sábado, 12 de abril de 2025

Bento Serrano (Gratidão de um filho, ingratidão de outro)

Quem reparar um pouco, há de ver muitas vezes que o homem na velhice é tratado por seus filhos exatamente do mesmo modo, como ele havia tratado seus pais, quando eram velhos e já sem forças. E isto compreende-se bem. Os filhos aprendem com os pais; não veem, nem ouvem mais ninguém, e por isso seguem o seu exemplo. Assim se verifica naturalmente o que tantas vezes se diz, e está escrito: “a benção e a maldição dos pais vem cair sobre os filhos.”

Ouçamos agora duas histórias que se contam a propósito disto: a primeira é digna de imitação; a segunda merece ser muito meditada.

Uma vez um certo príncipe foi dar um passeio a cavalo, encontrou-se com um camponês diligente e alegre, que andava a trabalhar em um campo, e pôs-se a conversar com ele.

Dali a alguns dias soube o príncipe que o campo não era propriedade daquele homem, o qual não passava de um jornaleiro que pela módica quantia de três tostões por dia cuidava do seu amanho. 

O príncipe, que para os pesados encargos do governo precisava de enormíssimas somas, não podia compreender como três tostões diários eram meios bastantes para o nosso homem viver, e de mais a mais de rosto tão alegre. 

Este porém respondeu-lhe: “Nada me faltaria, se eu pudesse dispor de todo esse dinheiro: a terça parte chega-me bem; com um terço pago as minhas dívidas e a terça parte restante pertence às minhas economias.” 

O bom do príncipe ficou ainda mais admirado. Mas o camponês continuou: “O que tenho, reparto-o com meus pais, que são velhos e já não podem trabalhar, e com meus filhos, que andam por ora a aprender; àqueles pago-lhes o amor com que me trataram na minha infância, e destes espero que não me abandonarão também na minha cansada velhice.” 

Verdade que tudo isto foi muito bem dito, e ainda melhor pensado, e ainda muito melhor executado? O príncipe recompensou aquele homem de bem, olhou com desvelo pelos filhos, e a benção que os pais lhe lançaram ao morrer, foi-lhe retribuída pelos filhos agradecidos com amor e amparo.

Havia porém outro homem que tratava tão mal seu pai, a quem a idade e as doenças tinham na verdade tornado impertinente, que o velhinho mostrou desejos de entrar em um hospital de pobres, que havia na mesma aldeia. Ali esperava ele, apesar do pouco afeto, pelo menos ver-se livre das repreensões que em casa lhe amarguravam os últimos dias da vida. 

O filho ingrato saltou de contente apenas soube dos desejos do pobre velho, e ainda antes de o sol se esconder por detrás das montanhas vizinhas, já eles estavam satisfeitos. Mas no hospital não encontrou ele tudo quanto desejava, e passado algum tempo pediu ao filho, como último favor, que lhe mandasse dois lençóis, para não ter de dormir toda a noite na palha fria. Procurou este os piores que tinha, e chamando seu filho, criança de dez anos, ordenou-lhe que os levasse ao hospital.

Ficou porém admirado ao ver que o pequeno escondia a um canto um dos lençóis e só levava ao avô o outro; e apenas ele veio, perguntou-lhe porque tinha feito aquilo. O filho respondeu friamente que tinha guardado um dos lençóis para o dar ao pai, quando mais tarde o mandasse para o hospital.

Que lição tiramos daqui?
Honra teu pai e tua mãe, para que sejas feliz.
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BENTO SERRANO nasceu em Portugal, em meados do século XIX e faleceu em 1939. Foi um astrólogo, escritor e ativista republicano. Ferrenho defensor do republicanismo, produzindo diversos periódicos publicados pela Editora Livraria Portuguesa em prol da república e contra a monarquia em seu país. Retirou-se para uma gruta na região de Serra da Estrela em Portugal, onde montou seu improvisado gabinete de estudos astronômicos e astrológicos, dedicando grande parte da sua vida ao estudo dos astros e à recolha da sabedoria tradicional e popular portuguesa. É autor de diversos livros esotéricos e de sabedoria popular, tendo publicado diversos almanaques e outros periódicos a partir de 1883 até o ano de sua morte em 1939. Conhecido por sua habilidade em misturar elementos de mistério e fantasia com uma narrativa envolvente. Oráculo do passado, do presente e do futuro, é uma das mais completas obras sobre "o verdadeiro modo de aprender no passado a prevenir o presente, e a adivinhar o futuro".

Fontes:
Bento Serrano. Oráculo do Passado, Presente e Futuro. vol. VII: O oráculo da mágica. Publicado originalmente em 1883. Disponível em Domínio Público.  
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Sílvio Romero (A onça e o bode)


(Folclore do Sergipe)

UMA VEZ A ONÇA QUIS FAZER UMA CASA; foi a um lugar, roçou o mato para ali fazer a sua casa. O bode, que também andava com vontade de fazer uma casa, foi procurar um lugar, e, chegando no que a onça tinha roçado, disse: “Bravo! Que belo lugar para levantar a minha casa!” 

O bode cortou logo umas forquilhas e fincou naquele lugar, e foi-se embora. 

No dia seguinte a onça lá chegando, e vendo as forquilhas fincadas, disse: “Oh! Quem me está ajudando?! Bravo, é Deus que está me ajudando!”  Botou logo as travessas nas forquilhas, e a cumeeira, e foi-se. 

O bode, quando veio de novo, admirou-se e disse: “Oh! Quem está me ajudando?! É Deus que está me protegendo.” Botou logo os caibros na casa, e foi-se. 

Vindo a onça, ainda mais se espantou, e botou as ripas e os enchimentos e retirou-se. O bode veio, e varou a casa e foi-se. A onça veio e a cobriu. O bode veio e tapou. 

Assim foram, cada um por sua vez, e aprontaram a casa. Acabada ela, veio a onça, fez a sua cama e meteu-se dentro. 

Logo depois chegou o bode, e, vendo a outra, disse: “Não, amiga, esta casa é minha, porque fui eu quem finquei as forquilhas, botei os caibros, varei, e tapei.” 

— “Não, amigo”, respondeu a onça, “a casa é minha, porque fui eu que rocei o lugar, botei as travessas, a cumeeira, as ripas, os enchimentos, e o sapé.”

Depois de alguma questão, a onça, que estava com vontade de comer o bode, disse: “Mas não haja briga, amigo bode, nós dois podemos ficar morando na casa.” 

O bode aceitou, mas com muito medo. O bode armou a sua rede bem longe do jirau da onça. 

No outro dia a onça disse: “Amigo bode, quando você me vir frangir o couro da testa, eu estou com raiva, tome sentido!” 

— “Eu, amiga onça, quando você me vir balançar as minhas barbinhas ali nas goteiras e dar um espirro, você fuja, que eu não estou de caçoada.” 

Depois a onça saiu, dizendo que ia buscar de comer. Lá, por longe de casa, pegou um grande bode e, para fazer medo ao seu companheiro, matou-o, e entrou com ele pela casa adentro. Atirou-o no chão e disse: “Está, amigo bode, esfole e trate para nós comer.” 

O bode, quando viu aquilo, disse lá consigo: “Quando este, que era tão grande, você matou, quanto mais a mim!” 

No outro dia ele disse à onça: “Agora, amiga onça, quem vai buscar de comer sou eu.” 

E largou-se. Chegando longe, avistou uma onça bem grande e gorda, disfarçou e pôs-se a tirar cipós no mato. A onça veio chegando, e, vendo aquilo, disse: “Amigo bode, para que tanto cipó?” 

— “Fum! Para quê?! O negócio é sério, trate de si... O mundo está para acabar, e é com dilúvio...” 

— “O que está dizendo, amigo bode?” 

— “É verdade; e você, se quiser escapar, venha se amarrar, que eu já me vou.” 

A onça foi, e escolheu um pau bem alto e grosso, e pediu ao bode para que a amarrasse. O bode enleou-a perfeitamente, e, quando a viu bem segura, meteu-lhe o cacete como terra, até matá-la. Depois arrastou-a; chegou em casa, largou-a no chão, dizendo: “Está; se quiser esfole e trate.”

A onça ficou espantada e com medo. Ambos dois temiam um ao outro.

Num dia o bode pôs-se junto das biqueiras, tomando fresco; olhou para a onça, e ela estava com o couro da testa frangido. Ele teve receio e abalou as barbas, e largou um espirro. A onça pulou do mundéu e largou na carreira, o bode também abriu o pano. Ainda hoje correm cada um para o seu lado.
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SÍLVIO VASCONCELOS DA SILVEIRA RAMOS ROMERO (1851-1914) foi crítico e historiador da literatura brasileira. Fundador da Academia Brasileira de Letras. Pensador social, folclorista, poeta, jornalista, professor e político. Era sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Nasceu na vila de Lagarto, Sergipe, 1851. Em 1868 mudou-se para o Recife e ingressou na Faculdade de Direito. Polêmico, combativo e contraditório, foi influenciado por seu conterrâneo Tobias Barreto. Juntos, lideravam uma escola que reunia jovens inteligentes e destemidos, que se encarregavam de irradiar as recentes ideias vindas da França. Quando estava no 2. Ano da faculdade, Sílvio Romero colaborou com vários jornais. Em 1873 concluiu o curso de Direito. Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro onde obteve a cátedra de filosofia. Romero foi também professor da Faculdade Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Como poeta, teve uma breve carreira. O primeiro livro de poemas foi Cantos do Fim do Século, lançado em 1878, em uma tentativa de aderir poesia filosófica científica que pregava desde 1870 em artigos, mas que não obteve êxito. Em 1883 publicou Últimos Arpejos, seu segundo e último volume de poesia. Desenvolveu intensa atividade como escritor. Escreveu vários livros que abordavam praticamente tudo que se referia à realidade cultural brasileira como: filosofia, literatura, folclore, educação, política e religião. Publicou assuntos ligados à cultura popular revelando-se um grande folclorista. Escreveu sobre filosofia no Brasil e sobre escolas filosóficas diversas. Em 1878 escreveu Filosofia no Brasil, publicado em Porto Alegre. Sua obra História da Literatura Brasileira (1888), em dois volumes, menos uma história literária do que uma enciclopédia de conhecimentos sobre o Brasil, a origem e evolução de sua cultura, suas raízes sociais e técnicas, foi considerada sua obra mais revolucionária. Deixou uma vasta obra culturalmente valiosa e pioneira em muitos aspectos. Respeitado pela imprensa nacional, conquistou seu lugar como um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura brasileira do século XIX. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1914.

Fontes:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1883.
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sexta-feira, 11 de abril de 2025

Asas da Poesia * 2 *


Soneto de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Profecia
(Elo partido...)

Muitas vezes te disse - tens lembrança?:
– Muda! por nossos filhos! - E, também,
que a renúncia constante anula, cansa,
quando improfícua... e só de um lado vem.

Lembrei-te (quantas vezes!] é a confiança
base que o templo conjugal sustém.
E estremecia a última esperança
de envelhecermos juntos... mal ou bem!

Cumpriu-se a profecia! O eco ressoa!
Cai o arruinado templo! Embora doa,
nossos elos partiram-se! Defuntos,

os sonhos se perderam no caminho!
Tanta mentira e ausência de carinho,
que ao fim da estrada, não chegamos juntos!
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Poema de
MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

Mundo interior

Ouço que a natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
De sol à ínfima luzerna.

Ouço que a natureza, — a natureza externa, —
Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida
Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna
Entre as flores da bela Armida.

E contudo, se fecho os olhos, e mergulho
Dentro em mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,

Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,
Um segredo que atrai, que desafia — e dorme. 
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Casulo de vidro

Ofusca-me a visão
Esses encontros com o espelho
A dualidade entre o passado
E o  presente, repleto de ausências,
Dos traços envoltos em brumas
O doloroso mergulho:
Quebrar o espelho
Sem fragmentar a essência
Sentir na pele, a lâmina que corta
E recorta - cura -
Desfalecer de dor
No silenciar da alma,
Na solidão do "casulo de vidro"
Buscando respostas
Na sequência de pétalas eternas-
“Flor da Vida”-
Aroma de bálsamo –
Aquietando meu coração.
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Poetrix de
PEDRO CARDOSO
Brasília/DF

Outono 

as folhas amareladas
dizem que o meu coração
mudou de estação
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Sou um cansaço que findou no sono
(Narciso Alves Pires, in “Para além do adeus”)

Sou um cansaço que findou no sono
Da tarde triste em que morreu o dia
E quando a noite o meu corpo acolhia
O sol desceu do seu dourado trono.

A doce paz nasceu desse abandono
Mistura de mistério e nostalgia
E, aos poucos, o meu ser desfalecia
Como folha que tomba pelo Outono.

A mansidão abraça-se ao sossego
E eu fico numa luz, num aconchego
Como nunca, em meus dias, eu vivi.

O tempo foi passando devagar
E não sendo eu capaz de me acordar
Só então é que eu soube que morri.
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Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Ida

Para a porta do céu, pálida e bela,
Ida as asas levanta e as nuvens corta.
Correm os anjos: e a criança morta
Foge dos anjos namorados dela.

Longe do amor materno o céu que importa?
O pranto os olhos límpidos lhe estrela...
Sob as rosas de neve da capela,
Ida soluça, vendo abrir-se a porta.

Quem lhe dera outra vez o escuro canto
Da escura terra, onde, a sangrar, sozinho,
Um coração de mão desfaz-se em pranto!

Cerra-se a porta: os anjos todos voam...
Como fica distante aquele ninho,
Que as mães adoram... mas amaldiçoam!
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Soneto de
ANTERO DE QUENTAL
Ponta Delgada/Portugal, 1842 – 1891

Intimidade

Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela - e se te não comparo à rosa,
É que a rosa, bem vês, passou de moda...

Anda-me às vezes a cabeça à roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.

Mas é na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!

E não te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo,
Juras - mentindo - que me tens amor...
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Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

A distância nos redime 
se a saudade nos escolta; 
ir pra longe é tão sublime 
como sublime é a volta!
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/ Portugal

Teu nome

Fecho os olhos pela luz dos teus
A escuridão tem o teu nome
Quando chegas sem pedir licença.

Trazes nos gestos a graciosidade da açucena
Um brilho distinto de beleza sem mácula
Vontade projetada pelo fulgor dos sentidos.

Tudo o que vejo, tudo o que sinto
É um sorriso, um ansiado aroma teu
Um olhar suspenso no tempo
Naquele dia onde esmoreceu.

Abro os olhos de ofuscada saudade.
O que me falta em palavras
Sobra-me de teus gestos ausentes!
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Haicai de
GUILHERME DE ALMEIDA
Campinas/SP 1890 – 1969 São Paulo/SP

O Pensamento

O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, uma ruga.
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Poema de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Saudade

Que me dizias, Augusto Meyer,
naquele tempo que não passa,
na mesa, junto à vidraça,
naquele bar que era um barco?

Por ela passavam mares,
passavam portos e portos,
ali que os ventos ventavam,
dos quatro cantos do mundo!

O que dizíamos? Sei lá!
não falemos em nossas vidas...
nem, por nós, se salvou o mundo...

Mas, Amigo, eu sei que tenho
— naquelas horas perdidas —
o meu ganho mais profundo!
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Hino de
ANAHY/ PR

Neste solo gentil dadivoso
Onde outrora o café imperou
O pioneiro com seu braço valoroso
O agreste sertão desbravou
Na clareira do mais puro encanto
A capela de Sant'Ana se ergueu
e anunciando o progresso ao recanto
Anahy majestosa nasceu

Na lavoura a magia singela
O algodão canta um hino de amor
Com o milho e a soja tão bela
Revezando com o trigo em flor
Qual presentes da mãe natureza
A irrigar as riquezas daqui
Correm rios da mais alva beleza
Irmanados ao rio Piquiri

Tuas portas estão sempre abertas
Acolhendo com carinho e afeição
Todo aquele que procura rotas certas
Aqui encontra abrigo e união
Anahy és um exemplo seguro
A inspirar este povo gentil
No labor construindo o futuro
E a grandeza do nosso Brasil
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Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Meu primeiro amor

Lembras nosso primeiro carnaval?
Eu dançava no corso na avenida...
Ao me vês acenaste da calçada
A música era bela e original.

Ao ver-te disparou meu coração,
O amor que despertava no momento
Sob o som da marchinha, e o sentimento,
Trouxe à minha alma muita inquietação.

Cheguei naquele dia no trabalho,
Mas teu olhar em fuga deixou o meu
Percebi que sentias tal qual eu.

Meu amor que nasceu sob o orvalho,
Deu frutos, em dois filhos que gerou,
E em cinco netos o amor eternizou
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Trova de
CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/ SP, 1945 – 2021, Santos/ SP

Imensidões veneráveis, 
que me fazem navegar, 
céu e mar, inseparáveis, 
na linha do meu olhar.
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Soneto de
CRUZ E SOUZA
Florianópolis/SC, 1861-1898, Antonio Carlos/MG

Sonho branco

De linho e rosas brancas vais vestido,
Sonho virgem que cantas no meu peito!...
És do Luar o claro deus eleito,
Das estrelas puríssimas nascido.

Por caminho aromal, enflorescido,
Alvo, sereno, límpido, direito,
Segues radiante, no esplendor perfeito,
No perfeito esplendor indefinido...

As aves sonorizam-te o caminho...
E as vestes frescas, do mais puro linho
E as rosas brancas dão-te um ar nevado...

No entanto, Ó Sonho branco de quermesse!
Nessa alegria em que tu vais, parece
Que vais infantilmente amortalhado!
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Uma Lengalenga de Portugal
O QUE ESTÁ NA GAVETA?
 
 O que está na gaveta?
Uma fita preta.
O que está na varanda?
Uma fita de ganga
O que está na panela?
Uma fita amarela
O que está no poço?
Uma casca de tremoço
O que está no telhado?
Um gato malhado
O que está na chaminé?
Uma caixa de rapé
O que está na rua?
Uma espada nua
O que está atrás da porta?
 Uma vara torta
 
O que está no ninho?
Um passarinho
Deixa-o no morno
 Dá-lhe pãozinho.
Vamos ver se ele pia?
Piuuuuuuuuuuuuuu!
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Quadra Popular de
FERNANDO MÁXIMO
Avis/ Portugal

Cria um filho para ser
paladino das verdades,
não o cries para ter
vícios… defeitos… maldades…
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Soneto de
MÁRIO ZAMATARO
Curitiba/PR

Ingenuidade

Quero ter a minha voz
pra dizer abertamente
que uma farsa aperta os nós
e disfarça impunemente!

E direi como é feroz,
como faz tranquilamente
o papel doce de algoz
e se crê ser inocente.

Usa a lei como sofisma,
tem acordo com a ilusão
pra fazer cavilação.

Quer impor sempre o seu prisma
e não vê nisso maldade,
deve ser ingenuidade!
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Poemeto de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

Ouvia-se os respingos
caindo inertes, sem emoção.
Não era chuva, orvalho,
tampouco pranto.
Somente borrifadas...
Talvez poesia,
talvez um nada no chão. 
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José Feldman (E se…?)

Era uma tarde abafada em um café literário do Rio de Janeiro, onde o velho charme das calçadas se misturava com a modernidade das telas de celular, um escritor contemporâneo, Lucas, estava sentado em uma mesa, digitando freneticamente em seu laptop, quando, de repente, uma figura conhecida entrou no estabelecimento. Era ninguém menos que Machado de Assis, com seu famoso chapéu e um olhar perspicaz.

Lucas: (olhando para cima, surpreso) Uau, é você, Machado de Assis! O que faz aqui no século XXI?

Machado: (com um sorriso sutil) Ah, jovem, o tempo é uma construção tão maleável quanto a narrativa. Vim ver como andam as letras modernas.

Lucas: (sorrindo) Pois é, a escrita mudou bastante. Você já pensou em como seriam seus livros hoje? Imagina "Dom Casmurro" com redes sociais!

Machado:(levanta uma sobrancelha) Redes sociais? Como assim?

Após algum tempo, regado a várias xícaras de capuccino, explicando resumidamente para Machado de Assis as mudanças entre os séculos, suas inovações e avanços, continuaram a debater as obras.

Lucas:(animado) Pense! Bentinho faria um perfil no Instagram, postando fotos da Capitu. E você sabe como as pessoas adoram uma polêmica! Imagina os comentários!

Machado:(rindo) Capitu teria que ter um filtro especial para esconde-los, não? O que seria da sua fama com uma "influencer" ao lado?

Lucas: Exato! E Quincas Borba, com seu "Humanitismo", poderia ter uma página de autoajuda no Facebook!

Machado:(pensativo) Hummm... e o que ele diria? “Seja feliz ou não, mas não se esqueça de compartilhar seu progresso”?

Lucas: (rindo) Sim! E imagina a briga entre Quincas e o Robson, agora discutindo em threads de Twitter!

Machado: (com um brilho nos olhos) E a ironia? Ah, meu caro, a ironia seria a estrela! “Humanitismo: mais likes, menos empatia!”

Lucas: (aproximando-se) Vamos ser sinceros, hoje em dia, seria um sucesso! Mas e "Dom Casmurro"? Você ainda acha que ele foi ciumento ou só inseguro?

Machado: (com um sorriso maroto) Ah, meu jovem, a dúvida é o que torna a história tão intrigante. Afinal, quem não tem suas inseguranças? Até mesmo neste café, quem sabe se você não está sendo traído por um croissant?

Lucas: (rindo alto) Bom ponto! Mas eu acho que a Capitu teria um podcast, falando sobre o "casamento moderno". Seria um sucesso!

Machado: (pensando) Um podcast sobre infidelidade? Isso poderia ser um verdadeiro "narrador não confiável" em áudio! Teríamos que chamar o Bentinho para debater.

Lucas: (fazendo gestos) Ouvintes votariam: “Capitu traiu ou não traiu?” E no final, a conclusão seria: “Nada como uma boa conversa no divã!”

Machado: (acena com a cabeça) Uma nova forma de análise, sem dúvida. Mas me conte, como é a literatura atual? Os jovens ainda leem clássicos?

Lucas: (pensativo) Alguns sim, mas muitos preferem resumos e adaptações. E há uma pressão enorme por conteúdo rápido. A leitura se tornou quase um “fast-food”!

Machado: (franzindo a testa) Que pena! A profundidade se perde. A literatura é um banquete, não uma refeição rápida! O que seria de Quincas Borba sem suas reflexões?

Lucas: (com um brilho nos olhos) Certo! Imagino um aplicativo de leitura, onde cada página virada poderia ser um prêmio. “Leia e ganhe pontos!”

Machado: (rindo) Seria um "Humanitismo" gamificado? “Parabéns, você acaba de refletir sobre a condição humana!”

Lucas: (aplaudindo) Exato! E o que você diria aos jovens escritores de hoje?

Machado: (pensativo) Que escrevam com sinceridade. A tecnologia pode mudar, mas a essência da escrita permanece. O olhar humano, as emoções... isso nunca deve se perder.

Lucas: (sorrindo) Palavras sábias, Machado. Vou usar isso na minha próxima obra. 

Machado: (levantando a xícara de café) Então brindemos à literatura, que sempre encontrará um caminho, seja no século XIX ou XXI!

Lucas: (erguendo seu copo) À literatura e ao diálogo entre épocas!

E assim, entre risadas e reflexões, o escritor contemporâneo e o mestre do século XIX continuaram a troca de ideias, mostrando que, independentemente do tempo, a literatura sempre será um terreno fértil para a criatividade e o humor.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Poeta, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com uma escritora, poetisa, tradutora e professora da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, e depois em Maringá/PR desde 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria e Voo da Gralha Azul. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Eduardo Martínez (Vida dupla)

Aureliano, minucioso que era, ficava irritado com qualquer nota fora do compasso, ainda mais porque, quase sempre, tirava o brilho do oboé, justamente o instrumento que tocava na orquestra sinfônica. O sujeito era tomado por tamanho ódio, que parecia surdo a partir de então.

— Aureliano, algum problema?

— Margô, você não viu?

— Viu o quê?

— O trompete atrasou e foi atropelado pelo trombone.

Margô, a maestrina, talvez para não provocar pendenga entre os músicos, fingia desconhecimento da falha levantada pelo colega. Este, por sua vez, não raro, enrugava ainda mais a testa, como se fossem quebra-molas na vastidão do Saara, que tomava conta da sua racionalidade, que se tornava nenhuma. Paciência, realmente, não era seu forte. 

Aureliano, empertigado quando o assunto era música clássica, parecia outro assim que se embrenhava entre os talentos da bateria da escola de samba do Cruzeiro. Ali, o gajo era conhecido como Aurê da Cuíca, justamente o instrumento que havia abraçado desde que fora fisgado pelo som da ARUC, a mais tradicional do Distrito Federal. 

Aureliano e seu alter ego, apesar das disparidades, pareciam viver em harmonia. Até mesmo a vida amorosa do gajo andava às mil maravilhas, inclusive com promessas de casamento. É que o músico acabara de firmar namoro sério com Maria Helena, violinista das mais talentosas. Ao lado do rapazola, a moça era destaque na orquestra. 

O oboé e o violino pareciam fadados a tocarem em harmonia para o resto da vida. Entretanto, sempre há um entretanto para atazanar a vida dos bem-aventurados, e, certa noite, noite de sexta-feira, durante o ensaio da ARUC, eis que a cuíca do Aurê se esbarrou no pandeiro da Lucimara. Pra quê? Os desavisados poderiam imaginar que o aconteceu na madrugada fossem gritos de socorro. Ledo engano, não passavam de urros de luxúria, cujas faíscas poderiam ser vistas na escuridão por todo Cruzeiro.

Na manhã seguinte, durante o ensaio da orquestra, Maria Helena foi a primeira a notar a desafinação do oboé. Pois é, justamente do oboé! Era como se o instrumento estivesse alheio aos caminhos da partitura.

— Aureliano!

— Oi.

— O que é isso?

— Isso o quê?

— Eu é que pergunto! 

Margô, antes que a discórdia prosseguisse, tratou de dar uma pausa. Era nítida a falta de condição do Aureliano de prosseguir. Todos ficaram boquiabertos com tamanha descompostura do mais exigente dos músicos. É óbvio que alguns possuíam mágoas por outrora terem sido humilhados pelo instrumentista. O trompetista foi o primeiro a expor a ferida aberta.

— Margô, não seria a hora de arrumar outro oboísta?

Aureliano, mesmo mais pra lá do que pra cá, quis dar uma oboezada na cabeça do desafeto. Foi impedido pelo flautista e, se o imbróglio não virou rebu, foi graças à intervenção da maestrina, que deu por encerrado o ensaio. Rusgas, entretanto, foram inevitáveis. Perfeccionista que era, Maria Helena não perdoou Aureliano, que não teve alternativa a não ser enfiar o oboé entre as pernas e ir para casa chorar suas mágoas.

O homem acabou adormecendo no sofá da sala e, já tarde da noite, despertou. Levantou-se, passou pelo oboé como se ele não existisse e se dirigiu ao quarto. Abriu o armário e se deparou com a cuíca, que o recebeu sorridente. Não teve dúvida, saiu em busca da Lucimara, que, requebrando os dedos sobre o pandeiro, já aguardava o amante.
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EDUARDO MARTÍNEZ possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Blog do Menino Dudu
https://blogdomeninodudu.blogspot.com/2025/04/vida-dupla.html
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Eduardo Affonso (O dilema das rodas)

Estou pensando em fazer um documentário em que ex-executivos da Volkswagen, da Fiat, da Ford, da Toyota e, por que não, da Gurgel, se penitenciam diante das câmeras por terem desenvolvido automóveis.

– Eles provocam desastres – lamenta X, desviando o olhar após uma pausa dramática.

– Nós sabíamos dos riscos e, ainda assim, colocamos aceleradores – diz, enxugando uma furtiva lágrima, o engenheiro Y.

Os herdeiros de Daimler e de Benz falarão da inveja causada pelas Mercedes inventadas por seus antepassados.

– Já havia ressentimento demais no planeta. Mas vovô foi insensível e… – não conseguirá terminar o depoimento.

Sim, a indústria automobilística é perversa. Mauzona, maldosa e malvada.

– Fui alto executivo da Ferrari. Por mim, teríamos produzido apenas ambulâncias. E carros do Corpo de Bombeiros. Mas havia pessoas gananciosas e o que poderia ser um lindo projeto acabou se perdendo.

No cenário frio (este documentário pede cenários frios), com pequenos trechos do meiquinhofe (este documentário pede maquiadores tirando o brilho da pele de um, reristáilistes ajustando as mechas de outra), um a um os ex-ciiôus lavarão roupa suja, a centrifugarão e farão enxague completo com amaciante e Lysoform.

– Claro que estava nos planos, desde o início, que ladrões usariam nossos carros nas fugas – confessará K (inicial fictícia), engenheiro de produção da Nissan.

– E que agrobois tunariam nossos produtos, incluindo uma potente aparelhagem de som para ouvir dupla sertaneja no volume máximo, com o porta-malas aberto, no domingo, no Parque Barigui – continuará W (inicial mais fictícia ainda), gerente de projetos da Jeep.

– Devíamos ter resistido e abortado o Ford Bigode enquanto era tempo, mas… fomos fracos.

O documentário levantará questões sobre segurança (“Os erbegues não foram instalados nos calhambeques para não atrapalhar a estética. Eles teriam salvo a vida de milhares de melindrosas inocentes”), sobre liberdade (“Sim, o cinto de três pontos foi pensado como forma de manter as pessoas mais tempo presas dentro dos veículos, ouvindo propaganda no rádio. A JB FM e a Super Rádio Tupi injetaram muita grana nesse projeto”) e sobre manipulação (“O viagra foi adiado por décadas para que pudéssemos continuar vendendo Simca Chambords, Mavericks e Camaros amarelos”).

Alguém lembrará que carros também servem para transportar hortifrútis para o Ceasa, levar as crianças à escola, visitar a avó em Taubaté, ver corrida de submarino na Niemeyer. Será um contraponto necessário – afinal, há de ser um documentário isento, neutro e imparcial.

Se fizer sucesso, já tenho engatilhado aqui um sobre a indústria do papel (“Sabíamos que iam imprimir livros de autoajuda, e continuamos produzindo celulose assim mesmo”) e sobre a indústria fonográfica (“Larguei tudo e decidi virar monge tibetano quando saiu aquele disco da Ana Carolina e do Seu Jorge. Isso foi há 15 anos, e até hoje pratico a autoflagelação, para tentar expiar minha culpa.”).

Alguém aí tem algum contato na Netflix pra me passar?
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[Disclêimeres: Este texto contém provocação. Sim, eu sei que a questão não é tão simples assim. Claro, o assunto é muito mais complexo. Lógico, não dá pra tratar esse tipo de coisa tão levianamente. Evidente que é impossível comparar uma coisa com a outra. Concordo que você entendeu tudo e eu não entendi nada.
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EDUARDO AFFONSO. Arquiteto mineiro de Belo Horizonte, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique Nenhum livro publicado.

Fontes:
Blog do Eduardo Affonso. 20 outu 2020
https://tianeysa.wordpress.com/2020/10/20/o-dilema-dos-motores/
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing