucos,
O tempo
Foi-me edificando.
Ama-me pelo que sou
No meu espírito.
Ama-me pela essência
Da minha alma.

Então,
O teu amor
Será eterno,
E terás
Razões eternas
Para me amar
Eternamente...

Fonte:
Enviado pelo poeta.
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 77

O pouco conhecimento que temos sobre os homens coletores nos dá conta de que viviam uma vida de subsistência, trabalhavam para sobreviver, não usando o tempo livre para outras atividades. Ou raras delas.  

Modernamente, passando por estágios de desenvolvimento - homo sapiens, homo ludus e outros - tornamos a vida mais agradável na medida em que aprendemos que não é só trabalhar para sobreviver, para gerar riquezas, mundos e fundos.  Descobrimos que o espírito, nosso ser, também necessita de vagares. (Devagares).    

Nossos dias são uma miscelânea, quanto mais misturados, mais se completam.  Eu e meus EUS vamos fruindo este delicioso rango, saboreando coisas - vitórias, decepções, amenidades, tristezas, música, alegrias, poesia, lonjura, distâncias, horizontes . . .

O ócio, o lazer, o encantamento, são acumuladores de energias que vamos usando no prato principal.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (David Copperfield, de Charles Dickens)


David Copperfield é um romance de Charles Dickens. A exemplo de vários trabalhos da época, inicialmente foi publicado em capítulos, tendo sido publicado como livro em 1850.

Muitos elementos descritos no livro se parecem com eventos da vida de Dickens, o que leva os estudiosos a considerarem-na a mais autobiográfica de suas obras. No prefácio da edição de 1867, Charles Dickens escreveu ""... como muitos pais amorosos, eu tenho, no fundo, no fundo, um filho favorito. E seu nome é David Copperfield".

A história narra o trajeto de David Copperfield da infância à maturidade. David nasceu na Inglaterra em 1820; seu pai havia morrido 6 meses antes de seu nascimento, e sete anos após, sua mãe se casa com Mr. Edward Murdstone. David não simpatiza com o padrasto, nem com a irmã dele, Jane, que passa a morar em sua casa. Mr. Murdstone espanca David pelas dificuldades nos estudos, e David, num desses espancamentos, morde-o, sendo mandado para um colégio interno, Salem House, sob os cuidados do cruel mestre Mr. Creakle. Ali, David faz amizade com James Steerforth e Tommy Traddles, os quais posteriormente voltará a encontrar .

David retorna a casa nas férias e encontra a mãe, que tivera um bebê, mas após voltar à escola, a mãe e o irmão morrem, e David retorna imediatamente para casa. Mr. Murdstone o manda para trabalhar em uma fábrica em Londres, da qual Murdstone é um dos proprietários. Seu chefe, Mr. Wilkins Micawber, é mandado para a prisão dos devedores King's Bench Prison, após a falência da fábrica, e passam-se muitos meses até sua liberdade, quando então se muda para Plymouth; enquanto isso, como David não tinha ninguém para cuidar dele em Londres, decide seguir caminho. 

Ele anda todo o caminho de Londres a Dover, para encontrar seu único parente, sua tia Miss Betsey. A excêntrica Betsey Trotwood aceita cuidar dele, apesar de frequentemente Mr. Murdstone visitá-la tentando conseguir a custódia de David. A tia o renomeia como 'Trotwood Copperfield', encurtado depois para "Trot", e pelo resto da história ele é chamado por um nome ou outro, dependendo de a pessoa ser uma velha conhecida ou tê-lo conhecido recentemente.

A história narra a passagem de David para a vida adulta, e seu envolvimento com as pessoas que encontra, levando-o a rever sua vida. Uma dessas pessoas era Peggotty, a fiel ex-caseira de sua mãe, sua família e a sobrinha órfã Little Emily, que vive com eles e encanta o jovem David. O romântico e independente amigo de David, Steerforth, seduz e desonra Emily, desencadeando a maior tragédia do romance, e a filha de seu chefe, a angelical Agnes Wickfield, torna-se sua confidente. 

Dois personagens próximos de David são o eterno devedor Mr Wilkins Micawber, e o fraudulento Uriah Heep, cujos deslizes são eventualmente descobertos por Micawber. Micawber é retratado como um personagem simpático, apesar de o autor deplorar sua inabilidade financeira e, como ocorrera na realidade com o pai de Dickens, é aprisionado por suas insolvências.

Uma das características de Dickens é fazer descrições rápidas sobre o destino de suas personagens; Dan Peggotty leva Little Emily para uma nova vida na Austrália; acompanhando-os estão Mrs. Gummidge e os Micawbers; em busca de segurança, todos encontram felicidade na sua nova vida. David inicialmente casa com a bela, mas ingênua Dora Spenlow, mas ela morre após um aborto. David, finalmente, casa com a sensível Agnes, que secretamente o amava e descobre a felicidade. Eles têm muitos filhos, incluindo uma filha chamada Betsey Trotwood.

PERSONAGENS:

David Copperfield – um otimista, diligente e perseverante personagem. Posteriormente ele é chamado "Trotwood Copperfield" por alguns ("David Copperfield" é também o nome do herói de seu pai, que morreu antes de David), mas tem muitos apelidos: James Steerforth o apelida de "Daisy", Dora o chama "Doady", e sua tia (Betsey Trotwood) se refere a ele como "Trot" (de "Trotwood Copperfield").

Clara Copperfield – mãe de David, descrita como inocente e pueril, morre enquanto David está em Salem House, juntamente com seu bebê.

Clara Peggotty – a fiel caseira dos Copperfield e longa companheira de David (viveu um tempo como Mrs. Barkis, após seu casamento com Mr . Barkis). Herdou 3 mil libras – uma grande quantia no século – quando Mr . Barkis morreu. Após a morte dele, passou a servir Betsey Trotwood.

Betsey Trotwood – a excêntrica e temperamental tia de David, que passou a ser sua guardiã. Ela está presente na noite do nascimento de David.

Mr. Chillip – o médico que assiste o nascimento de David.

Mr. Barkis – um reservado carroceiro que declara sua intenção de casar com Peggotty . Ele diz para David: "Conte a ela, Barkis está querendo! Apenas isso." Ele é um tanto mesquinho, e esconde sua surpreendente fortuna em uma caixa onde está escrito "Roupas Velhas". Ele deixa para a esposa a então grande soma de 3 mil libras, quando morre, dez anos depois.

Edward Murdstone – o cruel padrasto de David, que após a morte da esposa, o manda para trabalhar na fábrica. Após David sair pelo mundo, aparece na casa de Betsey Trotwood. 

Wilkins Micawber – um homem gentil que faz amizade com David. Ele sofre dificuldades financeiras e gasta seu tempo em prisões de devedores. Posteriormente emigra para Austrália. Seu personagem é baseado em John Dickens, pai de Charles Dickens. 

Jane Murdstone – a igualmente cruel irmã de Mr. Murdstone, que muda para a casa de David quando o irmão casa com Clara Copperfield. Ela é amiga confidente da primeira esposa de David, Dora Spenlow, e a encorajadora de muitos dos problemas surgidos entre David e o pai de Dora, Mr . Spenlow.

Daniel Peggotty – o irmão de Peggotty, um humilde, mas generoso pescador de Yarmouth que cria seus sobrinhos órfãos Ham e Emily. Após a partida de Emily, ele sai pelo mundo a procurá-la, e a encontra em Londres, após o que eles migram para a Austrália.

Emily (Little Emily) – uma sobrinha de Mr. Peggotty, amiga e amor de infância de David. Ela troca seu primo e noivo Ham por Steerforth, mas vai embora de casa após Steerforth abandoná-la. Posteriormente, ela emigra para a Austrália com Mr. Peggotty após ser resgatada por ele de um bordel em Londres.

Ham Peggotty – o bondoso sobrinho de Mr . Peggotty e noivo de Emily, antes de ela ser levada por Steerforth. Posteriormente, morre ao tentar resgatar um marinheiro de um navio naufragando, que ele acredita ser Steerforth.

Mrs. Gummidge – a viúva do sócio de Daniel Peggotty no barco. Ela também emigra para a Austrália com a família de Dan Peggotty.

Martha Endell – uma jovem de má reputação que ajuda Daniel Peggotty a procurar sua sobrinha em Londres. Ela trabalha como prostituta.

Mr. Creakle – o cruel mestre do jovem David, que é assistido por Tungay. Mr. Creakle é amigo de Mr. Murdstone.

James Steerforth – amigo íntimo de David, romântico e charmoso; conhece David em Salem House. Acaba mostrando sua deficiência de caráter ao seduzir e abandonar Little Emily .

Tommy Traddles – amigo de David, de Salem House. Tommy trabalha pesado, mediante dificuldades financeiras.

Mr. Dick (Richard Babley) – um alienado, pueril e amável senhor , que vive com Betsey Trotwood.

Dr. Strong – o mestre de David na escola de Canterbury , que o visita várias vezes.

Anne Strong– a jovem esposa do Dr. Strong.

Jack Maldon – um primo e amor de infância de Anne Strong, que continua a ter afeição por ela e tenta seduzi-la.

Mr. Wickfield – o pai de Agnes Wickfield e advogado de Betsey Trotwood, que tem problemas com alcoolismo.

Agnes Wickfield – a filha madura e sensata de Mr . Wickfield, que tem amizade por David desde a infância. Posteriormente se torna esposa de David e mãe de seus 3 filhos.

Uriah Heep – o perverso sócio de Mr. Wickfield, que é descoberto e preso.

Mrs. Steerforth – a mãe de James Steerforth.

Miss Dartle – a mulher que vive com Mrs. Steerforth, e tem um amor secreto por James Steerforth.

Mr. Spenlow – um empregado de David, que morre de ataque cardíaco enquanto dirige a carruagem.

Dora Spenlow – a adorável, mas infantil filha de Mr . Spenlow que se torna a 1ª esposa de David e apresenta muitas similaridades com a mãe de David.

Mr.Sharp – o diretor de Salem House.

Mr.Mell – um homem alto e magro, também de Salem House.

ADAPTAÇÕES

David Copperfield foi filmado em várias ocasiões, desde 1911. 

As numerosas adaptações para TV incluem a versão de 1966, com Ian McKellen como David, e a versão de 1999, com Daniel Radcliffe (do Harry Potter) como David jovem e Ciaran Mc Menamin como o David adulto.
Numa versão posterior, McKellen retorna, dessa vez como o cruel Creakle.

Há uma versão animada em 1993, onde os personagens são animais. Julian Lennonfaz a voz de David (um gato).

Foi transformado em musical em 1981 ( Copperfield).

David Copperfield foi publicado em 19 meses, em forma de série, a exemplo de outras publicações da época,

Os personagens de David Copperfield, muitas vezes, inspiraram o nome de personagens famosos, tais como o ilusionista David Copperfield e a banda hard rock Uriah Heep.

Fonte:
Wikipedia. Em 16 setembro 2017.

quinta-feira, 2 de março de 2023

Cecy Barbosa Campos (Mudanças)

As montanhas circundavam a pequena cidade como se a protegessem. Árvores sentinelas completavam a guarda, altaneiras em seu verde-exército. Ao centro, a Igreja, a praça, a rua principal, que existe em todas as cidadezinhas, distinguindo-se das outras, mais estreitas, ladeadas por casas avarandadas, com pintura desbotada e flores coloridas, enfeitando, contrastivamente, o jardim bem cuidado.

Na rua principal, as lojas se apresentavam entulhadas, com artigos representativos das diversas atividades e profissões. Armarinhos, tecidos, objetos de decoração, panelas, tudo de que se precisasse poderia ser encontrado. As quitandas ou vendas eram providas, suficientemente, de verduras, frutas, arroz, feijão, fubá e outros produtos alimentícios. Até mesmo os galináceos eram ali encontrados, e as donas de casa, hábeis cozinheiras, engendravam cardápios caprichados, podendo até oferecer à família um requintado frango ao molho pardo em qualquer dia da semana, já que o problema da degola da ave era facilmente resolvido.

O tempo passava devagar. Qualquer ida ao mercado ou à Igreja podia se prolongar por horas, dependendo do "papo" que se estabelecia entre os amigos que se encontravam pelo caminho. No regresso à casa, o marido ou a esposa rememorava as novidades que tinham sido apreendidas e, antecipadamente, já se deliciavam ao pensar no almoço saboroso apimentado pelas fofocas que seriam degustadas conjuntamente.

Enquanto andavam pelas ruas tranquilas, os habitantes daquela cidadezinha ouviam, vez por outra, o som do rádio. Ecoavam as vozes de Francisco Alves, Carlos Galhardo, Ângela Maria... As letras românticas eram assimiladas e, muitas vezes, entoadas por homens e mulheres, velhos e crianças, mesmo que trechos de uma canção se misturassem ás palavras de outra, ou que o ritmo não estivesse perfeito. De qualquer forma, havia música no coração de cada um, naquele tempo distante, naquela e em outras cidadezinhas do interior. Os jovens, cheios de sonhos, identificavam-se com os artistas e se imaginavam cantando em programas de auditório superlotados e ouvindo os fãs gritarem seus nomes, no arroubo da paixão,

À tardinha, depois do jantar, as famílias colocavam cadeiras nas calçadas e as conversas se estendiam, de vizinho a vizinho, intercaladas por broinhas, biscoitos e doces caseiros. As portas abertas permitiam o vai e vem de uns, na casa do outro para pegar um copo d’água, ver o belo cacho de bananas que tinha sido colhido ou para uma corridinha ao banheiro. Esta comunhão acontecia de forma despreocupada e sem apreensões, pois ladrões, malfeitores ou policiais perigosos não existiam naquele tempo.

Entretanto, o progresso foi chegando e afugentando as crianças que brincavam nas ruas. Foi trancando as portas e colocando grades nas janelas. As casas foram se transformando em prisões e o medo tirou a alegria daqueles que antes viviam livremente.

Com o progresso, vieram os freezers e ninguém mais encontrou tempo de cultivar sua verdura no quintal ou de plantar flores no jardim. Os congelados facilitaram a vida de quem não mais tem tempo de matar o frango para o molho pardo. O som do rádio foi trocado pelo barulho de potentes aparelhos, e as conversas com os amigos, que se revezavam nas cadeiras da calçada, foram substituídas por insossos programas de televisão que acabaram com as conversas, até mesmo em família. 

As casas foram substituídas pelos espigões, que escondem a luz da lua e das estrelas. As árvores desapareceram, e os barracos mal se equilibram morro acima. Que penal Quanta diferença! 

A minha cidadezinha cresceu e tornou-se uma das maiores cidades do Estado. Parece que as pessoas mudaram também e, a respeito disto, é melhor guardar um silêncio bem mineiro sobre o assunto.

Fonte:
Enviado pela escritora.
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.