quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Adega de Versos 110: Luiz Otávio

 

Francisco Brito de Lacerda (Funéreos adereços)


Ainda moço, meia-idade, nomeado Coletor de Rendas na Linha Sul, Neco Pacheco foi viver em Irati. Logo fez amigos, comandando certas iniciativas. Organizar um baile, por exemplo, tira-lhe muito gosto.

Naquele 31 de dezembro, sexta, depois do almoço, o aventureiro coletor se ocupava em decorar um salão para o grande baile de Ano Novo. Até uma quadrilha ia ser dançada.

Sentiu-se tonto, de repente, o nosso Neco Pacheco. Pôs as mãos no peito, onde se localizava a dor cruelíssima que o fazia rebentar os botões da camisa; pálido, deitado no assoalho, a cabeça apoiada numa almofada, ele suava em bicas.

Quando o médico chegou, Neco tinha acabado de morrer. Fretado um trem especial para levar o corpo a Curitiba, umas cem pessoas, entre amigos e parentes, esperavam a chegada do comboio na plataforma.

O trem encostou depois das onze da noite. O caixão lilás, enfeites dourados, saindo do bagageiro pelas mãos dos parentes mais próximos (um em cada alça), foi transferido para o coche, ao qual estavam atrelados quatro cavalos brancos, o arreamento guarnecido com negros laços de cetim.

Devagar, o coche subia a Rua Barão. Seguiam-no os acompanhantes. Um Desembargador, amigo da família, a cada passo tirava o relógio da algibeira, como a conferir quanto faltava para meia-noite.

No instante em que o enterro achava-se prestes a atingir a esquina da Barão com Rua Quinze, começou o esfuziar de foguetes, que estouravam nos céus de Curitiba.

Batiam os sinos da Catedral, festivos. Ouvia-se à distância o apito das fábricas. Era o ano novo que chegava.

Na calçada, perplexa melindrosa, fita na testa, lábios muito pintados, só faltava bater palmas à passagem do funeral. Moço sensível, um primo do morto sentia-se personagem de melodrama.

Cutucando o acompanhante, que caminhava ao seu lado e fingia não ouvir o foguetório, ele disse:

"Bons-anos!"

"Bons-anos", o outro retribuiu.

Bem nessa hora, a vara de um foguete caiu entre os cavalos, que ameaçaram disparar. Quase derrubando a cartola, o cocheiro conseguiu conter os animais.

Com o enterro perto da Praça Tiradentes, os sinos da Catedral tinham silenciado. Raros foguetes ainda subiam nas bandas do Pilarzinho. Permanecia no ar o triste apito de um engenho.

Já se podia dizer que era sábado, primeiro de janeiro.

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 17 –


 AMANTE É QUEM AMA

Somos amantes sem sê-lo,
Mesmo epidermicamente,
Somos mesmo sem sabê-lo,
Somos amantes na mente.

Se um corpo alheio, ao vê-lo,
Sentimos um calor fremente
E, num átimo, por tê-lo,
Ansiamos de repente...

Mesmo estando tão presente
A pessoa que nos ama,
Mesmo estando até na cama
Em carícias envolventes...

Traímos o que nos sente,
Sem, todavia, traí-lo,
Sentimos o amante ausente,
Sem, entretanto, senti-lo.

E não depende da gente
Lembrar alguém no momento
Do amor mais forte e envolvente,
Repleto de sentimento.

Traímos no pensamento,
Sem toques e sem contatos,
Portanto, se não há ato,
Não traímos, tão-somente.

Se em pensamentos traímos...
Traímos!... mas quem reclama?
Porque, quando nos unimos,
Amante é aquele que ama.
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BÊNÇÃO SEM GRAÇA

Se a mágoa do que diz que é mais cristão
que o outro, é maior que perdoar,
que graça há em chamar alguém de irmão,
trazendo incompreensão no próprio olhar?

Se a arrogância opõe-se ao perdão
em quem fala de amor sem nem amar,
que bênção cabe nesse coração
que diz o que Deus diz... sem praticar?

Comete estelionato, o pregador
que não consegue ver, no próprio espelho,
o quanto é prepotente ante os demais

porque, quem se apoia num joelho,
querendo levantar-se, ante o Senhor,
jamais será melhor que os seus iguais.
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CARAS VITRINES ESPELHOS

Viver não é sofrer de forma avara,
A tara de uma dor que o ser inventa,
É ver em cada espelho, nova cara
A cada vez que a dor nos violenta.

É rir, quando o espelho se depara
Com a cara que a tristeza nos empresta
Porque a flor que fere é a que sara
A dor de cada cara em cada aresta.

Viver é conviver com cicatrizes;
Felizes são aqueles que guardaram
As marcas do seu tempo de aprendizes
E tatuaram dores que sararam.

Espelhos são os olhos da razão;
Vitrines são desejos coloridos
Da alma que transforma em sedução,
Apenas sentimentos refletidos.

Amar implica dar algum sentido
Ao tempo que se tem, e transformar
O dom de abençoar o amor vivido
No brilho que abençoa o próprio olhar.
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MINHA MAJESTADE

Não deixes meu olhar dormir no teu,
Eu corro o doce risco de sonhar
A história linda e triste de um plebeu
Que foi pela rainha se encantar.

Não deixes meu o olhar se apaixonar.
O calabouço escuro de uma dor
É o final feliz de um sonhador
Que um dia descobriu o que é amar.

A ponte levadiça se fechou
E dentro do Castelo, eu percebi
Que em cada verde bosque onde vivi,
Não vi que a liberdade se escondeu.

Amei o teu olhar no meu olhar...
Narcisos é que amam refletir
Seus rostos, mas se o espelho lhes mentir,
Vaidosos, eles tentam se matar.

Se esse teu rei souber dos meus anseios
De amar sua rainha... hás de convir,
A sua espada em mim, há de brandir
E exterminar meus trôpegos enleios.

Mas mesmo assim, teu servo passional
Há de sonhar... Quem há de me impedir?
Que eu morra, vendo o teu olhar sorrir,
...assim, te tornarei mais imortal.

Se sou um camponês, que volte e voe...
Pois quem nasceu no bosque é passarinho
E quando o céu azul é o caminho,
Que eu busque em cada bosque que me abençoe.
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TEU ENREDO

Abençoa o enredo da tua história,
Que possui sensacionais alegorias,
E se lembras de tuas lindas fantasias
Tu manténs as alegrias na memória.

Ouve o disco... resgata teus sentimentos
E escreve-os!... teu sorriso é um bom passista,
Que ao dançar, acaricia a própria pista
No instante dos mais doces pensamentos.

O teu coração e bom percussionista
Da emoção que te abençoa a vida inteira
E se a vida é uma batida passageira,
Tens bem mais que um coração por baterista.

Teu amor nem sempre foi bom ritmista,
Porque às vezes ele é muito passional,
Porque faz teu coração pulsar tão mal.
Que tua dor se torna bem mais intimista.

Teu enredo ainda tem muita avenida,
Tua escola tem muito que desfilar
E se esse teu coração sabe sambar,
O teu samba-enredo é tua própria vida.
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Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de versos. Campo Mourão/PR: Ed. Jfeldman, 2020.

Graciliano Ramos (O olho torto de Alexandre)

— Esse caso que vossemecê escorreu é uma beleza, seu Alexandre, opinou seu Libório. E eu fiquei pensando em fazer dele uma cantiga para cantar na viola.

— Boa ideia, concordou o cego preto Firmino. Era o que seu Libório devia fazer, que tem cadência e sabe o negócio. Mas aí, se me dão licença... Não é por querer falar mal, não senhor.

— Diga, seu Firmino, convidou Alexandre.

— Pois é, tornou o cego. Vossemecê não se ofenda, eu não gosto de ofender ninguém. Mas nasci com o coração perto da goela. Tenho culpa de ter nascido assim? Quando acerto num caminho, vou até topar.

— Destampe logo, seu Firmino, resmungou Alexandre enjoado. Para que essas nove-horas?

— Então, como o dono da casa manda, lá vai tempo. Essa história da onça era diferente a semana passada. Seu Alexandre já montou na onça três vezes, e no princípio não falou no espinheiro.

Alexandre indignou-se, engasgou-se, e quando tomou fôlego, desejou torcer o pescoço do negro:

— Seu Firmino, eu moro nesta ribeira há um bando de anos, todo o mundo me conhece, e nunca ninguém pôs em dúvida a minha palavra.

— Não se aperreie não, seu Alexandre. É que há umas novidades na conversa. A moita de espinho apareceu agora.

— Mas, seu Firmino, replicou Alexandre, é exatamente o espinheiro que tem importância. Como é que eu me iria esquecer do espinheiro? A onça não vale nada, seu Firmino, a onça é coisa à toa. Onças de bom gênio há muitas. O senhor nunca viu? Ah! Desculpe, nem me lembrava de que o senhor não enxerga. Pois nos circos há onças bem ensinadas, foi o que me garantiu meu mano mais novo, homem sabido, tão sabido que chegou a tenente de polícia. Acho até que as onças todas seriam mansas como carneiros, se a gente tomasse o trabalho de botar os arreios nelas. Vossemecê pensa de outra forma? Então sabe mais que meu irmão tenente, pessoa que viajou nas cidades grandes.

Cesária manifestou-se:

— A opinião de seu Firmino mostra que ele não é traquejado. Quando a gente conta um caso, conta o principal, não vai esmiuçar tudo.

— Certamente, concordou Alexandre. Mas o espinheiro eu não esqueci. Como é que havia de esquecer o espinheiro, uma coisa que influiu tanto na minha vida?

Aí Alexandre, magoado com a objeção do negro, declarou aos amigos que ia calar-se. Detestava exageros, só dizia o que se tinha passado, mas como na sala havia quem duvidasse dele, metia a viola no saco. Mestre Gaudêncio curandeiro e seu Libório cantador procuraram com bons modos resolver a questão, juraram que a palavra de seu Alexandre era uma escritura, e o cego Firmino desculpou-se rosnando.

— Conte, meu padrinho, rogou Das Dores.

Alexandre resistiu meia hora, cheio de melindres, e voltou às boas.

— Está bem, está bem. Como os amigos insistem...

Cesária levantou-se, foi buscar uma garrafa de cachimbo e uma xícara. Beberam todos, Alexandre se desanuviou e falou assim:

— Acabou-se. Vou dizer aos amigos como arranjei este defeito no olho. E aí seu Firmino há de ver que eu não podia esquecer o espinheiro, está ouvindo? Prestem atenção, para não me virem com perguntas e razões como as de seu Firmino. Ora muito bem. Naquele dia, quando o pessoal lá de casa cobrou a fala, depois do susto que a onça tinha causado à gente, meu pai reparou em mim e botou as mãos na cabeça: — “Valha-me, Nossa Senhora. Que foi que lhe aconteceu, Xandu?” Fiquei meio besta, sem entender o que ele queria dizer, mas logo percebi que todos se espantavam. Devia ser por causa da minha roupa, que estava uma lástima, completamente esmolambada. Imaginem. Voar pela capoeira no escuro, trepado naquele demônio. Mas a admiração de meu pai não era por causa da roupa, não. — “Que é que você tem na cara, Xandu?” perguntou ele agoniado. Meu irmão tenente (que naquele tempo ainda não era tenente) me trouxe um espelho. Uma desgraça, meus amigos, nem queiram saber. Antes de me espiar no vidro, tive uma surpresa: notei que só distinguia metade das pessoas e das coisas. Era extraordinário. Minha mãe estava diante de mim, e, por mais que me esforçasse, eu não conseguia ver todo o corpo dela. Meu irmão me aparecia com um braço e uma perna, e o espelho que me entregou estava partido pelo meio, era um pedaço de espelho. “Que trapalhada será esta?” disse comigo. E nada de atinar com a explicação. Quando me vi no caco de vidro é que percebi o negócio. Estava com o focinho em miséria: arranhado, lanhado, cortado, e o pior é que o olho esquerdo tinha levado sumiço. A princípio não abarquei o tamanho do desastre, porque só avistava uma banda do rosto. Mas virando o espelho, via o outro lado, enquanto o primeiro se sumia. Tinha perdido o olho esquerdo, e era por isso que enxergava as coisas incompletas. Baixei a cabeça, triste, assuntando na infelicidade e procurando um jeito de me curar. Não havia curandeiro nem rezador que me endireitasse, pois mezinha e reza servem pouco a uma criatura sem olho, não é verdade, seu Gaudêncio? Minha família começou a fazer perguntas, mas eu estava zonzo, sem vontade de conversar, e saí dali, fui-me encostar num canto da cerca do curral.

“Com a ligeireza da carreira, nem tinha sentido as esfoladuras e o golpe medonho. Como é que eu podia saber o lugar da desgraça? Calculei que devia ser o espinheiro e logo me veio a ideia de examinar a coisa de perto. Saltei no lombo de um cavalo e larguei-me para o bebedouro, daí ganhei o mato, acompanhando o rasto da onça. Caminhei, caminhei, e enquanto caminhava iame chegando uma esperança. Era possível que não estivesse tudo perdido. Se encontrasse o meu olho, talvez ele pegasse de novo e tapasse aquele buraco vermelho que eu tinha no rosto. A vista não ia voltar, certamente, mas pelo menos eu arrumaria boa figura. À tardinha cheguei ao espinheiro, que logo reconheci, porque, como os senhores já sabem, a onça tinha caído dentro dele e havia ali um estrago feio: galhos rebentados, o chão coberto de folhas, cabelos e sangue nas cascas do pau. Enfim um sarapatel brabo. Apeei-me e andei uma hora caçando o diacho do olho. Trabalho perdido. E já estava desanimado, quando o infeliz me bateu na cara de supetão, murcho, seco, espetado na ponta de um garrancho todo coberto de moscas. Peguei nele com muito cuidado, limpei-o na manga da camisa para tirar a poeira, depois encaixei-o no buraco vazio e ensanguentado. E foi um espanto, meus amigos, ainda hoje me arrepio. 

“Querem saber o que aconteceu? Vi a cabeça por dentro, vi os miolos, e nos miolos muito brancos as figuras de pessoas em que eu pensava naquele momento. Sim senhores, vi meu pai, minha mãe, meu irmão tenente, os negros, tudo miudinho, do tamanho de caroços de milho. É verdade. Baixando a vista, percebi o coração, as tripas, o bofe, nem sei que mais. Assombrei-me. Estaria malucando?

“Enquanto enxergava o interior do corpo, via também o que estava fora, as catingueiras, os mandacarus, o céu e a moita de espinhos, mas tudo isso aparecia cortado, como já expliquei: havia apenas uma parte das plantas, do céu, do coração, das tripas, das figuras que se mexiam na minha cabeça. Refletindo, consegui adivinhar a razão daquele milagre: o olho tinha sido colocado pelo avesso. Compreendem? Colocado pelo avesso. Por isso apanhava os pensamentos, o bofe e o resto. Tenho rolado por este mundo, meus amigos, assisti a muita embrulhada, mas essa foi a maior de todas, não foi, Cesária?”

— Foi, Alexandre, respondeu Cesária levantando-se e acendendo o cachimbo de barro no candeeiro. Essa foi diferente das outras.

— Pois é, continuou Alexandre. Só havia metade das nuvens, metade dos urubus que voavam nelas, metade dos pés de pau. E do outro lado metade do coração, que fazia tuque, tuque, tuque, metade das tripas e do bofe, metade de meu pai, de minha mãe, de meu irmão tenente, dos negros e da onça, que funcionavam na minha cabeça. Meti o dedo no buraco do rosto, virei o olho e tudo se tornou direito, sim senhores. Aqueles troços do interior se sumiram, mas o mundo verdadeiro ficou mais perfeito que antigamente. Quando me vi no espelho, depois, é que notei que o olho estava torto. Valia a pena consertá-lo? Não valia, foi o que eu disse comigo. Para que bulir no que está quieto? E acreditem vossemecês que este olho atravessado é melhor que o outro.

Alexandre bocejou, estirou os braços e esperou a aprovação dos ouvintes. Cesária balançou a cabeça, Das Dores bateu palmas e seu Libório felicitou o dono da casa:

— Muito bem, seu Alexandre, o senhor é um bicho. Vou botar essas coisas em cantoria. O olho esquerdo melhor que o direito, não é, seu Alexandre?

— Isso mesmo, seu Libório. Vejo bem por ele, graças a Deus. Vejo até demais. Um dia destes apareceu um veado ali no monte...

O cego Firmino interrompeu-o:

— E a onça? Que fim levou a onça que ficou presa no mourão, seu Alexandre?

Alexandre enxugou a testa suada na varanda da rede e explicou-se:

— É verdade, seu Firmino, falta a onça. Ia-me esquecendo dela. Ocupado com um caso mais importante, larguei a pobre. A onça misturou-se com o gado, no curral, mas começou a entristecer e nunca mais fez ação. Só se dava bem comendo carne fresca. Tentei acostumá-la a outra comida, sabugo de milho, caroço de algodão. Coitada. Estranhou a mudança e perdeu o apetite. Por fim ninguém tinha medo dela. E a bicha andava pelo pátio, banzeira, com o rabo entre as pernas, o focinho no chão. Viveu pouco. Finou-se devagarinho, no chiqueiro das cabras, junto do bode velho, que fez boa camaradagem com a infeliz. Tive pena, seu Firmino, e mandei curtir o couro dela, que meu irmão tenente levou quando entrou na polícia. Perguntem a Cesária.

— Não é preciso, respondeu seu Libório cantador. Essa história está muito bem amarrada. E a palavra de seu Alexandre é um evangelho.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
RAMOS, Graciliano. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944.

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 29

 

Aparecido Raimundo de Souza (Engasgada)

DOMINGO, ONZE da manhã. Horário de pico. Restaurante lotado. Almoço sendo servido a toda velocidade. Nenhuma mesa disponível. Na calçada, uma fila quilométrica de pessoas espera a vez para ingressar. Ao lado do pianista tocando repertórios populares, uma família ocupa a mesa cinquenta e dois. Não outra, senão os consanguíneos do desembargador Sizino de Albuquerque Garranchoso (encabeçado por ele), sua esposa Beatriz, as duas filhas, Sara e Simone e também o único filho varão, Sizino de Albuquerque Garranchoso Junior. Almoçam tranquilamente enquanto o músico, ao instrumento, muda o tom das notas, passando a executar melodias românticas. 

Numa mesa um pouco afastada, a de número sessenta e um, se vê capitaneada pelo doutor Moacir Fortunato, delegado de polícia. O insigne representante da lei se faz acompanhar também da sua prole. Por esta razão, está sentada à sua beira, a esposa, dona Mara, companheira de quarenta anos e o casal de filhos, Augusto, de vinte e Liliane, de vinte e dois. Os garçons, num vaivém incessante, transitam em ziguezagues servindo os muitos pratos do cardápio, sem falar nas garrafas de cervejas e refrigerantes, bem ainda, para alguns mais exigentes, o vinho ao ponto e o champanhe espumante. Todos estão radiantes, em particular o delegado Moacir Fortunado, em vista da Liliane, a sua mais velha, comemorar a passagem de seu natalício. De repente, o pai coruja dá início a uma cantoria de parabéns, na qual ao ser terminada, incrivelmente toda a galera, em peso se solidariza, irmanada, ajudando o velhote no tradicional cumprimento do “viva à aniversariante”, culminando as felicitações com estrondosas palmas embaladas pelo pianista que interrompe o que executa e passa a mandar brasa num improvisado “Parabéns pra você”. 

As famílias, naquele recinto, com gente saindo pelo ladrão, nunca se viram. Até aquele momento, todo o pessoal se fazia desconhecido uns aos outros. Nada, portanto, os unia em algo comum. Apenas os alinhavam o almoço no mesmo espaço seguido da solidariedade e do carinho da troca de gentilezas. Ao saírem dali, possivelmente jamais se esbarrariam. Cada grupo distinto seguiria o seu caminho permanecendo as lembranças do evento oculto nas memórias inesquecíveis de um instante imperdível que se perpetuou. Entretanto, meia hora depois, talvez menos, dona Mara é acometida por um piripaque repentino. Se engasga com alguma coisa que engoliu por descuido e o alimento, sabe-se lá por qual motivo, a faz entrar em estado de pânico. 

De fato, a senhora passa a se sentir mal, a se debater, desesperada, dando a impressão, aos demais, que se sufocava com alguma entalação imprevisível. Seu estado se torna crítico. Em questão de segundos, os garçons, irmanados em suporte de socorro, tentam reanimar a pobre criatura livrando-a do desconforto. As ações por eles tomadas não surtem o efeito pleiteado. A infeliz, aos poucos, está perdendo o chão, ficando cada vez mais carente de cuidados e próxima de uma prostração infernal. O dono aparece, solidário e visivelmente nervoso, bem como o gerente. Alguns clientes palpitam... dão sugestões, enfim, um grupo se junta aos contratempos visíveis do senhor Moacir Fortunato. 

Extremamente prestativo, ao tomar conhecimento daquele bafafá inesperado, e, em face do agito e de pessoas falando ao mesmo tempo, Sizino Junior salta da sua cadeira, na cinquenta e dois e corre à beira de dona Mara. Em contínuo, agarra a mulher pelas costas, levanta-a do chão com uma força jamais vista pelos presentes. Seu Moacir Fortunato, da sessenta e um, o marido, meio que apatetado, investe, furioso e aos berros, contra o impetuoso rapaz, bem como o filho Augusto. Prestes estão, pai e filho, a pegarem o maluco pelos fundilhos (o miserável, do nada, e, em meio a uma plateia pasma e endoidecida), que num ato impensado e sem nenhum tipo de explicação, agarrou dona Mara e a suspendeu em pleno ar. Todavia o quadro se faz inverossímil. Dona Mara é salva do desditoso engasgo. 

Sizino em curto interregno, ao invés de um muito obrigado, ouve uma chuva de impropérios, como “vamos pegar o desgraçado na porrada? Onde já se viu desrespeitar uma senhora honesta, tomando-a pelas costas e, pior, ao lado de seu marido e filhos”’? Em meio ao pandemônio desfigurado que se segue, alguém tem a infeliz ideia de mandar ligar para a polícia: 

— Meu senhor, chama os “home”! – grita o careca da mesa quarenta e nove.

— Bem pensado.  Este safado precisa ir direto para a cadeia, sem mais perda de tempo – corrobora a idosa da trinta e oito:

Augusto, o filho, mais abestalhado que o pai, dá o alerta:

— Pai, pelo amor de Deus, para que chamar uma viatura? O senhor é a polícia. Acaso vai chamar a si mesmo? –  Prende o cara.

O pai, coça a cabeça, ainda desatinado:

— É mesmo. Havia me esquecido...

Espumando de raiva e ódio, seu Moacir tonitrua voz de prisão à Sizino, exibindo seu distintivo da Civil acompanhada de uma poderosa arma em punho. As barbas de ser linchado, contudo, Sizino, o salvador de dona Mara, se faz ouvir, gritando a plenos pulmões e acima do estardalhaço para que todos lhe deem atenção: 

— Calma, gente. Por favor, me escutem. Sou médico. Eis aqui a minha credencial. Esta senhora se engasgou. Como podem ver, está agora, fora de perigo. Apliquei nela um procedimento de compressão abdominal, ou como no dia a dia dos hospitais conhecemos como “Manobra de Heimlich.” 

O senhor Moacir, estanca. Diante da identificação exibida não só para ele, como para os demais em encorpada roda, muda a postura. Guarda a arma. Enfia o par de algemas no bolso. Aos prantos, o velho desaba se debulhando em lágrimas. Chorando, abraça a esposa e os filhos. Em seguida, pede desculpas e estende os braços em atitude de agradecimento ao clínico que, por graça divina, estava no local na hora certa e se prontificou a socorrer a mulher em apuros descomedidos: 

— Meu filho – diz seu Moacir à Sizino. Me perdoe. Tudo aconteceu de forma tão rápida... como iríamos supor que uma pessoa tão jovem fosse um médico e viesse em socorro de minha querida esposa?   

O restaurante, ao saber do ocorrido se solidariza, e, como era de se esperar, termina com uma centena de cumprimentos e vivas atrelado a um “Deus lhe pague” sincero e sem rancores. O fato é seguido de palavras elogiosas "apogeado" com uma salva de palmas e algazarras calorosas. Aquela cena inusitada contagia até os que engrossavam a enorme fila na calçada em frente. O senhor Moacir Fortunado, delegado de polícia, em profundo agradecimento, não permite que o desembargador Sizino de Albuquerque arque com a conta. Correndo ao caixa, sem que ninguém perceba, toma para si os haveres dos gastos da família do ilustre esculápio. 

O melhor de tudo acontece em sequência. Uma profunda amizade entre os dois líderes consolida aquele inesperado encontro, mudando para sempre a vida de todos os partícipes. A partir daquele bagunçado almoço, uma alicerçada e desinteressada união se propaga entre os Albuquerque e os Fortunatos. O ápice foi tão difundido que redundou em noticiário e saiu na televisão com destaque nos jornais do começo de noite. Dois meses depois, no mesmo restaurante, igual mesa, o jovem médico Sizino Júnior, filho do desembargador Sizino de Albuquerque pede publicamente ao líder da família Fortunato, em noivado, com aliança e tudo o que tem direito, a filha dele, a linda e esfuziante Liliane. Após o “sim” e as bênçãos de ambas as famílias, numa euforia açodada se fez ouvir quando os pombinhos se beijam acalorados, e, claro, ovacionados por uma nova e desta vez mais robusta e tonitruante gritaria em embalos de “vivas e vivas” ao mais novo elegante e majestoso casal.  

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Irmãos Grimm (O alfaiatezinho valente)

Um dia de verão, estava um pequeno alfaiate sentado sobre sua mesa, junto à janela. Satisfeito da vida, cosia e cosia com grande entusiasmo. Nisso uma camponesa desceu a rua, apregoando:

- Marmelada! Quem quer marmelada?

Aquilo soou bonito aos ouvidos do alfaiatezinho, que meteu a delicada cabecinha fora da janela e chamou:

- Ei, boa mulher! Venha, que aqui ficará livre da mercadoria!

A camponesa com seu cesto pesado, subiu as três escadas e o homenzinho a fez abrir todos os potes. Examinou-os, cheirou-os um por um, e afinal acabou dizendo:

- Parece-me boa essa marmelada. Sirva umas quatro colheradas, boa mulher, e, se forem cinco, também não fará diferença para mim.

A mulher, que esperava realizar um bom negócio, deu-lhe o que havia pedido, mas retirou-se aborrecida e resmungando.

- Bem! - disse o pequeno alfaiate- que Deus abençoe este doce, para que me dê forças e ânimo.

Foi ao armário, tirou de dentro um pão e, cortando um bom pedaço, passou nele a marmelada.

- Não há de ter mau gosto, - disse consigo- mas antes de provar, quero ver se termino este gibão.

Pôs o pão a seu lado e continuou costurando, sentia-se tão feliz que ia fazendo pontos cada vez maiores.

Nesse meio tempo, o doce aroma da marmelada subiu até o teto, onde havia moscas em quantidade. Estas, sentindo-se atraídas pelo bom cheiro, foram pousar no pão, aos montes.

- Ei! Quem convidou vocês? - disse o alfaiatezinho, espantando as hóspedes indesejadas.

As moscas não entendiam sua linguagem, nem fizeram caso. Ao contrário, apresentaram-se em  número cada vez maior. Aí, então, o homenzinho ficou por aqui, como se costuma dizer e, passando a mão num retalho de fazenda, gritou:

- Esperem, que terão o que merecem!

E bateu com toda força nelas. Quando levantou o pano, viu que nada menos de sete estavam ali mortas, de perna esticada.

- Como és valente! – disse a si mesmo, admirando sua bravura - a cidade toda deverá ficar sabendo!

Mais que depressa, cortou e costurou um cinto, bordando nele os seguintes dizeres em letras bem grandes: "Sete de um golpe só!"

- Qual cidade, qual nada ! – prosseguiu monologando - o mundo inteiro precisa ficar sabendo!

E, de tanta alegria, seu coração se agitava como o rabinho de cordeiro. Colocou o cinto, resolvido a correr mundo, pois achava que a alfaiataria se tornara pequena demais para sua coragem. Antes, porém, deu uma busca na casa para ver se havia qualquer coisa que pudesse levar consigo, mas só encontrou um queijo velho que enfiou no bolso. Em frente ao portão, viu um pássaro que se enredara nos arbustos; apanhou-o e também o guardou no bolso, para que fizesse companhia ao queijo.

Iniciou, então, corajosamente, sua jornada, como era leve e ágil, não sentiu cansaço. O caminho o levou a uma montanha e, ao chegar no ponto mais elevado, viu, de repente, um gigante, enorme, sentado no chão a olhar, tranquilamente, a seu redor. Cheio de valentia, o pequeno alfaiate aproximou-se dele e falou:

- Bom dia, companheiro! Contemplando a imensidão do mundo, não? É para lá, exatamente, que me dirijo, a fim de tentar a sorte. Queres acompanhar-me?

O gigante olhou-o com desprezo e respondeu:

- Ora só quem está falando! Que sujeitinho mais miserável!

- Alto lá! -disse o nosso homenzinho e, desabotoando o casaco, exibiu o seu cinto.- Aí podes ler que espécie de homem sou eu!

O gigante leu: "Sete de um golpe só!" E como pensasse tratar-se de pessoas, mostrou um pouco mais desrespeito ao alfaiate. Em todo caso, quis experimenta-lo antes; apanhou uma pedra e tanto a espremeu com uma das mãos que fez correr dela algumas gotas de água.

   - Imita-me,- disse o gigante- se tiveres força.

    - Se é só isso, - retrucou o pequeno - não passa de um brinquedo de criança para gente como eu.

Enfiou a mão no bolso, tirou o queijo, que era mole, e o apertou até sair o sumo.

Que tal? – disse ele. - Um pouquinho melhor, não é?

O gigante ficou sem o que dizer, pois a força de homenzinho o desconcertara. Apanhou outra pedra e atirou-a tão alto que mal se podia distingui-la a olho nu.

- E daí, seu valentão? Imita-me!

- Boa jogada! - concordou o alfaiate.- Mas a pedra caiu de volta ao chão e eu vou atirar uma que não voltará.

E, tirando o pássaro do bolso, jogou-o no espaço. A Ave, satisfeita com a liberdade, ergueu-se em voo rápido e desapareceu no ar.

- Que me dizes dessa jogada, companheiro? - perguntou o alfaiate.

- Sabes atirar, - retrucou o gigante - mas agora vejamos se és capaz de carregar um peso razoável.

E conduzindo o alfaiatezinho até um carvalho muito grande que estava, cortado, no chão, disse-lhe:

- Se tiveres força suficiente, ajuda-me a carregar esta árvore para fora do mato.

- Com muito prazer. - respondeu o homenzinho.- Vai pondo o tronco nos ombros que eu me encarrego dos galhos e ramos, que são a parte mais pesada.

O gigante colocou o tronco nos ombros, enquanto o alfaiatezinho se acomodou num dos galhos. E, como o primeiro não podia voltar-se para vê-lo, carregou a árvore inteira e, ainda por cima, o alfaiate. Este, muito alegre, assobiava a canção: " Três alfaiates saíram a trote..." - como se carregar uma árvore fosse brinquedo de criança. O gigante, depois de ter arrastado por algum tempo o pesado fardo, não aguentou mais e gritou:

- Atenção! Vou deixar cair a árvore!

O  alfaiatezinho saltou logo para baixo, agarrou o carvalho com ambos os braços, como se estivesse a carregá-lo e disse ao gigante:

– És grandalhão, mas incapaz de carregar essa árvore!

Continuaram juntos o caminho e chegaram ao pé de uma cerejeira. O gigante meteu a mão na copa onde estavam as frutas mais doces, curvou os galhos e, pondo-os nas mãos do alfaiate, o convidou a comer cerejas. Mas o homenzinho era fraco demais para segurar a árvore e, quando o gigante soltou os galhos, a cerejeira voltou à sua posição primitiva, levando aos ares o nosso herói. Este, sem sofrer dano algum, caiu no chão e o gigante logo perguntou:

- Como? Não tens força para segurar essa árvore tão pequena?

- Não se trata de força.- respondeu o outro. – Acreditas que isso significa algo para quem matou sete de um golpe só? Saltei de propósito sobre a árvore porque os caçadores andam atirando lá em baixo, no matagal. Imita-me se és capaz!

O gigante tentou, mas não conseguiu pular a árvore, ficando preso nos galhos. E, com isso, também desta vez o pequeno alfaiate ficou com a vitória. Disse, então, o gigante:

- Se és tão valente mesmo, acompanha-me à nossa caverna e passa a noite conosco.

O nosso homenzinho aceitou a proposta e o seguiu. Chegaram à caverna, onde havia vários outros gigantes, cada um deles comendo uma ovelha assada que tinha nas mãos. O alfaiatezinho olhou em redor e pensou: "Isso aqui é  bem maior do que minha alfaiataria.”

O gigante mostrou-lhe uma cama e o convidou a deitar-se e dormir. Ele, porém, achou grande demais o leito e, em vez de se deitar nele, foi acomodar-se num canto. Pela meia-noite, o gigante, imaginando o alfaiatezinho em sono ferrado, levantou-se, apanhou uma barra de ferro e desfechou tamanho golpe na cama que julgou ter acabado, de uma vez por todas, com a vida daquele gafanhoto. 

De madrugada, bem cedo, os gigantes foram ao mato e já nem se lembravam mais do alfaiate, quando de repente, este lhes veio ao encontro, bem alegre e satisfeito. Levaram um susto danado e, receando que ele fosse matá-los, fugiram espavoridos.

Continuou o nosso herói a viagem, seguindo sempre o seu nariz arrebitado. Depois de uma longa jornada, chegou ao jardim de um palácio real e, sentindo-se cansado, espichou-se na relva e adormeceu. enquanto estava ali deitado, chegou gente. Aproximaram-se dele e puseram-se a examiná-lo por todos os lados. Nisso, leram o seu cinto: " Sete de um golpe só!"

- Céus! - exclamaram o grupo todo - que estará fazendo aqui este grande herói, agora, em tempos de paz? Deve ser cavaleiro famoso!

E saíram para avisar o rei, dizendo-lhe que, se houvesse guerra, seria um homem importante e útil que não se deveria deixar escapar. O rei gostou de conselho enviou um dos seus cortesões ao alfaiate, para contratar os seus serviços logo que ele despertasse. O mensageiro assim fez e, quando o homenzinho se espreguiçou e abriu os olhos, transmitiu-lhe o recado.

- Vim aqui, justamente, para isso. - disse o pequeno alfaiate. - Estou disposto a entrar a serviço do rei.

Receberam-no, então, com todas as honras e deram-lhe uma moradia especial.

Os soldados do rei, no entanto, o olhavam com maus olhos e desejavam que ele estivesse a mil léguas de distância.

- Que será de nós quando tivermos uma briga e ele, com cada golpe, derrubar sete de nossa gente? - diziam entre si.- Desse jeito não viveremos muito,

E resolveram ir ao rei para pedir que os despedisse.

- Não estamos preparados - disseram - para viver perto de um homem que matou sete de um só golpe.

O rei entristeceu-se por ter de renunciar a todos os seus soldados por causa de um só; já estava arrependido de tê-lo contratado e desejou que seus olhos nunca o tivessem visto. Entretanto, não se animou a despedi-lo, porque receava que ele o matasse junto com todo o seu povo e fosse depois apoderar-se do trono. Pensou durante muito tempo e, afinal, descobriu um meio. Mandou dizer ao alfaiate tão famoso, queria fazer-lhe uma proposta. 

Na floresta do país havia dois gigantes que provocavam grandes prejuízos, com roubos, assassinatos, incêndios e outro crimes mais. Ninguém podia aproximar-se deles sem arriscar a vida. Se ele vencesse e matasse os dois gigantes, dar-lhe-ia sua filha única para esposa e ainda a metade de seu reino como dote; teria, também, o auxílio de cem cavaleiros. "Seria algo para um homem como tu" – pensou o alfaiatezinho - " e não é todos os dias que oferecem uma bela princesa para esposa e meio reino como dote".

  - Aceito! - foi a sua resposta.- Vencerei os dois gigantes e não preciso dos cem homens para essa tarefa; quem matou sete de um golpe só, não se amedronta com dois.

Pôs-se a caminho e os cem cavaleiros o seguiram. Quando chegou à beira do bosque, dirigiu-se a seus acompanhantes, dizendo:

- Fiquem por aqui; eu, sozinho, sou suficiente para acabar com os gigantes.

E embrenhou-se no mato, olhando para direita e para esquerda. Passado algum tempo, avistou os gigantes. Deitados embaixo de uma árvore, estavam dormindo e roncando tão alto que faziam balançar os galhos. Sem perda de tempo, o pequeno alfaiate encheu os bolsos de pedra e foi trepando na árvore. Assim que chegou na metade, escorregou para a ponta de um galho, de modo a ficar bem em cima dos dois adormecidos e começou a jogar as pedras, uma a uma, no peito de um dos gigante. Durante muito tempo o homenzarrão não notou coisa alguma, mas, por fim, acordou, deu um empurrão no companheiro e disse:

- Por que estás me batendo?

- Batendo coisa nenhuma! Tu é que estás sonhando. - disse o outro.

Recomeçaram a dormir, e o alfaiate jogou uma pedra no segundo.

- Que significa isso?! - gritou o outro gigante. - Por que estás me atirando pedras?

- Não estou atirando nenhuma pedra. - resmungou o primeiro.

Discutiram ainda por algum tempo, mas, como estavam cansados, cessaram a discussão e voltaram a dormir. O nosso alfaiatezinho então recomeçou o jogo; escolheu a pedra mais pesada e arremessou-a com toda força, no peito do primeiro gigante.

- Isso agora é demais! - gritou este e, erguendo-se de um salto, como um louco, jogou seu companheiro com tal força contra a árvore que a fez estremecer. O outro pagou-lhe na mesma moeda e tão furiosos ficaram que se puseram a arrancar as árvores ao redor, e com elas tanto se bateram que caíram mortos, ao mesmo tempo, no chão. Só aí é que o alfaiatezinho desceu de seu posto.

- Uma sorte, - disse ele - não terem arrancado a árvore onde eu estava, senão teria sido obrigado a saltar para outra, que nem esquilo. Ainda bem que sou ligeiro!

Tirou a espada da bainha e deu diversos golpes no peito do gigantes. Em seguida foi ao encontro dos cavaleiros e lhes disse:

- O trabalho foi feito; dei cabo dos dois. Custou-me algum esforço porque se defenderam com troncos de árvores que iam arrancando, mas nada disso adianta quando surge alguém como eu que mata sete de um golpe só.

- E não está ferido? - perguntaram os homens.

- Era só o que faltava! - respondeu o alfaiate.- Não perdi um único fio de cabelo!

Os cavaleiros não lhe quiseram dar crédito e foram ao bosque; lá encontraram os gigantes banhando em sangue e, ao redor, as árvores arrancadas.

O pequeno alfaiate apresentou-se ao rei para exigir a recompensa prometida. Mas este já se arrependera da promessa e começou a imaginar como livrar-se do herói.

- Antes de receberes minha filha e metade do reino - disse-lhe- terás de realizar outra façanha. Anda por aí um unicórnio a causar prejuízos graves. Deves, primeiro capturá-lo.

Um unicórnio me assusta menos ainda que dois gigantes. Minha divisa é : "Sete de um golpe só."

Pegou uma corda e um machado e saiu para a floresta. Novamente ordenou a seus acompanhantes que o emperrasse fora do bosque. Não teve de procurar muito. O animal veio saltando em sua direção, como se quisesse espetá-lo sem maiores rodeiros,

- Calma! Calma! - exclamou o alfaiatezinho.- Não corramos tanto!

Ficou parado e esperou que o bicho chegasse bem perto; depois, num gesto rápido, colocou-se atrás de uma árvore. O unicórnio, que vinha direto a ele, disparando com toda fúria, cravou o corno com tanta força no tronco que não conseguiu mais retirá-lo e ali ficou aprisionado.

- Apanhei o animal! - disse o homenzinho, saindo de trás da árvore. Colocou, primeiro, a corda no pescoço do bicho e depois retirou, a golpes de machado, o corno do tronco. A seguir, levou o animal para o rei.

Ainda assim o soberano não quis conceder-lhe o prêmio e deu-lhe uma terceira incumbência. Antes do casamento, o alfaiate deveria capturar um javali que causava grandes danos na floresta. Os caçadores lhe prestariam auxílio.

- Com muito prazer- disse o alfaiate- isso é brincadeira de criança.

Deixou os caçadores à beira do mato e eles ficaram bem satisfeitos com isso, pois o javali, muitas vezes, os recebera de um modo que lhes tirara toda a vontade de o enfrentar novamente.

Logo que o javali avistou o alfaiate, correu-lhe ao encontro com a boca espumando, cheia de dentes aguçados, e pronto para derrubá-lo. O ágil herói, porém, correu  a refugiar-se numa capelinha que havia ali e, em seguida, saiu pela janela que ficava ao alto. O javali, que o seguia de perto, entrou também na capela e, então, o homenzinho, dando volta por fora, correu a fechar o pórtico, prendendo assim a fera, pesada e desajeitada demais para sair pela janela. Feito isso, chamou os caçadores para eles vissem o prisioneiro com seus próprios olhos. O valente foi, então, apresentar-se ao rei, o qual, quisesse ou não, foi obrigado a cumprir sua promessa, dando-lhe a filha e metade de seu reino. Mas teria ficado ainda mais aborrecido se imaginasse tratar-se de um simples alfaiate e não de um guerreiro famoso. O casamento foi, pois, celebrado com grande pompa, mas pouca alegria, e de um alfaiate se fez rei.

Passado algum tempo, numa noite, a jovem rainha ouviu quando seu marido falava em sonhos:

- Rapaz, apronta esse gibão e me remenda as calças ou te medirei as costas com esta vara!

Compreendeu aí a rainha qual era a origem de seu jovem esposo. Na manhã seguinte, queixou-se ao pai, pedindo-lhe que a libertasse do homem que não passava de um alfaiate. O rei consolou-a, dizendo:

– Deixa a porta de teu quarto aberta esta noite. Meus criados ficarão do lado de fora e, quando ele estiver dormindo, será atado e levado para um navio que o conduzirá para bem longe.

A filha deu-se por satisfeita, mas o escudeiro ouvira tudo e, como gostasse de seu amo, revelou-lhe toda a trama.

- Vou por um pequeno empecilho a esse plano.- disse o alfaiatezinho.

À noite deitou-se como de costume, na cama, com sua mulher. Quando o viu adormecido, ela levantou-se, abriu a porta e tornou-se a deitar. O alfaiate, que só estava fingindo, começou a gritar com voz bem forte:

- Rapaz, apronta o gibão e remenda minhas calças ou te medirei as costas com esta vara! Atingi sete com um golpe só, matei dois gigantes, apanhei um unicórnio, capturei um javali e haveria de temer a esses que estão do lado de fora da porta?

Os homens, quando o ouviram falar daquele jeito, assustaram-se e deitaram a correr como se um  exército inteiro estivesse em seu encalço e nenhum deles se atreveu a enfrentá-lo. E foi assim que o alfaiatezinho ficou sendo rei por toda vida.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Varal de Trovas n. 586

 

Dirceu Marés de Souza (A viuvinha do Crespim)


Nos tempos em que ainda se plantava erva doce no reino dos canteiros de couve — em 1841 - existia na então vila de Campo Largo uma chácara caprichosamente cuidada. Era de propriedade de um jovem casal, Crespim e Djanira, que mantinha em sua herdade vários escravos, entre eles duas pretas muito afeiçoadas a seus amos. Tudo naquele sítio funcionava no mais rigoroso estilo patriarcal. Um ambiente de respeito e dignidade que impressionava seus vizinhos e especialmente seus escravos. O simpático casal deixava transparecer uma vida em eterna lua de mel. Mas um dia, o Urutago piou mais forte e arrastou suas asas agourentas no telheiro... Crespim ficou muito doente. Uma grave moléstia o levou ao túmulo em poucos dias. Uma tristeza...Os vizinhos foram consolar a Viúva. Moça rica e bonita, não deveria desanimar... Esqueceria um dia. Talvez um dia...

Para suportar as angústias da ausência do marido morto, a jovem Viuvinha chamou um abalizado mestre de marceneiro e pediu a ele que esculpisse a figura de Crespim em madeira. O artista trabalhou para obter a melhor semelhança possível. Depois de tudo memorizado nos seus mínimos detalhes, entregou a obra concluída.

Vestiram o Crespim de pau com as roupas do defunto. A Viúva e as mucamas transformaram aquele momento num respeitoso cerimonial... As pretas disseram boa noite para o sinhô... E o Crespim foi levado para o quarto de dormir, porque já era noite. Durante o dia vinha o Crespim para os lugares onde o pessoal se reunia e se movimentava.

Quando as mucamas varriam a casa pediam licença:

- Com licença, Sinhô, queremos varrer... e arredavam o boneco.

Vez por outra, vinha a Viúva:

- Crespim, os cobres estão curtos, vamos vender umas vaquinhas?

O Crespim, como sempre, continuava impassível, mudo como um todo.

- Já sei! Você sempre foi assim... quando não fala está concordando.

Lá se ia mais uma vaca, ou duas, para o açougueiro. Aconteceu que o açougueiro, viúvo e desimpedido também, arrastou as asas para o lado da Viuvinha e esta resolveu abanar-lhe um lenço verde. Passaram-se poucos dias e a Viúva noticiou às mucamas que iria contratar casamento com o açougueiro. Foi um susto nas duas:

- Credo-em-cruz!... E o sinhô Crespim?...

A Viúva ria:

- Suas bobas...

No dia do contrato de núpcias, a Viúva, eufórica, feliz com a ideia do novo casamento, recomendava às escravas que tivessem muito respeito com o noivo que viria visitá-la. Elas resmungavam se persignando.

Em um dia, em meio à ansiedade da Viúva e à oposição das mucamas, o açougueiro chegou todo bornido... A Viúva o recebeu com exageradas mesuras, fazendo-o sentar-se em uma cadeira da sala, enquanto no interior da casa ouvia-se a corrimaça das mucamas a arrastarem os chinelos de um lado para o outro, entre resmungos imperceptíveis... A ama chamou-as:

- Vocês duas! Façam um café bem quente, bem forte, bem bom e tragam aqui na sala... para nós...

As mucamas responderam em tom de deboche:

- Não dá para fazer café, Sinhá, não tem lenha!...

A Viúva com raiva responde:

– Então queimem o Crespiml...deve estar bem seco...

As mucamas foram ao quarto de dormir e agarraram o boneco Crespim, e o arrastaram para fora. Meteram-lhe o machado e dentro em pouco tempo serviram o café - bem quente e bem forte.

(Até hoje ainda se fala em Campo Largo quando morre o marido e deixa viúva nova: - “...Essa logo manda queimar o Crespim!...”

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Lairton Trovão de Andrade (Brados ao Infinito) – 1


A PAZ

Viver com humanidade,
sem angústia nem paixão,
com toda serenidade,
é ter paz no coração.

Olhar pra sua consciência,
sem ter que chorar atrás,
é sentir doçura e ciência
do que seja estar em paz.

Quem habita bem a Terra
e age com tranquilidade,
quem condena sempre a guerra
promove a paz e a amizade.

Ainda que haja injustiça
com a traição perspicaz,
a minha grande cobiça
é sempre viver em paz.

Que a tristeza se dissipe,
que, pra todos, haja trigo,
que do amor se participe,
criando-se um mundo amigo.

Seja, pois, Ano de paz,
porém, que não se desfaça,
riqueza que o sonho traz
com vida plena de graça.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

APELO DA POESIA

Meus versos são ecos que soam,
que tangem quais vozes de um sino;
vêm d'alma desejos que entoam
compassos sagrados de um hino.

É a voz que o deserto sacode,
o orvalho que rega a aridez,
a mão carinhosa que acode,
o braço que dá altivez.

Poema que canta a esperança
e clama com fé pelo amor,
suplica que reine pujança
ao fraco, infeliz sofredor.

Meus versos agora são gritos
que amainam humildes plebeus;
quer paz, quer bonança aos aflitos,
— poesia é apelo de Deus.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A TROVA DO CORAÇÃO

Minha trova tem poesia
colorida de paixão.
Tenho no rosto alegria
e trova no coração.

Todas as trovas que escrevo,
como se fossem missão,
dizer com gala me atrevo:
São trovas do coração.

A trova do coração
tem sempre sinceridade;
até mesmo sem razão,
no sentimento há verdade.

A essas trovas me apego,
pois são de fina emoção;
nelas, amor é que prego
por serem do coração.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

CARNAVAL 

São ricas as fantasias
dos meses de fevereiro.
Carnavais - que ironias!
- motivam o ano inteiro.

Arlequim faz palhaçadas
aos olhos das colombinas.
Dançam drogas nas calçadas
— oh, vis armas assassinas!

Tantos pierrôs delinquentes
nestes tempos tão carnais!
Assanham impertinentes
as colombinas sensuais.

Consequência indesejada
por imprudente cegueira,
a aids vem por um nada
e condena a vida inteira.

São lindas alegorias
que se vê passar ali.
Ficam, porém, agonias
no chão da Sapucaí.

Carnaval! Quanta ilusão
de um bloco de tanta asneira!
Eis o vazio coração
numa vida feiticeira!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

DESEJO MAIOR

Ao meu fim, quando eu chegar,
"Glória" infinda quero ter.
Por uma luta exemplar,
desejo o céu receber,

Sei que, de Deus, não mereço
o gozo da eternidade;
mas tenho o santo endereço
do seu perdão e piedade.

Frágil sopro é minha vida
nos vales, vezes sombrios.
Com fé, em luta renhida,
vencerei monstros bravios.

Quando partir deste mundo,
tenham todos a certeza:
Eu quis que o amor mais fecundo
constituísse-me a riqueza.

A velha Sabedoria
diz que a vida é passageira.
E vaidade e ninharia
a ganância rotineira.

Ao mundo cheguei desnudo,
que bens levarei comigo?!
Dê-me a chance, ó Deus, contudo,
de ter o Céu por abrigo.

Quero, com o Pregador,
dizer entre tanto embate;
Dê-me a coroa, Senhor,
"Combati o bom combate"!

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Brados ao infinito: poemas. Pinhalão/PR: Artgraf, 2014.
Enviado pelo poeta.