sexta-feira, 2 de agosto de 2024

José Feldman (Analecto de Trivões) 35

 

Aparecido Raimundo de Souza (Tudo se fez imensurável)

SE BEM ME LEMBRO, corria uma tarde cinzenta, uma tarde longa e comprida, daquelas vespertinas que parecem carregar o peso de alguma saudade numa sacola de sonhos desfeitos. Eu me achava sentado na varanda enorme, acomodado numa velha e surrada cadeira de balanço que pertencera à minha avó. Olhava o horizonte. O silêncio se fazia ensurdecedor: nenhum riso, nenhum passo, nenhum movimento. 

Apenas o eco das lembranças, ou mais precisamente daquelas doces amarguras de como eu fiquei depois que você fez as malas e partiu. E como fiquei? Essa pergunta, tanto tempo passado, ainda ecoa em minha mente como uma espécie antiga de mantra caído em desuso. 

Recordo-me, porém, da última vez em que nos vimos. Seus olhos de fundos tristes refletiam a despedida sem volta. Seu coração, deprimido pela consternação, adernava em ritmo pesado, como se no bater seguinte um terror iminente não o deixasse seguir funcionando. 

Para piorar meu estado lastimoso, ou melhor, o nosso, eu via em tudo um quadro intrigante e maléfico aflorando sem dó nem piedade. Lembro que você segurou a minha mão com força, ao tempo em que imprimiu um vigor ardoroso, como se quisesse gravar cada detalhe na sua memória. De fato, num repente, você deixou escapar um “Até breve” choroso. 

Esse “até breve” se engrandeceu como um elástico esticado, e eu me vi preso nesse vácuo que ele imprimiu indefinido, alimentando a esperança de que você, por algum motivo, voltasse atrás e não deixasse o nosso cantinho que considerávamos sagrado e inviolável. Ledo engano! Você se foi... os primeiros dias foram os piores. Os meses subsequentes, um martírio. 

Um ano depois, já sem a chancela de sua volta, tudo se amoldou num esquecimento compacto, cada vez mais temeroso e aterrador. O vazio que você deixou, quadruplicou. Fez-se cruel, duro, foi além do humanamente palpável. A casa toda, sem a sua presença, sem a sua voz maviosa, sem a sua quentura, se enregelou. 

Os quartos, a sala, o banheiro, a cozinha se quedaram num silêncio sepulcral e constrangedor. As músicas que costumávamos ouvir juntos passaram a ser notas soltas num livro de partituras deixado num canto, parado, à mercê das traças, bem como os filmes sem nenhum significado que carecesse de ser lembrado. Eu me perdi dos lugares onde costumávamos nos encontrar no quintal imenso. 

Aliás, tudo se transformou num vazio tresloucado e insano. Me vem à mente (sempre) o lugar onde fizemos amor pela primeira vez. Ao rasgar as suas vestes, você ficou perplexa, como se um balde de tinta vermelha se esparramasse por toda a sua pele aveludada. 

Você se agarrou a mim numa afoiteza inebriante, como se aquele momento fosse por você esperado fazia um bom tempo... desde a sua partida, meu Deus, desde a sua partida, as noites por estas bandas passaram a ser as mais cruéis. 

O lado da cama onde você dormia se fez maior, triplicou de tamanho, ao instante em que agora, ao me deitar, ainda abraço no vazio a sua presença, imaginando insanamente que você está ali me esperando para nos consumirmos como se fôssemos um só. Que louca ilusão! 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Vereda da Poesia = 73 =


Trova Humorística de Bandeirantes/PR

ISTELA MARINA GOTELIPE LIMA

Por que tamanho barulho,
de um alarme por tão pouco?
Tocou tanto o tal bagulho...
que acabou ficando rouco!
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Poema de Guimarães/Portugal

JOÃO GARÇÃO

Sentimento

A água está parada, muito quieta no meio da noite.
E é preciso perguntar-lhe: és água de um rio?
És água dum mar? És água dentro dum copo
sobre uma mesa muito antiga e sonhada?
És água para um cavalo beber? Para um cão se banhar?
Para um homem e uma criança se lavarem ao relento?
Para uma mulher, para um gato, para um lobo?

E a água talvez não te responda. Nunca te responda.
Ou te responda tarde de mais. Ou nem sequer te ouça.

Mas tu pergunta. Pergunta e espera pela resposta.
Mesmo que os minutos passem entre ti e a água
E devagar uma silhueta se desloque
e depois se detenha no meio das árvores imóveis.
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Trova de Taubaté/SP

ANGÉLICA VILLELA SANTOS
Guaratinguetá/SP, 1935 – 2017, Taubaté/SP

Com tudo desmoronando
na batalha pela vida,
fica a Esperança, amparando
nossa força  esmorecida.
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Soneto de Vila Velha/ES

EDY SOARES

Reminiscências

Lá se foi a mocidade.,.
A minha turma animada,
minha pacata cidade
e os campinhos de pelada.

Bate uma baita saudade
quando eu lembro a molecada,
saltitante e sem maldade,
se encharcando na enxurrada.

Eu brinquei de pega-pega,
de pique-lata e carrinho;
cama de gato e corrida...

Em cada briga uma esfrega,
eu fui bandido e mocinho
na melhor fase da vida!
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Trova Premiada  em Fortaleza/CE, 2006

JOSÉ PEREIRA DE ALBUQUERQUE 
(Fortaleza/CE)

Ontem, moço e sem cansaços, 
fui feliz em minha lida; 
hoje, velho, arrasto os passos 
pelas esquinas da vida… 
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Poema de Vila Velha/ES

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA

Fim de romance

– “Tudo acabado entre nós...
Sejas feliz em tua jornada...”
Eu notava em sua meiga voz,
que toda aquela expressão era forçada...

Mas a tudo ouvia sem dizer-lhe nada,
Sabendo ser falso o seu prazer atroz...
E ela resoluta e com a voz embargada:
– “Esqueça o feliz tempo em que vivemos sós...”

E seguimos um para cada lado
Num orgulho de tudo terminado,
Sem sequer volvermos os olhos para trás...

Todavia eu notei... Notei enquanto ela falava,
Que da flor dos olhos seus brotava
uma lágrima dorida, um sofrer a mais!...
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Trova Popular

Se tu fosses pé de pau
eu queria ser cipó:
vivia em ti enroscado
no teu corpo dando nó.
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Soneto de Belo Horizonte/MG

SÍLVIA ARAÚJO MOTTA

Ternura e carícias

Mês de setembro mato a dor da espera!
A decantar paixão, minha alma agora
não quer inverno... canta a primavera!
Não perco a chance! Venho sem demora.

Jamais pensei viver real paquera!
Demorei tanto pra mandar embora
a solidão que esconde triste fera!
Quem tem ventura e paz feliz não chora!

Não fujo mais! Esqueço o tal passado!
Neste presente quero seu momento,
provar do mel, carinhos, só delícias,

sentir na boca o gosto ser amado
no corpo nu, sem mágoa ou sofrimento...
Trago ternura, beijos, mil carícias!
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Trova do Rio de Janeiro/RJ

LUIZ POETA
Luiz Gilberto de Barros

Tanto achismo e tanto achado,
tanto eu acho e "desachei",
que olhando do lado errado,
eu percebo que acertei.
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Poema de Joinville/SC

MARY BASTIAN

Parado no ar

Largo solto no ar
Tal como ventania
Meu brado de protesto
Meu grito de agonia
Por ver passar o tempo
Como calmaria
E a vida se acabar
Como um fim de dia

O brado corta o tempo
À procura do eco
Pra todos ouvirem
O grande protesto
Da vida vazia
Como balão da festa
Que finda afinal
Sem nem ter começado

Mas o eco é surdo
Não ouve o protesto
Não escuta o grito
E o brado emudece
O grito agoniza
A vida se acaba
Como um fim de dia
Como um fim de festa
Como calmaria

No ar só o vento
Num grito de agonia
No fim do meu dia
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Trova Humorística de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Os dois donos têm receio
que a maloca caia e, agora,
toda noite tem sorteio:
enquanto um dorme... o outro escora!
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Dobradinha Poética de Bandeirantes/PR

LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DECARLI

Miragem

Tua volta, arrependido,
não passou de uma miragem,
mas meu coração sofrido,
buscou no sonho uma aragem!…

Meu telefone, em plena madrugada
toca, insistente, pronto a me assustar!…
Atendo e, então, ouço uma voz velada,
que o meu ouvido adentra a sussurrar.

Assim, baixinho, segue a voz amada:
pede perdão, jamais me quis deixar;
diz que o viver sem mim é mais que nada,
e, sem demora, quer comigo estar.

Ante a surpresa tento responder,
espanto as mágoas, pois desejo crer
nesse argumento, frente ao qual renasço…

E, por amar demais, bem sei, não minto,
murmuro, agora, quanta falta eu sinto
desse sussurro e, mais… do seu abraço!
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Trova de Curitiba/PR

ANDREA MOTTA

Sem fazer-me de rogada,
só persiste uma verdade:
Poesia em mim fez pousada,
sem ter qualquer leviandade.
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Spina de São Paulo/SP

SOLANGE COLOMBARA

Depois da chuva 

Gorjeios no arco-íris 
encantam aos olhos,
fluem no entardecer,

aquietando todo o meu ser.
Em um relance de nuances 
carmins, a vida é benquerer.
As marcas da chuva secam
sem pressa, até o alvorecer.
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Trova de Campinas/SP

ARTHUR THOMAZ

Se recordar é viver
duas vezes um instante,
mil vezes quero rever
nosso momento distante.
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Soneto de São Simão/SP

THALMA TAVARES

Amor em dois tempos

Rompendo a neblina que embaça o passado,
o sol em minha alma desperta a saudade
e eu volto contente à feliz liberdade,
ao álacre jogo do tempo encantado,

do idílio inocente, do beijo apressado
temendo os olhares do pai da beldade.
Depois uma flor do gentil namorado
no peito da amada era a felicidade!…

Não sei em que ponto perdeu-se o lirismo
do amor que os "ficantes", em seu modernismo,
mataram o encanto e a pureza ideal.

E enquanto eles "ficam", ao som da balada,
o amor vai perdendo a feição encantada,
mudando-se em coisa sem graça e banal.
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Trova Premiada na Academia Brasileira de Trova/1991

ARMINDO DOS SANTOS TEODÓSIO
Brumadinho/MG

Não há ninguém que resista
aos caprichos da mulher
que, quando cisma, conquista
até mesmo o que não quer!
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Poema de Tambaú/SP

SEBAS SUNDFELD
Pirassununga/SP, 1924 – 2015, Tambaú/SP

Calmaria

Esse entardecer que demora
é dia que se vai embora;
é azul que mergulha o poente;
é nuvem que foge no ar;
é onda que desliza macia;
é brisa que sopra de fora;
é barco que volta do mar.
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Trova Humorística de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

– Chamaste meu pai de otário?
Repete-o, se és homem, vem!
– Chamei não, pelo contrário,
mas que ele tem cara, tem!
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Escada de Trovas de São Paulo /SP

FILEMON MARTINS
(Filemon Francisco Martins)

Felicidade

NO TOPO:
"Felicidade não é
Despejada como o vinho,
Vem de dentro, como a fé,
Pondo flores no caminho..."
Carlos Ribeiro Rocha
Ipupiara/BA, 1923 – 2011, Salvador/BA

SUBINDO:
"Pondo flores no caminho"
o Amor presente se faz
e mesmo estando sozinho
planta a semente da Paz.

"Vem de dentro, como a fé"
em silêncio, ela aparece,
é preciso estar de pé
que a bondade vem, floresce.

"Despejada como o vinho"
a Verdade humildemente
traz a Luz e de mansinho
ilumina a nossa mente.

"Felicidade não é"
impossível a ninguém,
é tão simples, pode até
ser a prática do Bem.
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Trova de Santos/SP

CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

Quando o rei sol estorrica,
tortura, com seu clarão,
mais forte é aquele que fica
e dá valor ao seu chão!
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Hino de Itanhaém/SP

Num dia assim, como se fosse o maior,
Esta paisagem se pintava de azul,
Nas formas vivas, vistas lá do alto,
A natureza de Calixto em tons de amor.

Num dia assim, todo banhado de sol,
Martim Afonso ancorava as caravelas,
De paixão por estas serras, céu e mar, beleza e cor.

Itanhaém, gente da terra,
O som da pedra e do mar,
Tem novo canto, um Deus de encanto,
Anchieta a ensinar,
O que nasce de glória só tem
por destino iluminar,
Na raiz de teu povo, razão pra sonhar.

Itanhaém, ilha do tempo,
A foz do rio de abraço ao mar
Lição da vida querida,
Não param de chegar
Os teus filhos do leste,
Do norte, nordeste, de todo lugar,
O caminho da história, no berço do mar.
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Trova de Curitiba/PR

JANSKE NIEMANN SCHLENKER

Nossos braços foram feitos
para abraços e labor;
eles nasceram perfeitos
de qualquer tamanho e cor.
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Poema de São José do Rio Preto/SP

SIDNEI OLÍVIO

o que era doce se acabou

você me pede um poema
e o papel acabou
você diz que ainda me ama
e aquele tempo passou

você não me procura mais
você reclama se inflama
e ensandece
você já não é o que parece
e o nosso amor morreu na chama

o nosso amor era uma flor
murchou
o nosso amor era um ardor
michou
o nosso amor
que pena

o nosso amor cansou de ser: será?
o nosso amor gorou: sei lá!
o nosso amor se queimou
no sertão do Ceará

o nosso amor amoreceu
no pé de uma árvore
apodreceu
o nosso amor adormeceu
agora é tarde

o nosso amor pirou
se afogou no mar de Ipanema
que pena

eu me conformo me contenho
eu confesso:
o nosso amor transfigurou
na tela do cinema
evaporou (que pena)
no verso ausente
de um poema:
que pena!
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Trova de Santos/SP

ÍRIA BELCHIOR

O que fere o ser humano
é a soberba vaidade
germinando tanto dano
nesta tal desigualdade.
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

O homem de meia idade

Um homem que era já de meia idade,
Tomando impertinências por vontade,
Teve duas mulheres; uma antiga,
Outra que era ainda muito rapariga.
A velha, que o queria semelhante,
A fim que fosse dela bem amante,
Todo o cabelo preto lhe arrancava;
A moça, que mais moço o desejava,
O branco lhe tirava. De maneira
Que a cabeça era já uma caveira.

Ninguém seja tão néscio que presuma
De ajuntar de mulheres um processo:
Raro com uma só tem bom sucesso,
Que sucessos terá tendo mais de uma?
Terá quem sem dar tréguas o consuma,
Quem peça e talvez furte com excesso;
Não fará em ter bens algum progresso,
Fazendo elas que tudo se lhe suma.

Cada qual das perversas, como aspira
A tirar o que é mais do seu agrado,
Arrepela sem pena de que fira.
Em puxar e arrancar vai o cuidado;
Por isso o menos mal, que o louco tira,
É sair-lhe das unhas bem pelado.
(Tradução: Couto Guerreiro)

Recordando Velhas Canções (Maria!)


Compositores: Luís Peixoto e Ary Barroso

Maria!
O teu nome principia
Na palma da minha mão
E cabe bem direitinho
Dentro do meu coração Maria

Maria!
De olhos claros cor do dia
Como os de Nosso Senhor
Eu por vê-los tão de perto
Fiquei ceguinho de amor Maria

No dia, minha querida
Em que juntinhos na vida
Nós dois nos quisermos bem
A noite em nosso cantinho
Hei de chamar-te baixinho
Não hás de ouvir mais ninguém, Maria!

Maria!
Era o nome que dizia
Quando aprendi a falar
Da avózinha coitadinha
Que não canso de chorar Maria

Maria!
E quando eu morar contigo
Tu hás de ver que perigo
Que isso vai ser, ai, meu Deus
Vai nascer todos os dias
Uma porção de Marias
De olhinhos da cor do teus
Maria!, Maria!
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A Devoção e a Beleza de 'Maria' por Ary Barroso
A música 'Maria' de Ary Barroso é uma ode ao amor e à devoção, expressa de maneira poética e sentimental. A letra começa com uma declaração de que o nome 'Maria' está gravado na palma da mão do narrador e dentro do seu coração, simbolizando a profundidade e a permanência desse amor. A repetição do nome 'Maria' ao longo da canção reforça a importância e a centralidade dessa figura na vida do narrador.

A canção também faz uma comparação entre os olhos de Maria e os de Nosso Senhor, destacando a pureza e a divindade que o narrador enxerga nela. A metáfora de ficar 'ceguinho de amor' ao ver os olhos de Maria de perto sugere que o amor é tão intenso que ofusca a visão, uma expressão comum para descrever a cegueira causada pela paixão. A letra continua a explorar a ideia de um futuro juntos, onde o narrador imagina um cenário de intimidade e exclusividade, onde apenas Maria será ouvida.

Além disso, a música traz uma dimensão nostálgica ao mencionar que 'Maria' era o nome que o narrador dizia quando aprendeu a falar, referindo-se à sua avó. Isso adiciona uma camada de ternura e saudade, mostrando que o nome 'Maria' carrega um significado profundo e pessoal. A canção termina com uma visão otimista e alegre de um futuro onde o amor entre o narrador e Maria dará origem a muitas outras 'Marias', simbolizando a continuidade e a multiplicação desse amor. Ary Barroso, conhecido por suas composições que exaltam a beleza e a emoção, consegue capturar a essência do amor romântico e familiar em 'Maria'.

A necessidade urgente de uma música inédita para a peça teatral "Me deixa Ioiê" fez Luiz Peixoto criar os versos deste samba-canção sobre a melodia de "Bahia", uma composição pouco conhecida de Ary Barroso.

O nome Maria, que muito bem substituiu o do samba original, era uma homenagem à estrela da peça, a bela atriz portuguesa Maria Sampaio, famosa também pelo seu talento. Esforçando-se para impressionar a homenageada, Peixoto caprichou nos versos, sendo Maria uma de suas melhores produções.

Só o início - "Maria, o teu nome principia / na palma da minha mão... - já vale por um poema, e dos bons. Gravado duas vezes por Sílvio Caldas, este samba foi sucesso em 1934 e 1940.

Fontes:

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Varal de Trovas n. 607

 

Humberto de Campos (O bravo)

Pai de uma menina que era um encanto, o coronel Peregrino encontrara na vida, pela primeira vez, uma dificuldade que lhe detivera o passo: o casamento da filha, a escolha de um noivo digno, bravo, correto, entre os jovens oficiais da guarnição. Três tenentes, nada menos, disputavam-lhe a mão, e era essa rivalidade, exatamente, que dificultava a solução do problema. Todos eram galantes rapazes e elegantíssimos oficiais, e, como a pequena não decidisse por si mesma, o caso era atirado, inteiro, à delicada responsabilidade do pai.

Certo dia, reunida no quartel a oficialidade da guarnição, chamou o coronel à parte os três jovens tenentes, e, torcendo marcialmente, com as duas mãos, as fortes guias do bigode grisalho, propôs, severo:

- Eu sei que os senhores, os três, têm paixão pela minha filha, cuja mão já me pediram em casamento.. A escolha entre os senhores é dificílima. Se eu fosse comerciante, preferiria o mais rico. Se fosse fidalgo, o mais nobre. Se me preocupasse com as aparências, o mais elegantemente vestido. Sou, porém, um soldado, e, como, tal, faço questão de escolher para genro o mais valente, o mais bravo, o mais corajoso. Não acham justo?

- Perfeitamente! - exclamou o tenente Coimbra.

- Perfeitamente! - confirmou o tenente Torres.

- Perfeitamente! - concordou o tenente Samuel.

- Nesse caso - tornou o coronel - vou submetê-los a uma prova.

E ordenou, para dentro:

- Cabo Matias, prepare a metralhadora.

O inferior puxou a máquina para o pátio, mexeu nas munições, remexeu nas ferragens, e avisou:

- Pronto, Sr. coronel.

O velho militar examinou a arma e, vendo que tudo ia bem, tomou os rapazes pelo braço, colocou-os a seis metros do aparelho mortífero, e ordenou, com voz de comando:

- Um!... Dois!...

E ia dar o último sinal para descarga da metralha, quando dois vultos pularam, rápidos, num movimento de terror, colocando-se fora do alvo.

- Covardes! - trovejou o coronel. E eram estes pusilânimes que pretendiam a mão da minha filha!...

E dirigindo-se ao terceiro, que se não afastara do lugar:

- O senhor, sim, é um bravo! A menina é sua!

E, estendendo-lhe a mão:

- Venha daí, vamos ver a sua noiva.

O oficial detinha-se, porém, imóvel.

- Vamos, homem! - insistiu.

O tenente olhou para um lado, olhou para outro, e, afinal, confessou:

- Posso lá o que! Se eu pudesse sair daqui, eu tinha corrido!

E para o soldado:

- Matias, empresta-me a tua calça?

Fonte: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.

Vereda da Poesia = 72 =


Trova de Curitiba/PR

WALNEIDE FAGUNDES DE S. GUEDES

A tua ausência é o refrão
de uma tristeza sem fim,
onde o tempo ao dizer não,
permite à dor dizer sim.
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Poema de Portugal

ANTÓNIO BOTTO
Freguesia de Concavada/Concelho de Abrantes (1897 – 1959) Rio de Janeiro/RJ

Anda vem...

Anda vem..., porque te negas,
Carne morena, toda perfume?
Porque te calas,
Porque esmoreces,
Boca vermelha --- rosa de lume?

Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos num beijo.

Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, meu amor!

E ouve, mancebo alado:
Entrega-te, sê contente!
--- Nem todo o prazer
Tem vileza ou tem pecado!

Anda, vem!... Dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos...
Tenho saudades da vida!
Tenho sede dos teus beijos! 
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Trova Paulista

GUILHERME DE ALMEIDA
(Guilherme de Andrade de Almeida)
Campinas/SP (1890 – 1969) São Paulo/SP

Tudo muda, tudo passa,
neste mundo de ilusão:
Vai para o céu a fumaça,
fica na terra o carvão.
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Sonetilho Pentassilábico do Rio de Janeiro/RJ

JORGE DAS NEVES

 Sonetilho escrevo,
componho com afinco,
e se errar não devo
no erro ponho trinco.

 Componho com enlevo
em versos de cinco
e jamais me atrevo
com telha de zinco.

 Meu telhado é forte,
tenho muita sorte,
nessa construção.

 Vate tarimbado,
cuido do telhado
e da fundação.
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Trova Premiada em Nova Friburgo/RJ, 2008

ÉLBEA PRISCILA S. DE SOUZA
Piquete/SP, 1942 – 2023, Caçapava/SP

A escolha do par perfeito,
farei nesta… em qualquer vida,
ao resgatar de outro peito,
minha metade perdida!
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Poema de Vila Velha/ES

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA

Ponto pacífico

Os gritos
ferem os ouvidos
Mas o silêncio,
ao contrário,
Abranda o coração
estraçalhado.
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Trova Popular

Ninguém deve, neste mundo,
de alheias desgraças rir.
Quando o sol troveja, o raio
não faz ponto onde cair...
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Soneto de Sorocaba/SP

DOROTHY JANSSON MORETTI
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Sobre as nuvens

Na lida ingrata e rude do vaquejo,
no carrascal inóspito e ardente,
manda uma prece o pobre sertanejo
a um Deus que há muito lhe parece ausente.

Nos seus olhos vermelhos, o desejo
de que uma chuva, mesmo impersistente,
venha molhar, com dúlcido bafejo,
seu chão gretado de um sol inclemente.

Ao dedilhar simplório do violeiro,
chora a toada monótona o vaqueiro,
na noite sem espera e sem promessa.

E quando sobre as nuvens paira a prece,
quando a esperança já quase fenece…
um raio, o espaço, rútilo, atravessa.
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Trova do Rio de Janeiro/RJ

LUIZ POETA
Luiz Gilberto de Barros

Na lousa de um tempo ausente:
silêncio!... as letras a giz
pairam no olhar de um docente…
discente... rindo... feliz.
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Poema de Goiás

CORA CORALINA
(Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas)
Cidade de Goiás/GO (1889 – 1985) Goiânia/GO+

Assim eu vejo a vida

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.
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Trova Humorística de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Na escada, a aposta suicida
dos genros, no arranha-céu:
- Leva, quem perde a corrida,
a sogra... como troféu!
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Soneto de São Fidélis/RJ

ANTONIO MANOEL ABREU SARDERNBERG

Aurora Desbotada

Desperta a aurora fria e desbotada,
Em mais um dia que precede o fim,
E essa minha alma frágil e tão cansada,
Já não suporta a dor que dói em mim.

A noite avança, rompe a madrugada,
Eu já não sinto o aroma do jasmim
Que andava no meu quarto e na sacada
E perfumava todo o meu jardim.

Dia morto... noite morta... tudo é nada...
Viver só por viver não me consola
Se a aurora só é bela colorida.

Sinto que irei sem ti nessa jornada,
E a suportar a angústia que me assola,
Prefiro não viver - isso não é vida!
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Trova de Bandeirantes/PR

LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DE CARLI

Os tropeços nas subidas,
entraves da caminhada,
fortalecem muitas vidas
para a reta de chegada.
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Spina de São Paulo/SP

CARLA BUENO OLIVEIRA

Encontrei você

Imenso em mim
todo esse amor
sempre irei enaltecer.

A porção minha que faltava
outra metade de mim encontrei
amor verdadeiro a cada amanhecer.
Felicidade estar sempre com você
privilégio somente a você pertencer.
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Trova de Campinas/SP

ARTHUR THOMAZ

Ah! Meu amor, quem me dera
voltar ao nosso cantinho.
Tão pequeno que ele era...
cabia tanto carinho!
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Soneto de Campo Grande/MS

RUBÊNIO MARCELO

A cruz de um adeus

Já é madrugada. Eu estou pela rua…
Na trilha dourada dos olhos da lua.
No meu desvario, na minha tristeza,
Ainda aprecio os dons da Natureza.

E assim, sem destino, tal qual vagalumes,
Aos entes sagrados faço queixumes.
Ao longe, o clarão dos astros em prumo…
E o meu coração errante, sem rumo.

A brisa vadia soprando com jeito…
E uma agonia tomando meu peito.
Estrelas cadentes brincando no céu…

E eu, decadente, pervagando ao léu.
Cometas pulsando pertinho de Deus…
E eu carregando a tal cruz de um adeus!
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Trova Premiada em Caicó/RN, 2014

DÁGUIMA VERÔNICA 
(Santa Juliana/MG)

No emaranhado das linhas,
pelo avesso desta lida,
descobri, nas entrelinhas,
Deus bordando o chão da vida.
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Poema de Curitiba/PR

PAULO LEMINSKI
(1944 – 1989)

Poetas Velhos 

Bom dia, poetas velhos.
Me deixem na boca
o gosto dos versos
mais fortes que não farei.

Dia vai vir que os saiba
tão bem que vos cite
como quem tê-los
um tanto feito também,
acredite.
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Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

Amai-vos, e as derradeiras 
muralhas hão de cair. 
– Havendo amor, as barreiras 
não têm razão de existir! 
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Pantum de São José dos Campos/SP

MIFORI
(Maria Inez Fontes Rico)

Navegando contra o vento 

Navegando contra o vento
sem levar mercadoria,
o seu barco sonolento
bordejava em agonia.

Sem levar mercadoria
num mar bravio e revolto
bordejava em agonia
um dos barcos, leve e solto.

Num mar bravio e revolto
num balanço tempestuoso
um dos barcos, leve e solto,
seguiu trajeto tortuoso.

Num balanço tempestuoso
naquele dia cinzento
seguiu trajeto tortuoso
Navegando contra o vento.
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Trova de Santos/SP

CAROLINA RAMOS

Embora sozinha eu siga
e sigas também a sós,
dentro do amor que nos liga
não há distância entre nós!
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Hino de Cascavel/PR

Cascavel, cidade hospitaleira
Tu és fonte rica de labor
Do quadrante oeste és a primeira
Te amamos com todo o fervor

Tua história é bela e fascinante
Que o passado nos faz sempre reviver
Feitos heroicos de um grande bandeirante
Que criou-te e feliz te fez crescer

Tua beleza imponente tem vida
És a sombra que acolhe o forasteiro
Ganhas bênçãos pelas mãos da Aparecida
Portas abertas a todo brasileiro

No horizonte d 'oeste estrela fulgurante
Tua gente tão nobre de amor varonil
És crescente progresso a todo instante
És o mais lindo pedacinho do Brasil
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Trova de Fortaleza/CE

FRANCISCO JOSÉ PESSOA
1949 – 2020

Dos artigos que componho
nas minhas noites sozinhas,
fazes parte do meu sonho
abraçada às entrelinhas.
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Poema do Rio de Janeiro/RJ

CLÁUDIA BELCHIOR

Minha escultura

É ela a minha escultura
E nela acredito com dedos de sonhos
E com a doçura de como me fez a minha mãe.
Nela acredito íntima e interior
Com olhos profundos
Capaz de entender a alegria e a dor da humanidade.
Nela acredito forte e frágil
E me encanto com seus movimentos
Caminhar apesar de tudo
Mulher, gueixa e poeta.
E é esta argila: rosa, vermelha e azul
A responsável por fazer sempre um novo planeta. 
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Trova de São Paulo/SP

SOLANGE COLOMBARA

Por horas, sempre brindando
ao tempo, a cada momento
vivido, vou caminhando,
celebrando um sentimento.
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

O corvo e a raposa

É fama que estava o corvo
Sobre uma árvore pousado,
E que no sôfrego bico
Tinha um queijo atravessado.

Pelo faro àquele sítio
Veio a raposa matreira,
A qual, pouco mais ou menos,
Lhe falou desta maneira:

«Bons dias, meu lindo corvo;
És glória desta espessura;
És outra fênix, se acaso
Tens a voz como a figura!»

A tais palavras o corvo
Com louca, estranha afoiteza,
Por mostrar que é bom solfista
Abre o bico, e solta a presa.

Lança-lhe a mestra o gadanho*,
E diz: «Meu amigo, aprende
Como vive o lisonjeiro
À custa de quem o atende.

Esta lição vale um queijo,
Tem destas para teu uso.»
Rosna então consigo o corvo,
Envergonhado e confuso:

Velhaca! Deixou-me em branco,
Fui tolo em fiar-me dela;
Mas este logro me livra
De cair noutra esparrela.»
(tradução: Bocage)
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* Gadanho = garra.