sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Renato Frata* (Letra perdida)

Fuçando gavetas, papéis amarelados sorriram. 

Achar o passado que se perdera, às vezes, faz bem; cria a conexão mágica que só o vivido consegue com o ontem, virando hoje e revivendo, mesmo que por segundos, fato cuja importância marcou o dia, a época com seus borrões, e que o tempo, o mais poderoso dos sabões, se esqueceu.

Peguei o maço de folhas ali deixadas e senti, ainda, a baba seca do destilado de outrora pregada sobre as linhas oscilantes do texto, e me repugnei: um tênue cheiro de coisa azeda exalou do papel, calando-me. 

Fui mesmo um insano ao regurgitar, lá atrás no tempo, sobre o escrito. Nunca se deve deixar que a baba escorra pelo trabalho. 

Quanto às linhas sinuosas do amarrado amarelo, uma explicação; o alinhamento desregulado da máquina de escrever fê-la tão bêbada quanto o datilógrafo ao compor o texto em que descreveu que "a noite escura galopava a tristeza de um amor perdido e, nesse negror, estrelas riscadas a carvão estampavam um céu de mortalha".

Tétrico, diria, se compreendesse o texto. 

Devia mesmo estar muito bêbado para ter escrito coisas assim.

Quem consegue barrar a ânsia do embriagado? 

Palavras e ideias somatizam no álcool o medo/melancolia que o absorve, e faz simplesmente o que o coração determina. 

São energias expelidas como varetas em leque a se espalhar pelas veias, até chegarem ansiosas às pontas dos dedos.

Dizia o texto também que "cães vadios lhe serviriam de companhia aos espinhos da solidão" e que "as horas passavam mais lentamente que os goles que dava na bebericagem de um copo sebento e pastoso", como se o copo cheio a se tornar vazio, fosse ou servisse de medida de tempo...

Até que em determinada frase, que reclamava de alguém, uma expressão deixou-me mais perplexo: "... esse amor de mulher solúvel…

Mastigando as bochechas, parei de ler.

- Péra aí! Alguma coisa está errada. Mulher solúvel?

Puxei as frases sem sentido e as reli. Por três vezes. E só aí decifrei o que escrevera na escuridão dos sentimentos não correspondidos.

E não me fiz de rogado; perdoei-me pela pasmaceira etílica deixada envelhecer bêbada nas folhas babadas, pois me lembrei que a velha máquina desalinhada, certa vez, caiu ao chão, deixando escapar, para nunca mais ser encontrada, a bendita letra "V".

No êxtase alcoólico, a letra sumida foi substituída pelo "S", como a cuidar da agonia que a inspiração impunha, livrando, naquele momento, o rapazote de bem-querer, amarrotado pelo desprezo de uma mulher, ao seu ver, volúvel.

O amor contém razões que nem ele mesmo conhece - dizem, mas sempre deixa um rastro, às vezes amarelado e malcheiroso, que pode se tornar incógnita quando se mistura letra que se perdera... vivências que marcaram... paixões evaporadas com o álcool ingerido no ar pesado do quarto de solteiro, de república de jovens esperançosos. 

E enamorados.

Costumeiramente embriagados.
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* Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor
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Vereda da Poesia = 177


Trova de
MÚCIO SCÉVOLA LOPES TEIXEIRA
Porto Alegre/RS

Ante o chão amplo e fecundo
que nos guarda o teto e o pão,
qualquer queixa contra o mundo
é simples ingratidão.
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Poema de
VIRIATO DA CRUZ
Porto Amboim/ Angola, 1928 – 1973, Pequim/ China

Namoro

     Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
     e com letra bonita eu disse ela tinha
     um sorrir luminoso tão quente e gaiato
     como o sol de Novembro brincando
     de artista nas acácias floridas
     espalhando diamantes na fímbria do mar
     e dando calor ao sumo das mangas

     Sua pele macia - era sumaúma...
     Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas
     sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo
     tão rijo e tão doce - como o maboque*...
     Seus seios, laranjas - laranjas do Loje
     seus dentes... - marfim...
             Mandei-lhe essa carta
             e ela disse que não.

     Mandei-lhe um cartão
     que o amigo Maninho tipografou:
     "Por ti sofre o meu coração"
     Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
             E ela o canto do NÃO dobrou

     Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
     pedindo, rogando de joelhos no chão
     pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigênia,
     me desse a ventura do seu namoro...
             E ela disse que não.

     Levei á Avo Chica, quimbanda de fama
     a areia da marca que o seu pé deixou
     para que fizesse um feitiço forte e seguro
     que nela nascesse um amor como o meu...
             E o feitiço falhou.

     Esperei-a de tarde, á porta da fabrica,
     ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
     paguei-lhe doces na calçada da Missão,
     ficamos num banco do largo da Estátua,
     afaguei-lhe as mãos...
     falei-lhe de amor... e ela disse que não.

     Andei barbudo, sujo e descalço,
     como um mona-ngamba**.
     Procuraram por mim
     "-Não viu...(ai, não viu...?) não viu Benjamim?"
     E perdido me deram no morro da Samba.

     Para me distrair
     levaram-me ao baile do Sô Januario
     mas ela lá estava num canto a rir
     contando o meu caso
     as moças mais lindas do Bairro Operário.

     Tocaram uma rumba - dancei com ela
     e num passo maluco voamos na sala
     qual uma estrela riscando o céu!
     E a malta gritou: "Aí Benjamim !"
     Olhei-a nos olhos - sorriu para mim
     pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.
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* Maboque = Fruto do maboqueiro, de tamanho e cor de uma laranja, casca dura e polpa aromática, sumarenta e agridoce. (Dic. Priberam)
** Mona-ngamba = serviçal, moço de fretes. (Infopedia)
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Trova de
SARAH RODRIGUES
Belém/PA

Perguntei para uma estrela
que encontrei à beira-mar:
- O que faço para tê-la
se você pertence ao mar?
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Poema de
EUGÉNIO DE SÁ
Lisboa/ Portugal

Fome de Beijos

Nunca gostei de beijos de rotina
Aqueles beijos fugazes, não sentidos
Que se dão como acenos devolvidos
Sem emoções brilhando na retina

Não! — Os beijos devem vir do coração
Sejam aqueles que trocam as salivas
Ou os castos, que damos a um irmão
Todos são comoções em nossas vidas

Pois que o beijar é um ato de nobreza
De quem faz desse gesto um ponto alto
Para mostrar um querer, sem sutileza

E então o Ser beijado, em sobressalto
Perde a noção de tudo, e em ligeireza
Responde com fulgor ao doce assalto!

Beijos que tornam-se  rotina
São beijos de amores mornos
Gosto de beijos ardentes, quentes
Que dão início a  prelúdios de amor
= = = = = = 

Trova de
CORNÉLIO PIRES 
Tietê/SP (1884 – 1958)

Da multidão dos enfermos
que sempre busco rever,
o doente mais doente
é o que não sabe sofrer.
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Poema de
AFONSO FÉLIX DE SOUZA
Jaraguá/GO, 1925 – 2002, Rio de Janeiro/RJ

Canção da Noite Nua

Noite sem alma
Noite sem vozes roucas
assombrando o silencio.
Noite nua.

Passos incertos
duro como o asfalto
e pensamentos leves
guiando-me os passos.
Indiferença do luar.
Na rua triste
paradas súbitas.
No olhar o medo ingênuo
da infância que não morre.

Risos de mulher
atrás da janela fechada.
Desejos rápidos
a apressar os passos...
A memória murmura
confidências,
que o silêncio apaga.

Noite sem véu.
Noite que tem a clara nudez da alma
que sonha no escuro.
Desejos leves de amor a guiar os passos
e essa ânsia incontida de sonhar
que como a infância
não morre nunca.
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Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Em cada beijo roubado,
que roubo de ti, meu bem,
sinto o gosto do pecado
que o beijo roubado tem.
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Poema de
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Mariana/MG (1918 – 2008) Rio de Janeiro/RJ

Canção 

O leve vento me leve
Para as praias de além-mar.
O leve vento me leve...
Para em luzes me banhar.
Quero um sopro de inocência
Que afoga os caminhos mortos
Onde estaria a saudade
E treme na luz das velas
Nos velórios de além-mar?

Quero fugir da loucura
Que prende os corpos no mar.

Em tudo que me esperava
Jamais pureza encontrei.
Fui gemido, tédio, noite,
Fui vagabundo e fui rei.
E me buscando no mundo
No mundo não me encontrei.
O leve vento me leve,
Para as praias de além-mar.
O leve vento me leve,
Me deste em praias macias,
Me deste as bocas macias
Nas namoradas do mar.
Quero um sopro de inocência .
Para em luzes me banhar.
= = = = = = 

Trova de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Não prometo, em nossa história,
meu amor por toda a vida,
porque a vida é transitória,
e meu amor, sem medida!...
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Poema de 
ANTONIO ROBERTO FERNANDES
São Fidélis/RJ (1945 – 2008)

Mas...

E eu que achei que a lua não brilhasse
Sobre os mortos no campo da guerrilha
Sobre a relva que encobre a armadilha
Ou sobre o esconderijo da quadrilha,
Mas, brilha...

Eu achei que nenhum pássaro cantasse
Se um lavrador não mais colhe o que planta
Se uma família vai dormir sem janta
Com um soluço preso na garganta,
Mas, canta...

Também pensei que a chuva não regasse
A folha cujo leite queima e cega
A carnívora flor que o inseto pega
Ou o espinho oculto na macega,
Mas, rega...

Pensei também, que o orvalho não beijasse.
A venenosa cobra que rasteja
No silêncio da noite sertaneja
Sobre as ruínas da esquecida igreja,
Mas, beija...

Imaginei que a água não lavasse
O chicote que em sangue se deprava
Quando de forma monstruosa e brava
Abre trilha de dor na pele escrava
Mas, lava...

Apostei que nenhuma borboleta
Por ser um vivo exemplo de esperança,
Dançaria contente, leve e mansa.
Sobre o túmulo
Em flor de uma criança,
Mas, dança...

Por isso achei que eu não mais fizesse
Poema algum após tanto embaraço
Tanta decepção, tanto cansaço.
E tanta esperança em vão por teu abraço,
Mas, faço...
= = = = = = 

Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Melhor sorrir na pobreza
que ser rico na apatia,
pois fartura sobre a mesa
não enche a vida vazia!
= = = = = = 

Hino de
PAUDALHO/PE

Paudalho linda flor da mata
som da serenata que embalou Ceci.
Paudalho recanto ditoso
berço glorioso do imortal Poti.

Paudalho terra dos engenhos,
tem o céus empenhos a te coroar.
Paudalho página de glória
que o livro da história sabe embelezar.

Ah na alma do teu povo
um encanto sempre novo
um requinte de bondade
que tuas portas vão abrindo para a hospitalidade.

Paudalho linda flor da mata
som da serenata que embalou Ceci.
Paudalho recanto ditoso
berço glorioso do imortal Poti.
= = = = = = 

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Não condeno a caminhada
culpo sim, meus passos falhos.
Foi bem larga a minha estrada
fui eu quem buscou atalhos.
= = = = = = 

Poema de
ALEXANDRE O’NEILL
Lisboa/Portugal (1924 - 1986) 

Há palavras que nos beijam

 Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

 Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

 De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

 (O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

 Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
= = = = = = = = =  

Trova de
GERALDO PIMENTA DE MORAES
Pouso Alegre/MG

Esperança - bem que enleva
nossa vida, no presente;
- um raio de luz na treva
do incerto amanhã da gente.
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Célio Simões* (Bicho de sete cabeças)

Trabalhei quase a vida inteira, sustentei minha numerosa família e exerci com dignidade minha profissão de advogado fazendo uso de uma máquina datilográfica Remington cuidadosamente guardada até hoje, com a qual nos fins de semana escrevi muitas das crônicas que publiquei em vários jornais e revistas.

De repente, passei a encontrar dificuldade de comprar as fitas de cores pretas e vermelhas, os carretéis e até mesmo garimpar alguém que se dispusesse a proceder a uma prosaica limpeza no equipamento, pois foram desaparecendo os mecanógrafos, na mesma proporção que sumiram os sapateiros, os alfaiates, os leiteiros que vendiam seu produto de porta em porta e tantas outras atividades. Essa cruel realidade, que eliminou os datilógrafos da vida nacional, tem um responsável, que veio para ficar e se tornar irreversível em nosso dia a dia – o computador.

Resisti o quanto pude, porém paulatinamente fui sendo cercado por essa engenhoca, em casa, no escritório, nos caixas eletrônicos dos bancos, nas salas de audiências (“… doutor, a ata o senhor recebe pela internet”, dizem as secretárias…), nos fóruns e ofícios de justiça, nos Tribunais, no Ministério Público, enfim, em todas as frentes das quais não pode fugir quem vive numa cidade e exerce qualquer atividade profissional, em especial, a advocacia. Até médico não olha mais para o paciente. Este diz onde dói e o doutor consulta de imediato o monitor, como que a perguntar: – E aí amigão, o que esse sujeito tem?…

Depois de muita insistência e com uma baita desconfiança, guardei a máquina datilográfica e passei a dar os primeiros passos na computação, sob a orientação dos meus três filhos, cada qual deles o mais solícito para incutir na minha cabeça dura os conceitos mais elementares daquele avanço tecnológico, sem o qual atualmente nada se faz. Passaram eles mais de dois anos tentando, até chegarem à mesma conclusão:

– “Ele tem dificuldade de aprender e quando aprende, esquece depressa…”.

Todos desistiram, cada qual com uma desculpa esfarrapada. Falta de tempo, um. Excesso de tarefas, outro. Carência de paciência, o terceiro. Recebi da minha mulher um sábio conselho:

– Por que você não se matricula num curso de computação?

– Pelo simples fato de que não vou pagar mico nesta idade.

Teimei mais um ano remando contra a maré. Dependia de tudo e de todos para simplesmente ligar o aparelho, quanto mais realizar as operações que me permitiriam redigir um singelo texto para anexar a um processo, cuja impressão ficava para o dia seguinte, quando alguém colocava a impressora para funcionar. Assim, temendo perdas, os prazos judiciais para mim passaram a acabar na véspera.

Chegou o dia em que eu mesmo fiquei convencido da necessidade de buscar orientação com gente do ramo e sorrateiramente, como que pedindo desculpa para mim mesmo, matriculei-me sexta-feira em uma escola existente a uma quadra de casa, que me permitiria ir a pé, sem o sufoco da falta de estacionamento, assim libertando-me da ditadura dos flanelinhas.

Atendeu-me um cidadão magrinho e diáfano, cabelos louros em desalinho, olhar esperto, estatura mediana e pele esbranquiçada como se nunca tivesse ido à rua ou a uma praia tomar sol, parecendo personagem surgido de um museu de cera. Mas era muito educado. Após acertarmos o preço do curso, marcou minha primeira aula para a segunda-feira subsequente. E ante a revelação de que eu nada entendia de computadores, procurou me acalmar:

– Fique tranquilo. Comigo, em 30 dias, o senhor vai dar um show!

Saí dali entusiasmado, raciocinando com meus botões: – “Essa molecada vai ver só se ainda vou viver de favores…”. Ao mesmo tempo, aquele aceno de mil facilidades despertou-me a desconfiança, pois tenho severas restrições contra bazófias e recebo com reserva as promessas de milagrosas vantagens, sejam de vendedores ou prestadores de serviços, capazes de tudo para faturar em cima dos incautos.

Segunda-feira, 19h, lá estava eu firme na minha carteira, a cara no chão de vergonha, porque em torno de mim só tinham jovens, os quais me olhavam como se eu fosse um extraterrestre. Mais um pouco e entraram na sala diversos instrutores, inclusive o “museu de cera” que tratara antes comigo. Efusivo, cumprimentou-me, fez-me repetir alto meu nome a guisa de apresentação e para não me rotular de velho, apelou para um eufemismo:

– Atenção, nosso colega “veterano” nada sabe de computador. Vamos ajudá-lo a se tornar um craque…

Ninguém riu, e eu muito menos, pois estardalhaço em torno do meu analfabetismo virtual era tudo o que eu não queria naquele momento. O tal sujeito, em vez de ir embora, puxou uma cadeira, sentou ao meu lado em frente à tela de um computador e iniciou a sessão de tortura:

– Hoje nós vamos estudar um pouco de HARDWARE, SOFTWARE, SLOTS e BARRAMENTO. Hardware são todas as partes físicas que formam o computador, sabia?

– Se o senhor está dizendo…

– Placa mãe ou Mother Board é o elemento central de um microcomputador. É uma placa onde se encontra o micro e vários componentes que fazem a comunicação entre ele com os meios periféricos externos e internos, entendeu?

– Parceiro, dá pra deixar a mãe fora dessa história?

– Calma, não é isso que o senhor está pensando. A mãe é a do computador, inserida numa placa…

– Ainda bem parente, senão não ia prestar…

– Então vamos continuar. Além da placa mãe (…a dele, por via das dúvidas…), temos ainda a placa de vídeo, a placa de som, a placa de fax/modem e a placa de rede. Já ouviu falar delas?

– De rede já, eu nasci dentro de uma…

– O senhor é um gozador. Lembre que esta é apenas nossa primeira aula e temos que acelerar. Não se esqueça dos 30 dias que lhe falei – disse o professor – abrindo uma apostila e continuando a aula:

– Vamos falar um pouco de SOFTWARE. O senhor sabe que a isso se chama um conjunto de instruções que juntas tentam resolver problemas do cotidiano. Eles possuem uma sequência que são construídas através de uma linguagem de programação, “fácil de ser assimilada”, denominadas de aplicativos: WORD, EXCEL, CALCULADORA, AUTOCAD, PHOTOSHOP, WINDOWS, LINUX, UNIX, SOLARES, CD-ROM PARA APRENDER O ALFABETO, SHOW DO MILHÃO, etc.

Comecei a me sentir tonto. Um suor gelado inundou minha pele, mas procurei mostrar interesse:

– Mestre, que mal lhe pergunte, esse tal de Show do Milhão tem alguma coisa a ver com o Sílvio Santos?

– Não disse que o senhor é um gozador?…

– Sabe como é; a mensalidade é cara e eu tenho o direito de perguntar…

– Fique frio, disse o instrutor. Vamos aproveitar o tempo que resta (fez um gesto com o braço e apertou a vista olhando para o relógio de pulso) para conversarmos um pouco sobre Internet. Já ouviu falar?

– Já, mas não manjo nada. Só sei escrever na minha Remington…

– O que é isso?

– Nada, deixe pra lá…

– Bem, como eu ia dizendo, na Internet tem a HOMEPAGE, o DOWNLOAD, o UPLOAD, os SITES, os LINKS, HYPERLINKS, a praga dos SPAMS, SHAREWARE, FREEWARE, SITES DE BUSCA e PESQUISA, LISTA DE DISCUSSÃO, E-COMERCE, ANTIVIRUS, FIREWALL, VIRUS, JAVA, HTML e os COOKIES. Qual deles é do seu conhecimento?

– Professor, o senhor ainda não entendeu. Não conheço nada de computador, quanto mais de Internet.

– Perdão, tinha me esquecido. Vou fazer um resumo do que é isso: – A Internet reúne mais de um bilhão de pessoas, chamadas de internautas, funcionando com perfeição sem controle de ninguém. Uma entidade privada, a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers, com sede na Califórnia, sem intuito de lucro, faz a administração dos endereços da web, embora a Internet que hoje conhecemos, a World Wide Web, tenha sido inventada em Genebra, na Suíça, pela maior organização científica mundial, a Conseil Européen pour La Recherche Nucléaire, que recentemente criou o colisor de hádrons, um acelerador de partículas que pretende fazer colidir prótons em busca de vida em outras dimensões. Ficou claro agora?

– O pessoal de Óbidos já sabe disso?

– Óbidos? Não sei. Nunca estive na Ilha do Marajó…

– Olha aqui cara, vê se não sacaneia. É a minha cidade e não fica no Marajó. Tu pode ser bamba na informática, mas em geografia…

– Não se aborreça, não sou paraense, cheguei há pouco a Belém e acho que estou indo rápido demais. Voltemos apenas ao computador, para conhecimento das barras de ferramentas. Vamos descobrir os principais recursos existentes na barra de menus como ALT + A; ALT + E; ALT + X; ALT + I; ALT + F; ALT + M; ALT + B; ALT + J e ALT + U. Há também um detalhe importante, que o senhor deve ter sempre na cabeça. São os BITS e os BYTES, pois eles calculam o tamanho das informações. O BIT é a menor unidade de processamento de dados. Um BYTE é o conjunto de 8 bits, ou seja, 1 BYTE é igual a 8 BITS. Partindo dessa certeza, é fácil calcular que 1 KB é igual a 1024 Bytes; 01 MB é igual a 1024 KB e 1 GB é igual a 1024 MB. Eu vivo dia e noite na frente do computador e sei tudo isso de memória (“… não é a toa que esse treco é da cor de uma estearina, pensei…”). Alguma dúvida?

– Eu já posso ir pra casa?

– Claro que sim. Acho que o senhor foi muito bem para quem nada sabia. Desligue o computador e até amanhã.

Quando, respirando aliviado, já me dirigia à porta de saída, olhei para trás e vi o “museu de cera” tirando um pedaço de papel do bolso e me chamando pelo nome:

– Sim?…

– Aproveite as horas de folga para decorar uma coisa importante. Está escrito nesse papel, que dou para todos os meus alunos. Recoloquei as lentes e li: TIPOS DE CÓDIGOS: .org: site organizacional; .gov: site governamental; .edu: site educacional; .mil: site militar; .br: site brasileiro; .ar: site argentino; .us: site norte americano; .jp: site japonês. Por Deus que está no céu pensei, horas de folga eu não tenho; e pra que eu ia querer site americano, argentino ou japonês? Meu único objetivo era escrever minhas petições, só isso.

Cheguei em casa arrasado. Só não dei um beijo na minha máquina de datilografar porque ela estava num canto do armário, coberta de poeira e cheia de teia de aranha. Fiquei saudoso das aulas no teclado, na Escola São Francisco, de propriedade da minha querida mãe: A S D F G e pronto! A gente ia aprendendo as teclas por fileiras, inicialmente da esquerda para a direita, depois os números e um dia fazíamos a prova, quando o risco de reprovação era remoto e ocorria apenas se o candidato fosse muito bronco. Tudo sem a torrente de explicações com que fui bombardeado naquela maldita aula.

Perdi o dinheiro da matrícula, porém nunca mais coloquei os pés na tal escola, que acabou falindo, pois no local hoje funciona uma lanchonete. Confessei minha desolação ao meu filho caçula, que penalizado me deu de presente um computador de terceira mão, prontificando-se a me ensinar tudo nas nossas raras horas ociosas.

– Toma, pai. Vai aprendendo neste…

Tenho evoluído aos poucos. No escritório, já redijo e imprimo minhas petições sem maiores dificuldades e por cautela contratei um técnico para os reparos nessa máquina maravilhosa, pois em nossos frequentes conflitos e desacertos, invariavelmente saio derrotado. Mesmo a tal internet não é um bicho de sete cabeças. Vivia esquecendo minha senha, até decorá-la sem atropelos. Criei um e-mail fácil de memorizar, pois era o nome do nosso cachorro de estimação, somente trocado quando o afável vira lata morreu de velhice. Estou convencido que dessa ferramenta não posso prescindir para o exercício profissional. Fazer o quê?

Cada vez menos me lembro da velha Remington, que continua em completo desuso. Meu novo amor agora é o laptop da Itautec, mesmo com evidentes sinais de fadiga. A bateria pifou de vez e ele somente funciona ligado diretamente à tomada, o que prejudica sua portabilidade. Levei-o a uma loja especializada para fazer a devida substituição, mas não houve jeito. O atendente foi direto ao ponto:

– Não se fabrica mais bateria para esse tipo de computador e se fabricasse, não ia compensar. O preço seria quase igual a um computador novo. Sugiro que o senhor aproveite nossa promoção.

– Moço, não é bem o preço, mas eu já me acostumei com este.

– Mas a diferença é pequena para um novo. Muda apenas o sistema operacional.

– Como assim?

– Agora só vendemos Windows 7. O seu ainda é Windows XP.

– E onde está o “XP” da questão?

– É a interface!

Interface? Lembrei imediatamente do “museu de cera”. Ia começar tudo de novo. Agradeci, fui saindo à francesa e voltei para casa acariciando o velho laptop pousado no meu colo, enquanto dirigia o carro com apenas uma das mãos. Nenhum guarda me multou por causa disso…
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(*) O autor é advogado, escritor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Artística e Literária de Óbidos, da Confraria Brasileira de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós.

Fonte: Uruá Tapera. 08 julho 2021
https://uruatapera.com/bicho-de-sete-cabecas-3/ 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Estante de Livros (“A Viúva Simões”, de Júlia Lopes de Almeida)

"A Viúva Simões" (1897) é um romance da escritora brasileira Júlia Lopes de Almeida, considerado um clássico da literatura brasileira.

RESUMO

A história segue a vida de Carolina Simões, uma jovem viúva que retorna ao Rio de Janeiro após a morte do marido. Carolina é uma mulher inteligente, independente e determinada, que busca reconstruir sua vida.

ENREDO

1. Retorno ao Rio: 
Carolina volta para a casa de sua família, onde encontra seu pai doente e sua irmã solteira.

2. Conflitos familiares: 
Carolina enfrenta pressões para se casar novamente, mas resiste à ideia.

3. Amizade com Fernando: 
Conhece Fernando Seixas, um jovem escritor, com quem desenvolve uma estreita amizade.

4. Desenvolvimento sentimental: 
Carolina e Fernando começam a nutrir sentimentos um pelo outro.

5. Obstáculos sociais: 
A sociedade não aceita o relacionamento, devido à diferença de classe social.

6. Crise e resolução: 
Carolina enfrenta uma crise pessoal, mas finalmente encontra a felicidade com Fernando.

ANÁLISE

Crítica social: 

O livro critica a sociedade brasileira da época, abordando temas como:
- A opressão feminina.
- A hipocrisia da classe alta.
- A importância da educação.

Feminismo: 
Carolina é um exemplo de mulher independente e autônoma, lutando contra as convenções sociais.

Amor e liberdade: 
O romance explora a busca pela felicidade e liberdade individual.

Identidade feminina: 
Carolina enfrenta desafios para manter sua identidade em uma sociedade patriarcal.

Realismo literário: 
O livro apresenta uma visão realista da vida cotidiana no Rio de Janeiro da época.

Personagens principais

Carolina Simões: Protagonista, viúva, inteligente e independente.

Fernando Seixas: Jovem escritor, amigo e posteriormente namorado de Carolina.

Sr. Simões: Pai de Carolina, doente e conservador.

Irmã de Carolina: Solteira e dependente do pai.

Estilo e influências

1. Realismo literário: Influenciado por autores como Gustave Flaubert e Émile Zola.

2. Naturalismo: Aborda temas sociais e psicológicos.

3. Romantismo: Explora o amor e a liberdade individual.

IMPACTO CULTURAL

1. Influência na literatura brasileira: "A Viúva Simões" inspirou gerações de escritores brasileiros.

2. Representação feminina: O livro contribuiu para a representação mais realista da mulher brasileira na literatura.

3. Crítica social: O romance ajudou a questionar as convenções sociais da época.

Fonte: José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Daniel Maurício (Poética) 81

 

José Feldman (A Solidão das Cadeiras Vazias)

O crepitar dos fogos de artifício ecoava pela cidade, iluminando o céu noturno com cores vibrantes. Era a época do ano em que a alegria parecia contagiar a todos, mas, para muitos, essa festa era apenas um lembrete da solidão. Nas janelas empoeiradas de um pequeno apartamento, Dona Lucinda se acomodava em sua cadeira de balanço, o mesmo lugar que ocupava há décadas. Com um olhar distante, observava os fogos riscando o céu, enquanto lembranças do passado dançavam em sua mente.

Dona Lucinda era uma mulher de noventa anos, cheia de histórias e vivências. Nos tempos áureos, sua casa estava sempre repleta de risadas, familiares e amigos. Ela era a matriarca da família, a que organizava as festas, as ceias, a que contava histórias de um tempo em que o mundo parecia mais gentil. Mas, ao longo dos anos, as perdas foram se acumulando. Filhos que se foram, amigos que se afastaram, e a solidão, silenciosa, se instalou em sua vida.

Enquanto os fogos iluminavam o céu, Dona Lucinda não conseguia evitar a tristeza que a envolvia. A saudade apertava o seu peito. Lembrou-se de como costumava dançar com seu falecido marido, Jorge, sob as estrelas, com a música embalando seus sonhos. “Como o tempo passa”, pensou, enquanto uma lágrima escorria por seu rosto enrugado. O barulho da festa lá fora parecia distante, quase como um eco de um mundo que já não pertencia a ela.

A solidão dos mais velhos, especialmente nas festividades de fim de ano, é um tema que frequentemente passa despercebido na correria das celebrações. Muitas vezes, todos estão tão ocupados com os preparativos, os encontros e as festanças que esquecem que, do outro lado da rua, existem pessoas que gostariam de ser lembradas. A vida moderna, com sua agitação e individualismo, muitas vezes deixa para trás aqueles que construíram as bases da sociedade.

Dona Lucinda não era a única. Em cada esquina, havia histórias semelhantes. O senhor Manoel, que morava no andar de cima, também estava sozinho. Ele costumava ser um contador de histórias, mas agora suas narrativas eram apenas sussurros perdidos no vento. E a dona Rita, que sempre preparava os melhores doces para a ceia, agora se via cercada por caixas vazias, enquanto o cheiro de panetone no mercado a lembrava de tempos melhores.

A conscientização sobre a solidão dos mais velhos deve ser um esforço coletivo. Precisamos olhar para além de nossas vidas agitadas e enxergar aqueles que estão à nossa volta. Um simples gesto – uma visita, um telefonema, ou mesmo um convite para a ceia – pode fazer toda a diferença. É preciso que cada um de nós se lembre que, enquanto estamos cercados de amigos e familiares, há quem deseje apenas um pouco de companhia, quem apenas anseia por um ouvido atento.

Naquela noite de Ano Novo, ao invés de se deixar consumir pela tristeza, Dona Lucinda decidiu fazer algo diferente. Lembrou-se de um projeto que havia começado anos atrás: uma cartinha escrita à mão para cada um de seus netos, contando um pouco de suas memórias e desejos. Com um novo ânimo, pegou papel e caneta e começou a escrever. Enquanto as palavras fluíam, sentiu-se menos sozinha. Era como se, ao relembrar sua história, ela pudesse compartilhar um pedaço de sua vida com aqueles que amava.

A festa lá fora continuava, mas dentro do pequeno apartamento, um novo brilho começava a surgir. A cada palavra escrita, Dona Lucinda sentia que estava, de alguma forma, conectando-se novamente ao mundo. Assim como os fogos de artifício que iluminavam a noite, suas lembranças também brilhavam, oferecendo um vislumbre de esperança.

MORAL:
A vida continua, e a importância de estender a mão a quem está sozinho é uma responsabilidade que todos devemos carregar. Que no fim de ano, ao celebrarmos juntos, possamos sempre lembrar das cadeiras vazias e fazer delas, por um momento, lugares cheios de histórias e amor. Porque, no fundo, cada um de nós é um pouco da história do outro.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing