sábado, 28 de junho de 2025

José Feldman (O Caleidoscópio da Vida)


No caleidoscópio da vida,
vitórias e derrotas…
Ficamos na torcida.

A vida, se pensarmos bem, é um caleidoscópio em constante movimento. Cada giro traz uma nova imagem, uma nova combinação de cores e formas que refletem nossas experiências. Às vezes, as combinações são vibrantes e cheias de vitórias; em outras, sombrias, carregadas de derrotas. E assim seguimos, torcendo para que as próximas voltas nos apresentem algo belo.

Certa manhã, enquanto caminhava pelo parque, fui atraído por um grupo de crianças brincando. Elas riam, corriam e se divertiam sem preocupações. Observando-as, percebi que, em sua inocência, já viviam o ciclo natural de vitórias e derrotas. Cada vez que um dos pequenos caía, havia um misto de choro e risadas, mas logo se levantavam, prontos para tentar novamente. Era um espetáculo de resiliência, uma verdadeira aula de vida.

Parei para refletir. Ao longo dos anos, quantas vezes eu havia me deixado abater por uma derrota? Às vezes, o peso da frustração é tão grande que parece impossível levantar-se e continuar. Mas, ao mesmo tempo, cada vitória, por menor que fosse, traz consigo um novo ânimo, uma nova perspectiva. O caleidoscópio da vida nos ensina isso: que a beleza está tanto nas vitórias quanto nas derrotas.

O tempo passou, e eu me lembrei de um momento específico: a época em que decidi mudar de carreira. A transição foi repleta de desafios e incertezas. Havia dias em que me sentia invencível, acreditando que tinha feito a escolha certa. Em outros, era como se um peso insuportável me esmagasse, e a dúvida corroía minha confiança. Lembrei-me de como esperei ansiosamente por cada conquista, mas também como chorei por cada porta fechada.

A verdade é que, assim como as cores em um caleidoscópio, nossas experiências são interligadas. Cada vitória é resultado de derrotas superadas, e cada derrota é uma oportunidade disfarçada. Ao torcer por nós mesmos e por aqueles que amamos, estamos, na verdade, torcendo pelo ciclo da vida — um ciclo que nos ensina a valorizar cada passo do caminho.

No parque, uma das crianças, ao cair, olhou para os amigos e, com um sorriso travesso, disse: “Vamos de novo!” Aquela frase ecoou em minha mente, e percebi que, mesmo adultas, precisamos de um pouco dessa coragem infantil. Precisamos nos permitir falhar e nos levantar, torcendo sempre por dias melhores.

Conforme o sol se punha, as cores do céu começaram a mudar, criando um espetáculo deslumbrante. A partir daquele momento, entendi que, assim como o céu, a vida é cheia de nuances. As vitórias são as manhãs ensolaradas, enquanto as derrotas são os dias nublados. Ambas são necessárias para que possamos apreciar a beleza do que temos.

Ao deixar o parque, senti-me renovado. O caleidoscópio da vida continuaria girando, e eu estava pronto para enfrentar o que viesse, seja vitória ou derrota. Afinal, cada um de nós está sempre na torcida, esperando que a próxima volta traga novas cores e formas, sempre lembrando que, no final, é a jornada que realmente conta.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Poeta, trovador, escritor e gestor cultural, radicado no Paraná há 27 anos. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e professora da UEM, Alba Krishna, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, e depois em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul e Gralha Azul Trovadoresca. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou de sua autoria 4 ebooks.. Dezenas de premiações em poesias e trovas no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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A. A. de Assis (Nos outroras, em junho)


Nos antigamentes da vida, a vida era alegre e franca. Em junho bem mais, numa bem-humorada homenagem a Santo Antônio, São João e São Pedro.

A festança no terreiro. A fogueira no meio. O mastro com a estampa do santo na ponta. As barraquinhas de vender batata doce, caldo de cana, beijo de moça. As danças. As fantasias. A recitação.

Os casais formavam uma grande roda e cantavam modas. Após cada moda  faziam uma parada, jogavam um dos participantes no centro e o obrigavam a dizer um versinho. Como estes:

O meu pai é Juca Caco, 
minha mãe Caca Maria; 
ajuntando os cacos todos, 
sou filho da cacaria!

O meu chapéu tem três bicos, 
três bicos tem meu chapéu; 
se não tiver os três bicos, 
então não é meu chapéu!

Quando Deus moldou o homem, 
não precisou cerimônia: 
deu-lhe o corpo de um boneco 
e a cara de um sem-vergonha...

Fecha bem tua janela 
quando te fores deitar... 
No quarto de uma donzela, 
nem a lua pode entrar!

Não é por andar com livros 
que a gente fica doutor. 
As traças vivem com eles, 
devem sabe-los de cor.

Eu não canto por cantar 
nem por ser bom cantador. 
Canto pra matar saudades 
que tenho do meu amor.

Senhora tão bonitona, 
tira a roupa da janela... 
Vendo a roupa sem a dona 
penso na dona sem ela!

Machado de Assis proclama, 
e eu tenho que concordar: 
“É melhor cair de cama  
do que do terceiro andar”...

Cuidado, mocinha ingênua, 
com o que  diz o garotão. 
Discurso fácil nos lábios, 
mentira no coração!

O invejoso xinga e picha, 
mas de nada adianta o estrilo: 
– Quem nasceu pra lagartixa 
nunca chega a crocodilo!

– Viva São Pedro!

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 26-6-2025)
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A. A. DE ASSIS (Antonio Augusto de Assis), poeta, trovador, haicaísta, cronista, premiadíssimo em centenas de concursos nasceu em São Fidélis/RJ, em 1933. Radicou-se em Maringá/PR desde 1955. Lecionou no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá, aposentado. Foi jornalista, diretor dos jornais Tribuna de Maringá, Folha do Norte do Paraná e das revistas Novo Paraná (NP) e Aqui. Algumas publicações: Robson (poemas); Itinerário (poemas); Coleção Cadernos de A. A. de Assis - 10 vol. (crônicas, ensaios e poemas); Poêmica (poemas); Caderno de trovas; Tábua de trovas; A. A. de Assis - vida, verso e prosa (autobiografia e textos diversos). Em e-books: Triversos travessos (poesia); Novos triversos (poesia); Microcrônicas (textos curtos); A província do Guaíra (história), etc.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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Renato Benvindo Frata (Tempo que flui...)


Quando me lembro, mesmo sem querer, eu solto um palavrão. Desses cabeludos, que saem da boca, ricocheteiam nas paredes, para levantarem telhas. Geralmente começam com a letra P e, curiosamente, terminam com uma palavra começada também por outra letra P.

Eu sou do tempo do mata-borrão! Preciso dizer mais?

O mata-borrão, invariavelmente, nos levará às canetas de pau.

Sim, aquelas cilíndricas, feitas de madeira branca, que continham em uma das suas pontas um encaixe para as penas de aço. Mergulhava-se a pena em um tinteiro e estava aí o instrumento de escrita nas mãos das crianças do terceiro ano escolar.

As carteiras eram duplas, de sorte que ambos os colegas usavam o mesmo tinteiro, esse regularmente abastecido pela zeladora que vinha com um bule grande e despejava a tinta no pequeno recipiente.

Pois quem usou as benditas canetas de pau, também se serviu, necessariamente, do mata-borrão. Havia uma técnica – que só aprendemos com a prática – ao molhar a pena na dita tinta.

Bastava que enfiássemos apenas a ponta dela, uns 4mm, se muito, mas nunca ninguém nos falou, de sorte que a pena por inteiro ia no tal tinteiro, para sair pingando na carteira, na roupa e no papel.

Daí o uso do tal, cuja lembrança me arrepia.

Não, por tê-lo usado, afinal, era o suprassumo do chique com a absorção do excesso de tinta que a pena soltava, mas, pelo tempo que isso se deu: há uns sessenta e oito anos, época em que os primeiros fios ralos de bigode passavam por melhores tratos.

Caramba, meu! – Eu diria com sincera exclamação – o tempo passou! E estamos ainda aqui...

Da caneta de pau à caneta tinteiro foi um pulo, e possuir uma simbolizava duas coisas: que já havíamos aprendido a bem escrever e que podíamos carregá-la no bolso externo do paletó a mostrar posse, mesmo porque, embora faça tanto tempo, a vaidade – esse mal que persegue os humanos – é bem mais velha que nós. É cabeluda também! Como são os palavrões.

Por falar em vaidade, possuir hoje uma caneta dessas, ou se é colecionador, ou acumulador de quinquilharia, mesmo porque a escrita manual está se tornando escassa, em desuso a partir do quarto ano primário, substituída pelos teclados ou mensagens fonadas que, de certa forma, retira do ser humano sua humanidade. 

Vai-se o tempo, perde-se a simbiose entre as pessoas e infelizmente, entre professores e alunos.
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Bode expiatório”


Para começo de conversa, que fique claro que o “expiatório” do título deste é grafado com “X”, pois deriva do verbo "expiar", consequência punitiva decorrente de um erro ou falta grave que cometemos. Já "espiar", escrito com "S", significa espreitar, vigiar, espionar, observar atentamente qualquer coisa. 

O saudoso advogado, magistrado, intelectual, acadêmico e professor paraense Edgar Olyntho Contente, bolou um neologismo que usava para alertar, com bom humor, os alunos do velho Casarão sobre a rigorosa proibição de “espiolhar” a prova do colega que estivesse sentado ao lado... A grafia equivocada dessas duas palavras, lembra a costumeira confusão entre o "mas" e o "mais", de pronúncias semelhantes, mas de significados diferentes. Muitos esquecem que o "mas" (conjunção) deve ser usado para exprimir ideias opostas, fazendo às vezes de "porém", "contudo" ou "todavia"; e o "mais" (advérbio), indica um acréscimo, um aumento e é o oposto da palavra "menos". 

Voltando ao tema principal, a expressão "Bode expiatório" refere-se a alguém que suporta as consequências deletérias dos erros dos outros, pagando por eles. Sua origem remonta no ritual judeu do Livro dos Levíticos, do Antigo Testamento, em que Aarão, ao pôr as mãos sobre a cabeça de um bode, transmite para o animal todos os pecados do povo de Israel. 

E a partir dessa origem bíblica, passou a ser comum usarmos o termo “Bode expiatório” para caracterizar o suposto culpado por um ato reprovável, sem que tenha sido ele a cometê-lo. Tal expressão, que hoje faz parte da nossa linguagem, retrata situações em que uma pessoa ou um grupo de pessoas inocentes, foi ou está sendo responsabilizado por uma culpa inexistente.

Indivíduos ou grupos, carregam eles suposta culpa por deslizes, dramas ou problemas que não são exclusivamente seus e exemplos não faltam. Basta lembrar que os judeus, na sombria época da Alemanha nazista, foram considerados culpados pelos problemas econômicos e sociais da nação, virando “bodes expiatórios” para as desumanas atrocidades de Hitler. 

Ainda na Europa medieval, mulheres paupérrimas e marginalizadas foram acusadas de “bruxaria” e implacavelmente perseguidas e punidas, se tornando  “bodes expiatórios”, de vez que lhes eram atribuídas as causas de todos os problemas sociais, como doenças, vícios e até a frustração das colheitas. 

Ademais, durante a construção da ferrovia transcontinental nos EUA no Século XIX, os trabalhadores braçais chineses, além de explorados até à exaustão, posteriormente foram culpados por problemas econômicos e sociais, fazendo surgir leis discriminatórias, como a famigerada “Lei de Exclusão Chinesa”.

Tais exemplos mostram como transformar uma pessoa ou grupo de pessoas em “Bodes expiatórios”, vertente de odiosa discriminação, inaceitável violência e aberta injustiça. Na música popular brasileira, surgiu um “rap” (estilo musical que é expoente da cultura “hip hop”, no qual rimas e poesias são faladas, sobre uma barulhenta base rítmica), que usou a expressão “Bode expiatório” como título, abordando temas nitidamente sociais e políticos:

Racismo, preconceito, 
Discriminação
São maneiras de agir
Mostram a nós desunião
Não sei quem é perfeito
Mas eu vejo egoísmo
Não sei quem é perfeito
Mas eu vejo solidão

Bode expiatório!!! (repete 4 vezes)

Uma das características principais dos chamados “bodes expiatórios”, sejam eles grupos de pessoas ou indivíduos, é a falta de poder, a sua incapacidade de lutar contra aqueles que ostensivamente os oprimem, sendo-lhes difícil entender porque um grupo social ou uma pessoa canaliza suas frustrações e idiossincrasias contra os demais, só porque eles são diferentes ou desiguais.

A necessidade que a maioria tem de encontrar um culpado, mesmo sabendo que essa prática gera preconceito, discriminação, violência física e/ou psicológica, nos remete aos bancos escolares, onde tomamos conhecimento da existência de Tiradentes, mártir da independência do Brasil, espécie de Cristo cívico da nacionalidade, que pagou com a vida seu sonho de liberdade. 

O jornalista e escritor gaúcho Eduardo Bueno, no livro “Brasil: uma história” (editora Leya, 2013), afirma ter sido ele um “Bode expiatório” da Inconfidência Mineira, revolta motivada pela abusiva cobrança de impostos, e integrada por intelectuais, religiosos, militares e fazendeiros de Vila Rica (hoje Ouro Preto), da qual só ele, simples alferes do Regimento de Cavalaria de Minas Gerais (atual Polícia Militar), que nem dessa requintada elite fazia parte, experimentou a crueldade do títere português até mesmo depois de morto na forca, incumbindo-se a República, quase um século depois de seu suplício, de transformá-lo no herói nacional que nós até hoje reverenciamos.
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O autor é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras. Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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segunda-feira, 23 de junho de 2025

Asas da Poesia * 41 *

 

 Glosa de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

MOTE:
Ah, se eu fosse um construtor
eu faria estradas novas
incrustadas com amor;
pelo chão... milhões de trovas!
José Feldman (Floresta/PR)

GLOSA:
Ah, se eu fosse um construtor
de estradas, falou o Bardo;
faria, com muito amor,
estradas, sem qualquer fardo!

Pelas trilhas mais fechadas
eu faria estradas novas
com versos sinalizadas, 
e balizadas com trovas!

Disse mais o Trovador:
que as estradas, as faria
incrustadas com amor;
a mais pura pedraria!

Assim vive do Trovador,
construtor de estradas novas,
espalhando, com amor,
pelo chão... milhões de trovas!
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Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

A prata, em nosso cabelo, 
faz ninho se a idade vem... 
Que pena ela não fazê-lo 
em nossos bolsos também!
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Poema de
SONIA CARDOSO
Ponta Grossa/PR

Ir e vir 

Sim, já vesti os mortos 
E desvesti os vivos 
Acompanhei suas dores,
Melancolias profundas 
Caminhadas trôpegas 
E saídas jubilosas 
O ir e vir da vida.
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Trova de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Só tu, sabiá tristonho,
preso, conheces a dor,
da atroz solidão de um sonho
dos que vivem sem amor!
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Poema de
OLIVER FRIGGIERI
Floriana/Ilha de Malta

Somos água viva

Nossa história deve terminar algum dia
Como água do manancial que ao remanso chega
Ou pedra que rola até deter-se,
Como um pêndulo de relógio que ao fim se imobiliza.
Cada dia ao anoitecer, em nossas casas
Quando nossos filhos perguntam o que está passando
Trocamos de tema ao não ter resposta
E cantamos o estranho hino de nossa idade:

“Somos água viva e nada a bebe
Porque nas ondas se encontra o sal da destruição.
Somos pedras eliminadas dos altares
De Deuses enfermos que iam mortos desesperados
Em uma luta contra eles mesmos. Pêndulo somos
Que está a ponto de gastar o seu vigor.”

(tradução de José Feldman)
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

A saudade são alvos fiapos
dependurados na imensidão do pensamento 
nesse lugar bem cativo
onde a lembrança se faz eterna.
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Trova de
VICTOR MANUEL CAPELA BATISTA
Barreiro/Portugal

A seca traz muita fome
enche todos de tristeza,
para gente que mal come
o porvir é uma incerteza.
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Soneto de
LUIZ ANTONIO CARDOSO
Taubaté/SP

Chegaste…
 
Chegaste em meu destino, de repente,
com poucas palavrinhas, a sorrir.
Chegaste no meu mundo e docemente,
fizeste a minha vida refulgir.
 
Chegaste, completando o meu presente…
traçando com detalhes meu porvir.
fazendo renascer, efervescente,
a vida – que queria inexistir !
 
Chegaste, numa noite irretocável,
alimentando sonhos magistrais
de um tempo de carícia incomparável.
 
Chegaste… e amanheceu neste jardim…
e aquele que era triste? Não é mais…
fizeste florescer dentro de mim !
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Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Quando me entrego ao passado,
sinto-o tão perto e envolvente,
que – esquecido e enevoado –
longe de fato... é o presente.
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Poema de
VIRIATO DA CRUZ
Porto Amboim/ Angola, 1928 – 1973, Pequim/ China

Namoro

     Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
     e com letra bonita eu disse ela tinha
     um sorrir luminoso tão quente e gaiato
     como o sol de Novembro brincando
     de artista nas acácias floridas
     espalhando diamantes na fímbria do mar
     e dando calor ao sumo das mangas

     Sua pele macia - era sumaúma...
     Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas
     sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo
     tão rijo e tão doce - como o maboque*...
     Seus seios, laranjas - laranjas do Loje
     seus dentes... - marfim...
             Mandei-lhe essa carta
             e ela disse que não.

     Mandei-lhe um cartão
     que o amigo Maninho tipografou:
     "Por ti sofre o meu coração"
     Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
             E ela o canto do NÃO dobrou

     Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
     pedindo, rogando de joelhos no chão
     pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigênia,
     me desse a ventura do seu namoro...
             E ela disse que não.

     Levei á Avo Chica, quimbanda de fama
     a areia da marca que o seu pé deixou
     para que fizesse um feitiço forte e seguro
     que nela nascesse um amor como o meu...
             E o feitiço falhou.

     Esperei-a de tarde, á porta da fabrica,
     ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
     paguei-lhe doces na calçada da Missão,
     ficamos num banco do largo da Estátua,
     afaguei-lhe as mãos...
     falei-lhe de amor... e ela disse que não.

     Andei barbudo, sujo e descalço,
     como um mona-ngamba**.
     Procuraram por mim
     "-Não viu...(ai, não viu...?) não viu Benjamim?"
     E perdido me deram no morro da Samba.

     Para me distrair
     levaram-me ao baile do Sô Januario
     mas ela lá estava num canto a rir
     contando o meu caso
     as moças mais lindas do Bairro Operário.

     Tocaram uma rumba - dancei com ela
     e num passo maluco voamos na sala
     qual uma estrela riscando o céu!
     E a malta gritou: "Aí Benjamim !"
     Olhei-a nos olhos - sorriu para mim
     pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.
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* Maboque = Fruto do maboqueiro, de tamanho e cor de uma laranja, casca dura e polpa aromática, sumarenta e agridoce. (Dic. Priberam)
** Mona-ngamba = serviçal, moço de fretes. (Infopedia)
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Epigrama de
JOÃO AMADO PINHEIRO VIEGAS
Salvador/BA, 1865 – 1937

Entre as folhas amarelas,
a melhor é o Imparcial.
Mas, como paga em parcelas, 
só pode ser parcial.

(contra o jornal baiano O Imparcial que pagou a Pinheiro Viegas parceladamente um artigo de sua autoria) 
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Poema de
EUGÉNIO DE SÁ
Lisboa/ Portugal

Fome de Beijos

Nunca gostei de beijos de rotina
Aqueles beijos fugazes, não sentidos
Que se dão como acenos devolvidos
Sem emoções brilhando na retina

Não! — Os beijos devem vir do coração
Sejam aqueles que trocam as salivas
Ou os castos, que damos a um irmão
Todos são comoções em nossas vidas

Pois que o beijar é um ato de nobreza
De quem faz desse gesto um ponto alto
Para mostrar um querer, sem sutileza

E então o Ser beijado, em sobressalto
Perde a noção de tudo, e em ligeireza
Responde com fulgor ao doce assalto!

Beijos que tornam-se  rotina
São beijos de amores mornos
Gosto de beijos ardentes, quentes
Que dão início a  prelúdios de amor
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Trova de
CORNÉLIO PIRES 
Tietê/SP (1884 – 1958)

Da multidão dos enfermos
que sempre busco rever,
o doente mais doente
é o que não sabe sofrer.
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Poema de
AFONSO FÉLIX DE SOUZA
Jaraguá/GO, 1925 – 2002, Rio de Janeiro/RJ

Canção da Noite Nua

Noite sem alma
Noite sem vozes roucas
assombrando o silencio.
Noite nua.

Passos incertos
duro como o asfalto
e pensamentos leves
guiando-me os passos.
Indiferença do luar.
Na rua triste
paradas súbitas.
No olhar o medo ingênuo
da infância que não morre.

Risos de mulher
atrás da janela fechada.
Desejos rápidos
a apressar os passos...
A memória murmura
confidências,
que o silêncio apaga.

Noite sem véu.
Noite que tem a clara nudez da alma
que sonha no escuro.
Desejos leves de amor a guiar os passos
e essa ânsia incontida de sonhar
que como a infância
não morre nunca.
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Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Em cada beijo roubado,
que roubo de ti, meu bem,
sinto o gosto do pecado
que o beijo roubado tem.
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Poema de
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Mariana/MG (1918 – 2008) Rio de Janeiro/RJ

Canção 

O leve vento me leve
Para as praias de além-mar.
O leve vento me leve...
Para em luzes me banhar.
Quero um sopro de inocência
Que afoga os caminhos mortos
Onde estaria a saudade
E treme na luz das velas
Nos velórios de além-mar?

Quero fugir da loucura
Que prende os corpos no mar.

Em tudo que me esperava
Jamais pureza encontrei.
Fui gemido, tédio, noite,
Fui vagabundo e fui rei.
E me buscando no mundo
No mundo não me encontrei.
O leve vento me leve,
Para as praias de além-mar.
O leve vento me leve,
Me deste em praias macias,
Me deste as bocas macias
Nas namoradas do mar.
Quero um sopro de inocência .
Para em luzes me banhar.
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Trova de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Não prometo, em nossa história,
meu amor por toda a vida,
porque a vida é transitória,
e meu amor, sem medida!...
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Poema de 
ANTONIO ROBERTO FERNANDES
São Fidélis/RJ (1945 – 2008)

Mas...

E eu que achei que a lua não brilhasse
Sobre os mortos no campo da guerrilha
Sobre a relva que encobre a armadilha
Ou sobre o esconderijo da quadrilha,
Mas, brilha...

Eu achei que nenhum pássaro cantasse
Se um lavrador não mais colhe o que planta
Se uma família vai dormir sem janta
Com um soluço preso na garganta,
Mas, canta...

Também pensei que a chuva não regasse
A folha cujo leite queima e cega
A carnívora flor que o inseto pega
Ou o espinho oculto na macega,
Mas, rega...

Pensei também, que o orvalho não beijasse.
A venenosa cobra que rasteja
No silêncio da noite sertaneja
Sobre as ruínas da esquecida igreja,
Mas, beija...

Imaginei que a água não lavasse
O chicote que em sangue se deprava
Quando de forma monstruosa e brava
Abre trilha de dor na pele escrava
Mas, lava...

Apostei que nenhuma borboleta
Por ser um vivo exemplo de esperança,
Dançaria contente, leve e mansa.
Sobre o túmulo
Em flor de uma criança,
Mas, dança...

Por isso achei que eu não mais fizesse
Poema algum após tanto embaraço
Tanta decepção, tanto cansaço.
E tanta esperança em vão por teu abraço,
Mas, faço...
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Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Melhor sorrir na pobreza
que ser rico na apatia,
pois fartura sobre a mesa
não enche a vida vazia!
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Hino de
PAUDALHO/PE

Paudalho linda flor da mata
som da serenata que embalou Ceci.
Paudalho recanto ditoso
berço glorioso do imortal Poti.

Paudalho terra dos engenhos,
tem o céus empenhos a te coroar.
Paudalho página de glória
que o livro da história sabe embelezar.

Ah na alma do teu povo
um encanto sempre novo
um requinte de bondade
que tuas portas vão abrindo para a hospitalidade.

Paudalho linda flor da mata
som da serenata que embalou Ceci.
Paudalho recanto ditoso
berço glorioso do imortal Poti.
= = = = = = 

Trova de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Não condeno a caminhada
culpo sim, meus passos falhos.
Foi bem larga a minha estrada
fui eu quem buscou atalhos.
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Poema de
ALEXANDRE O’NEILL
Lisboa/Portugal (1924 - 1986) 

Há palavras que nos beijam

 Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

 Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

 De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

 (O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

 Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

A árvore do amor se planta
no centro do coração;
só a pode derrubar
o golpe da ingratidão.
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Poema de
CARLOS NOGUEIRA FINO
Évora/ Portugal

Umas vezes falavas-me dos rios

umas vezes falavas-me dos rios
e densas cicatrizes
e o sangue
procedia
outras vezes velava-te uma lâmpada
de faias e de enigmas
e a sombra
repousava
outras vezes o barro
originava
uma erupção de insónia recidiva
no gume do incêndio onde jazias
nessas vezes a água do teu riso
abria nos meus pulsos uma rosa
e eu entontecia
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Poetrix*de
JOÃO PEDRO WAPLER
Porto Alegre/RS

mulher nua

na ponta do barbante 
a roupa se faz 
e depois morre no corpo de alguém. 
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* Poetrix (s.m.): poema com um máximo de trinta sílabas métricas, distribuídas em apenas uma estrofe, com três versos (terceto) e título.
 
CARACTERÍSTICAS
 
1 O poetrix é minimalista, ou seja, procura transmitir a mais completa mensagem em um menor número possível de palavras e sílabas.
2 O título é indispensável. Ele complementa e dá significado ao texto. Por não entrar na contagem de sílabas, permite diversas possibilidades ao autor.
3 Não existe rigor quanto à métrica ou rimas, mas o ritmo e a exploração da sonoridade das sílabas é desejável.
4 Metáforas e outras figuras de linguagem, assim como neologismos, devem ser elementos constitutivos do poetrix.
5 É essencial que haja uma interação autor/leitor provocada por mensagens subliminares ou lacunas textuais.
6 Os tempos verbais – pretérito, presente e futuro - podem ser utilizados indistintamente.
7 O autor, as personagens e o fato observado podem interagir criando, inclusive, condições supra-reais, cômicas ou ilógicas (nonsense).
8 O poetrix deve promover a multiplicidade de sentidos e/ou emoções, não se atendo necessariamente a um único significado.
(Coordenação Geral do Movimento Internacional Poetrix)
(Site: http://www.movimentopoetrix.com) 
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