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quinta-feira, 20 de julho de 2023
A. A. de Assis (Amigos ou Conhecidos)
Dia desses bati um papo com o amigo Luiz Carlos Altoé, nosso genial Kaltoé, misto de cartunista e filósofo. Conversa vai, conversa vem, começamos a matutar sobre o que seria de fato amizade. De logo lá estava eu parafraseando o compositor argentino Atahualpa Yupanqui, imortalizado na voz de Mercedes Sosa: “Yo tengo tantos amigos (hermanos), que no los puedo contar…”
A propósito, quantos amigos você tem? Não precisa explicar. Poucos ou muitos, ninguém sabe quantos tem. Você não sabe, eu também não sei, tampouco o sabe o Kaltoé.
Até porque é deveras complicado definir amigo (… palavrinha hum-hum essa tal de “deveras”, mas deixa pra lá). Na verdade, há uma escala: amigo – colega – vizinho – parceiro – conhecido.
Amigo pra valer é aquele com quem você pode contar em tempo integral. Pode ser parente ou não. É alguém a quem você recorre em qualquer circunstância, alguém com quem você partilha suas confidências, alguém que você recebe em sua casa como se de casa fosse, alguém cuja companhia lhe dá sempre o maior prazer.
Colega é um companheiro de escola, de trabalho, de clube, às vezes uma pessoa generosa e leal, outras vezes um competidor ou rival.
Vizinho é alguém que mora perto de você e com quem você frequentemente encontra, variando, porém, o grau de intimidade, desde o que se torna parte da sua família até aquele que apenas lhe dá bom-dia.
Parceiro é aquele com quem você pratica algum tipo de esporte ou com quem você habitualmente faz negócios, também variando o nível de intimidade e confiança. Conhecido é alguém que sabe da sua existência, sabe o seu nome, costuma vê-lo de vez em quando e ocasionalmente até conversa com você.
Os que chegamos a Maringá no começo da cidade tivemos uma experiência muito forte do que significa amizade. Viemos todos de lugares diferentes, em maioria sozinhos, alguns só o casal ou trazendo filhos pequenos. Era uma aldeia de desconhecidos. Se alguém tinha uma emergência, pedir ajuda a quem?… Há histórias muito bonitas na memória de nossa boa gente.
Numa fila para tomar vacina ouvi um pioneiro contar que poucas semanas após sua chegada à cidade, no início dos anos 1950, ele e sua então jovem esposa passaram por uma situação bastante difícil. Estavam fazendo um conserto no telhado e caíram juntos no chão. Sem condição de um ajudar o outro, ele gritou pedindo socorro. Alguns vizinhos vieram correndo, fizeram o que podia ser feito na hora, mas os ferimentos eram graves e havia necessidade de atendimento médico.
“Vamos levar para a Santa Casa”, disse alguém. Mas como?… Ninguém ali tinha carro nem telefone para chamar um táxi ou ambulância. Apareceu então outro vizinho, que morava um quarteirão adiante. Ele estava numa carrocinha puxada por um cavalo e se ofereceu para conduzir os acidentados. Ficou no hospital com eles até que fossem feitos os curativos e pudessem voltar para casa.
Embora morassem próximos, foi a primeira vez que o jovem casal e o dono da carrocinha conversaram. Depois desse episódio se tornaram amigos tão íntimos que em pouco tempo se fizeram compadres. Aliás a vizinhança toda estreitou amizade e logo virou uma comunidade.
(Publicado no Jornal do Povo em 13 julho 2023)
Fonte:
Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XXV
Vou caminhando pelo mundo afora
e lembrando dos tempos já vividos.
Quantos sonhos de amor, mas vejo agora
que muitos sonhos foram destruídos.
Por que devo chorar? A nova aurora
traz a luz de outros sonhos coloridos
e me dizem que o sonho de quem ora
é mais bonito em todos os sentidos,,.
As árvores já secas e esquecidas
ressurgem verdejantes na floresta,
tornando-se mais belas e floridas...
Também minha poesia é uma seresta
que se renova quase às escondidas
ao som do nosso amor, que vive em festa!
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CURVA DO CAMINHO
Eis-me chegando à curva do caminho,
onde vejo os escombros do passado:
a casa em que nasci, cresci, malgrado
o quarto de dormir em desalinho.
Não me faltou, porém, muito carinho
vivendo no Sertão injustiçado,
onde o "mandante" sempre desalmado,
faz, o pobre sofrer, no Pelourinho...
No entanto, a vida é bela e deslumbrante,
mesmo que a estrada se apresente escura
sempre brilha uma luz ao viajante...
...E quando eu me tornar uma saudade,
minha alma esquecerá a desventura
para cantar, em verso, a Eternidade!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
MEU AMOR
Quando surge, no céu, a luz da lua
espalhando seus raios pelo chão,
eu me transponho para aquela rua
onde te dei amor, meu coração.
Desde então, minha vida te cultua
no prazer de viver esta emoção,
e espero que a rotina não destrua
nosso ninho de amor, nossa paixão.
À noite, o céu de estrelas se ilumina,
um convite à ternura que domina
e cresce o sentimento entre nós dois...
E no leito de amor, onde deslizo,
sinto o prazer que vem do paraíso,
por que, então, adiar para depois?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
O PODER DO AMOR
Quanto mais penso no poder que o amor
exerce sobre mim e me fascina,
convenço-me, serás o meu torpor,
não importa o que diz a medicina.
Se estás comigo, sinto o teu calor
e uma paz silenciosa me domina,
o tempo não mais corre com rancor
e o teu olhar, meus olhos, ilumina.
Eu quero me prender neste pecado,
e em teu amor ficar acorrentado
como fiquei nos versos que compus.
E prometo cantar com tal Doçura
uma canção de Paz e de Ventura
que o nosso Amor nos levará à Luz!
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TEMPO DE AMOR
Tempo nublado. O céu chorou. Eu juro.
A tempestade chegará em breve.
O mar se enfureceu, ficou escuro
e nadar por aqui ninguém se atreve.
O tempo está instável e asseguro
na solidão meu lápis não escreve,
bem sabes, meu amor, fico seguro
ouvindo a tua voz, suave e leve...
E quando a chuva terminar, enfim,
vamos sair por aí dizendo sim
em beijos e carícias só nós dois.
Não importa se o céu vai se zangar
e a chuva, uma vez mais, recomeçar,
- não deixo nosso amor para depois.
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UM DOMINGO DE SOL
Domingo. Estou só, não há ninguém,
só caneta, papel e inspiração,
a saudade já chega a Itanhaém
e agita, sem querer, meu coração.
Quero escrever um verso. Sou refém
deste sonho de amor, desta ilusão
de acreditar que o ser humano tem
poder para mudar esta opressão.
Quisera transformar este planeta
usando o livro e até minha caneta,
e partilhar a sensação do amor.
Talvez, agindo assim nosso futuro
possa ser mais feliz e mais seguro
neste Universo belo, encantador!
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Fontes:
– Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.
Enviado pelo autor.
– Blog Literário do Filemon (https://blogliterariofilemon.blogspot.com/)
Carolina Ramos (Meus Gatos…)
Chega a vez dos queridos bichanos! Sempre tive uma queda especial por gatinhos. Não, apenas, quando pequeninos, graciosos e brincalhões como ninguém, mas também, quando adultos, por conta da personalidade sensivelmente especial e fidalga que todos os gatos têm.
Posso afirmar que essa preferência pelos bichanos começou ainda lá naquele lindo bangalô da Alexandre Herculano.
Um... mais um... Outro... e mais outro... Aos poucos, foram chegando de manso, passos macios, integrando-se à vida algo solitária daquela garota e misturando suas próprias vidas às dos personagens dos livros que a rodeavam - todos eles tornando-se, afinal, companheiros indispensáveis.
Desde cedo, eu amava a leitura e também nunca deixei de ter um gatinho ao meu lado, quando entregue à minha paixão pelos livros.
Estudava e me divertia com eles, quando não aderia à turma da meninada vizinha, somando-me às brincadeiras na calçada.
De raspão, um suspiro de saudade: - Bons tempos em que a criançada podia brincar nas calçadas. Sem medos, sem sustos, livre de dependências e sem sonhar com os viciantes vídeo-games, whatsapps, computadores, etc. Bastava-lhes, tão somente, ser criança!
- E para que mais?! A própria vida, sem preocupações maiores, era um sedutor cofre de segredos. Segredos, a serem descobertos aos poucos, sem pressa, com naturalidade, longe de impactos traumáticos.
A sadia aventura de viver transformava a existência num dos mais dinâmicos e fascinantes brinquedos, em perene evolução, ao correr dos tempos. E era tão delicioso ser, apenas, criança!
...oOo...
Um daqueles primeiros bichaninhos a mim chegados fez história, que merece ser contada. Quando deixamos a Vila dos Andradas, fizemos o que todos procuravam fazer naquele tempo, ou seja, morar o quanto mais perto possível do mar.
Tinha eu apenas cinco anos, ao mudarmos para o bangalô da rua Alexandre Herculano, não tão próximo da praia do Gonzaga, mas já largo passo dado em direção à orla. Além do mais, passo bastante oportuno, já que me aproximava do Colégio São José, que se integraria à minha vida e no qual fui logo matriculada, no Jardim a Infância.
Quando completei oito anos, meus pais deram-me de presente um piano. Eu gostava muito de música e, como se sabe, piano era o toque refinado e indispensável à educação das meninas, naquele tempo.
Nina Mazagão Alcover - o nome da Professora de Música de quem meu pai adquiriu aquele meu querido piano, genuinamente alemão, embora negro como ébano e a ostentar belo e alvo sorriso de marfim. Ao que ouvi dizer, os pianos daquela marca, Steinway, eram os preferidos de Liszt e de Chopin, em seus concertos, embora naquele tempo, para mim, isto pouco, ou nada, representasse.
O Orfeão do Colégio São José estava sob os cuidados dessa mestra, irmã do conhecido maestro Zico Mazagão.
Dona Nina residia ao lado do Colégio São José, Rua Goiás, paralela à que eu morava. Eram, portanto, relativamente próximas as nossas casas.
E, assim sendo, foi ela a escolhida para ensinar meus dedinhos a deslizarem sem tropeços, ao longo daquele sonoro teclado que acolhia meu toque infantil, cheio de esperanças.
E é neste justo instante que o principal dono desta página entra em cena, chamando para si o espaço que lhe pertence.
E se isto acontece, é porque a Professora Nina Mazagão tinha um gato, o Cetim. Lindo gato branco, sem um pelo sequer que destoasse daquela alvura idêntica à do coelhinho que saltitou nas páginas anteriores.
E era sempre o Cetim que, ronronante, me aguardava no alto da escada, toda vez que eu chegava para a aula de música, trazendo comigo o primeiro método de piano– o Schmoll.
Àquele tempo, confesso, meu interesse musical não era o mesmo que, mais adiante me levaria a terminar o curso de música, até com certo destaque, muito embora a timidez só permitisse que eu tocasse com plena eficiência, quando o fazia para mim mesma, confinada entre as paredes do meu lar, longe de qualquer aplauso. Ou seja, a música que eu tocava era apenas para meu único e exclusivo deleite. Não por egoísmo, mas por pura timidez.
Vez ou outra, em qualquer tempo, e com raríssimas exceções, eu concedia em tocar para minha mãe (que as mães são teimosas - quando querem, querem!) ou, ainda, obrigatoriamente, à frente de uma banca examinadora, a cada final de ano, o que, também não admitia fugas - a não ser as de Bach, das quais, obviamente, nenhum estudante de música escapa.
Na verdade, o público, em qualquer tempo, sempre me apavorou! E para vencer boa parte desse constrangimento, bem sei o quanto me custou... e ainda custa, muito embora eu me auto desafiasse, ao iniciar-me na poesia, adentrando corajosamente nessa praça que exige certa desenvoltura.
Um dos primeiros microfones posto, de improviso, à minha frente, levou-me à madura conclusão: - Se escolhi este campo... ou me venço, ou serei vencida".
Voltando ao Cetim, Dona Nina, com sua tarimba, percebeu logo que o interesse daquela "pianista" iniciante era bem maior pelo gato, do que propriamente pelo piano. E, sutilmente, soube explorar tal descoberta, no intuito de agilizar o progresso musical daquela aluna, ainda bastante instável.
Foi assim que, ao final de uma certa aula, ouvi, deliciada, a promessa que jamais esperara ouvir: - "Carolina... no dia em que você terminar o Schmoll, poderá levar o Cetím para sua casa. Ele será todo seu!"
Claro... Não poderia haver maior empurrão para que aqueles dedinhos iniciantes se agilizassem, ao deslizarem pelo teclado!
Como já foi dito, eu tinha apenas oito anos de idade e meu pai adquirira da própria dona Nina, aquele lindo e nobre piano alemão que, por larga fase de minha vida seria o meu amigão inseparável, com quem eu iria aprender a adoçar e compartilhar emoções de cada dia.
Entretanto... Naquela feliz e irresponsável idade, tudo o que a tal garotinha menos desejava, após o entusiasmo inicial, era gastar "seu precioso tempo" trancada numa sala a conversar digitalmente com as teclas de um piano, obrigada a correr atrás de fusas e semifusas que, ligeiras, fugiam dos seus dedos ainda curtos e bem pouco ágeis.
..."Aí... que saudade que eu tenho da aurora da minha vida... da minha infância querida, que os anos não trazem mais...", canto em dueto com o nosso Casimiro de Abreu, as delícias daqueles tenros oito anos de vida, ao relembrar o estímulo causado pela promessa da professora que conseguiu fazer com que sua jovem aluna, empenhada em ganhar aquele gato dos seus sonhos, se esforçasse sensivelmente, vencendo rápido, as dificuldades do Schmoll para chegar logo, vitoriosa, à derradeira página.
E foi o que aconteceu, num dia feliz que não se fez distante:
- Schmoll galhardamente vencido, finda a aula, voltei triunfante para casa trazendo nos braços aquele lindo gatão - meu primeiro e cobiçado Troféu: - Cetim!
Há, contudo, uma ressalva que precisa ser relatada embora não me credencie bem, ou seja; - com aquela mesma pressa com que terminei o Schmoll para ganhar o gato, também me desinteressei pelo piano!
- Certamente... para ganhar mais tempo para brincar com o bichano, é claro! O que é fácil de entender.
Quem duvidaria de que o Cetim, uma vez conquistado, não iria oferecer maiores atrativos aos oito anos daquela garotinha, já prematuramente enfastiada com aquela obrigação diária de dedilhar notas musicais que exigiam dela um esforço ainda não de todo compatível com o seu amor à música? - Amor esse apenas desenvolvido, com força total, na adolescência?!
Pois é... Foi assim, que aquele querido piano alemão, fechado e mudo, esperou pacientemente por longos anos, que eu crescesse e, afinal, fosse cativada pela musicalidade que ele, paciente e silenciosamente me oferecia. A longa espera, afinal, foi compensada. A tal ponto, que sua dona não mais lhe dispensava a companhia e nem a trocava por nenhuma outra.
Apesar disso, mesmo sabendo o quanto iria sentir sua falta, anos mais tarde, doei meu piano à minha primogênita - mais dotada que a mãe, para música.
Mas... esta é uma outra história que não cabe aqui. E como um piano apesar de encantar... não mia, não late... e nem bicho é, que fique caladinho lá onde está... uma vez que este espaço pertence exclusivamente aos bichanos.
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continua…
Fonte:
Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023.
Enviado pela autora.
quarta-feira, 19 de julho de 2023
Contos das Mil e Uma Noites (O saco prodigioso)
Contam que o califa Harun Al-Rachid, atormentado certa noite pela insônia, apelou a Jafar, seu vizir, para que lhe proporcionasse algum divertimento. Jafar respondeu: “Ó Emir dos Crentes, tenho um amigo chamado Ali que sabe uma porção de histórias deliciosas, ótimas para apagar as mágoas e acalmar os ânimos irritados!”
Ali foi imediatamente chamado à presença do califa, e o califa disse-lhe:
“Escuta, Ali! Disseram-me que conheces histórias capazes de dissipar a mágoa e de trazer o sono. Desejo de ti uma dessas histórias.”
Ali respondeu:
“Ouço e obedeço, ó Emir dos Crentes! Porém, não sei se devo contar-vos algo que tenha ouvido com meus ouvidos ou que haja visto com meus olhos!”
Al-Rachid disse:
“Prefiro uma história de que tu mesmo participes!”
Então, disse Ali:
“Um dia, estava eu sentado em minha tenda, vendendo e comprando, quando chegou um curdo para negociar comigo alguns objetos; mas, de repente, apoderou-se de um saco que eu tinha diante de mim, e sem se dar sequer ao trabalho de ocultá-lo, quis levá-lo, como se fosse de sua absoluta propriedade. De um salto, agarrei o curdo pela aba da roupa e exigi que me devolvesse o saco; mas ele encolheu os ombros e disse: “Ora este saco é meu com tudo o que contém!” Então, gritei o mais alto que pude: “Ó muçulmanos, salvai das mãos deste infiel o que é meu!” Ao ouvir meus gritos, todo o mercado agrupou-se em redor de nós, e os mercadores me aconselharam a queixar-me ao Cádi.
“Quando chegamos à presença do cádi, mantivemo-nos de pé respeitosamente, e começou ele por perguntar-nos: “Quem de vós é o querelante e de quem se queixa?” O curdo, então, sem dar-me tempo para abrir a boca, adiantou-se alguns passos e respondeu:
“Dê Alá seu apoio a nosso amo, o cádi! Este saco é meu. Pertence-me com todo o seu conteúdo. Havia-o perdido, e acabo de reencontrá-lo diante deste homem!”
“O cádi perguntou-lhe:
“Quando o perdeste?”
“O curdo respondeu:
“Ontem, e sua perda impediu-me de dormir à noite!”
“O cádi disse-lhe:
“Enumera-me os objetos que contém!”
“Sem titubear um instante, respondeu o curdo:
“Em meu saco, ó nosso amo cádi, há um lenço, dois copos de limonada com a borda dourada, duas colheres, um almofadão, dois tapetes para mesa de jogo, duas panelas com água, duas cestas de vime, uma bandeja, uma marmita, um depósito de água de barro cozido, uma caçarola de cozinha, uma agulha grossa de fazer malha, dois sacos com provisões, uma gata, duas cadelas, uma vasilha com arroz, dois burros, duas liteiras para mulher, um traje de pano, duas peliças, uma vaca, dois bezerros, uma ovelha com dois cordeiros, uma fêmea de camelo com dois camelinhos, dois dromedários de carga com suas fêmeas, um búfalo, dois bois, uma leoa com dois leões, uma ursa, dois zorros, duas camas, um palácio com dois salões de recepção, duas tendas de fazenda verde, dois dosséis, uma cozinha com duas portas e uma assembleia de curdos de minha espécie, dispostos a dar fé de que este saco é meu saco.”
“Então o cádi olhou para mim e perguntou-me:
“E que tens tu para contestar?”
“Eu, ó Emir dos Crentes, estava estupefato com tudo aquilo. Entretanto, avancei um pouco e respondi:
“Que Alá leve e honre o nosso amo cádi! Eu sei que em meu saco há somente um pavilhão em ruínas, uma casa sem cozinha, um canil, uma escola de adultos, uns jovens jogando dados, uma guarida de salteadores, um exército com seus chefes, a cidade de Basra e a cidade de Bagdá, o palácio antigo do emir Chedad-Ben-Aad, um forno de ferreiro, um caniço de pescar, um cajado de pastor, cinco rapazes e doze donzelas intatas e mil condutores de caravanas dispostos a jurar que este saco é meu!”
“Quando o curdo ouviu minha resposta, irrompeu em choro e soluços, e depois exclamou com a voz entrecortada por lágrimas:
“Ó nosso amo cádi, este saco que me pertence é conhecido e reconhecido, e todo mundo sabe que é de minha propriedade. Aliás, contém, além do que enumerei e que ia esquecendo, duas cidades fortificadas e dez torres, dois alambiques de alquimista, quatro jogadores de xadrez, uma égua e dois potros, uma sementeira, duas jaqueiras, duas lanças, duas lebres, um rapaz inteligente, dois mediadores, um cego, um coxo e dois paralíticos, um capitão de marinha, um navio com seus marinheiros, um sacerdote cristão, um patriarca e dois frades e, por fim, um cádi e duas testemunhas dispostas a jurar que este saco é meu!”
“Ao ouvir estas palavras, o cádi olhou para mim e perguntou-me:
“Que tens para contestar a tudo isso?”
“Eu, ó Emir dos Crentes, sentia-me enraivecido até a ponta dos cabelos. Adiantei-me, contudo, mais alguns passos e respondi com toda a calma de que era capaz:
“Alá esclareça e consolide o juízo de nosso amo, ó cádi! Devo acrescentar que neste saco há, além do que já enumerei e que também ia esquecendo, medicamentos contra dor de cabeça, filtros e amuletos, cotas de malhas e armários cheios de armas, mil carneiros destinados a lutar a chifradas, um parque com gado, homens dados às mulheres, outros afeiçoados aos rapazes, jardins cheios de árvores e de flores, vinhas carregadas de uvas, maçãs e figos, sombras e fantasmas, frascos e copos, cinco casais recém-casados com o seu séquito, vinte cantoras, cinco formosas escravas abissínias, três hindus, quatro gregas, cinqüenta turcas, setenta persas, quarenta cachemirenses, oitenta curdas, outras tantas chinesas, noventa georgianas, todo o país do Iraque, o paraíso terrestre, dois estábulos, uma esquita, vários banheiros públicos, cem mercadores, uma mesa de madeira, um escravo negro que toca clarinete, mil dinares, vinte caixões cheios de tecidos, cinqüenta armazéns, as cidade de Kufa, Gaza, Damieta, Assua, os palácios de Kisra Anuchiruan e de Salomão, todas as comarcas situadas entre Balkh e Ispahan, a Índia, o Sudão e o Khorassan. Meu saco contém ainda (Alá preserve os dias de nosso amo cádi) uma mortalha, um ataúde e uma navalha de barbear para a barba do cádi se o cádi não quiser reconhecer meus direitos e não sentenciar que este saco é de minha propriedade!”
“Quando o cádi ouviu tudo aquilo, olhou-nos e disse: “Por Alá, ou sois dois gaiatos que quereis zombar da lei e de seu representante, ou este saco é um abismo sem fundo ou o próprio Vale do Dia do Juízo!”
“E para verificar quem estava mentindo, o cádi mandou abrir o saco ante as testemunhas. Continha umas cascas de laranja e uns caroços de azeitonas!
“Então, admirando-me o quanto pode alguém admirar-se, declarei ao cádi que aquele saco pertencia ao curdo e que o meu havia desaparecido. E fui-me.”
Quando o califa Harun Al-Rachid ouviu esta história, riu gostosamente, deu um magnífico presente a Ali, e dormiu até a manhã seguinte!
Fonte:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX.
Disponível em Domínio Público
Daniel Maurício (Mosaico de Sentimentos)
Amar
palavra fácil de rimar.
Amar
difícil acontecer.
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APARTAMENTO
Olhar janela
panorama
um... dois... mil!
Luzes, esplendor
céu escuto
eu sozinho
no computador.
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JANEIROS
O verde dos teus olhos
encheram-me de esperanças para o amor.
Mas os janeiros foram passando,
rápidos como as águas
barulhentas entre as pedras
para as quais jamais retornam.
Hoje, os olhos já não choram
mas o peito ainda arde
estranhamente.
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LUAR
A lua
de tão cheia
espremia-se entre os prédios
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NOSTALGIA
Uma velhinha
olhando pela vidraça
quebrada
a chuvinha
que teimava a cair.
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PAPEL
Papel
por que falar das coisas grandes?
Suas grandezas, bastam-se a si mesmas.
Por que não falar
desse retângulo de sulfite branco
que fita-me
coisa-me
cochicha-me
segredos
que só eu posso entender?
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PARDAL SOLITÁRIO
Como um pardal solitário
pulando entre telhados
gorjeio com tintas e lágrimas
nos muros da cidade
à procura do meu amor juvenil.
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PÁSSARO FERIDO
Escorria a poesia.
O ambiente conspirava.
Os lábios entreabertos
resfolegavam
suplicantes.
Escorria a poesia.
As pernas tremiam.
Num movimento de ancas...
Pássaro ferido em meus lençóis,
Escorria…
Pura sedução.
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POEMA ACANHADINHO
Deflorei um livro
abri suas pernas-páginas
meus olhos bêbados
de tanta beleza
devoraram um poema
acanhadinho
que sangrava em minhas mãos.
Lágrimas, suor e céu.
Foi assim meu primeiro amor
pela poesia.
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POR AÍ
Andei por aí
todo solto na vida,
na vã esperança
de me curar de você.
Mas em cada ato
em cada fato
sempre vem você,
revivendo todo o amor
despertando toda a dor.
Ai, ferida que não sara!
Será que só você pode curar?
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QUEM É?
Quem é esta doida
santa ou devassa
que no meio da noite
por onde ela passa
exala a lascívia
respira a luxúria
vaca profana
de que me ama
e também a José?
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TEIMOSIA
Uma dor
que não quer curar
um amor
que não quer vingar
um botão
que teima em não desabrochar
um adeus
que não quer dizer
é o medo de poder
ter o que não se quer.
Seria pelo mesmo amor?
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VENTOS DA LIBERDADE
Vera Aurora
verdadeira deusa do amanhecer.
Nem preciso fechar os olhos
para rememorar a imagem
de tuas belas pernas
sob a eterna saia de veludo bordô.
Passos altivos
caminhar esnobante
aos olhares gulosos.
Desejos guardados,
pecados encobertos pelo medo,
Hoje, não há espaço para os segredos
a paixão ficou grande demais
para continuar sendo sussurrada
às escuras.
Vera Aurora,
verás a aurora do amor,
quando cortares as amarras
que te ligam ao velho cais.
Fonte:
Daniel Maurício. Mosaico de Sentimentos. São Paulo: Scortecci, 2013.
Enviado pelo poeta.
Aparecido Raimundo de Souza (As abelhas ETs)
O POLICIAL QUE VIERA da capital para investigar a estranha e misteriosa morte de um pescador num dos braços do rio que cortava aquele pequeno vilarejo perdido nos cafundós da floresta, se achegou do ancião que todos nas redondezas diziam ter sido a única testemunha que presenciara os derradeiros momentos do falecido antes que ele perdesse a vida quase alcançando a linha da marina onde, aliás, também ficava sediado o barracão da colônia de pescadores. O velhinho fumava seu cachimbo e espiava, em silêncio, para as águas barrentas do rio que se perdia ao longe. Pigarreou para se fazer notar e indagou:
— E então, meu bom homem, vai me contar direitinho como tudo aconteceu com seu amigo?
— Se o senhor quiser realmente ouvir...
— Pode começar. Sou todos ouvidos.
O ancião deu uma tragada longa em seu cachimbo e encarou o policial que o contemplava encostado na entrada que acessava a ponte onde alguns barcos estavam amarrados:
— Seu Manoel, moço, vinha vindo embora para casa. Estava bem ali, ó. Tá vendo aquela ilhazinha quase perto da margem?
— Ali? Aquela perto da barranca?
— Não, lá, depois dos manguezais.
— Tudo bem. Continue...
— Ele viajava numa piroga.
— Piroga?
— Canoa. Piroga, por aqui, é o mesmo que uma espécie de embarcação.
— Entendi.
— Seu Manoel é um grande pescador.
— Melhor dito: era!
— Não, meu prezado. É. Mesmo depois de morto, ele continuará sendo um pescador. Um grande pescador.
O policial sorriu à essa observação infantil, mas percebendo a humildade de seu interlocutor, concordou com ele:
— Está bem. Vamos supor que seja assim. E daí?
— Seu Manoel segurava dois remos enormes. A canoa dele era do tipo daquela, às costas do senhor, está vendo? A pintada de azul. Vinha cheia de peixes. Abarrotada. Então aconteceu...
— O que aconteceu exatamente?
— As abelhas chegaram em bando. Vieram dali.
O pescador apontou para uma espécie de bosque fechado:
— Chegaram em um enxame?
— Que seja, se assim o amigo está dizendo.
— Mas eu soube, pelos vizinhos do senhor, que seu Manoel morreu afogado. Afinal, foi afogado ou picado?
— Acho que “Afopicado...”
— Como?! Afo... afo o quê? — Quer, por favor, repetir?
— “Afopicado”, moço. Afogado com picado e vice-versa. Veja bem: quando as abelhas estavam se aproximando, o barco dele, velho de guerra, sentindo a presença fria da morte e temendo ser mordido...
— Picado... – emendou o policial:
— ...Com medo de ser, como o senhor bem colocou, picado, o barco não esperou pelo pior. Se armou e pá, puf! Saiu correndo...
O policial não pode deixar de dar um largo sorriso e aproveitar para fazer uma piadinha:
— O barco saiu correndo! Correndo ou nadando?
— Escuta só, meu senhor. Acho que nem uma coisa nem outra. A embarcação, a meu ver, deixou o local em desabalada “navegância”, ou, a toda velocidade, como se costuma dizer na linguagem dos pescadores. O senhor entende, não é mesmo? Os barcos navegam. Resumindo: o barco antes de “tirar o time” emborcou. Antes que o senhor me pergunte o que é emborcar, vou logo esclarecendo. Virou de barriga para baixo. Depois que se livrou da carga, deu no pé. Se deixou ser levado pela correnteza...
— E as abelhas?
— Como perderam de vista o barco, caíram matando em cima do infeliz do seu Manoel.
— Dentro da água?
— Aquelas abelhas nadavam.
— Ué! Abelhas nadam?
— As daquela marca, sim...
— O senhor quis dizer, daquela espécie?
— Quis dizer e, de fato, disse. Perceba. As daquela espécie, são inimitáveis. Mergulham, nadam de costas, de frente, de lado, de banda. São feras. Inteligentes, ladinas. Mais até que os homens que, como eu, mais o velho Manoel (que o Bondoso Pai o tenha na glória), trabalharam a vida inteira em braços de rio como este que o senhor está vendo aqui. Tem umas destas espécies que pulam de cabeça em busca do néctar, para produzirem o mel.
Mais gargalhadas:
— O senhor está me dizendo que as abelhas picaram seu Manoel dentro da água?
— Perfeitamente.
— Mas...
— Até alguns peixes, na hora da confusão, saíram lanhados.
— Se entendi direito, picados?
— Mais ou menos a mesma coisa. A ordem dos fatores... sabia que encontrei um par deles com ferrões no cachaço do pescoço?
O policial estava às voltas de desistir daquela conversa fiada. Afinal, não chegaria à lugar algum dando atenção aquele infeliz, ouvindo a sua prosa de bocó sem noção. Perdera tempo. Um tempo precioso, à sua visão centrada dentro de um objetivo que ele tinha como lógico e real. Entretanto, antes de sumir do pedaço dando adeus definitivo ao seu interlocutor, se abriu feito mala velha em mais uma de suas enormes risadas barulhentas. Parecia um menino bobo diante de um fato inusitado:
— No pescoço? Essa foi boa... e na barriga do falecido não encontraram nada que nos possa levar à alguma solução?
O velhinho, muito sério e tremendamente compenetrado, continuou firme, sem mover um músculo das faces cheias de cicatrizes provocadas pelo tempo que ficaram expostas aos raios solares:
— Perto das guelras... o senhor precisava estar aqui, na hora fatal. Ia se certificar de que não estou mentindo.
— O senhor já viu, alguma vez, essas abelhas por aqui?
— Até acontecer essa fatalidade com meu amigo, não.
— Saberia informar, ao menos, de onde poderiam ter vindo?
O ancião apontou, com o cachimbo voltado para o céu azul acima da cabeça deles, um lugar no distante apartado do infinito:
— De lá.
O policial seguiu a indicação para onde a remota figura sinalizava:
— Das nuvens?
— Não, seu moço. De outro planeta. Acho que as tais abelhas têm parentesco com seres de outra galáxia desconhecida.
— Nessas alturas do campeonato o senhor vai querer me convencer de que, se eu sair por aí, posso encontrar uma nave?
O longevo ficou deveras chateado com esta observação inoportuna:
— Não digo que o senhor tope com a nave. Mas, com certeza, tropeçará ou cairá num buraco enorme...
— Buraco enorme?
— Sim, meu bom amigo. Uma cratera de dimensões espetaculosas que ela deixou logo ali na frente, na hora em que as abelhas se preparavam para empreenderem a viagem de volta ao desconhecido de onde, suponho, tenham partido para chegarem até aqui.
Fonte:
Texto enviado pelo autor
segunda-feira, 17 de julho de 2023
Artur de Azevedo (Uma noite em Petrópolis)
O Gustavo era literato e quase jornalista. Casou-se muito novo, aos vinte e três anos, e fez-se guarda-livros, porque decididamente a literatura não lhe dava com que manter a família.
O casamento havia sido muito contrariado por uma dona Puquéria, tia da noiva, senhora já bastante idosa, que morava em Cascadura. Depois de casado, o Gustavo guardou um profundo ressentimento contra essa velha: não a podia ver nem pintada.
Ora, uma bela manhã, seis anos depois do casamento, a mulher de Gustavo foi despertá-lo mais cedo que de costume.
— Gustavo!
— Hein? Que queres tu? Para que me acordas tão cedo? Bem sabes que com este calor infernal só posso pegar no sono pela madrugada! Deixa-me dormir!
— Ouve; trata-se de uma coisa grave.
O Gustavo deu um pulo da cama.
— Hein?
— Tia Pulquéria...
— Morreu?
— Não; mas está morre não morre. Mandou-me pedir que fosse lá com os pequenos; quer despedir-se da gente.
— Responda-lhe que morra quantas vezes quiser, e nos deixe em paz!
— Gustavo, lembra-te que ela é irmã de meu pai...
— Lembro-me que esse diabo inventou contra mim as maiores calúnias, para impedir o nosso casamento!
— Pois sim, perdoa-lhe... aquilo foi rabugice de velha.
— Vai tu, se quiseres, com os meninos e a Máxima. Eu tenho mais que fazer; não os acompanho.
Uma hora depois, a sobrinha de dona Pulquéria, em companhia dos quatro pequenos e da Máxima — a ama seca de todos os quatros — tomava o trem para Cascadura.
O Gustavo tentou dormir ainda, mas não o conseguiu. Ergueu-se de mau humor, tomou um banho frio, vestiu-se, e foi para o escritório. Almoçava em casa do patrão.
Ao meio dia recebeu um bilhete de sua mulher dizendo-lhe que tia Pulquéria tinha expirado às dez horas da manhã e que ela ficaria lá todo o dia e toda a noite com os meninos e a Máxima “fazendo quarto”; só iria para casa no dia seguinte, depois do enterro.
O marido ficou bastante contrariado. Era a primeira vez, depois de seis anos de casados, que ia passar uma noite longe da família.
Um dos seus companheiros de escritório, homem já maduro e também pai de família, disse-lhe:
— Eu, no seu caso, Gustavo, tratava de aproveitar esta noite de liberdade...
— Aproveitar como? Não sou pândego nem tenho recursos para meter-me em cavalarias altas... Já sei que esta noite vai ser pior que a passada, em que não preguei o olho... Fazia um calor terrível.
— Pois aproveite a noite dormindo bem.
— Onde?
— Em Petrópolis. Você vai hoje na barca das quatro; chega lá às seis; janta no Bragança; depois do jantar vai dar um giro pela cidade; volta ao hotel; pede um quarto; passa uma noite deliciosa, e amanhã toma o trem para cá às sete horas da manhã.
A ideia sorriu ao Gustavo. Que bom seria passar a noite em Petrópolis, gozando a agradável temperatura da serra! Com que prazer ele se estenderia numa caminha fresca, para no dia seguinte, ao primeiro raio de sol, despertar alegre como um pássaro e leve como uma flor! Demais a mais, Gustavo nunca fora a Petrópolis, e Petrópolis era um dos seus sonhos. Uns desejam ir à Europa, outros à América do Norte, outros ao Oriente; ele desejaria ir à Petrópolis, embora para ali passar apenas uma noite.
O Gustavo foi à casa, acondicionou a roupa indispensável numa maleta de mão, e às quatro horas partiu para o ex-Córrego-Seco, munido de bilhete de ida e volta.
O programa traçado começou por ser fielmente cumprido. No hotel Bragança deram ao Gustavo um bom quarto, e serviram-lhe um bom jantar, que ele não apreciou bastante porque estava a cair de sono e na sala o termômetro marcava trinta graus.
Acabado o jantar, o nosso viajante saiu para dar um giro pela cidade; mas, como entrasse a chuviscar, voltou para o hotel, dizendo aos seus botões:
— Ora, adeus! vou deitar-me... Há de ser um sono só pela manhã!
Quis porém a fatalidade que, ao entrar no hotel o Gustavo encontrasse o Miranda, que fora, sete anos atrás, um dos companheiros de “lutas” literárias, um bom rapaz que tinha apenas um defeito, mas um grande defeito: bebia. Um pobre diabo, um maluco desses de quem se diz: — Coitado! é mau só para si.
— Olhe quem ele é: O Gustavo!...
— Oh, Miranda!
— Que fazes tu em Petrópolis?
— Vim dormir, e tu?
— Eu resido aqui.
— Ah! E em que te empregas?
— Em coisa nenhuma. Dissipo os restos do meu patrimônio.
O Gustavo notou que o Miranda tinha a língua um pouco presa, e como não há companhia mais desagradável que a de um bêbado, tratou de despedir-se.
— Não! Já não te deixo!... – protestou o Miranda. – Anda daí tomar comigo um copo de cerveja.
— Não... desculpa-me...
— Não admito desculpas!
— Pois sim, mas há de ser aqui mesmo no hotel.
— Nada! Nada! Cerveja em hotel não tem bom sabor. Vamos a uma brasserie que ali há... atravessemos aquela ponte...
— Isso é uma extravagância: está chovendo!
— Ora! Um chuvisquinho à toa! Vamos!
— Perdão, Miranda, eu vim a Petrópolis para dormir e não para tomar cerveja! Não preguei olho toda a noite passada, estou a cair de sono!
— Oh, desgraçado! Pois tu queres dormir às oito horas da noite? Bem se vê um poeta lírico degenerado, um trovador que se encheu de filhos e se fez guarda-livros! Anda daí!…
E Gustavo deixou-se levar, quase de rastros, à cervejaria.
Os dois amigos sentaram-se a uma mesa, diante de dois copos de cerveja alemã. O Miranda esvaziou imediatamente um deles, e pediu reforço.
— Era o que faltava! Dormir às oito horas noite! Nada; temos muito o que conversar, meu velho: vou expor-te um plano, um grande plano; quero saber se o aprovas.
— Fala! – disse Gustavo contrariadíssimo, arrependido, mas resignado.
— Pretendo fundar uma folha diária aqui, nesta cidade vermelha!
O Miranda esperava que Gustavo perguntasse: — Vermelha, por que? — O Gustavo calou-se; ele porém, acrescentou, como se o outro houvesse feito a pergunta:
— Pois não reparaste ainda que tudo aqui em Petrópolis é vermelho? As pontes, as grades, as montanhas, as casas, os criados de servir, e até os cabelos dos respectivos indígenas? Olha!
E apontou para o moço que trazia novo reforço de cerveja, um petropolitano ruivo, verdadeiro tipo teutônico.
— Em Petrópolis há um jornal, mas imagina, meu velho, que esse jornal se intitula o Mercantil! Vê que tolice! Um Mercantil nesta cidadezinha de vilegiatura, neste oásis de verão, residência de diplomatas, capitalistas e mulheres elegantes! O Mercantil, ora bolas!
E o Miranda expôs longamente o plano do seu jornal, com grandes gestos, os olhos muito abertos e injetados, as narinas dilatadas, os bigodes cheios de espuma. Seria uma folha artística, parisiense, catita, e sobretudo, escandalosa... não escandalosa como o Corsário, mas como o Gil Blas ou o Eco de Paris... Levantando a pontinha, só a pontinha do véu que esconde um mistério de amor... intrigando a sociedade inteira com uma inicial ou duas linhas de reticências...
Inflamado, o Miranda indicava os lucros prováveis da empresa, os capitalistas com que contava para lançá-la, os redatores e colaboradores que contrataria, e mais isto, e mais aquilo, e mais aquilo outro.
O Gustavo, que por diversas vezes tentava erguer-se, era subjugado pelo Miranda. Ouvia-o com as pálpebras semi cerradas pela fadiga, embrutecido, sem dizer uma frase, nem mesmo uma palavra, porque o futuro redator do Petrópolis — era esse o título do projetado jornal, — com a língua perra, dando murros na mesa, quebrando copos, expectorava abundantes períodos, sem vírgula, sem pausa. Só se calava de vez em quando para beber, ensopando os bigodes em cerveja e lambendo-os em seguida.
A chuva caía agora a cântaros.
Na cervejaria só estavam os dois amigos e o petropolitano teutônico, este encostado ao balcão de braços cruzados, cabeceando. O Miranda continuava com mais entusiasmo a exposição do plano da sua futura empresa, quando o dono da casa, um alemão robusto, irrompeu dos fundos do estabelecimento:
— Endão que é isto, meus zenhores? Já bassa tas tuas horas... não bosso der a minha casa aperda adé alda noide!...
O Miranda tentou recalcitrar, mas o cervejeiro não lhe deu ouvidos. O Gustavo pagou a despesa, e puxou pelo braço o beberrão, que parecia pregado ao banco em que se sentara. Afinal, conseguiu arrastá-lo até a rua. O alemão fechou imediatamente a porta.
O Miranda, mal deu dois passos, perdeu o equilíbrio e caiu redondamente na lama. O Gustavo abaixou-se para erguê-lo, mas o outro deixou-se estar, não fez o mínimo esforço para levantar-se, e resmungou quase ininteligivelmente: — Estou muito bêbado!
Imaginem a situação do guarda-livros: tonto de sono, de madrugada, à chuva, numa rua deserta, numa cidade que ele absolutamente não conhecia, às escuras, porque Petrópolis não tinha iluminação, e vendo aos seus pés um amigo embriagado, um companheiro de “lutas”, que não podia abandonar ali!
Imaginem os trabalhos porque passou o ex-poeta lírico para remover a pesada massa de carne e osso que jazia inerme no chão, e encontrar a casa em que habitava o Miranda. Felizmente este, mesmo bêbado, conseguiu orientá-lo. Mas que trabalho!...
Era perto de quatro horas quando o Gustavo bateu à porta do hotel Bragança. O criado que lhe veio abrir, de vela acesa na mão, teve um sorriso malicioso, e disse:
— Ai! Ai! Estes moços felizes que vêm passar uma noite em Petrópolis e se recolhem ao hotel de madrugada... Ai! Ai!
O Gustavo às sete horas da manhã desceu a serra aborrecido, doente, com uma enxaqueca terrível, estupidificado pelo sono e atribuindo as suas desgraças à tia Pulquéria.
Felizmente a velha deixou-lhe uns cobres que até certo ponto o consolaram daquela malfadada noite em Petrópolis.
O casamento havia sido muito contrariado por uma dona Puquéria, tia da noiva, senhora já bastante idosa, que morava em Cascadura. Depois de casado, o Gustavo guardou um profundo ressentimento contra essa velha: não a podia ver nem pintada.
Ora, uma bela manhã, seis anos depois do casamento, a mulher de Gustavo foi despertá-lo mais cedo que de costume.
— Gustavo!
— Hein? Que queres tu? Para que me acordas tão cedo? Bem sabes que com este calor infernal só posso pegar no sono pela madrugada! Deixa-me dormir!
— Ouve; trata-se de uma coisa grave.
O Gustavo deu um pulo da cama.
— Hein?
— Tia Pulquéria...
— Morreu?
— Não; mas está morre não morre. Mandou-me pedir que fosse lá com os pequenos; quer despedir-se da gente.
— Responda-lhe que morra quantas vezes quiser, e nos deixe em paz!
— Gustavo, lembra-te que ela é irmã de meu pai...
— Lembro-me que esse diabo inventou contra mim as maiores calúnias, para impedir o nosso casamento!
— Pois sim, perdoa-lhe... aquilo foi rabugice de velha.
— Vai tu, se quiseres, com os meninos e a Máxima. Eu tenho mais que fazer; não os acompanho.
Uma hora depois, a sobrinha de dona Pulquéria, em companhia dos quatro pequenos e da Máxima — a ama seca de todos os quatros — tomava o trem para Cascadura.
O Gustavo tentou dormir ainda, mas não o conseguiu. Ergueu-se de mau humor, tomou um banho frio, vestiu-se, e foi para o escritório. Almoçava em casa do patrão.
Ao meio dia recebeu um bilhete de sua mulher dizendo-lhe que tia Pulquéria tinha expirado às dez horas da manhã e que ela ficaria lá todo o dia e toda a noite com os meninos e a Máxima “fazendo quarto”; só iria para casa no dia seguinte, depois do enterro.
O marido ficou bastante contrariado. Era a primeira vez, depois de seis anos de casados, que ia passar uma noite longe da família.
Um dos seus companheiros de escritório, homem já maduro e também pai de família, disse-lhe:
— Eu, no seu caso, Gustavo, tratava de aproveitar esta noite de liberdade...
— Aproveitar como? Não sou pândego nem tenho recursos para meter-me em cavalarias altas... Já sei que esta noite vai ser pior que a passada, em que não preguei o olho... Fazia um calor terrível.
— Pois aproveite a noite dormindo bem.
— Onde?
— Em Petrópolis. Você vai hoje na barca das quatro; chega lá às seis; janta no Bragança; depois do jantar vai dar um giro pela cidade; volta ao hotel; pede um quarto; passa uma noite deliciosa, e amanhã toma o trem para cá às sete horas da manhã.
A ideia sorriu ao Gustavo. Que bom seria passar a noite em Petrópolis, gozando a agradável temperatura da serra! Com que prazer ele se estenderia numa caminha fresca, para no dia seguinte, ao primeiro raio de sol, despertar alegre como um pássaro e leve como uma flor! Demais a mais, Gustavo nunca fora a Petrópolis, e Petrópolis era um dos seus sonhos. Uns desejam ir à Europa, outros à América do Norte, outros ao Oriente; ele desejaria ir à Petrópolis, embora para ali passar apenas uma noite.
O Gustavo foi à casa, acondicionou a roupa indispensável numa maleta de mão, e às quatro horas partiu para o ex-Córrego-Seco, munido de bilhete de ida e volta.
O programa traçado começou por ser fielmente cumprido. No hotel Bragança deram ao Gustavo um bom quarto, e serviram-lhe um bom jantar, que ele não apreciou bastante porque estava a cair de sono e na sala o termômetro marcava trinta graus.
Acabado o jantar, o nosso viajante saiu para dar um giro pela cidade; mas, como entrasse a chuviscar, voltou para o hotel, dizendo aos seus botões:
— Ora, adeus! vou deitar-me... Há de ser um sono só pela manhã!
Quis porém a fatalidade que, ao entrar no hotel o Gustavo encontrasse o Miranda, que fora, sete anos atrás, um dos companheiros de “lutas” literárias, um bom rapaz que tinha apenas um defeito, mas um grande defeito: bebia. Um pobre diabo, um maluco desses de quem se diz: — Coitado! é mau só para si.
— Olhe quem ele é: O Gustavo!...
— Oh, Miranda!
— Que fazes tu em Petrópolis?
— Vim dormir, e tu?
— Eu resido aqui.
— Ah! E em que te empregas?
— Em coisa nenhuma. Dissipo os restos do meu patrimônio.
O Gustavo notou que o Miranda tinha a língua um pouco presa, e como não há companhia mais desagradável que a de um bêbado, tratou de despedir-se.
— Não! Já não te deixo!... – protestou o Miranda. – Anda daí tomar comigo um copo de cerveja.
— Não... desculpa-me...
— Não admito desculpas!
— Pois sim, mas há de ser aqui mesmo no hotel.
— Nada! Nada! Cerveja em hotel não tem bom sabor. Vamos a uma brasserie que ali há... atravessemos aquela ponte...
— Isso é uma extravagância: está chovendo!
— Ora! Um chuvisquinho à toa! Vamos!
— Perdão, Miranda, eu vim a Petrópolis para dormir e não para tomar cerveja! Não preguei olho toda a noite passada, estou a cair de sono!
— Oh, desgraçado! Pois tu queres dormir às oito horas da noite? Bem se vê um poeta lírico degenerado, um trovador que se encheu de filhos e se fez guarda-livros! Anda daí!…
E Gustavo deixou-se levar, quase de rastros, à cervejaria.
Os dois amigos sentaram-se a uma mesa, diante de dois copos de cerveja alemã. O Miranda esvaziou imediatamente um deles, e pediu reforço.
— Era o que faltava! Dormir às oito horas noite! Nada; temos muito o que conversar, meu velho: vou expor-te um plano, um grande plano; quero saber se o aprovas.
— Fala! – disse Gustavo contrariadíssimo, arrependido, mas resignado.
— Pretendo fundar uma folha diária aqui, nesta cidade vermelha!
O Miranda esperava que Gustavo perguntasse: — Vermelha, por que? — O Gustavo calou-se; ele porém, acrescentou, como se o outro houvesse feito a pergunta:
— Pois não reparaste ainda que tudo aqui em Petrópolis é vermelho? As pontes, as grades, as montanhas, as casas, os criados de servir, e até os cabelos dos respectivos indígenas? Olha!
E apontou para o moço que trazia novo reforço de cerveja, um petropolitano ruivo, verdadeiro tipo teutônico.
— Em Petrópolis há um jornal, mas imagina, meu velho, que esse jornal se intitula o Mercantil! Vê que tolice! Um Mercantil nesta cidadezinha de vilegiatura, neste oásis de verão, residência de diplomatas, capitalistas e mulheres elegantes! O Mercantil, ora bolas!
E o Miranda expôs longamente o plano do seu jornal, com grandes gestos, os olhos muito abertos e injetados, as narinas dilatadas, os bigodes cheios de espuma. Seria uma folha artística, parisiense, catita, e sobretudo, escandalosa... não escandalosa como o Corsário, mas como o Gil Blas ou o Eco de Paris... Levantando a pontinha, só a pontinha do véu que esconde um mistério de amor... intrigando a sociedade inteira com uma inicial ou duas linhas de reticências...
Inflamado, o Miranda indicava os lucros prováveis da empresa, os capitalistas com que contava para lançá-la, os redatores e colaboradores que contrataria, e mais isto, e mais aquilo, e mais aquilo outro.
O Gustavo, que por diversas vezes tentava erguer-se, era subjugado pelo Miranda. Ouvia-o com as pálpebras semi cerradas pela fadiga, embrutecido, sem dizer uma frase, nem mesmo uma palavra, porque o futuro redator do Petrópolis — era esse o título do projetado jornal, — com a língua perra, dando murros na mesa, quebrando copos, expectorava abundantes períodos, sem vírgula, sem pausa. Só se calava de vez em quando para beber, ensopando os bigodes em cerveja e lambendo-os em seguida.
A chuva caía agora a cântaros.
Na cervejaria só estavam os dois amigos e o petropolitano teutônico, este encostado ao balcão de braços cruzados, cabeceando. O Miranda continuava com mais entusiasmo a exposição do plano da sua futura empresa, quando o dono da casa, um alemão robusto, irrompeu dos fundos do estabelecimento:
— Endão que é isto, meus zenhores? Já bassa tas tuas horas... não bosso der a minha casa aperda adé alda noide!...
O Miranda tentou recalcitrar, mas o cervejeiro não lhe deu ouvidos. O Gustavo pagou a despesa, e puxou pelo braço o beberrão, que parecia pregado ao banco em que se sentara. Afinal, conseguiu arrastá-lo até a rua. O alemão fechou imediatamente a porta.
O Miranda, mal deu dois passos, perdeu o equilíbrio e caiu redondamente na lama. O Gustavo abaixou-se para erguê-lo, mas o outro deixou-se estar, não fez o mínimo esforço para levantar-se, e resmungou quase ininteligivelmente: — Estou muito bêbado!
Imaginem a situação do guarda-livros: tonto de sono, de madrugada, à chuva, numa rua deserta, numa cidade que ele absolutamente não conhecia, às escuras, porque Petrópolis não tinha iluminação, e vendo aos seus pés um amigo embriagado, um companheiro de “lutas”, que não podia abandonar ali!
Imaginem os trabalhos porque passou o ex-poeta lírico para remover a pesada massa de carne e osso que jazia inerme no chão, e encontrar a casa em que habitava o Miranda. Felizmente este, mesmo bêbado, conseguiu orientá-lo. Mas que trabalho!...
Era perto de quatro horas quando o Gustavo bateu à porta do hotel Bragança. O criado que lhe veio abrir, de vela acesa na mão, teve um sorriso malicioso, e disse:
— Ai! Ai! Estes moços felizes que vêm passar uma noite em Petrópolis e se recolhem ao hotel de madrugada... Ai! Ai!
O Gustavo às sete horas da manhã desceu a serra aborrecido, doente, com uma enxaqueca terrível, estupidificado pelo sono e atribuindo as suas desgraças à tia Pulquéria.
Felizmente a velha deixou-lhe uns cobres que até certo ponto o consolaram daquela malfadada noite em Petrópolis.
Fonte:
Artur de Azevedo. Contos fora de moda. Publicado em 1894.
Disponível em Domínio Público
Artur de Azevedo. Contos fora de moda. Publicado em 1894.
Disponível em Domínio Público
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