quinta-feira, 14 de março de 2024

Abbie Phillips Walker (Os Elfos Da Chuva)

Os filhos dos Elfos da Chuva estavam trancados em suas casas há muito tempo, pois estava quente e os Elfos da Chuva não gostam de clima muito quente. Suas mães, as Nuvens de Chuva, acordaram uma manhã e descobriram que o sol não estava brilhando, então disseram aos filhos que poderiam descer e brincar um pouco na terra.

“Mas tomem cuidado, não vão todos de uma vez. Alguns de vocês podem ir, porque há muitos de vocês, vários milhões. A pobre terra ficaria bem populosa se todos os Elfos da Chuva descessem de uma vez.” Assim, algumas crianças de cada família Nuvem de Chuva saíram quando suas mães abriram a porta da nuvem. Desceram e chegaram à terra seca.

Oh, os jardins ficaram tão felizes em ver os Elfos da Chuva! As flores ergueram suas cabeças caídas e sorriram alegremente dando as boas-vindas. “Onde vocês estiveram?” Elas perguntaram. “Faz tanto tempo desde que vocês estiveram aqui que pensamos que vocês tinham se esquecido de nós.”

“Oh não, não nos esquecemos de vocês!” responderam os Elfos da Chuva. “Mas tem feito tanto calor que nossas mães não nos deixavam sair. Só podemos ficar por pouco tempo, porque temos muitos, muitos milhões de irmãos que também querem vir para o jardim. Portanto, agora devemos voltar, e a próxima chuva trará outros Elfos da Chuva.”

As pequenas flores ficaram tristes quando ouviram isso, porque estavam tão empoeiradas e com tanta sede que nunca se cansavam dos brilhantes Elfos da Chuva. “O que podemos fazer para mantê-los aqui?” elas sussurraram entre elas. “Se eles voltarem para as nuvens, os outros podem não vir. Oh, se ao menos a velha Bruxa do Vento viesse, ela poderia nos ajudar.”

“Ela também pode nos causar problemas”, disse um lírio esguio. “Acho melhor confiarmos nas mães Nuvens de Chuva, elas sabem o que é melhor fazer.”

Mas as palavras do pobre lírio passaram despercebidas, e uma malva-rosa alta foi convidada a encontrar a velha Bruxa do Vento e pedir-lhe para ajudar a manter os Elfos da Chuva abatidos o dia todo. A velha Bruxa do Vento riu de alegria ao ouvir o pedido, pois viu uma chance de fazer o mal e fazer parecer que estava tentando fazer o bem.

“Diga a essas lindas flores que elas terão os Elfos da Chuva o dia todo, e seus irmãos também”, disse ela à malva-rosa, e voou para as casas das Nuvens de Chuva. Ela caminhou com muita suavidade e cuidado pelas nuvens, pois sabia que se as mães das Nuvens de Chuva a ouvissem, imediatamente chamariam seus filhos para casa. Mas lentamente ela viu sua oportunidade, e enquanto as mães das Nuvens de Chuva estavam ocupadas, ela silenciosamente abriu a porta de cada nuvem, uma por uma, e acenou para os Elfos da Chuva.

“Passem rapidamente pela porta”, disse ela. “Seus irmãos estão se divertindo tanto que se esqueceram completamente de vocês. Eles realmente não vão voltar hoje, então venham e divirtam-se com eles.” Os pequenos Elfos da Chuva não achavam que precisavam esperar que suas mães lhes dissessem quando ir, eles queriam tanto sair. Eles primeiro desceram muito suavemente, plop, plop, mas depois esqueceram todos os avisos, pensando na diversão que teriam, e desceram, splash, splash, splash.

A princípio, as flores riam e dançavam de alegria, enquanto suas folhas e botões eram lavados novamente e suas pétalas sedentas recebiam bastante água. Mas depois de um tempo, os Elfos da Chuva vieram tão rapidamente e eram tantos, que as gotas ficaram tão grossas que as pétalas das flores caíram uma a uma. Então os caules também se dobraram sob a rápida chegada dos elfos. Logo o jardim estava tão cheio de água que a grama não era mais visível, enquanto a velha Bruxa do Vento dançava sobre suas cabeças e cacarejava de alegria com as travessuras que havia causado.

“Oh meu Deus! Eu não sabia que haviam tantos de vocês Elfos da Chuva!” gritou a malva-rosa alta quando seu caule quebrou e ela caiu na água.

“Eu estava com medo disso”, suspirou o lírio ao cair no chão. “Alguns Elfos da Chuva de cada vez é realmente o melhor. As mães Nuvens de Chuva sabem disso.”

Que alvoroço houve nas casas das Nuvens de Chuva quando as mães encontraram suas portas abertas! Elas correram chamando os Elfos da Chuva para voltarem para casa. Mas eles estavam tão envolvidos na diversão que estavam tendo, espirrando e respingando ao redor, que não ouviram. Gradualmente, o velho Homem do Sol também os viu, e não demorou muito para lançar seus raios quentes na velha Bruxa do Vento e afastá-la, e então os Elfos da Chuva também sentiram a respiração do Homem do Sol e lembraram de sua casa.

Um a um, eles desapareceram. Alguns se esconderam entre as rosas e outras flores deixadas no jardim, e outros tiveram a sorte de voltar para suas casas nas nuvens e para suas mães. Mas eles deixaram o jardim um lugar muito triste. “Quem pensou que haviam tantos Elfos da Chuva,” disse uma flor de aparência suja. “Eu nunca vou desejar que eles fiquem o dia todo novamente.”

“O lírio foi mais sábio do que pensávamos”, disse outro. “As mães Nuvens de Chuva sabe o que é melhor para nós, e da próxima vez que enviarem alguns de seus filhos, acho melhor nos contentarmos e não pedir a todos que venham aqui de uma vez.”

“Eu acho que você está certo”, suspirou a malva-rosa alta do chão onde ela havia caído. “Será que algum dia vou olhar por cima do muro de novo, eu me pergunto. Ninguém pode imaginar o tipo de queda que acabei de experimentar.”

Fonte> Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). Contos para crianças. 
Disponível em Domínio Público.

quarta-feira, 13 de março de 2024

Vanice Zimerman (Tela de versos) 31

 

Monsenhor Orivaldo Robles (Na infância tudo se decide)

Entre as muitas coisas que aprendi em criança, uma, que me marcou de modo indelével, foi a preocupação com o bem-estar alheio, com o respeito devido aos outros. Já tive oportunidade de comentar o conselho que o pai não se cansava de nos repetir: “Não sejais pesados a ninguém”. Embora homem do campo, que não frequentara bancos escolares, havia conquistado, não sei onde nem como, uma sabedoria que universidade nenhuma ensina. Era incapaz de conduta ou gesto que ferisse o direito ou até a simples preferência de alguém. Não que ele assumisse postura subserviente. Possuía clara consciência de seus direitos. Se deles chegava a abrir mão – como, mais de uma vez, pude comprovar, – fazia-o em razão de uma naturalidade que lhe brotava de dentro, de uma generosidade inata; nunca por covardia ou temor. Com tal protótipo sempre ao lado, enquanto nós crescíamos, seria mesmo difícil não nos deixarmos moldar por ele. Há gestos que ainda agora, há três décadas de sua morte, os filhos recusam praticar. Não tanto, creio, por virtude própria, senão mais pelo que ele nos deixou como exemplo. Vimos nele a importância de crer, desde muito cedo, que a grandeza de alguém independe de certos atributos hoje, infelizmente, muito valorizados.

Uma lição que o pai transmitiu com muita serenidade foi que todos nós somos iguais em natureza, mas cada um possui a própria individualidade. Aprendemos que é tolice comparar pessoas, pois, como dizem, “cada um é cada um”. Não me lembro de termos argumentado com ele que fulano tivesse algo e nós não. Ou que outros fizessem coisas que a nós não eram permitidas. Noções do dever e da consequente responsabilidade pessoal foram-nos incutidas de maneira suave, mas firme e diuturna. Mais com o jeito de agir do que com o uso de palavras.

Hoje mantenho hábitos vistos talvez como excêntricos. Se, na pressa, derrubo uma peça de roupa, ou água, leite ou suco, posso até seguir adiante, certo de que a empregada cuida disso. Mas não adianta: tenho que voltar para ajeitar, eu mesmo, as coisas. Quando estaciono o carro, observo se deixei espaço suficiente para o vizinho. Muitas vezes volto para estacionar melhor: vá que ele dirija mal como eu. Evito bater porta com força, falar alto, fazer ruído desnecessário: por que incomodar os outros? Cultivo ainda um monte de esquisitices de que não me consigo livrar. Fazer o quê? Desde criança aprendi que o outro é igual a mim. Não gosto de gente espaçosa, dona do mundo, que não respeita ninguém. Acredito que os outros também não gostem.

Não pretendo passar imagem de “bonzinho”. Nem ser melhor que ninguém. Tenho suficiente idade para não cultivar vaidades tolas. É que tive a felicidade de aprender em casa princípios válidos para qualquer tempo ou lugar.

Vivemos reclamando da violência que toma conta do mundo atual. Temos razão de reclamar. Do jeito que as coisas vão, que mundo as crianças de hoje vão encontrar quando forem adultas? Mas torná-lo menos violento depende de nós. Não há como fugir dessa evidência. Cada um é obrigado a pôr em prática aquilo que dele todos têm direito de esperar.

Começando pelos pais, que precisam convencer-se disto: tanto para o bem quanto para o mal, são eles os modelos para os filhos.

Fonte> Portal do Rigon. 15 março 2014
https://angelorigon.com.br/2014/03/15/na-infancia-tudo-se-decide/

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LXX


VERSOS QUE INDA NÃO FIZ...
 
MOTE:
Eu não sei bem se é loucura,
porém me sinto feliz,
imaginando a ternura
dos versos que inda não fiz!
José Lucas de Barros  
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

GLOSA:
Eu não sei bem se é loucura,
mas eu sonho ao poetar,
assim, me sinto segura,
tranquila no meu sonhar!
 
Eu fico, às vezes, tristonha,
porém me sinto feliz,
pois a alma de quem sonha
tem sempre um belo matiz!
 
Sinto que alcança a ventura
o meu doce coração,
imaginando a ternura
que lhe vem da inspiração!
 
Nessa emoção tão bonita,
descrevendo mil perfis,
sinto a ilusão infinita
dos versos que inda não fiz!
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GRITOS QUE NÃO DEI...

MOTE:
Minh’alma é tão conformada,
que, às vezes, nem mesmo eu sei
se a minha angústia é causada
pelos gritos que não dei!...
José Maria Machado de Araújo  
Vila Nova de Famalicão/Portugal, 1922 – 2004, Rio de Janeiro/RJ

GLOSA: 
Minh’alma é tão conformada,
é calma e dona de si,
nunca reclama de nada
e até chorando...sorri!
 
É tão grande a nostalgia
que, às vezes, nem mesmo eu sei
se é tristeza ou alegria,
se sou plebeu, ou sou rei!
 
A minha noite cansada
não sabe, nem quer saber,
se a minha angústia é causada
pelo ocaso do viver.
 
A nostalgia que eu sinto,
distante do que sonhei
faz-se de ecos, eu pressinto,
pelos gritos que não dei!…
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AJUDA...
 
MOTE:
Naquele instante sofrido
em que tudo perde o encanto,
ajuda é lenço estendido
para enxugar nosso pranto...
José Valdez de Castro Moura
Pindamonhangaba/SP

GLOSA:
Naquele instante sofrido
em que perdemos a calma,
nós ouvimos um gemido
que sai triste de nossa alma!
 
Quando o momento é de dor
em que tudo perde o encanto,
parece que o desamor
é a voz do nosso acalanto!
 
Mas um gesto comovido
nos impede de chorar...
ajuda é lenço estendido
nas mãos de quem sabe amar!
 
Essas mãos abençoadas
nos ajudam tanto, tanto...
nos vêm como mãos de fadas,
para enxugar nosso pranto…
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NAS POÇAS D’ÁGUA...
 
MOTE:
As poças d’água da rua
brincam de espelho quebrado,
há, em cada poça, uma lua,
e um belo céu estrelado!
Marlê Beatriz Araújo  
Viamão/RS

GLOSA:
As poças d’água da rua
são, em si, um universo,
uma imagem de alma nua,
num brilho estranho, diverso!
 
Refletindo mil belezas
brincam de espelho quebrado...
Unindo tantas  riquezas,
põem estrelas lado a lado!
 
Essa imagem acentua
a beleza refletida...
Há, em cada poça, uma lua,
que parece ali, caída!
 
Com meu olhar passional,
vejo, então, maravilhado
uma lua bem sensual
e um belo céu estrelado!
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APAGOU-SE A CHAMA
 
MOTE:
Soprei. Apagou-se a chama
disseste adeus em seguida.
– Quem diz adeus a quem ama,
diz adeus à própria vida!
Olegário Mariano 
Recife/PE, 1889 – 1958, Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
Soprei. Apagou-se a chama,
a escuridão se instalou
e o meu coração reclama
a tristeza em que ficou!
 
Senti meu mundo caindo,
disseste adeus em  seguida,
foste saindo... saindo...
na escuridão envolvida!
 
Foi o início do meu drama,
o fim da minha ilusão.
– Quem diz adeus a quem ama,
mata, em si, toda a afeição!
 
Fica só a nostalgia
quando a esperança é perdida.
Quem diz adeus à  alegria
diz adeus a própria vida!
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A ROSA
 
MOTE:
Capricho da natureza
a rosa é a flor predileta,
do criador da beleza,
que além de Deus...é poeta!
Sebas Sundfeld  
Pirassununga/SP, 1924 – 2015, Tambaú/SP

GLOSA:
Capricho da natureza
vemos na rosa, tão linda,
uma frágil fortaleza
com sua beleza infinda!
 
Vermelha...Branca...Amarela...
A rosa é a flor predileta,
se ofertada; nos revela
confissão de amor, secreta!
 
Mostra, então, toda a grandeza
e o poder da criação
do criador da beleza,
toda rosa, com emoção!
 
A rosa é pura poesia
na obra do grande esteta,
pois nos prova com alegria,
que além de Deus... é poeta!

Fonte> Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Setembro de 2003.

Renato Frata (Decisão)

Escrevi no quadro negro da tristeza que a partir daquele instante eu seria outro: sorriria com os olhos se os lábios, emperrados na amargura, não ajudassem. Quando a testa franze e a boca se fecha, sorrir com olhos é uma saída. E, ao fazê-lo, estarei como a mulher — qualquer mulher — que é fraca e forte e que sorri enquanto sua "alma se estorce amargurada"? e segue altiva sobre saltos a se dizer bela, a se mostrar e a se sentir como tal; a força que lhe dá a performance brota onde nascem os sentimentos e se gadanha (agarra ferozmente) no espaço que a coragem constrói. Deve ela ser copiada, absorvida e usada, já que para lhe descobrir os sentimentos basta que olhemos em seus olhos. Se estiverem brilhantes como sol, estará feliz, se não, como não existe meia-felicidade, sorrirá com eles marejados em opacidade.

Pois escrevi dessa maneira com o giz da consciência fincando uma a uma as letras na lousa e vi, depois, que deixei ali na decisão uma confissão desenhada pela dor e sofrimento da qual nunca havia assumido. Não sabia que a coragem da confissão eleva o valor do testemunho e que as palavras grafadas, via de regra, seriam um alerta só meu, feito para meu eu de olhaduras de queijo embolorado, que servirão para quando nesse quadro voltar a pousar os olhos, comprovando que a decisão de não sofrer foi um dia tomada. E por que a tomei?

Pela tristeza, por causa dela que compõe rostos tristes, macera-os, carcome-os com carquilhas (rugas),  riscam semblantes em acinzentado. Não, não mais lamentarei o passado que é irmão da tristeza. 

Esse não mais me morderá por dentro, não deixará machucados ou cicatrizes, nem me arrancará tremores ou suores. Não deixarei que escarafunche o ontem ou que se alimente  da própria comida. A partir dessa decisão, eu o deixarei no pó da longa estrada a quem chamo esquecimento, para que fique largado num canto qualquer do coração. Será uma rastejante vaga que não fere a areia; alisa-a para que a água da realidade passeie solta nos pensamentos a determinar o fim da tortura.

E uso aqui, nesse fim de decisão, um ponto final do recomeço a determinar o espantar do lamento, o alheamento de noites desdormidas que esgarçam quereres, impedem afazeres e infundem pesares...

Mas... sempre existirá um mas... conjunção ou restrição que vem contra o que se afirma. Tudo não passou de um conto de fadas - um sonho que trouxe a vontade da indiferença nas mãos formatadas em pétalas, mas que em gestos ondulantes se quebrou no crepúsculo da realidade.

Não se consegue espantar o lamento que o passado produz, nem transformar saudade em tênue lembrança: é como cinza que guarda a quentura, a ardência da brasa que o vento sopra desnudando o hoje, o que me leva a dizer que contra a tristeza, sim, se pode e se deve sorrir com os olhos, lábios e tez dando à feição a melhor aparência.

Mas é de se saber, porém, que seu efeito contra o ontem terá efemeridade de flor de mandacaru que se abre pomposa maravilhada à lua, mas que desfalece rapidamente perante a inclemência do sol da manhã.

Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. 
Enviado pelo autor

Hinos de Cidades Brasileiras (Treze Tílias/SC)


Erguendo os braços co´as algemas rotas
Na data augusta da libertação
O escravo outrora vil e acorrentado
Enflora as armas deste teu Brasão.

Deixando ao longe a escravatura branca
Louro imigrante aqui chegou
Liberto da opressão e agora livre
Semente, flor e fruto ele plantou.

Teu signo é herança de um falaz passado,
Mas hoje é lema do Brasil inteiro
A liberdade à sombra da Bandeira
Os pés na terra e os olhos no Cruzeiro.

Por sobre os troncos e os grilhões em sangue
E o azorrague de uma mão cruel
Colocou Deus as régias mãos bondosas
E a imagem redentora de Isabel.

Caminha, juventude, e acende a chama
E mostra ao mundo escravo o teu perfil.
És filho desta terra quem a ama.
A liberdade é filha do Brasil.

Não olhes nunca, heróica juventude
Lá no passado as marcas dos grilhões,
Há no futuro uma esperança nova
Tu és da primavera as florações.

Estante de Livros (“Pigmaleão”, de George Bernard Shaw)

A peça se passa na Inglaterra, no início do século XX. Em Covent Garden, os Eynsford Hills estão tentando pegar um táxi na chuva. Quando Freddy sai correndo para chamar um táxi que passava, ele derruba as flores de uma vendedora no chão. A florista, chamada Eliza, aceita da mãe de Freddy e do Coronel Pickering. Um homem observa que há um sujeito escrevendo o que ela está falando. Eliza o confronta, dizendo que não tinha feito nada de errado. O sujeito, que se chama Higgins, espanta a multidão imitando o sotaque dela e adivinhando a origem de cada um dos presentes. Pickering e Higgins se encontram e decidem ir jantar. Antes de partir, Higgins enche a cesta de flores de Eliza com dinheiro. Ela vai embora de táxi.

No dia seguinte, Eliza invade a casa de Higgins, e quer que ele lhe dê aulas de fonética. Pickering, que estava presente, duvida das habilidades de Higgins e aposta que ele não conseguirá fazê-la passar por uma dama da sociedade na recepção da Embaixada dali a um mês. Higgins aceita, e ordena que sua governanta leve Eliza para banhá-la e vesti-la apropriadamente. Mais tarde, chega Doolittle, pai de Eliza, que lhe pede algum pagamento. Higgins simpatiza com ele e lhe dá cinco libras.

Algum tempo depois, a Sra. Higgins está escrevendo algumas cartas em casa quando ela é interrompida pelo seu filho, que a deixa chocada ao contar que está trazendo uma florista para a casa dela. Os Eynsford Hills chegam para uma visita, e pouco depois chega Eliza, com suas novas maneiras e seu novo sotaque. Freddy fica fascinado imediatamente. Eliza comete o engano de praguejar e descrever o alcoolismo da sua tia, e acaba sendo mandada embora por Higgins. Clara pensa que praguejar está na moda e choca sua mãe ao praguejar na hora de sair. A Sra. Higgins critica Pickering e seu filho por não considerarem o que será feito de Eliza depois da experiência.

Na casa de Higgins, à meia-noite, Eliza entra, parecendo exausta. Higgins a ignora, procurando seus chinelos e se vangloriando sobre o sucesso dela em enganar a todos como se fosse seu próprio sucesso. Eliza começa a se enfurecer. Quando Higgins pergunta onde estão seus chinelos, Eliza os arremessa no rosto dele. Ela diz que não sabe mais o que fazer, agora que Higgins a transformou. Ele sugere que ela se case, e ela responde que costumava ser algo melhor que uma prostituta quando vendia flores. Eliza lança o anel que ele lhe dera na lareira. Higgins perde a paciência com ela e sai do quarto. Ela procura pelo anel nas cinzas.

A Sra. Higgins está no seu quarto de vestir quando seu filho entra e conta a ela que Eliza tinha fugido. Chega Doolittle. Ele conta que, depois de ter falado com Higgins, ele o recomendara como um grande pensador para um milionário americano, que morrera e deixara tudo para ele. Doolittle agora era da classe média e odiava cada minuto disso; sua amante o estava forçando a se casar com ela naquela tarde. Eliza desce as escadas – ela tinha fugido para a casa da Sra. Higgins – e Higgins parece embaraçado. Doolittle convida Pickering e a Sra. Higgins para o casamento e eles deixam Eliza e Higgins a sós para conversarem. Eliza diz que não quer ser tratada como um par de chinelos, e que Freddy escreve cartas de amor para ela todos os dias. Quando ela ameaça se tornar uma professora de fonética e usar os métodos de Higgins, ele diz que gosta da nova versão mais forte de Eliza. Ele deseja viver com ela e com Pickering como “três solteiros”.

A Sra. Higgins volta arrumada para o casamento e leva Eliza com ela. Higgins pede a Eliza para que ela resolva algumas coisas para ele, incluindo comprar um pouco de queijo e de presunto. Ela dá um último adeus a Higgins, que parece acreditar que ela seguirá suas ordens.

A peça termina com uma narrativa do destino dos personagens. Eliza conclui que Higgins está destinado a ser um eterno solteirão e ela se casa com Freddy. Com um presente do Coronel Pickering, Eliza abre uma floricultura. Clara decide que o casamento deles não ajudará seus próprios planos matrimoniais. Ela começa a ler H. G. Wells, frequenta os grupos de fãs do escritor e é convidada a trabalhar numa loja de móveis na esperança de um dia conhecê-lo pessoalmente, pois a proprietária também é fã dele. Freddy não é muito prático, e ele e Eliza precisam ter aulas de contabilidade para conduzir seu negócio. Eles conseguem ser bem sucedidos e vivem uma vida bastante confortável.

ANÁLISE

A famosa peça teatral Pigmalião não parte de uma ideia original. No entanto, isto não impediu que Shaw construísse uma obra original. O mote principal do texto vem de Metamorfoses, do poeta romano Ovídio, que se vale do mito de Pigmalião, rei de Chipre, obcecado escultor que, desiludido com as mulheres do seu reino, resolve esculpir para si a mulher perfeita. E a esculpe tão perfeita e tão bela que acaba se apaixonando pela sua estátua. Afrodite, a deusa da beleza e do amor, apiedando-se de Pigmalião, transforma a escultura em mulher, de carne e osso. Portanto, o que nasceu de uma idealização, torna-se realidade. Pigmalião de Ovídio casa-se com sua Galateia e com ela tem filhos.

Shaw, brilhantemente, cria seu próprio Pigmalião, o intragável, arrogante, preconceituoso, impetuoso e cômico professor Higgins. Henry Higgins se dedica ao estudo da língua inglesa, especializando-se em fonética, o que fez dele um profundo conhecedor dos dialetos universais. Esta extrema habilidade o leva, admiravelmente, através das falas de seus interlocutores ocasionais, a determinar, sem que o digam, o local de nascimento e origem de cada um deles.

Há muitas discussões sobre como Bernard Shaw acabou por construir o enredo da peça. Evidente, ele não estava preocupado em formatar mais uma comédia romântica, mesmo que, ao longo do tempo, Broadway e Hollywood, através do belo musical My Fair Lady, tenham se esforçado para transformar o texto original em um conto de fadas. Para Shaw, interessava discutir a terrível estratificação sociocultural através da linguagem e dos comportamentos sociais dela decorrentes. É pela forma como as pessoas falam que passamos a catalogá-las socialmente. E mesmo que pessoas com educação precária e condição social inferior venham a melhorar de vida (o pai de Eliza), elas necessariamente vão se trair pela linguagem, o que as prenderão eternamente à sua origem pobre. O contrário também se faz verdadeiro. Mesmo que o rico se descuide da linguagem, isto não abalará sua posição social. Ele, afinal, nasceu rico, e este é um privilégio indissolúvel. O que Shaw tenta mostrar é que se pode esculpir o ser humano desde que ele próprio se idealize numa perspectiva superior e persiga esta idealização. Pois é. O ser humano pode, sim, idealizar seu destino. Esta é a ideia didática de Shaw. A ascensão social através da transformação pela linguagem. É a crença no poder transformador do ser humano, desde que ele obsessivamente se proponha a tal. É com esta obsessão que o professor Higgins ganha a aposta feita com o coronel Pickering. Ele de fato transforma a ignorante e estúpida florista Eliza Doolittle numa encantadora lady.

Pigmalião pode não passar de uma comédia satírica, simples, rápida, mas é tão bem arquitetada, tão bem escrita, vai ao ponto em questões de relacionamentos e de sonhos, esta ilusão transformadora que carregamos dentro de nós, nos mostrando que quando idealizamos algo bom para nós já estaremos pelo menos afastando a ideia de impossibilidade, por estas e muitas razões, não à toa, o texto de Shaw acaba se transformando num grande clássico da literatura mundial. E que fique bem claro. A idealização de transformação é nossa, está em nós, não no outro. Diferente do que pensa o famigerado Higgins, não se esculpem seres humanos.

terça-feira, 12 de março de 2024

Falecimento do trovador Nilton Manoel Teixeira, em Ribeirão Preto/SP, hoje, 12 de março de 2024


Nilton Manoel de Andrade Teixeira, capricorniano de 3 de janeiro, nasceu em Ribeirão Preto-SP, onde veio a falecer hoje, 12 de março de 2024
.
Professor e contabilista.

Começou nos anos sessenta publicando seus textos no mimeógrafo à álcool e escrevendo para jornais. Com apoio de Luiz Otávio (fundador da União Brasileira de Trovadores) implantou os Jogos Florais em sua cidade e como presidente da seção ubeteana de Ribeirão Preto, realizou eventos locais e nacionais.

Na área da Literatura, esteve no Conselho Municipal de Cultura, por três gestões.

Livros editados:

Trovas da Juventude; 

Cantigas do meu terreiro; 

Caviar, gororoba e sal de frutas, 

Poesia Mágica (haicais) e 

folhetos de Cordel ao estilo tradicional.

Era membro de:

Academia Anapolina de Filosofia, Ciências e Letras.
Academia Brasileira de Trova.
Academia de Letras de Uruguaiana,
Academia de Letras Fronteira Sudoeste do Rio Grande do Sul.
Academia Friburguense de Letras.
Academia Goianiense de Letras.
Academia Internacional de Ciências Humanísticas.
Academia Internacional de Heráldica e Genealogia.
Academia de Letras de Ribeirão Preto.
Academia Petropolitana de Poesia.
Academia Poços-caldense de Letras.
Academia Ribeirãopretana de Poesia.
Academia Santista de Letras.
Academia Virtual Brasileira de Letras.
Casa do Poeta e do Escritor de Ribeirão Preto ( fundador e 1º presidente),
Clube Internacional da Boa Leitura.
Instituto Histórico e Geográfico de Uruguaiana.
Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal.
Ordem dos Velhos Jornalistas.
The International Academy of Letters of England.
União Brasileira de Escritores.
Usina de Letras etc.

Títulos:

Título de Magnífico Trovador pela Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel;

Mérito Cultural pelo Instituto Histórico e Geográfico de Uruguaiana;

Medalha de Ouro, no I Aniversário do Clube dos Trovadores Capixabas;

Honra ao Mérito pela Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel;

Mérito Cultural Pablo Neruda, em 2004.

No portal www.movimentodasartes.com.br assinava a coluna Trovador

ALGUMAS TROVAS

Conduzindo arma sem porte,
foi detido o valentão,
que, da praia, por esporte,
vinha abraçando um canhão.
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Depois dos cinquenta creio
que tudo é lucro e coerência,
homem que não faz rodeio
sabe o que vale a existência.
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Do passado não me queixo;
o tempo tudo desfaz...
Cenários velhos não deixo
que voltem a ser cartaz.
= = = = = = = = = 

Dos meus sonhos eu bendigo
as passadas frustrações;
hoje é mais puro o meu trigo
sendo humilde nas ações.
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Fez-se pai o jornalista
e, uma ideia lhe desfralda:
- Batiza a filha, o egoísta,
com o nome de... Jornalda!
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Homem é o que sabe ser
companheiro, amigo e irmão;
Quem preza o Bem, sabe ter
da vida toda a emoção.
= = = = = = = = = 

Humildade comedida
finge alguém tê-la somente,
ao precisar de guarida
para um problema pendente...
= = = = = = = = = 

Indo por outros caminhos,
neste mundo, às vezes, rude,
vou fugindo dos espinhos,
pois das mulheres não pude!
= = = = = = = = =

Lágrima que escorre é gota,
que marca  o que vai à vista:
- dores da vida marota!
ou problema de oculista?
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Mãe preta, escreves a história,
com fraternidade pura;
pois na tua trajetória
plantaste amor com ternura.
= = = = = = = = = 

Meu lápis beija o papel 
num encontro sedutor; 
e é dessa lua-de-mel 
que nasce a trova de amor.
= = = = = = = = = 

Na caminhada, maduro,
ponho fogo na fornalha,
quero deixar ao futuro,
as lições de quem trabalha.
= = = = = = = = = 

Nada mais embriagador
no arrepio das ternuras
que escutar juras de amor
mesmo que sejam perjuras.
= = = = = = = = = 

Não dê bola ao rabugento
que desfaz da mocidade,
pois ele vive o tormento
de não aceitar a idade...
= = = = = = = = = 

O meu palácio encantado,
onde o ano todo é natal,
é um quadradinho alugado,
chamado "caixa postal"!
= = = = = = = = = 

O para sempre felizes
das histórias infantis,
traz à vida bons matizes
dando vida ao que o autor quis.
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Orgulho é a bola de neve 
que vai, em diário exercício, 
levando o infeliz de leve 
às bordas do precipício.
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Perdão é a esponja macia
que se passa numa ofensa
por se crer na luz do dia
contra a noite da descrença.
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Por ter dado uma "banana"
pra tia de um delegado,
o Tiãozinho entrou em cana
e saiu bem "descascado"...
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Quem caminha destemido
com fé na vida que tem,
não faz, nem teme alarido, 
vive apenas para o Bem!
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Quem como eu faz poesia,
sabe que a glória é completa:
- Ninguém aposenta o dia
de trabalho de um poeta.
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Quem tem coração de paz
vive de culpa liberto,
porque faz do bem que faz
um céu de sol mais aberto!
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Quem tem vida vive atento
pelos caminhos que enfrenta;
brinda as farpas do momento
com chocolate e pimenta.
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Saudade é como abacate:
-verde!...  por dentro, o caroço
pesa, na alma  que se abate,
e  o corpo curva  o pescoço.
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segunda-feira, 11 de março de 2024

Daniel Maurício (Poética) 65

 

Geraldo Pereira (A Conta de Luz)

O candeeiro era antigo, bem antigo, vindo de terras potiguares, da casa-grande do engenho Guaporé, no Ceará-Mirim, onde vivera meu pai e sua família, lugar da aristocracia rural, com salas especiais para a música e a leitura ou para as refeições do dia-a-dia. Quando faltava luz, fenômeno mais que frequente naqueles meus tempos da infância e da adolescência, um de nós, designado como voluntário, ia buscar na cozinha a caixa de fósforos e cumpria a missão de acender a velha peça, com todo o cuidado possível, para não quebrar a base de porcelana boa ou a manga de vidro barato. A reserva de velas, porém, era fundamental para se garantir a luminosidade noutros cômodos, para quem fosse se trocar, por exemplo ou para aqueles interessados num lanche ou na ceia, como chamava a minha avó paterna. E o velho candeeiro vai reaparecer, agora, nas cenas do dia-a-dia! 

A iluminação das ruas era bem diferente, as lâmpadas acesas às dezoito horas pendiam dos postes de ferro e eram incandescentes. Todas as tardes, na boquinha da noite, passava o encarregado de ligar a chave e ai toda a extensão urbana visível ficava alumiada. Pela manhã logo cedo, o homem fazia o caminho inverso, isto é, desligava tudo naqueles limites da Boa Vista com o bairro de Santo Amaro das Salinas. Quase ninguém tinha eletrodomésticos em casa, o liquidificador demorou a chegar e era peculiar, tinha o copo de alumínio. Assim a vitamina de banana, rodada no leite em pó misturado à água, não podia ser vista, senão quando estivesse pronta para o benfazejo uso. Geladeira nos meus começos era a do vizinho, para guardar penicilina, sobretudo, antes da picada no glúteo.

Certa vez, minha mãe trouxe do comércio um equipamento moderno, com o nome de turmix, não sei por que essa estranha denominação. Servia para fazer sucos diversos, do mais simples, o de laranja, aos mais complexos, aqueles com tomate e cenoura. Uma delícia esses extratos misturados de frutas e de verduras! E os aparelhos domésticos foram se acrescentando. Um belo dia o meu pai chegou de seus afazeres e comunicou que tinha comprado uma radiola, um aparelho que juntava o rádio e a vitrola. Uma beleza! Além disso, uma coleção de discos, a maior parte em trinta e três rotações – conhecidos como long-play –, mas alguns de quarenta e cinco e até as bolachas enormes que rodavam o conteúdo inteirinho de um só lado. Muitos da música clássica, uns de histórias infantis, como a do macaco sabido e outros cantados por Maysa Matarazzo, dos agrados de minha mãe. E ninguém reclamava da conta! E não se conhecia, também, a palavra racionamento!

A televisão quando apareceu por cá foi uma festa. Eu assistia na casa da professora Dulce Chacon, psicóloga, não exatamente formada, mas suficientemente capaz de diagnosticar com testes os problemas infantis e as questões da juventude, sem esquecer as recomendações do estilo. Comigo mandou que aumentassem a minha mesada e eu ignoro a providência. À custa de muito sacrifício, finalmente, o novo equipamento aportou na sala de visitas e ao mesmo tempo de jantar. Era da marca Cibeal e tinha sido vendida por um quase parente, representante do produto. Preta e branca, como todas as outras, foi posta sobre o móvel da velha radiola e assim formava um conjunto audiovisual. Ali, sentado no sofá, vi os melhores programas da época, a jovem guarda aflorando e Roberto Carlos cantando e mandando todo mundo para o inferno.

O ar-condicionado restringia-se a uma elite diferenciada, como o chuveiro elétrico, inicialmente blindado e da marca Lorenzetti. Foram dispensados o ventilador e a banheira, o vento encanado dos temores de Dona Lila e a chaleira fervente do banho. Anos e anos se passaram para o colorido do mundo aparecer na telinha e mais anos ainda para se usar o controle remoto. Dizem que uma rede poderosa impediu que se mudasse de canal facilmente. Mas, apenas dizem! À distância, então, era possível trocar de estação ou alterar o volume. O videocassete surgiu nas vitrines mais de uma década depois e foi um sucesso, também. Afinal, seria possível assistir os filmes em casa, bem acomodado e sereno, mas o preço não convidava, como todos os outros aparelhos de uso doméstico nos começos. E da conta não se falava!

Hoje, o contador é um ansioso relógio das horas de luz e dos minutos de força. Racionar é preciso, com multa ou sem multa. Não há mais água para as turbinas! Valha-me Deus!
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∗ Texto escrito durante um tempo de racionamento elétrico no Recife, por conta da falta de chuvas nas cabeceiras do rio São Francisco, de cujas cachoeiras a energia provém.

Fonte> Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. 
Disponível no Portal de Domínio Público

George Abrão (O salão nobre)

Em Jaguariaíva (no Paraná), no Colégio Estadual “Rodrigues Alves”, existe um salão para eventos denominado Salão Nobre. Nos anos sessenta, do século passado, época deste relato, o salão era utilizado para festas de aula inaugural, sessões cívicas, formaturas, apresentação de peças teatrais ou de musicais ou de concertos e de soirées, que naqueles tempos eram chamadas de “brincadeiras dançantes” ou simplesmente de “brincadeiras”.

Essas “brincadeiras”, com a anuência da diretoria da escola, davam-se sempre aos sábados a partir das 21h, programadas e realizadas pela comissão de formatura do ano. Avisava-se com antecedência e praticamente toda a juventude jaguariaivense se fazia presente, pois era a principal diversão nos finais de semana. Na maioria das vezes a festa era animada com som mecânico, pois lá existia uma radiola onde se tocavam discos de vinil, e excelentes caixas de som. Os discos executados eram, na maioria das vezes, das orquestras e bandas: Ray Conniff, Tijuana Bras, The Beatles, The Rolling Stones, The Fevers, Glen Miller; e dos cantores: Roberto Carlos, Wanderléa, Erasmo Carlos, Wilson Simonal, Jair Rodrigues, Altemar Dutra (para os mais românticos). Felizmente naquele tempo ainda não existiam os funks, raps e afins, nem a música sertaneja (da qual particularmente não gosto).

E sob a muito usada luz negra ou globo de luzes coloridas, os casais dançavam juntos embalados pelos variados ritmos tocados, ou separados quando era rock and rool ou twist. Mesmo com a música mais romântica, quando dançavam de rosto colado, não haviam excessos, pois ao menor sinal disso, um dos integrantes da comissão de formatura aproximava-se e, sem nada dizer, só olhava para o partner que se recompunha.

Durante a festa sempre havia uma equipe que realizava a brincadeira de salão “correio elegante” que consistia na troca de bilhetinhos entre as moças e rapazes e vice-versa onde as frases eram variadas: “Você é o queijo da minha goiabada! Quer ser meu par?”, “Eu não fiz nada pra esse amor nascer, mas faço tudo pra não se acabar!”, “Beijo vem do verbo beijar que só dois lábios podem conjugar… Quer tentar?”, “Me apaixonei por você pela segunda vez nessa semana. Me perco e me encontro só em você.”, “Não te doem as pernas de fugir dos meus sonhos todas as noites?” e outras, algumas de cunho romântico, outras nem tanto. Dessa brincadeira surgiram muitos namoros que às vezes foram até ao casamento.

As bebidas consumidas durante a festa iam do refrigerante aos coquetéis: Cuba Libre (rum com coca-cola e limão). Hi-Fi (Vodka com Fanta), Samba (cachaça com coca), Gin-Tônica (que ficava azul sob o efeito da luz negra) e outros inventados na hora. Mas não havia excesso nas bebedeiras e nem as costumeiras brigas que atualmente se veem muito por aí.

Por volta das 2hs a festa acabava como o combinado, só que sempre sob protestos, pois todos queriam mais. Então o pessoal que ia para casa na mesma direção saia em grupos, “entregando” as moças em suas respectivas residências que se localizavam no trajeto.

Anos dourados e saudosos! Se hoje fizéssemos uma reunião no Salão Nobre com todos os habitués da época, ela seria engraçada, pois já somos todos sexagenários ou alguns quase chegando lá.

Fonte> George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017. Enviado pelo autor.