sexta-feira, 26 de abril de 2024

Eduardo Martínez (Tempos de menino)

Ainda me lembro de quando passava meus dias de menino no sítio do tio Joca, em Carolina, no Maranhão. Após tantos anos, eis que aqui estou defronte daquela largo e profundo rio que banhou minha infância e, para meu espanto, deparo-me com um riacho. Para onde teria ido aquela enormidade de água? 

— Mas, Cássio, é o mesmo córrego - tio Joca tenta me convencer.

Incrédulo, olho ao redor. Até as árvores não me parecem tão grandes. Nem mesmo o jequitibá logo adiante. Tudo parece querer me impor uma realidade que não é a que guardo na memória. Teimoso que sou, fecho os olhos e volto a ouvir o som da correnteza, enquanto meus pés, agora novamente descalços, correm pela sua margem.

Cato uma pedra lisa e a arremesso. Ela, quase disco voador, rente à superfície, toca a água uma, duas, três, quatro vezes, até que, lá bem no fundo daquela imensidão, se torna submarino. Ao seu redor, piabas se fazem de tubarão.

Ouço o ronco de um bugio. Viro o rosto e meus olhos de menino avistam um enorme gorila no topo da árvore logo atrás. Magnífico, magnânimo. Nem o grupo de macacos-prego adiante podem com ele. Assustados, fogem saltando de galho em galho, até se perderem na vastidão da floresta. 

— Cássio?

— O quê, tio?

— Você está bem?

— Sim.

— Já te chamei três vezes.

— Desculpe.

— Vamos, que já estou sentindo o cheiro do almoço daqui. 

Acompanho meu tio, mas meu pensamento ainda está bem distante. Que saudade que sinto do menino que fui, repleto de imaginação.

Fonte> Blog do Menino Dudu – 24.04.2024

Recordando Velhas Canções (Como nossos pais)


Composição: Belchior

Não quero lhe falar, meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo

Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto
É menor do que a vida de qualquer pessoa

Por isso, cuidado, meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal está fechado pra nós
Que somos jovens

Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz

Você me pergunta pela minha paixão
Digo que estou encantada como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade, não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento cheiro de nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração

Já faz tempo, eu vi você na rua
Cabelo ao vento, gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança é o quadro que dói mais

Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais

Nossos ídolos ainda são os mesmos
E as aparências não enganam, não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém

Você pode até dizer que eu tô por fora
Ou então que eu tô inventando
Mas é você que ama o passado e que não vê
É você que ama o passado e que não vê
Que o novo sempre vem

Hoje eu sei que quem me deu a ideia
De uma nova consciência e juventude
Tá em casa guardado por Deus
Contando o vil metal

Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo o que fizemos
Nós ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais
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A Reflexão de Elis Regina sobre Tradição e Mudança em 'Como Nossos Pais'
A canção 'Como Nossos Pais', interpretada pela icônica Elis Regina, é uma obra que transcende o tempo com sua mensagem reflexiva sobre a vida, as escolhas e a busca por identidade. Composta por Belchior, a música se tornou um dos maiores sucessos na voz de Elis, marcando a música popular brasileira com sua poesia e melodia envolvente. A letra fala diretamente ao coração, abordando a relação entre as gerações e a inevitável comparação entre os sonhos e a realidade vivida pelos jovens da época e seus pais.

A música inicia com uma conversa íntima, onde o eu-lírico decide compartilhar suas experiências de vida ao invés de lições aprendidas em discos. Há um reconhecimento de que viver plenamente é mais significativo do que apenas sonhar, e que o amor, apesar de ser valioso, não é o único componente da existência. A canção alerta para os perigos e desafios que a juventude enfrenta, simbolizados pela 'esquina' e pelo 'sinal fechado', metáforas para as restrições e limitações impostas pela sociedade e, talvez, pelo regime político da época.

O refrão é um lamento sobre a repetição de padrões, onde, apesar dos esforços e mudanças, ainda se vive como as gerações anteriores. A música critica a idolatria de figuras do passado e a resistência às novidades, sugerindo que a renovação é essencial e inevitável. A dor expressa na letra é a de reconhecer que, mesmo com as lutas e conquistas, muitas vezes as estruturas e mentalidades permanecem as mesmas. 'Como Nossos Pais' é um convite à reflexão sobre o que herdamos, o que repetimos e o que temos o poder de transformar em nossas próprias vidas.

Estante de Livros (“Contos Orientais”, de Marguerite Yourcenar)

Coletânea de contos que formam uma obra única na carreira de Marguerite Yourcenar. Baseados em lendas, fábulas, superstições de origem oriental - guardadas nas memória da autora e recriadas livremente - os contos lembram o fascínio do Oriente no cenário, no estilo, nos personagens.

Escritos ao longo dos anos que antecederam a eclosão da Segunda Guerra, estes Contos tornam patente a tentação oriental a que sempre Marguerite Yourcenar tem, de algum modo, sido sensível e, tanto pelo cenário em que se desenrolam como pelo estilo e o espírito que os habitam, sugerem as vias de acesso a uma harmonia e uma musicalidade próprias de outras paragens.

Da China à Grécia, dos Balcãs ao Japão, o conjunto de fábulas e lendas que constituem os Contos Orientais remete o leitor para o espaço insituável onde o sonho e o mito fazem ouvir, em cada narrativa, a sua estranha e obsessiva voz.

Invulgares, oníricos, com elementos que vão do sobrenatural ao mito e à lenda, estes contos vão beber a inspiração ao Oriente para daí abrirem as suas asas e conseguirem o que apenas a grande literatura consegue: abarcar o mundo, tocar a universalidade. Um pintor assombrado pelas imagens que cria, um herói traído, uma mãe que cuida do filho recém-nascido após a sua própria morte, uma deusa infeliz… 

Com uma linguagem sublime capaz de desvelar os mais secretos significados, Yourcenar aponta diretamente ao âmago da natureza humana e a noções tão fundamentais como a vida e a morte.

A Salvação de Wang-Fô inspira-se num apólogo taoista da velha China; 

O Sorriso de Marko e O Leite da Morte provêm de baladas balcânicas da Idade Média; 

Kali Decapitada deriva de um inesgotável mito hindu, precisamente o mesmo que, interpretado aliás em moldes completamente diferentes, forneceu a Goethe O Deus e a Bailarina e a Thomas Mann As Cabeças Trocadas. 

Por outro lado, O Homem que Amou as Nereidas e A Viúva Aphrodissia (O Chefe Vermelho, na edição original) têm como ponto de partida pequenas notícias locais ou superstições da Grécia de hoje, ou melhor, de ontem, porquanto a sua redação situa-se entre 1932 e 1937. 

Em contrapartida, Nossa Senhora das Andorinhas representa uma fantasia pessoal da autora, nascida do desejo de explicar o nome singelo de uma capelinha nos campos da Ática. 

Em O Último Amor do Príncipe Genghi, as personagens e o quadro da narrativa foram colhidos não num mito ou numa lenda, mas num grande texto literário do passado, no admirável romance japonês do século XI Genghi-Monogatari, da romancista Mourasaki Shikibu, que relata em seis ou sete volumes as aventuras de um Don Juan asiático de grande estilo. Mas, com uma delicadeza muito característica, Mourasaki «escamoteia» por assim dizer a morte do seu herói e passa do capítulo em que Genghi já viúvo decide retirar-se do mundo para aquele em que o seu próprio fim é um fato consumado. A novela que acabaram de ler pretende, se não preencher essa lacuna, pelo menos permitir imaginar o que teria sido esse epílogo se a própria Mourasaki o tivesse composto. 

O Fim de Marko, narrativa que, desde há anos tencionava escrever, só em 1978 foi redigida. O conto toma como ponto de partida um fragmento de uma balada sérvia que evoca a morte do herói às mãos de um circunstante misterioso, banal e alegórico. 

Em A Tristeza de Cornelius Berg, o protagonista leva uma vida pacata, longe dos áureos tempos em que todos os rodeavam, insaciáveis das empolgantes histórias vividas nos quatros cantos do mundo. Apresenta-se-nos decadente, sem interesses na vida, ignorado pelo mundo. Seu único amigo é um apreciador de flores. Não um verdadeiro amigo, pois apenas o convidava para saber a sua opinião acerca da sua nova joia, vulgo flor. Num destes encontros, Berg relembra o passado e como aquilo que um dia viu e sentiu se distancia do que ele é e sente neste momento.

Pintor de profissão notamos ao longo da leitura o desgaste que a transposição da natureza humana para a tela teve nele. Não mais vê o Homem como um ser belo e derradeira criação divina na Terra. Para ele, este não passa de um devaneio, de uma distração do Supremo, enquanto “moldava” as paisagens do Mundo.
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Marguerite Yourcenar, pseudônimo da escritora francesa Marguerite de Crayencour (1903-1987), Yourcenar é um anagrama de Crayencour, nascida em Bruxelas e que veio a naturalizar-se americana. As suas Memórias de Adriano,1952, tornaram-na internacionalmente conhecida.

Fontes:
Excerto do texto de Tiago Martins para o Clube de Artes e Ideias. 6 janeiro 2008.
Excerto do texto de Ernesto Luz para o Trade Stories

quinta-feira, 25 de abril de 2024

José Feldman (Versejando) 136

 

Mensagem na Garrafa = 112 =

João Batista Leonardo
(Maringá/PR)

UMA ÁRVORE EM NÓS

Intrigante conotação da natureza, num mundo mutante onde a analogia se faz marcante, junto ao nascimento, vivência, morte e continuidade.

A terra é viva e todos nós vivos fazemos parte do seu ciclo, atendendo os seus desígnios e embrenhados numa correlação, certamente intrigante e interessante à análise.

O estudo da natureza me disse que somos iguais à árvore. Analisando com acuidade a afirmação, vejo analogia grande entre nós e a árvore. Temos um princípio no acaso, uma presente vivência e quase um mesmo fim. Vejamos:

As árvores têm raízes fincadas no chão, absorvendo, de acordo com a qualidade do solo, os nutrientes. Raízes que absorvem o sustento, tanto nas árvores resistentes, frondosas, como nas árvores franzinas. Semelhante a elas, temos raízes fincadas no solo da nossa abrangência, onde estão as obrigações, valores e fraquezas. Ali nos sustentamos e sugamos os nutrientes físicos e emocionais, forças mantenedoras da continuidade. Quanto mais rico for nosso solo e nosso conceito, tanto mais forte será nossa árvore.

O tronco da árvore a sustenta contra ventos e tempestades. Assim como ela, nosso tronco nos coloca de pé, resiste às quedas, às doenças e aos percalços. Como ela, nosso tronco, forma e sustenta os galhos.

Os nossos galhos são nossos dependentes familiares, profissionais e materiais. Podem ser mais ou menos fortes de acordo com a qualidade dos tempos vividos. Conceito firmado, na formação da família, no valor econômico conseguido, na reputação pessoal e profissional, primando o mérito na comunidade.

Dos nossos galhos vem a ramagem contendo flores, frutos, sementes e folhas.

As folhas nas árvores refletem sua higidez se verdes ou secas e têm função de relação com o mundo. Nossas folhas mostram nossa aparência física e o nosso mundo de relação, onde aparecem as pessoas, os conhecidos, os amigos e os profissionais. Como na árvore, nossas folhas podem ser pessoas novas, velhas, sadias, doentes, bonitas, feias, boas, más. Na árvore as folhas são benéficas, passam, envelhecem, caem, viram adubo e fortificam o solo. Assim também as pessoas passam, as amizades acabam, os conhecidos e profissionais desaparecem, porém, sempre deixam o adubo de algum ensinamento. É boa a firmação do escritor Mark Twain: “A vida seria muito mais produtiva se pudéssemos nascer com a idade de oitenta anos e gradativamente nos aproximar dos dezoito”.

As flores enfeitam as árvores e embelezam a natureza. Nossas flores representam nossas belezas, qualidades e o festejo da formação dos frutos. Tanto mais flores, tanto mais frutos. Os frutos nos qualificam como produtores, são os resultados da participação efetiva dentro das deliberações tomadas, são os resultados das determinações das opções, são o quinhão de julgamentos.

Como na árvore, nossas sementes produzirão descendentes, filhos e netos, firmando nossa continuidade genética.

Nem toda árvore floresce e frutifica e nem por isso perde méritos. Vale aqui o pensamento de Henfil: “Na árvore, se não houver frutos valeu a beleza das flores; se não houver flores valeu a sombra das folhas, se não houver folhas valeu a intenção da semente”. Analogamente, tantas pessoas não florescem, não frutificam, não colhem as oportunidades, são dependentes, pendurados na sociedade e carentes; no entanto, elas têm muito valor porque se prestam em oferecimento aos que desejam servir e atender o mandamento de Deus.

A árvore que propicia sombra, ar fresco, beleza e frutos, um dia morrerá e ficará por tempo de lembrança com sua carcaça, até que a terra a absorva como alimento. Como as árvores, também morreremos e ficaremos por algum tempo na mente daqueles componentes de nossas abrangências, que são nossos filhos parentes e amigos.

Diferente do homem, a árvore sempre viverá na constância da sua espécie e não mudará. Assim diz o poeta Abu Shakur: “A árvore que produz um fruto amargo, se for alimentada com guloseimas e doces, não mudará sua natureza; produzirá sempre o mesmo fruto amargo, e nele não saboreará nenhuma doçura”. O homem não, desde o mais amargo, o mais rude, quando lhe oferecido a compreensão, a esperança e a oportunidade, pode se transformar numa pessoa boa e aceitável.

Árvore e o homem, uma analogia intrigante. O âmago fisiológico dos seres vivos, a importância da vida de relação e a dependência entre si, glorificam a natureza.

A árvore é imutável, tem tempo e ciclo obrigatório. O homem é mutável, tem arbítrio e com ações transforma os tempos. Ele pode nascer num chão pobre, porém, no exercício do esforço e acatando as boas chances, enriquece o solo e vira árvore frondosa.

Ainda, a árvore nasce, vive, morre e acaba. O corpo humano também, porém a magnânima diferença está na presença da alma junto aos homens, que é eterna e perpetuará num outro tempo muito mais frutuoso e abrangente.

Fonte> Portal do Rigon. 16/07/2017 
https://angelorigon.com.br/2017/07/16/uma-arvore-em-nos/

Dom Pedro II (Cachoeira de Versos)


A IDEIA CONSOLADORA

Vendo as ondas correr para o ocidente,
Corre mais do que elas a saudade,
Mas espero que a minha enfermidade
O mesmo me consinta brevemente.

Com saúde mais lustre dar à mente
É cousa que enobrece a humanidade;
Contudo agora o paga a amizade
Da pátria, e da família, cruelmente;

Mas consola-me a ideia, — que mais forte
Lhes voltarei para melhor amá-los,
Pois mais anos assim até a morte

Eu mostrarei que sempre quis ligá-los
Na feliz, e também na infeliz sorte
Para, amando-os, ainda consolá-los.
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A MEUS NETINHOS IMPRESSORES DE MEUS VERSOS

Versos feitos por mim na mocidade
O mérito só tem sentimento.
Eram, pra assim dizer, um instrumento
Mais que o prazer ecoando-me a saudade.

Pospondo a fantasia sempre à verdade
Melhor encontrei nesta o ornamento
E, no estudo apurando o sentimento,
Quanto tenho a saber disse-me a idade.

É isso o que vos quero eu ensinar,
Amando-vos qual pode um terno avô,
A quem para as suas cãs engrinaldar

Melhor só poderia o que eu vou
Em carícias tão vossas procurar,
Sentindo que de vós inda mais sou.
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À MORTE DO PRÍNCIPE D. PEDRO

Pode o artista pintar a imagem morta
Da mulher, por quem dera a própria vida.
À esposa que a ventura vê perdida
Casto e saudoso beijo inda conforta.

A imitar-lhe os exemplos nos exorta
O amigo na extrema despedida...
Mas dizer o que sente a alma partida
Do pai, a quem, oh Deus, tua espada corta.

A flor de seu futuro, o filho amado;
Quem o pode, Senhor, se mesmo o Teu
Só morrendo livrou-nos do pecado,

Se a terra à voz do Gólgota tremeu
E o sangue do Cordeiro Imaculado
Até o próprio céu enegreceu!
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A VIDA E O BARCO

Andar e mais andar é a vida a bordo;
Mal estudo, e apenas eu vou lendo;
A noite com a música entretendo;
Deito-me cedo, e mais cedo acordo.

Saudosíssimo a pátria eu recordo,
E, pra consolo versos lhe fazendo,
Desenho terras só aquela vendo,
E para não chorar os lábios mordo.

Enfim há de chegar, eu bem o sei,
Que o Brasil eu reveja jubiloso;
E, se outrora eu servi-lo só pensei,

Muito mais forte e muito mais zeloso,
Para ainda mais servi-lo, voltarei
'Té que nele encontre o último repouso.
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INGRATOS

Não maldigo o rigor da iníqua sorte,
Por mais atroz que fosse e sem piedade,
Arrancando-me o trono e a majestade,
Quando a dois passos só estou da morte.

Do jogo das paixões minha alma forte
Conhece bem a estulta variedade,
Que hoje nos dá contínua f'licidade
E amanhã nem — um bem que nos conforte.

Mas a dor que excrucia e que maltrata,
A dor cruel que o ânimo deplora,
Que fere o coração e pronto mata,

É ver na mão cuspir a extrema hora
A mesma boca aduladora e ingrata,
Que tantos beijos nela pôs — outrora.
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SEMPRE O BRASIL

Nunca noite dormi tão sossegado,
Quem nem mesmo sonhei com o meu Brasil,
Porém, vendo infinito mar d'anil,
Lembra-me a aurora dele nacarada.

Cada dia que passa não é nada,
E os que faltam parecem mais de mil.
Se o tempo que lá vivo é um ceitil*,
Aqui é para mim grande maçada*.

E a doença porém me consentir,
Sempre pensando nele, cuidarei
De tornar-me mais digno de o servir,

E, quando possa, logo voltarei;
Pois na terra só quero eu existir
Quando é para bem dele que eu o sei.
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Ceitil = quantia insignificante
Maçada = aborrecimento, enfado
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TERRA DO BRASIL

Espavorida agita-se a criança,
De noturnos fantasmas com receio,
Mas se abrigo lhe dá materno seio,
Fecha os doridos olhos e descansa.

Perdida é para mim toda a esperança
De volver ao Brasil; de lá me veio
Um pugilo de terra; e neste creio
Brando será meu sono e sem tardança...

Qual o infante a dormir em peito amigo,
Tristes sombras varrendo da memória,
ó doce Pátria, sonharei contigo!

E entre visões de paz, de luz, de glória,
Sereno aguardarei no meu jazigo
A justiça de Deus na voz da história!
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Fonte> http://www. sonetos.com/biografia.php-a=71.htm. (site desativado), acesso em 15.01.2016

Newton Sampaio (Noite quente, noite quieta, da cidade inútil)

Noite quente, noite boa, caminhando no silêncio, desaparecendo num céu forrado de estrelinhas piscantes, inumeráveis, longínquas.

Noite quente gostosa, na cidade sem personalidade, de casas fechadas, de ruas penumbrentas, sem vira-latas melancólicos nem boêmios incorrigíveis.

Noite quente, noite quieta, noite gostosa. Na cidade inútil, na cidade triste, na cidade decadente...

Juquita acorda assustado, perseguido pelos mesmos sonhos ruins.

Escuta o relógio, que é medroso e bate duas vezes, e o pai roncando num sono de felicidade profunda.

Fica de barriga pra cima. Mas não descansa. Porque despeja na consciência, sem parar, as imagens da Estela. Imagens fugidias, sujas, intensamente sujas.

Vira pro lado direito. É pior. A coisa aumenta.

Aperta os olhos pra chamar o sono. Aperta bem. Mas o sono não vem. O que vem é um barulhinho esquisito, indefinido. Presta atenção. O barulhinho aumenta, se distingue. É um estralejamento, a modo de graveto se queimando.

O medo toma conto do corpo. O corpo treme inteirinho. E os dentes fazem coro.

— Minha Nossa Senhora!

Deita-se de bruços. E reza baixinho:

— Padre nosso que estais no céu...

Nem chega ao “venha a nós o vosso reino”, porque o estralejamento fica forte de repente. Bota-se de pé. Foge pra sala. E sente um cheiro. Um cheiro de queimado.

Pelas frinchas da janela da sala percebe uma claridade que vem de fora. E treme. Treme apavorado.

Adelaide é que acorda. Fala meio inconsciente.

— Jesus!

Acende a luz. O filho se joga chorando no quarto grande.

— Menino!

— Ali! É ali!

Henrique desperta, estremunhado. E se espanta logo com a barulheira. Corre à janela amarfanhando a camisola meio encardida. E o rosto se lhe ilumina com o clarão medonho.

Fica estatelado. A cabeça se desgoverna, no pasmo imenso. Sobe um calor nos olhos. “Sente” que é preciso fazer qualquer coisa. Mas não consegue “pensar” nada.

Quando toma conta de si, a casa é um só reboliço, uma gritaria desenfreada. A casa e a vizinhança. Que a vizinhança também era uma única emoção e estava toda ali reunida.

Tenta-se desesperadamente qualquer salvação. Inútil.

Encontraria material excelente o fogo. Por isso o fogo fica lambendo tudo, vitorioso, impressionante.

Arde todinho o paiol. Por sorte ele se construíra isolado, na margem da grota. Se não, nunca que teria fim o desastre.

Clareada pela chama se extinguindo, alheia ao pandemônio sem altura, a figura de Henrique se recorta, trágica, no fundo da noite morna.

Camisolão amarrotado, cabelos desfeitos, fundas rugas se acentuando na cara descarnada, o velho caminha de um lado a outro, rondando, rondando a ruína de seus fardos, recolhendo, recolhendo a cinza de seu grande sonho inútil.

O riachinho do fundo da grota reflete uns últimos clarões perdidos. Mas o riachinho do fundo da grota não é muito certo. Porque riachinho confunde a luz do paiol com a luz das estrelas piscantes, inumeráveis, longínquas. Das estrelas que se multiplicam na noite quente, na noite longa da cidade inútil, da cidade triste…

(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 22/07/1936.)

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Recordando Velhas Canções (Sítio do Pica-pau Amarelo)


Composição: Gilberto Gil

Marmelada de banana, bananada de goiaba
Goiabada de marmelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo

Boneca de pano é gente, sabugo de milho é gente
O Sol nascente é tão belo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo

Rios de prata pirata, voo sideral na mata
Universo paralelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo

No país da fantasia, num estado de euforia
Cidade Polichinelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo

Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo

Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
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A Magia do Sítio do Pica-Pau Amarelo em Notas Musicais
A música 'Sítio do Pica-Pau Amarelo', interpretada por Gilberto Gil, é uma viagem lúdica ao universo criado por Monteiro Lobato, um dos mais importantes escritores da literatura infantil brasileira. A canção foi composta como tema de abertura da série de televisão homônima, que fez parte da infância de muitos brasileiros, adaptando as histórias do Sítio para a TV. A letra da música, repleta de elementos fantásticos e referências diretas ao Sítio, convida o ouvinte a entrar nesse mundo de imaginação e aventura.

A letra começa com uma brincadeira de palavras que remete às delícias encontradas no Sítio, como a 'marmelada de banana' e a 'goiabada de marmelo', evocando os sabores da infância e da culinária caseira. A música segue para afirmar que no Sítio, até mesmo objetos inanimados e elementos da natureza, como a 'boneca de pano' e o 'sabugo de milho', são dotados de vida e personalidade, uma característica marcante das histórias de Lobato, onde a magia torna tudo possível.

O refrão, repetido várias vezes, reforça o nome do Sítio, fixando-o na memória do ouvinte. A canção também menciona 'rios de prata pirata' e 'voo sideral na mata', sugerindo as aventuras que as personagens vivenciam, muitas vezes com elementos de fantasia e ficção científica. Gilberto Gil, conhecido por sua habilidade de misturar diferentes ritmos e estilos musicais, consegue capturar a essência lúdica e imaginativa do Sítio do Pica-Pau Amarelo, criando uma melodia que é ao mesmo tempo nostálgica e atemporal, assim como as histórias que inspiraram a canção.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 44

 

Aparecido Raimundo de Souza (Um dia, o amor)

SEM MEDO DE ERRAR, aquele se fazia um coração que batia descompassado, como se dançasse tresloucado ao som de uma música envolvente, porém, que só ele conseguia ouvir. Esse coração pertencia a Lafaiete que amava profundamente, mas cujo amor, por algum motivo desconhecido, não se fazia retribuído. Assemelhava, sem tirar nem por, a um amor unilateral, tipo essas paixões doidivanas que ardem como fogo em um dos lados e permanecem frios e gélidos no outro.

Lafaiete por conta desse vazio terrificante, vivia batendo cabeça entre as estrelas e a melancolia. Entre o sonho não vivenciado e uma realidade não palpável. Nas noites mais escuras, olhava demoradamente para o céu e imaginava que cada estrela representava uma quimera não decantada, um desejo não correspondido, um tempo incerto e não vivenciado. Cada brilho distante se esboçava como uma lembrança dolorosa; um eco daquilo que poderia ter sido; mas nunca se fez palpável.

Por conta disso, “trocentas” vezes mergulhava em pensamentos ociosos, relembrando os momentos cavernosos, em que a pessoa amada estava por perto, sem estar. Cada sorriso, cada olhar, cada toque, eram guardados como preciosidades raras em seu coração. Contudo, ao mesmo tempo, essas lembranças e regalos também se transformavam em punhais perfurando a sua alma com a certeza de que nunca seriam mais do que isso: lembranças.

O amor não correspondido, para ele, se assemelhava a uma ferida que não cicatrizava. Se fazia pesado numa dor que não se resolveria com remédios ou palavras de consolo. Tudo se agigantava numa sensação estranha e densa de estar desabrigado, de não ter um lar para o aconchego do coração. Lafaiete se perguntava: “Como poderia algo belo e intenso, causar angústia tão degradante”?

Todas as noites, depois que chegava do trabalho, se trancava em seu quarto. Sentava na escrivaninha e escrevia cartas. Compunha missivas longas que nunca seriam enviadas. Poemas que jamais seriam declamados. Redigia para exorcizar a dor, para dar voz e forma aos sentimentos que o sufocavam interiormente. Assim, meio que abrupto, nasceu um poeta dentro dele. Cada verso, uma lágrima transformada em palavra, cada linha uma saudade eternizada na tinta de sua caneta esferográfica.

Mas o tempo passou, e Lafaiete aprendeu, a trancos e barrancos, que o amor não correspondido não mostrava o fim do mundo. Ele descobriu que a amargura poderia se transformar em algo mais suportável. Que as mágoas, em uma série de versos, os seus pensamentos dariam lugar à aceitação. Afinal, o amor não é apenas sobre ser amado ou ter alguma compensação em troca. É sobre sentir, assimilar, viver, usufruir, gozar, mesmo que num determinado ponto, alguma coisa descambe para a dor causticante e importuna na sua maior forma de expressão.

Assim, entre as estrelas e a melancolia, a consternação e a repugnância, Lafaiete se deparou com um novo caminho a ser seguido. Percebeu que o amor não correspondido não o mataria, ao contrário, o transformaria num novo ser. Um corpo de concepções vivificadas. Quem sabe, talvez um dia, encontrasse alguém de verdade. Uma criatura que olhasse para o mesmo céu e visse as mesmas estrelas. Alguém de olhos deslumbrantes que igualmente tivesse um coração descompassado, dançando ao som de uma música elegantemente invisível, contudo, maviosa e fruitivamente sonora.

Quem sabe, outro lado da mesma moeda, nesse encontro de almas solitárias, oxalá o amor finalmente se tornasse recíproco, mútuo e equivalente. Até lá, enquanto a esperança não bate definitivamente em sua porta, Lafaiete continuará a grafar as suas crônicas, suas poesias e cartas não enviadas. Afinal, o amor não correspondido ou não galardoado, também tem a sua beleza, a sua amenidade, a sua magia e a sua profundidade.  

Um dia (sempre há um dia), ele, Lafaiete, se torne o protagonista único de uma história de amor marcante, chique, saliente e infinita, tipo um conto perpétuo e, que não caiba apenas entre as estrelas... também se coadune nos braços de uma jovem elegante que o ame de volta, com a mesma intensidade e deleite. E cujo amor ardente e garboso será incondicionalmente palpável até o final de seus dias.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Professor Garcia (Álbum de Haicais) – 2


A luz do luar,
vejo arabescos na areia
de espumas do mar!
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A noite me aquece;
e eu, sem dormir um segundo,
o dia amanhece!
= = = = = = = = = 

A noite sem sono
e, a lua cheia de luz,
sozinha no abandono!
= = = = = = = = = 

Aos raios, o orvalho,
é o pranto cristalizado
no olhar do espantalho!
= = = = = = = = = 

Aquele sem teto,
que tem a noite por leito,
precisa de afeto!
= = = = = = = = = 

 A velha candeia,
piscava quase sem luz;
ó, que noite feia!
= = = = = = = = = 

Cai a tarde mansa.
No por do Sol, no poente,
sombras de esperança!
= = = = = = = = = 

Folhas pelo chão,
São meus sonhos que se arrastam
cheios de ilusão!
= = = = = = = = = 

Longe dos meus campos,
das outonais primaveras,
não há pirilampos!
= = = = = = = = = 

Minha mãe, de joelhos,
com o velho terço entre os dedos,
pede a Deus, conselhos!
= = = = = = = = = 

Nas brisas serenas,
no sopro de um vento brando,
a voz das camenas*!
= = = = = = = = = 
* Camenas = musas
= = = = = = = = = 

No botão da flor,
depois da explosão da rosa,
os lábios do amor!
= = = = = = = = = 

No esplendor das matas,
há mil cantos seresteiros
na voz das cascatas!
= = = = = = = = = 

No livro do adeus,
conto as mesmas digitais
desses dedos seus!
= = = = = = = = =

Ó, destino meu!
Nunca me carregue um sonho
que a sorte me deu!
= = = = = = = = = 

Ouço a voz do mar;
mesmo quando o mar se alteia,
é o mesmo cantar!
= = = = = = = = = 

Passa a multidão;
no meio dessa fanfarra,
segue a solidão!
= = = = = = = = = 

Pousou na janela,
meu bem-te-vi cantador;
que linda aquarela!
= = = = = = = = = 

Que lindo arrebol:
Todo o meu jardim se abrindo,
aos raios do sol!
= = = = = = = = = 

Se chove lá fora,
ficamos nós dois a sós,
e assim, ninguém chora!
= = = = = = = = = 

Seresta na rua?
bandolins e violões
violando a lua!
= = = = = = = = = 

Sonho que se sonha,
se for um sonho de amor
não nos envergonha!
= = = = = = = = = 

Sozinho no mundo,
pisando em terras estranhas,
sou qual vagabundo!
= = = = = = = = = 

Surge a luz do sol;
e uma auréola de luz
brilha no arrebol!
= = = = = = = = = 

Teu choro foi tanto,
que deixou teus pés e os meus,
cobertos de pranto!
= = = = = = = = = 
Fonte> Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020. 
Enviado pelo autor.

Irmãos Grimm (O violino maravilhoso)


Era uma vez um homem muito rico, mas muito avarento, que tinha como criado um rapaz honesto e ativo, como não haverá muitos. Todas as manhãs, o moço se levantava ao romper da aurora e só se deitava ao último cantar do galo.

Quando havia algum trabalho mais penoso, ante o qual todos recuavam, o rapaz fazia-o, contente, satisfeito e sem sombra de azedume.

Logo que acabou o primeiro ano de permanência na casa do avarento, que não estipulara soldo, não recebeu um ceitil (tipo de moeda) de paga, pensando de si para si que o moço, não tendo dinheiro, não tentaria outra colocação. O rapaz calou-se e continuou a trabalhar como antes, e ao cabo de dois anos, o avarento nada deu, o rapaz permaneceu no seu mutismo.

Ao fim do terceiro ano, o rico, espicaçado pela consciência, meteu a mão no bolso para remunerar o criado fiel, mas, raciocinando, arrependeu-se e tirou a mão vazia. O rapaz exclamou então:

— Patrão servi-o três anos o melhor que me foi possível; agora quero ver mundo e por isso peço que me pague as moedas que me deve.

— Tens razão! — respondeu o rico avarento — Fiquei sempre muito satisfeito com o teu trabalho e a tua boa-vontade, e por isso vou remunerar-te como mereces. Aqui tens três escudos novos; é um por cada ano que me serviste.

O rapaz, que andava sempre alegre e que era de uma grande simplicidade no que respeitava a dinheiro, julgou ter recebido uma fortuna que lhe permitiria viver vida folgada por largos anos.

Disse adeus ao antigo patrão e foi-se embora, atravessando montes e vales, cantando, saltando e alegre que nem um passarinho.

Ao acercar-se de um monte, viu sair um velhinho muito curvado que lhe gritou:

— Olá, companheiro, não pareces levar em conta os pesares à tua vida?!

— Que ganho eu em me apoquentar? — retorquiu o moço — Tenho na algibeira o soldo de três anos de trabalho.

— E a quanto monta essa fortuna?

— A três escudos novinhos, muito luzidios. Olha, sinto-os tilintar, quando lhes toco com as mãos.

— Ora ouve cá — tornou o gnomo, de bom coração como se vai ver. – Eu estou muito velhinho, e forças para trabalhar já não tenho; tu, que és novo e forte, estás ainda em bom tempo de ganhares a vida.

O rapaz, que era de boa índole, apiedou-se do velho gnomo e fez-lhe presente dos três preciosos escudos que tanto prazer lhe davam.

— Como és generoso — expressou-se então o gênio bom em figura de gnomo — dou-te licença para que me peças três coisas que são a paga dos teus três escudos.

— Então, pois sim! — fez o rapaz incredulamente — Isto que tu queres fazer é só do domínio das fantasias para entreter crianças. Mas, enfim, sempre quero experimentar. Desejo então: uma espingarda que acerte logo no que eu mire; um violino que tenha a virtude de forçar a todos bailar, quantos me ouçam e, finalmente, que toda e qualquer pessoa me conceda, sem mais nem menos, a graça que eu pedir.

— És modesto no pedir — retrucou o gnomo que, curvando-se, tirou do monte uma espingarda, e um bonito violino que se podia meter na algibeira. Aqui tens — continuou o gnomo ao os dar-lhe — e fica ciente de que serás servido sempre na primeira graça que solicitares.

O rapaz, jovialíssimo, continuou a sua rota. Depois de caminhar um bocado deparou-se-lhe um judeu, muito feio, com barbas de bode muito compridas e que estava absorto a ouvir o canto de uma avezinha.

— É extraordinário que um animal de tão pequeno talho, possua um trinado tão cheio. Quanto não daria eu para o ter engaiolado!

— Posso satisfazer o teu desejo — disse o rapaz que tinha ouvido as últimas palavras, e apontando a espingarda ao passarinho, este caiu atordoado em cima dos espinhos.

— Vá lá, seu maroto, vá lá buscar o passarinho.

— Tratas-me com crueldade — respondeu o judeu — mas não deixo de agradecer-te e vou apanhar a avezinha.

Em seguida meteu-se pelos espinhos custando-lhe a abrir caminho. De súbito o rapaz teve uma estupenda lembrança: principiou a tocar o violino. Logo o judeu ergueu as pernas e começou a saltar, a pular, a contorcer-se todo, ficando preso nos espinhos dos ramos, em que se achava e que lhe espicaçavam a cara, arrancando-lhe as barbas; ficou com o vestuário todo rasgado e a cara a escorrer sangue.

— Ai, ai! — lastimava-se o infeliz judeu — Sossega, aquieta-te, não toques mais nesse amaldiçoado instrumento, aqui não é lugar próprio para baile!

O azougado moço não fazia caso do pedido pensando com os seus botões:

— Este rabino esfolou tanto infeliz enquanto pôde, que é justo que seja esfolado agora!

E de novo tomou o violino tirando acordes mais ligeiros. O pobre judeu, forçado a acompanhar o compasso, pulava e saltava; a cara cada vez estava mais ensanguentada, o fato desfazia-se em farrapos e o pobre velho gemia de dor. De súbito gritou:

— Apieda-te de mim, pelas barbas de Abraão, que em paga te darei uma bolsa cheia de dinheiro que trago comigo.

— Alegras-me tanto com essa boa-nova que vou guardar o dinheiro. Antes, porém, quero dar-te os meus parabéns pela maneira graciosa e original por que danças! É uma perfeição!

O judeu então, entregando-lhe a bolsa que prometera, suspirou imenso, enquanto que o alegre moço continuou a andar, cantando. Quando já o não avistou, o rabino, não podendo conter o seu rancor, exclamou:

— Músico das dúzias, estás a dever comigo. Grande espertalhão! Hás de pagar-me a partida mais cara do que ossos!

Tendo com essa fala dado vazão ao seu ódio, seguiu por atalhos e alcançou a cidade mais próxima antes que o rapaz aparecesse. Uma vez lá, foi queixar-se ao juiz nestes termos:

— Venho aqui pedir justiça, senhor, para um maroto que me atacou, maltratou e roubou o que eu trazia. A prova de que não minto é olhar-me a maneira porque vem o fato e a minha cara. Forçou-me a dar-lhe a bolsa que trazia, cem moedas de ouro, que eram todo o meu pecúlio, as economias que consegui com o meu trabalho, o único bem que possuía. Faça todo o possível para que esse tesouro me seja restituído.

— Foi com alguma arma que o gatuno te pôs assim? — perguntou a autoridade.

— Nada, não senhor. Agarrou-me e arranhou-me. É ainda moço, e traz uma espingarda e um violino; com estes dados facilmente se identifica.

O magistrado pôs em campo os guardas, que depressa viram o indicado espertalhão, que muito tranquilamente se encaminhou para essa localidade. Deram-lhe voz de prisão e trouxeram-no ante o magistrado e o judeu, que repetiu a acusação.

— Não toquei nessa criatura nem com um dedo — defendeu-se o rapaz — assim como não lhe tirei à força o dinheiro que ele trazia; ofereceu-me da melhor vontade para que eu não tocasse mais no violino, cujos acordes o faziam nervoso!

— É mentira! — exclamou o rabino — Está a mentir impunemente!

— Está resolvida a questão? — ajuntou o magistrado — Pois é caso extraordinário um judeu dar de mão beijada uma bolsa com ouro, só por não ouvir um bocado de música. Pois senhor: a sentença do seu mau ato está lavrada: vai ser enforcado imediatamente!

O verdugo — que se havia ido chamar, segurou o inocente moço, conduziu-o à forca, que já estava erguida na praça principal onde acorreu toda a cidade em peso, e o rabino fora o primeiro a mostrar-se fazendo menção de socar o pobre condenado, vociferando:

— Espertalhão, vais ter a recompensa que te é devida!

O moço conservou-se muito tranquilo; subiu sozinho a escada apoiada à forca; ao chegar ao topo, virou-se para o juiz já togado, que viera vistoriar o patíbulo e solicitou-lhe:

— Antes de ter o nó na garganta, concede-me um derradeiro favor?

— Concedo — respondeu o magistrado — desde o momento em que não seja o perdão!

— Nada disso é, pois não sou tão exigente... desejava apenas tirar uns ligeiros acordes do violino!

Ao ouvir tais palavras, o rabino deu um estridente grito de susto e pediu encarecidamente ao juiz que não consentisse!

— Qual a razão porque não hei de conceder a graça que este homem me pediu, se é a única alegria que por instantes posso dar-lhe? Tragam-lhe o violino.

— Ai, meu Deus! — lamentou o rabino ao querer fugir, mas sem que lhe fosse possível abrir caminho pela compacta massa de povo que enchia a praça.

— Dou-lhe uma peça de ouro, — prometeu ele no auge da aflição — se me amarrar com força ao pau da forca!

Nesse instante, porém, o rapaz deu o primeiro toque no violino. O magistrado, o escrivão, o agente, os guardas, enfim tudo o que compunha o corpo da magistratura da terra, os circunstantes, o próprio judeu, tiveram um estremecimento; ao segundo toque, todos ergueram as pernas, o próprio verdugo desceu a escada e colocou-se em pé de dança.

O moço então — ao vê-los naquela pouco parlamentar atitude — tocou o mais possível, e agora os vereis: o povo fazia cabriolas; o juiz e o judeu saltavam como que movidos por molas; rapazinhos, velhos, magros, gordos, tudo dançava; se até os cães se erguiam nas patas de trás e dançavam como todos! O condenado deu uns acordes mais fortes e nessa ocasião era inexplicável o movimento: pareciam possessos de algum espírito ruim, batendo com as cabeças umas nas outras, pisando-se, acotovelando-se, atropelando-se. Gemiam com dores, e o magistrado, aflito, fatigadíssimo, pediu:

— Não toques mais que eu perdoo-te! Foi o que o moço quis ouvir, visto que, concordando que o gracejo fora longo, parou e guardou o violino no bolso, desceu os degraus e veio postar-se em frente do rabino que, fatigado, extenuado, exausto, se sentara na rua, respirando a custo.

— Agora és tu quem vais confessar a proveniência da bolsa que me deste, com peças de ouro. Não mintas, do contrário pego novamente no violino e tornas a dançar! — Tais as palavras que o rapaz dirigiu ao judeu, que confessou terrificado:

— Roubei-a, roubei-a, tu tiveste jus a ela pela tua honestidade; dei-a para que não tocasses mais no violino!

Aparecendo o juiz, já um pouco refeito do cansaço, inquiriu do que se havia passado e provando-se à evidência que tinha havido roubo, mandou enforcar o rabino.

Fonte: Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.