sexta-feira, 7 de junho de 2024

Aluísio de Azevedo (Inveja)

Era uma rica tarde de novembro. O sol acabava de retirar-se naquele instante, mas a terra, toda enrubescida, palpitava ainda com o calor dos seus últimos beijos.

O céu, vermelho e quente, debruçava-se sobre ela, envolvendo-a num longo abraço voluptuoso. De todos os lados ouvia-se o lamentoso estridular das cigarras e as árvores concentravam-se, murmurando, em êxtases, como se rezassem a oração do crepúsculo.

Àquela hora de recolhimento e de amor à natureza parecia comovida.

A noite abria lentamente no espaço as suas asas de paz, úmidas de orvalho, prenhes de estrelas que ainda mal se denunciavam numa palpitação difusa. Uma boiada recolhia ao longe, abeberando nos charcos do caminho e bois tranquilos levantavam a cabeça, com a boca escorrendo em fios de prata, e enchiam a solidão das clareiras com a prolongada tristeza dos seus mugidos. Num quintal, entre uma nuvem de pombos, uma rapariga apanhava da corda a roupa lavada que estivera a secar durante o dia, enquanto um homem, em mangas de camisa, passava pela estrada, cantando, de ferramenta ao ombro. De cada casa vinha um rumor alegre de família que se reúne para jantar, e, junto com latidos de cães e choros de criança, ouvia-se o contente palavrear dos trabalhadores em descanso, ao lado das mulheres e dos filhos.

Entretanto, um padre ainda moço, depois de passear silenciosamente à sombra das árvores foi  sentar-se, triste e preocupado, nos restos de uma fonte de pedra, cuja pobreza as ervas disfarçavam com a opulência da sua folhagem viçosa e florida. E aí ficou a cismar, perdido num profundo enlevo, como se o ardente perfume daquela tarde de verão fora forte demais para a sua pobre alma enferma de homem casto.

Estranhos e indefinidos desejos levantavam-se dentro dele, pedindo confortos de uma felicidade que lhe não pertencia e levando-o a cobiçar uma doce existência desconhecida, que seu coração magoado e ressentido mal se animava de sonhar por instinto.

E, assim, vinham-lhe à memória, com uma reminiscência dolorosa, todas as suas aspirações da infância. Ah! Nesse tempo, quanta esperança no futuro!.... Quanta inocência nas suas aspirações!... Quanta confiança em tudo que é da terra e em tudo que é do céu!... 

Nesse tempo não conhecia ele a luta dos homens contra os homens; não conhecia as guerras da inveja e as guerras da vaidade; não conhecia as humilhantes necessidades deste mundo; não conhecia ainda a responsabilidade da sua vida e não sabia como enquanto doía ambicionar muito e nada conseguir. Ah! Nesse tempo feliz, ele era expansivo e risonho. Nesse tempo ele era bom.

Mas, continuou a pensar, cruzando sobre o estômago as mãos finas e descoradas: – Enterraram-me numa casa abominável, para ser padre. Deram-me depois uma mortalha negra e disseram-me: “Estuda, medita, reza, e faze-te um santo! És moço? Pois bem! Quando o sangue, em ondas de fogo, subir-te à cabeça e quiser estrangular os teus votos, agarra aquele cilício e fustiga com ele o corpo! Quando vires uma mulher, cujo olhar úmido e casto, te faça sonhar os deslumbramentos do amor, bate com os punhos cerrados contra o teu peito e arranha tua carne com as  unhas, até que sangres de todo o veneno da tua mocidade! Fecha-te ao prazer e à ternura, fecha-te dentro da tua fé, como se fechasses dentro de um túmulo!”

E, com estas recordações, o infeliz quedara-se esquecido, a olhar cegamente para a paisagem que defronte dele ia pouco e pouco se desvanecendo e esbatendo nos crepes da noite; ao passo que no céu as estrelas se acendiam.

Desde que o destinaram a padre, sentia-se arrastado para a tristeza e para a solidão; achava certo gozo amargo em deixar-se consumir pela áspera certeza da sua inutilidade física. Não queria a convivência dos outros homens, porque todos tinham e desfrutavam aquilo que lhe era vedado — o amor, a alegria, a doce consolação da família. O que ele desejava do fundo do seu desgosto era morrer, morrer logo ou quando menos, envelhecer quanto antes; ficar feio, acabado, impotente; que o seu cabelo de preto e lustroso se tornasse todo branco; que o seu olhar arrefecesse; que os seus dentes amarelassem e a sua fronte se abrisse em rugas. Desejava refugiar-se covardemente na velhice como num abrigo seguro contra as paixões mundanas.

Sofria ímpetos de arrancar aquele seu coração importuno e esmagá-lo debaixo dos pés. Não se sentia capaz de domar a matilha que lhe rosnava no sangue; sobressaltava-se com a ideia de sucumbir a uma revolta mais forte dos nervos, e só a lembrança de que seria capaz de uma paixão sensual sacudia-o todo com um tremor frio de febre.

Todavia... replicou-lhe do íntimo da consciência uma voz meiga, medrosa, quase imperceptível — todavia, o amor deve ser bem bom!... 

E dois fios compridos escorreram pelas faces gélidas do padre.

Nisto o canto de um passarinho fê-lo olhar para cima. Na embalsamada cúpula de verdura que cobria a fonte o inocente intruso trinava ao lado da sua companheira.

O moço estremeceu e ficou a olhar fixamente para eles. Os dois passarinhos, descuidados na sua felicidade, conservavam-se muito unidos, como se estivessem cochichando segredos de amor. A fêmea estendia a cabeça ao amigo e, enquanto este lhe ordenava as penas com o bico, ela, num arrepio, contraía-se toda, com as asas levemente abertas e trêmulas. Depois, uniram-se ainda mais, prostrados logo pelo mesmo entorpecimento.

Então, o jovem eclesiástico, tomado de uma vertigem, levantou o guarda-chuva e. com uma  pancada lançou por terra o amoroso par.

Os pobrezinhos, ainda palpitantes de amor, caíram, estrebuchando a seus pés.

O padre voltou o rosto e afastou-se silenciosamente.   

No horizonte atenuava-se a última réstia de sol e o sino de uma torre distante começou a soluçar Ave Maria.

Fonte: Aluísio de Azevedo. Contos. Publicado originalmente em 1893. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (O samba da minha terra)


Compositor: Dorival Caymmi

O samba da minha terra deixa a gente mole
Quando se canta todo mundo bole, 
quando se canta todo mundo bole

Quem não gosta do samba bom sujeito não é
Ou é ruim da cabeça ou doente do pé

O samba da minha terra deixa a gente mole
Quando se canta todo mundo bole, 
quando se canta todo mundo bole

Eu nasci com o samba e no samba me criei
Do danado do samba nunca me separei

O samba da minha terra deixa a gente mole
Quando se canta todo mundo bole, 
quando se canta todo mundo bole

Quem não gosta do samba bom sujeito não é
Ou é ruim da cabeça ou doente do pé
Eu nasci com o samba no samba me criei
E do danado do samba nunca me separei

O samba da minha terra deixa a gente mole
Quando se canta todo mundo bole, 
quando se canta todo mundo bole
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

A Celebração do Samba na Voz de Caymmi
A música "Samba da Minha Terra", composta e interpretada pelo icônico Dorival Caymmi, é uma ode ao samba e à cultura baiana. A letra expressa o efeito contagiante do samba sobre as pessoas, sugerindo que a música deixa todos 'moles', ou seja, soltos e relaxados, prontos para dançar e se deixar levar pelo ritmo. A repetição do verso 'quando se canta todo mundo bole' reforça a ideia de que o samba é uma experiência coletiva, que une as pessoas em um movimento comum.

Caymmi também aborda a identidade cultural do samba, afirmando que quem não gosta desse gênero musical não é 'bom sujeito'. Essa expressão pode ser interpretada como uma brincadeira, mas também como uma maneira de dizer que o samba é tão essencial à cultura brasileira que não apreciá-lo seria quase um desvio de caráter. A música ainda destaca a relação pessoal do artista com o samba, mencionando que ele nasceu e cresceu com ele, e nunca se separou desse ritmo envolvente.

A canção é um retrato do samba como elemento fundamental da identidade cultural brasileira, especialmente na Bahia, terra natal de Caymmi. A simplicidade da letra e a melodia cativante refletem a essência do samba como uma expressão de alegria e comunhão. Dorival Caymmi, com sua voz marcante e estilo musical inconfundível, contribuiu significativamente para a popularização do samba e da música brasileira em geral.

Beatrix Potter (Conto do Sr. Tod)


Já fiz muitos livros sobre pessoas bem-comportadas. Agora, para variar, vou fazer uma história sobre duas pessoas desagradáveis, chamadas Tommy Brock e Sr. Tod.

Ninguém poderia chamar o Sr. Tod de “legal”. Os coelhos não o suportavam; eles podiam sentir seu cheiro a meia milha de distância. Ele tinha hábitos errantes e tinha bigodes de raposa; eles nunca sabiam onde ele estaria em seguida.

Um dia ele estava morando em uma casa de pau no matagal, causando terror à família do velho Sr. Benjamin Bouncer. No dia seguinte, ele se mudou para um salgueiro perto do lago, assustando os patos selvagens e os ratos d’água.

No inverno e no início da primavera, ele geralmente pode ser encontrado em uma terra entre as rochas no topo de Bull Banks, sob o campo de aveia.

Ele tinha meia dúzia de casas, mas raramente estava em casa.

As casas nem sempre estavam vazias quando o Sr. Tod se mudava; porque às vezes Tommy Brock se mudava para lá (sem pedir licença).

Tommy Brock era um texugo gordo, baixinho e eriçado com um sorriso; ele sorria em todo o rosto. Ele não era bom em seus hábitos. Ele comia ninhos de vespas, sapos e vermes; e ele gingava ao luar, desenterrando coisas.

Suas roupas estavam muito sujas, e como ele dormia durante o dia, sempre ia para a cama de botas. E a cama em que ia dormir era geralmente do Sr. Tod.

Agora, Tommy Brock ocasionalmente comia torta de coelho; mas eram apenas muito pequenos, quando outros alimentos eram realmente escassos. Ele era amigo do velho Sr. Bouncer; eles concordaram em não gostar das lontras perversas e do Sr. Tod; eles frequentemente conversavam sobre esse assunto doloroso.

O velho Sr. Bouncer foi ferido anos atrás. Ele se sentou ao sol da primavera fora da toca, em um cachecol, fumando um cachimbo de tabaco de coelho.

Ele morava com seu filho Benjamin Coelho e sua nora Flopsy, que tinham uma família jovem. O velho Sr. Bouncer estava encarregado da família naquela tarde, porque Benjamin e Flopsy haviam saído.

Os coelhinhos-bebês tinham idade suficiente para abrir os olhos azuis e chutar. Eles estavam deitados em uma cama fofa de lã e feno de coelho, em uma toca rasa, separada da toca principal do coelho. Para dizer a verdade, o velho Sr. Bouncer os havia esquecido.

Sentou-se ao sol e conversou cordialmente com Tommy Brock, que estava passando pela floresta com um saco e uma pequena batata que usava para cavar, e algumas armadilhas para toupeiras. Ele reclamou amargamente da escassez de ovos de faisão e acusou o Sr. Tod de caçá-los. E as lontras haviam limpado todos os sapos enquanto ele dormia no inverno.

– “Não como uma boa refeição há quinze dias, estou vivendo de nozes. Terei de me tornar vegetariano ou jantar meu próprio rabo!” disse Tommy Brock.

Não era bem uma piada, mas fez o velho Sr. Bouncer rir, porque Tommy Brock era tão gordo, atarracado e sorridente.

Então o velho Sr. Bouncer riu, e pressionou Tommy Brock a entrar, para provar uma fatia de bolo de sementes e “uma taça do vinho prímula de minha filha Flopsy”. Tommy Brock se espremeu na toca do coelho com entusiasmo.

Então o velho Sr. Bouncer fumou outro cachimbo e deu a Tommy Brock um charuto de folha de repolho que era tão forte que fez Tommy Brock sorrir mais do que nunca, e a fumaça encheu a toca. O velho Sr. Bouncer tossiu e riu, e Tommy Brock bufou e sorriu.

E o Sr. Bouncer riu e tossiu, e fechou os olhos por causa da fumaça do repolho. . .

Quando Flopsy e Benjamin voltaram, o velho Sr. Bouncer acordou. Tommy Brock e todos os filhotes de coelho haviam desaparecido!

O Sr. Bouncer não confessou que havia admitido alguém na toca do coelho. Mas o cheiro de texugo era inegável, e havia pesadas pegadas redondas na areia. Ele estava em desgraça; Flopsy torceu as orelhas e deu um tapa nele.

Benjamin Coelho partiu imediatamente atrás de Tommy Brock.

Não houve muita dificuldade em rastreá-lo; ele havia deixado a marca dos pés e subia lentamente a trilha sinuosa através da floresta. Aqui ele havia arrancado o musgo e a azeda da madeira. Lá ele cavou um buraco bem fundo e armou uma armadilha para toupeiras. Um pequeno riacho cruzava o caminho. Benjamin saltou levemente sobre o pé seco, os passos pesados do texugo apareciam claramente na lama.

A trilha levava a uma parte do matagal onde as árvores haviam sido derrubadas, haviam tocos de carvalho frondosos e um mar de jacintos azuis – mas o cheiro que fez Benjamin parar não era o cheiro de flores!

A casa de pau do Sr. Tod estava diante dele e, pela primeira vez, o Sr. Tod estava em casa. Não havia apenas o cheiro de raposa como prova disso – havia fumaça saindo do balde quebrado que servia de chaminé.

Benjamin Coelho sentou-se, olhando, seus bigodes estremeceram. Dentro da casa de pau, alguém deixou cair um prato e disse alguma coisa. Benjamin bateu o pé e saiu correndo.

Ele não parou até chegar ao outro lado da floresta. Aparentemente, Tommy Brock virou da mesma maneira. No topo da parede, havia novamente as marcas do texugo, e alguns pedaços de um saco ficaram presos em uma sarça.

Benjamin escalou o muro, em um prado. Ele encontrou outra armadilha para toupeiras recém-armada, ele ainda estava no encalço de Tommy Brock. Estava ficando no final da tarde. Outros coelhos estavam saindo para aproveitar o ar da noite. Um deles, sozinho, de casaco azul, estava ocupado caçando dentes-de-leão. — “Primo Pedro! Pedro Coelho, Pedro Coelho!” gritou Benjamin Coelho.

O coelho de casaco azul sentou-se com as orelhas em pé.

“Qual é o problema, primo Benjamin? É um gato? Ou John Stoat Ferret?”

“Não, não, não! Ele colocou minha família, Tommy Brock, em um saco, você o viu?”

“Tommy Brock? Quantos, primo Benjamin?”

“Sete, primo Pedro, e todos eles gêmeos! Ele veio por aqui? Por favor, diga-me rápido!”

“Sim, sim; não faz dez minutos desde… ele disse que eram lagartas; eu realmente pensei que eles estavam chutando muito forte, para lagartas.”

“Para que lado? Para que lado ele foi, primo Pedro?”

“Ele tinha um saco com algo vivo nele; eu o observei armar uma armadilha para toupeiras. Deixe-me usar minha mente, primo Benjamin, conte-me desde o início.” 

Benjamim o fez.

“Meu tio Bouncer demonstrou uma lamentável falta de noção para a sua idade;” disse Pedro pensativamente, “mas há duas circunstâncias esperançosas. Sua família está viva e chutando, e Tommy Brock deve estar cansado. Ele provavelmente irá dormir e ficará com eles para o café da manhã.” 

“Qual caminho?” 

“Primo Benjamin, comporte-se. Eu sei muito bem qual caminho. Como o Sr. Tod estava na casa de pau, ele foi para a outra casa do Sr. Tod, no topo de Bull Banks. Eu sei em parte, porque ele ofereceu para deixar qualquer recado na casa da irmã Rabo de Algodão; ele disse que estaria passando por lá.” (Rabo de Algodão casou-se com um coelho preto e foi morar no morro).

Pedro escondeu seus dentes-de-leão e acompanhou o pai aflito, que era todo ansioso. Atravessaram vários campos e começaram a subir a colina, os rastros de Tommy Brock eram claramente visíveis. Ele parecia ter largado o saco a cada dez metros, para descansar.

“Ele deve estar muito inchado, estamos logo atrás dele, pelo cheiro. Que nojento!” disse Pedro.

O sol ainda estava quente e inclinado nas pastagens da colina. No meio do caminho, Rabo de Algodão estava sentada em sua porta, com quatro ou cinco coelhinhos meio crescidos brincando ao seu redor; um preto e os outros marrons.

Rabo de Algodão tinha visto Tommy Brock passando à distância. Questionada se o marido estava em casa, ela respondeu que Tommy Brock havia descansado ali enquanto ela o observava.

Ele agradeceu e apontou para o saco, parecendo doer-se de tanto rir.

“Vamos embora, Pedro; ele vai cozinhá-los; vamos mais rápido!” – disse Benjamin Coelho.

Eles subiram e subiram; – “Ele estava em casa; vi suas orelhas negras espiando pelo buraco.” “Eles moram muito perto das pedras para brigar com os vizinhos. Vamos, primo Benjamin!”

Quando chegaram perto da floresta no topo de Bull Banks, foram com cautela. As árvores cresciam entre rochas amontoadas; e ali, debaixo de um rochedo – o Sr. Tod tinha feito uma de suas casas. Estava no topo de uma encosta íngreme; as rochas e os arbustos pairavam sobre ele. Os coelhos subiram com cuidado, ouvindo e espiando.

Esta casa era algo entre uma caverna, uma prisão e um chiqueiro em ruínas. Havia uma porta forte, que estava fechada e trancada.

O sol poente fazia as vidraças brilharem como uma chama vermelha, mas o fogo da cozinha não estava aceso. Estava bem arrumado com gravetos secos, como os coelhos podiam ver, quando espiavam pela janela.

Benjamin suspirou de alívio.

Mas havia preparações na mesa da cozinha que o fizeram estremecer. Havia um imenso prato de torta vazio com padrão de salgueiro azul, uma grande faca de trinchar e um garfo e um picador.

Na outra ponta da mesa havia uma toalha parcialmente aberta, um prato, um copo, uma faca e um garfo, saleiro, mostarda e uma cadeira – em suma, os preparativos para o jantar de uma pessoa.

Não havia ninguém à vista, nem coelhos jovens. A cozinha estava vazia e silenciosa, o relógio estava parado. Pedro e Benjamin encostaram o nariz na janela e olharam para dentro.

Então eles contornaram as pedras para o outro lado da casa. Era úmida e mal cheirosa, coberta de espinhos e sarças.

Os coelhos estremeceram em seus sapatos.

“Oh, meus pobres bebês coelhos! Que lugar horrível, nunca mais os verei!” suspirou Benjamim.

Eles se arrastaram até a janela do quarto. Estava fechado e trancado como a cozinha. Mas havia sinais de que essa janela havia sido aberta recentemente, as teias de aranha estavam remexidas e haviam pegadas sujas recentes no parapeito da janela.

A sala lá dentro estava tão escura que a princípio não conseguiram distinguir nada, mas eles podiam ouvir um barulho – um ronco lento, profundo e regular. E quando seus olhos se acostumaram com a escuridão, eles perceberam que alguém estava dormindo na cama do Sr. Tod, enrolado sob o cobertor. – “Ele foi para a cama de botas”, sussurrou Pedro.

Benjamin, que era todo ansioso, puxou Pedro do parapeito da janela.

Os roncos de Tommy Brock continuaram, grunhidos irregulares vindos da cama do Sr. Tod. Nada podia ser visto da jovem família.

O sol havia se posto, uma coruja começou a piar na floresta. Havia muitas coisas desagradáveis por aí, que seria melhor terem sido enterradas, ossos e crânios de coelho, pernas de galinha e outros horrores. Era um lugar chocante e muito escuro.

Eles voltaram para a frente da casa e tentaram de todas as maneiras mover o ferrolho da janela da cozinha. Eles tentaram enfiar um prego enferrujado entre os caixilhos das janelas; mas era inútil, especialmente sem luz.

Sentaram-se lado a lado, do lado de fora da janela, sussurrando e ouvindo.

Em meia hora a lua surgiu sobre a floresta. Brilhava forte, claro e frio, sobre a casa entre as rochas e na janela da cozinha. Mas, infelizmente, nenhum coelhinho foi visto!

Os raios da lua brilhavam na faca de trinchar e no prato de torta, e faziam um caminho de brilho pelo chão sujo.

A luz revelou uma portinha numa parede ao lado da lareira da cozinha — uma portinha de ferro pertencente a um forno de tijolos, daqueles antigos que se aqueciam com lenha.

E no mesmo instante, Pedro e Benjamin perceberam que sempre que eles balançavam a janela, a portinha oposta balançava em resposta. A jovem família estava viva, fechada no forno!

Benjamin estava tão excitado que foi uma sorte não ter acordado Tommy Brock, cujos roncos continuavam solenemente na cama do Sr. Tod.

Mas realmente não havia muito conforto na descoberta. Eles não podiam abrir a janela, e embora a jovem família estivesse viva – os coelhinhos eram incapazes de sair, eles não tinham idade suficiente para engatinhar.

Depois de muito cochichar, Pedro e Benjamin decidiram cavar um túnel. Eles começaram a cavar um ou dois metros abaixo da margem. Eles esperavam poder trabalhar entre as grandes pedras sob a casa, o chão da cozinha estava tão sujo que era impossível dizer se era de terra ou de lajota.

Eles cavaram e cavaram por horas. Eles não podiam fazer um túnel direto por causa das pedras, mas no final da noite eles estavam sob o chão da cozinha. Benjamin estava de costas, cavando para cima. As garras de Pedro estavam gastas, ele estava fora do túnel, arrastando a areia para longe. Ele gritou que era manhã – nascer do sol, e que os gaios estavam fazendo barulho lá embaixo na floresta.

Benjamin Coelho saiu do túnel escuro, sacudindo a areia das orelhas, limpou o rosto com as patas. A cada minuto o sol brilhava mais quente no topo da colina. No vale havia um mar de névoa branca, com as copas douradas das árvores aparecendo.

Novamente dos campos lá embaixo, na névoa, veio o grito furioso de um gaio – seguido pelo uivar agudo de uma raposa!

Então aqueles dois coelhos perderam completamente a cabeça. Eles fizeram a coisa mais tola que poderiam ter feito. Eles correram para seu novo túnel curto e se esconderam na extremidade superior dele, sob o chão da cozinha do Sr. Tod.

O Sr. Tod estava chegando a Bull Banks e estava no pior dos humores. Primeiro ele ficou chateado por quebrar o prato. Foi sua própria culpa, mas era um prato de porcelana, o último serviço de jantar que pertencera à sua avó, a velha Vixen Tod. Então os mosquitos estavam muito irritantes. E ele falhou em pegar um faisão em seu ninho, e continha apenas cinco ovos, dois deles estragados. O Sr. Tod teve uma noite ruim.

Como sempre, quando estava de mau humor, ele decidiu mudar de casa. Primeiro ele experimentou o salgueiro, mas estava úmido, e as lontras haviam deixado um peixe morto perto dela. O Sr. Tod não gostava das sobras de ninguém além das suas.

Ele subiu a colina, seu temperamento não melhorou ao notar marcas inconfundíveis de texugo. Ninguém mais arranca o musgo de forma tão arbitrária quanto Tommy Brock.

O Sr. Tod bateu com sua bengala na terra e fungou, ele adivinhou para onde Tommy Brock tinha ido. Ele ficou ainda mais irritado com o pássaro gaio que o seguia persistentemente. Ele voou de árvore em árvore e repreendeu, avisando a todos os coelhos que pudessem ouvir que um gato ou uma raposa estava subindo na plantação. Certa vez, quando voou gritando sobre sua cabeça – o Sr. Tod agarrou e uivou.

Ele se aproximou de sua casa com muito cuidado, com uma grande chave enferrujada. Ele fungou e seus bigodes se eriçaram. A casa estava trancada, mas o Sr. Tod tinha dúvidas se estava vazia. Ele girou a chave enferrujada na fechadura, os coelhos abaixo podiam ouvi-lo. O Sr. Tod abriu a porta com cautela e entrou.

A visão que encontrou o Sr. Tod na cozinha deixou-o furioso. Lá estava a cadeira do Sr. Tod, e o prato de torta do Sr. Tod, e sua faca e garfo e mostarda e saleiro e sua toalha de mesa que ele havia deixado dobrada na cômoda – tudo preparado para o jantar (ou café da manhã) – sem dúvida para aquele odioso Tommy Brock.

Havia um cheiro de terra fresca e texugo sujo, que felizmente superava qualquer cheiro de coelho.

Mas o que absorveu a atenção do Sr. Tod foi um ruído – um ronco regular, profundo e lento, vindo de sua própria cama.

Espiou pelas dobradiças da porta entreaberta do quarto. Então ele se virou e saiu de casa com pressa. Seus bigodes se eriçaram e a gola do casaco se arrepiou de raiva.

Durante os vinte minutos seguintes, o Sr. Tod continuou entrando cautelosamente na casa e saindo apressadamente de novo. Aos poucos, ele se aventurou ainda mais – direto para o quarto. Quando estava fora de casa, arranhava a terra com fúria. Mas quando ele estava lá dentro, ele não gostou da aparência dos dentes de Tommy Brock.

Ele estava deitado de costas com a boca aberta, sorrindo de orelha a orelha. Ele roncava pacificamente e regularmente, mas um olho não estava perfeitamente fechado.

O Sr. Tod entrava e saía do quarto. Duas vezes ele trouxe sua bengala e uma vez ele trouxe o balde de carvão. Mas ele pensou melhor e os levou embora.

Quando ele voltou depois de remover o balde de carvão, Tommy Brock estava deitado um pouco mais de lado, mas ele parecia ainda mais profundamente adormecido. Ele era um texugo incuravelmente indolente, ele não tinha o menor medo do Sr. Tod, ele era simplesmente muito preguiçoso e confortável para se mover.

O Sr. Tod voltou mais uma vez ao quarto com um varal. Ele ficou um minuto observando Tommy Brock e ouvindo atentamente os roncos. Eles eram realmente muito altos, mas pareciam bastante naturais.

O Sr. Tod virou as costas para a cama e abriu a janela. Ele rangeu, se virou com um salto. Tommy Brock, que abrira um olho — fechou-o apressadamente. Os roncos continuaram.

Os procedimentos do Sr. Tod foram peculiares e um tanto inquietos (porque a cama ficava entre a janela e a porta do quarto). Ele abriu um pouco a janela e empurrou a maior parte do varal para o peitoril da janela. O resto da linha, com um anzol na ponta, ficou em sua mão.

Tommy Brock roncava conscienciosamente. O Sr. Tod parou e olhou para ele por um minuto, então ele saiu da sala novamente.

Tommy Brock abriu os dois olhos, olhou para a corda e sorriu. Houve um barulho do lado de fora da janela. Tommy Brock fechou os olhos com pressa.

O Sr. Tod saiu pela porta da frente e deu a volta nos fundos da casa. No caminho, ele tropeçou na toca do coelho. Se ele tivesse alguma ideia de quem estava dentro, ele os teria retirado rapidamente.

Seu pé passou pelo túnel quase em cima de Pedro e Benjamin Coelho, mas felizmente ele pensou que era mais um trabalho de Tommy Brock.

Ele pegou o rolo de linha do parapeito, escutou por um momento e então amarrou a corda em uma árvore.

Tommy Brock o observava com um olho só, pela janela. Ele estava intrigado.

O Sr. Tod pegou um balde grande e pesado de água na fonte e cambaleou com ele pela cozinha até seu quarto.

Tommy Brock roncava diligentemente, bufando bastante.

O Sr. Tod largou o balde ao lado da cama, pegou a ponta da corda com o gancho – hesitou e olhou para Tommy Brock. Os roncos eram quase apopléticos, mas o sorriso não era tão grande.

O Sr. Tod cuidadosamente subiu em uma cadeira perto da cabeceira da cama. Suas pernas estavam perigosamente perto dos dentes de Tommy Brock.

Ele estendeu a mão e colocou a ponta da corda, com o gancho, sobre a cabeceira da cama, onde as cortinas deveriam cair.

(As cortinas do Sr. Tod foram dobradas e guardadas, devido à casa estar desocupada. Assim como a colcha. Tommy Brock estava coberto apenas com um cobertor.) O Sr. Tod, de pé na cadeira instável, olhou para ele atentamente, ele realmente era um dorminhoco de primeira categoria! Parecia que nada iria acordá-lo – nem mesmo a corda balançando na cama.

O Sr. Tod desceu são e salvo da cadeira e tentou levantar-se novamente com o balde de água. Ele pretendia pendurá-lo no gancho, acima da cabeça de Tommy Brock, para fazer uma espécie de banho de chuveiro, amarrado por uma corda, através da janela.

Mas, naturalmente, sendo uma criatura de pernas finas (embora vingativa e com bigodes cor de areia), ele foi incapaz de erguer o peso pesado até o nível do gancho e da corda. Ele quase se desequilibrou.

Os roncos tornaram-se cada vez mais apopléticos. Uma das patas traseiras de Tommy Brock estremeceu sob o cobertor, mas ele ainda dormia pacificamente.

O Sr. Tod e o balde desceram da cadeira sem acidente. Depois de pensar bastante, ele esvaziou a água em uma bacia e jarro. O balde vazio não era muito pesado para ele; ele o pendurou balançando sobre a cabeça de Tommy Brock.

Certamente nunca houve alguém mais dorminhoco! O Sr. Tod subia e descia, descia e subia na cadeira.

Como não conseguia erguer todo o balde de água de uma só vez, ele pegou uma jarra de leite e despejou litros de água no balde aos poucos. O balde ficava cada vez mais cheio e balançava como um pêndulo. Ocasionalmente, uma gota espirrou; mas ainda assim Tommy Brock roncava regularmente e nunca se movia – exceto um olho.

Por fim, os preparativos do Sr. Tod foram concluídos. O balde estava cheio de água; a corda estava bem esticada por cima da cama e pelo parapeito da janela até a árvore do lado de fora.

“Vai fazer uma grande bagunça no meu quarto; mas eu nunca mais conseguiria dormir naquela cama sem uma limpeza de primavera de algum tipo”, disse o Sr. Tod.

O Sr. Tod deu uma última olhada no texugo e saiu silenciosamente da sala. Ele saiu de casa, fechando a porta da frente. Os coelhos ouviram seus passos no túnel.

Ele correu atrás da casa, pretendendo desfazer a corda para deixar cair o balde d’água sobre Tommy Brock…

“Vou acordá-lo com uma surpresa desagradável”, disse o Sr. Tod.

No momento em que ele saiu, Tommy Brock levantou-se apressadamente; ele enrolou o roupão do Sr. Tod em uma trouxa, colocou-o na cama debaixo do balde de água em vez de si mesmo e também saiu do quarto – sorrindo imensamente.

Ele foi até a cozinha, acendeu o fogo e ferveu a chaleira, por enquanto não se deu ao trabalho de cozinhar os coelhinhos.

Quando o Sr. Tod chegou à árvore, descobriu que o peso e a tensão haviam puxado o nó com tanta força que era impossível desamarrá-lo. Ele foi obrigado a roer com os dentes. Ele mastigou e roeu por mais de vinte minutos. Por fim, a corda cedeu com um puxão tão repentino que quase arrancou seus dentes e o derrubou para trás.

Dentro da casa houve um grande estrondo e respingo, e o barulho de um balde rolando sem parar.

Mas sem gritos. O Sr. Tod ficou perplexo, ele sentou-se bem quieto e ouviu atentamente. Então ele espiou pela janela. A água pingava da cama, o balde rolara para um canto.

No meio da cama, sob o cobertor, havia algo achatado e úmido – muito amassado, no meio onde o balde o pegara (como se estivesse atravessado na barriga). Sua cabeça estava coberta pelo cobertor molhado e ele não roncava mais.

Não havia nada se mexendo e nenhum som, exceto o pingar, pingar, pingar, pingar da água escorrendo do colchão.

O Sr. Tod assistiu por meia hora, seus olhos brilhavam.

Então ele deu uma cambalhota e ficou tão ousado que até bateu na janela, mas o pacote nunca se moveu.

Sim – não havia dúvida – tinha saído ainda melhor do que ele planejara; o balde atingiu o pobre velho Tommy Brock e o matou!

“Vou enterrar aquela pessoa nojenta no buraco que ela cavou. Vou trazer minha cama e secá-la ao sol”, disse o Sr. Tod.

“Vou lavar a toalha de mesa e estendê-la na grama ao sol para branquear. E o cobertor deve ser pendurado ao vento; e a cama deve ser completamente desinfetada e arejada; e aquecida com um banho quente de garrafa de água.”

“Vou conseguir sabão macio, e sabão de macaco, e todos os tipos de sabão; esponjas e escovas; e pó persa; e carbólico (benzeno) para remover o cheiro. Preciso de um desinfetante. Talvez eu tenha que queimar enxofre.”

Ele correu pela casa para pegar uma pá na cozinha – “Primeiro vou arrumar o buraco – depois vou arrastar aquele texugo no cobertor…”.

Ele abriu a porta…

Tommy Brock estava sentado à mesa da cozinha do Sr. Tod, servindo chá do bule do Sr. Tod na xícara dele. Ele próprio estava bastante seco e sorridente, e jogou a xícara de chá escaldante em cima do Sr. Tod.

Então o Sr. Tod avançou sobre Tommy Brock, e Tommy Brock lutou com o Sr. Tod entre a louça quebrada, e houve uma batalha terrível por toda a cozinha. Para os coelhos embaixo, parecia que o chão cederia a cada estrondo de móveis que caíam.

Eles rastejaram para fora do túnel e ficaram pendurados entre as rochas e arbustos, ouvindo ansiosamente.

Dentro de casa o barulho era assustador. Os bebês coelhos no forno acordaram tremendo, talvez tenha sido uma sorte que eles estivessem trancados lá dentro.

Tudo estava bagunçado, exceto a mesa da cozinha.

E tudo estava quebrado, exceto a lareira e o guarda-lamas da cozinha. A louça foi esmagada em átomos.

As cadeiras estavam quebradas, a janela e o relógio caíram com estrondo, e havia punhados de bigodes cor de areia do Sr. Tod.

Os vasos caíram da lareira, as latas caíram da prateleira, a chaleira caiu do fogão. Tommy Brock colocou o pé em um pote de geleia de framboesa. E a água fervendo da chaleira caiu no rabo do Sr. Tod.

Quando a chaleira caiu, Tommy Brock, que ainda sorria, estava em primeiro lugar, e ele rolou o Sr. Tod repetidamente como um tronco, para fora da porta. Então os rosnados e as preocupações continuaram lá fora, e eles rolaram pela margem e desceram a colina, batendo nas rochas. Nunca haverá nenhum amor perdido entre Tommy Brock e o Sr. Tod.

Assim que a costa ficou limpa, Pedro e Benjamin Coelho saíram dos arbustos.

“Agora vamos! Corra, primo Benjamin! Corra e pegue-os! Enquanto eu fico de olho na porta.”

Mas Benjamin estava com medo.

“Oh, oh! eles estão voltando!”

“Não, eles não estão.”

“Sim, eles estão!”

“Que terrível palavrão! Acho que eles caíram na pedreira.”

Ainda Benjamin hesitou, e Peter continuou empurrando-o.

“Seja rápido, está tudo bem. Feche a porta do forno, primo Benjamin, para que ele não perceba.”

Decididamente, havia atividades animadas na cozinha do Sr. Tod!

Em casa, na toca do coelho, as coisas não eram muito confortáveis.

Depois de brigar no jantar, Flopsy e o velho Sr. Bouncer passaram uma noite sem dormir e brigaram novamente no café da manhã. O velho Sr. Bouncer não podia mais negar que havia convidado companhia para a toca do coelho, mas ele se recusou a responder às perguntas e censuras de Flopsy. O dia passou pesadamente.

O velho Sr. Bouncer, muito mal-humorado, estava encolhido em um canto, protegido por uma cadeira. Flopsy havia tirado o cachimbo e escondido o tabaco. Ela estava fazendo uma limpeza completa e limpeza de primavera, para aliviar seus sentimentos. Ela tinha acabado. O velho Sr. Bouncer, atrás de sua cadeira, se perguntava ansiosamente o que ela faria a seguir.

Na cozinha do Sr. Tod, entre os destroços, Benjamin caminhou nervosamente até o forno, em meio a uma espessa nuvem de poeira. Ele abriu a porta do forno, tateou dentro e encontrou algo quente e se contorcendo. Ele o ergueu com cuidado e se juntou a Pedro.

“Eu os peguei! Podemos fugir? Devemos nos esconder, primo Pedro?”

Pedro aguçou os ouvidos, sons distantes de luta ainda ecoavam na floresta.

Cinco minutos depois, dois coelhos ofegantes vieram correndo por Bull Banks, meio carregando meio arrastando um saco entre eles, solavancos na grama. Eles chegaram em casa com segurança e invadiram a toca do coelho.

Grande foi o alívio do velho Sr. Bouncer e a alegria de Flopsy quando Pedro e Benjamin chegaram triunfantes com a jovem família. Os bebês-coelhos estavam um tanto caídos e com muita fome, eles foram alimentados e colocados na cama. Eles logo se recuperaram.

Um longo cachimbo novo e um novo suprimento de tabaco para coelhos foram apresentados ao Sr. Bouncer. Ele estava bastante arrependido e envergonhado, mas ele aceitou.

O velho Sr. Bouncer foi perdoado e todos jantaram. Então Pedro e Benjamin contaram sua história – mas não esperaram o suficiente para poder contar o final da batalha entre Tommy Brock e o Sr. Tod.

Fonte: Beatrix Potter (escritora e ilustradora). O conto do sr. Tod. Publicado originalmente em 1912 como “The Tale of Mr. Tod”. Disponível em Domínio Público.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Vanice Zimerman (Tela de versos) 37

 

Fabiane Braga Lima (Reflexos)

Tudo que um dia amei, virou lembranças boas, muitas das vezes abstratas, mas como amei a cada segundo, enquanto eu pude. 

Hoje olhando para trás, pela janela da vida, vendo as estrelas brilharem no céu das memórias retidas, noto que bem no fundo de minha alma, todo amor se esvaindo. 

Preciso me segurar, mas não consigo, porque vejo o dia clareando e tudo esfumaçando. Nesta hora, penso nos amores prometidos, e eles parecem adormecidos, não querem acordar. 

Lembro-me dos pactos, marcas no corpo como digitais, tudo desapareceu no ar. E a abstrata e complexa neblina no ar, aos poucos, cobre-os! Não consigo ver seus rostos, apenas lembro-me de alguns momentos de euforia apenas.

Sinto que há tempos viraram lembranças então somente, nas quais insisto em buscar e nunca os ter aqui. O amor deve ser isto, poder ver no espelho da vida, ainda que esfumaçado, recordações que se partiram, ou nunca existiram. Não, talvez o amor seja o reflexo daquilo que imaginamos...!

Fonte: Enviado por Samuel C. da Costa

Recordando Velhas Canções (Porto Solidão)


Compositores: Gincko e Zéca Bahia

Se um veleiro repousasse
Na palma da minha mão
Sopraria com sentimento
E deixaria seguir sempre
Rumo ao meu coração

Meu coração, a calma de um mar
Que guarda tamanhos segredos
De versos naufragados e sem tempo

Rimas, de ventos e velas
Vida que vem e que vai
A solidão que fica e entra
Me arremessando contra o cais

Rimas, de ventos e velas
Vida que vem e que vai
A solidão que fica e entra
Me arremessando contra o cais

A solidão que fica e entra
Me arremessando
Contra o cais
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Navegando pela Solidão de Jessé
A música "Porto Solidão" interpretada por Jessé é uma verdadeira viagem pelas águas da introspecção e da melancolia. A letra utiliza a metáfora de um veleiro para representar a jornada da vida e os sentimentos do eu lírico. O ato de soprar o veleiro na palma da mão sugere um desejo de controle sobre o próprio destino, uma tentativa de guiar a vida em direção ao coração, ou seja, aos sentimentos mais verdadeiros e íntimos.

O coração é comparado ao mar, um lugar profundo que guarda segredos, versos perdidos e momentos que se foram com o tempo, como naufrágios que deixam vestígios no fundo da alma. A repetição das palavras 'rimas', 'ventos' e 'velas' evoca a ideia de que a vida é feita de ciclos, de coisas que vêm e vão, mas a solidão é o elemento constante que permanece, impactando o eu lírico de forma avassaladora, como as ondas que arremessam contra o cais.

A solidão descrita na música é quase tangível, e o cais representa o ponto de encontro entre a imensidão dos sentimentos e a realidade concreta. A música de Jessé, com sua melodia suave e ao mesmo tempo carregada de emoção, convida o ouvinte a refletir sobre a própria existência, as escolhas feitas e o peso da solidão que, por vezes, acompanha cada um de nós em nossa jornada pessoal.

Estante de Livros (“Bom crioulo”, de Adolfo Caminha)

A narrativa concisa, além da elaboração da linguagem, são elementos que conferem a Bom-Crioulo um lugar de destaque em nossa literatura. No entanto, seu maior mérito é conseguir alargar nosso campo de visão, primeiro por mostrar que o Naturalismo não está só nas mãos de Aluísio Azevedo. Em segundo lugar, por possibilitar uma discussão interessante no que se refere ao Determinismo e como o homem age em relação ao seu destino.

À primeira vista, esse debate poderia ser inspirado pelo que mais chama a atenção em sua história: o homossexualismo. No entanto, o autor não resvala por dois dos aspectos mais comuns desse assunto. Não há a questão de se levantar ou se esconder a bandeira da condição sexual. Além disso, não há a crise de identidade tão comum em tantas obras de mesma temática. Muito pelo contrário – a descoberta da preferência sexual deu ao protagonista mais força de viver.

Cabe aqui uma observação. Constantemente se diz que o homossexualismo é tratado nessa obra de forma crua e imparcial. De fato, o primeiro adjetivo pode estar correto, pois o sexo, na obra, faz-se de forma carnal, não havendo sublimação, o que é típico do Naturalismo, escola que apresenta o homem como animalizado, prisioneiro dos próprios instintos. No entanto, imparcialidade é um conceito questionável, pois a maneira como o narrador se refere aos atos íntimos de suas personagens – “atentado contra a natureza” – por si constitui um juízo negativo de valor.

No entanto, o homossexualismo não é a pedra de toque do romance, mas uma ponte para que se reflita sobre algo maior: até que ponto somos livres para decidir sobre nossa vida? Praticamente tudo na narrativa inspira essa questão.

De início, deve-se lembrar que Amaro, personagem principal, é escravo fugido. Quer ser dono de seu próprio destino. Até que num golpe de sorte (nem lhe perguntam sua procedência) é aceito como marinheiro, o que ampliará os horizontes. A possibilidade de viajar, conhecer mundo, faz com que alcance sua bem-aventurança, tanto que recebe o apelido de “Bom-Crioulo”, graças à sua benevolência que contrasta com seu porte físico – sempre descrito, é importante notar, como algo olímpico, superior ao físico dos brancos.

No entanto, a disciplina a que está submetido é outra prisão, que só vai ser percebida quando o protagonista conhece Aleixo, adolescente que trabalha como grumete na mesma corveta em que está Amaro.

Interessante é ter em mente que o protagonista ganha identidade graças ao outro. Entende por que suas duas experiências com mulheres foram fracassadas. Entende o que é ao descobrir do que gosta, o que o faz desencantar-se do meio em que está. Deixa de ser o marinheiro submisso. Tanto que o livro inicia-se com o relato das chibatadas que Amaro recebeu, justo por ter arranjado briga em defesa do menino. Detalhe: com essa técnica de sedução, o que Amaro consegue é mais gratidão do que amor.

Com a necessidade de reforma da corveta em que trabalham, os dois marinheiros são autorizados a descer no Rio de Janeiro. Amaro arranja um quarto na pensão de D. Carolina, antiga prostituta e que também colhe pelo protagonista uma enorme gratidão – ele a havia salvado de uma tentativa de assalto. Revela-se, mais uma vez, o espírito bondoso do Bom-Crioulo.

Aqui cabe mais uma observação. Não há reprovação nenhuma por parte da mulher quanto ao relacionamento que vê diante de si, ainda mais por Amaro ter mais de 30 e Aleixo pouco mais de 15. Ela entra no mesmo esquema do livro: não faz julgamentos nítidos. Tudo se passa meio torto, pela observação tangencial, indireta, do narrador sobre o que outras personagens falam. As questões morais não estão no cerne da obra. Esse mesmo toque tangente é visto no que se refere a sexo. Tem-se a coragem – pelo menos para os padrões da época – de se citar o que está ocorrendo, mas na hora de relatar, descrever, narrar o que de fato acontece, corre-se uma cortina de reticências.

Enfim, é criada uma estabilidade matrimonial efêmera. É digno de nota o que acontece entre os dois, quando se fecham no sujo quartinho de pensão. Amaro mais se delicia em admira o corpo do seu amado do que com o prazer sexual. Parece que o menino, além de dar ao protagonista identidade, dá também um sublime senso estético, ou algo próximo disso. É uma evolução, de certa forma.

Como já se disse, o equilíbrio da união é temporário. Em primeiro lugar, já se notam indícios de que não há amor, ou mesmo atração, mas gratidão de Aleixo por Amaro. Talvez isso justifique a impaciência do menino com a rotina do Bom-Crioulo admirar seu corpinho branco. Além disso, Amaro é transferido de navio, cujo capitão, extremamente rígido, só lhe dá folga uma vez por semana, ocasionando horários desencontrados entre os amantes – não se vêem mais, pois. E, para piorar, D. Carolina determina, como último capricho de senhora, seduzir o rapazinho, no que é vitoriosa. Estabelece-se, dessa forma, o mais estranho triângulo amoroso de nossa literatura, pois o elemento desestabilizador é uma mulher, que rompe justo a união de dois homens.

Insatisfeito, Amaro chega a beber, o que altera sua personalidade – é o único ingrediente que o faz radicalmente deixar de ser o Bom-Crioulo. Desequilibrado, arranja confusão e por causa disso recebe uma quantidade inominável de chibatadas. Baixa, portanto, a um hospital-prisão, em que mergulha no tédio da recuperação e do abandono. Chega a mandar um bilhete, pedindo a visita de seu amado, mas Dona Carolina inutiliza-o.

Solitário e frustrado, Amaro começa a ficar inquieto quando sabe, por meio de um companheiro que passa pelo hospital, que Aleixo estava de caso novo. Realiza, pois, mais uma fuga – sempre o tema da busca da liberdade – em direção da pensão. No caminho, a verdade é completada, o que o deixa mais furibundo, aspecto que se agrava pelo fato de já estar bebendo.

Então, o desfecho. De forma extremamente rápida, em meio à multidão, Amaro encontra Aleixo, mata-o e acaba sendo levado preso. O interessante é observar, neste momento, a movimentação da coletividade, acompanhando com curiosidade sórdida a cena para depois cair na apatia. Uma tragédia que mergulhava na anestesia do esquecimento.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

José Feldman (Analecto de Trivões) 30

 

A. A. de Assis (O Pijama)

Esnobar um pijama elegante, tecido fino, com o monograma bordado no peito, era um luxo de truz

Nos outroras da vida, os homens eram vidrados em pijamas. De noite, depois do banho, os varões da casa vestiam o listrado, jantavam, sentavam-se numa cadeira de vime, as mulheres ao lado fazendo tricô, os compadres e vizinhos em volta contando casos, falando de política, de negócios, eventualmente de futebol, ou contando anedotas de papagaio.

Esnobar um pijama elegante, tecido fino, com o monograma bordado no peito, era um luxo de truz. Havia, claro, quem reparasse nisso, dizendo que pijama era coisa íntima, para usar no quarto de dormir, e não para se ficar vestido nele na sala, diante de senhoras e das visitas.

Mas os guapos janotas não resistiam à tentação de embrulhar-se na macia indumentária e tirar proveito das noites de verão para os seus compridos papos.

Com o tempo essa moda foi acabando. Porém existem ainda alguns amantes do conforto que até hoje não conseguem entender o ato de dormir sem o simultâneo ato de se empijamar. Até para a cochilada após o almoço, quinze minutos que sejam, acham indispensável trocar a calça e a camisa pelo pijama, sem o qual o repouso não parece repouso.

Ouvi falar de um que todo dia, no meio da tarde, fechava a sala dele no escritório por dez minutos e se empijamava para tirar uma pestana.

O mais ilustrativo, entretanto, é o caso de um ultracaprichoso muito simpático que morou durante alguns anos em Maringá. Um bem-humorado engenheiro, bastante conhecido, cujo nome vou omitir por mera e óbvia discrição. Quem me contou a história foi um amigo dele, que viajou em sua companhia num roteiro turístico pela Europa.

Para ganhar tempo, quem sabe também para economizar um pouco evitando pagar diárias de hotéis, costumavam deslocar-se à noite de um país para outro em ônibus-leito.

Acontece que, assim que o ônibus partia e se apagavam as luzes, o engenheiro abria a pasta 007, pegava um pacote muito bem arrumadinho e se trancava no sanitário de bordo. Voltava minutos depois vestido num belo pijama.

O companheiro de viagem, conhecedor das suas idiossincrasias, começava logo a fazer gozação e inevitavelmente os demais passageiros acabavam também botando cara de ponto de exclamação. Numa dessas ocasiões, até o ajudante do motorista veio lá da cabine perguntar se estava havendo algum problema.

O ilustre, contudo, nem te ligo. Esticava a poltrona, dava boa noite, cobria-se com o cobertor e roncava em dó sustenido, como se estivesse em casa. “Isto não é um carro-leito? Pois é, se é leito, é pra gente dormir… e se é pra dormir tenho que vestir pijama”.

Certo ele? Claro que sim. Não sei se eu teria a coragem de fazer a mesma coisa, mas fica aqui a ideia para o primeiro desinibido que for viajar de leito para São Paulo ou Balneário Camboriú. Creio que não haja nenhuma lei proibindo o uso de pijama no ônibus.

Contos das Mil e Uma Noites (A justiça de Karakouss)

Karakouss foi um dos déspotas mais esquisitos da história.

Seu nome tornou-se símbolo da injustiça, e a sua injustiça tinha um cunho especial, como mostra a seguinte história:

Quando Karakouss era governador do Cairo, um ladrão tentou entrar numa casa para roubar. Escalou a parede até a janela. Mas a moldura da janela cedeu, e o ladrão caiu na rua, quebrando a perna. 

No dia seguinte, o ladrão se apresentou perante o governador e disse: “Vossa Excelência, eu sou um ladrão de profissão. Ontem, tentei entrar numa casa para roubar, mas a moldura da janela era muito fraca; cedeu, e caí e quebrei a perna.” 

Karakouss ordenou aos seus guardas que trouxessem o proprietário da casa. O proprietário chegou, trêmulo. O governador repetiu-lhe a narração do ladrão e acrescentou: “Por que fizeste a moldura da tua janela tão fraca que cedeu e levou este pobre ladrão a quebrar a perna?” 

O homem empalideceu; mas ele conhecia o governador. Refletiu rapidamente e disse: “Excelência, não foi culpa minha. Eu paguei ao carpinteiro o bastante para que ele fizesse uma moldura resistente. Por que a fez fraca, não sei.” 

- Bem pensado, disse o governador. Trazei-me o carpinteiro. 

Quando o carpinteiro se apresentou, Karakouss lhe disse: “Este homem diz que te pagou o suficiente para que instalasses uma boa janela em sua casa. Por que fizeste a moldura da janela fraca demais para aguentar o peso desse pobre ladrão, que caiu e quebrou a perna?” 

O carpinteiro respondeu: “Excelência, não foi culpa minha. Quando estava instalando a moldura, uma moça bonita e vestida de vermelho passou na rua; distraí-me e esqueci de colocar os pregos necessários.” 

Karakouss mandou averiguar quem era a beldade e ordenou que a trouxessem. 

Quando ela chegou disse-lhe: “Foi por causa da tua beleza e do teu vestido vermelho que este carpinteiro não fixou bem a moldura da janela e, por consequência, este pobre ladrão caiu e quebrou a perna.” 

A moça respondeu: “Excelência, a minha beleza é de Alá, e o meu vestido, do comerciante da esquina.” 

-Trazei-me o comerciante, gritou Karakouss na sua procura da justiça absoluta. 

Quando o comerciante chegou, Karakouss lhe disse: “Tu, miserável comerciante! Por que vendeste um vestido vermelho a essa moça fazendo-a distrair o carpinteiro no seu trabalho e causando a infelicidade desse pobre ladrão?” 

O comerciante não soube o que responder, e Karakouss ordenou aos seus guardas: “Levai-o e enforcai-o na porta da prisão.” 

Mas o comerciante era muito alto para a porta da prisão. Os guardas inteiraram o governador do fato. 

Karakouss tinha resposta para tudo. Ordenou: “Procurai um comerciante baixinho e enforcai-o no lugar deste.” 

Os  guardas procuraram um comerciante baixinho, trouxeram-no apesar dos seus protestos e enforcaram-no na porta da prisão.

Assim, foi cumprida a justiça de Karakouss.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.