sábado, 31 de março de 2018

Fernando Pessoa (Quadras ao Gosto Popular) IV


Ai, os pratos de arroz doce
com as linhas de canela!
Ai a mão branca que os trouxe!
Ai essa mão ser a dela!

À roda dos dedos juntos
enrolaste a fita a rir.
Corações não são assuntos
e falar não é sentir.

A Senhora da Agonia
tem um nicho na Igreja.
Mas a dor que me agonia
não tem ninguém quem a veja.

A tua janela é alta,
a tua casa branquinha.
Nada lhe sobra ou lhe falta
senão morares sozinha.

Comes melão às dentadas,
porque assim não deve ser.
Não sei se essas gargalhadas
me fazem rir ou sofrer.

Comi melão retalhado
e bebi vinho depois,
quanto mais olho p'ra ti
mais sei que não somos dois.

Compreender um ao outro
é um jogo complicado,
pois quem engana não sabe
se não estava enganado.

Cortaste com a tesoura
o pano de lado a lado.
Porque é que todo teu gesto
tem a feição de engraçado?

Deixaste o dedal na mesa
só pelo tempo da ausência —
Se eu te roubasse dirias
que eu não tinha consciência.

Deram-me um cravo vermelho
para eu ver como é a vida.
Mas esqueci-me do cravo
pela hora da saída.

Dona Rosa, Dona Rosa.
de que roseira é que vem,
que não tem senão espinhos
para quem só lhe quer bem?

Dona Rosa, Dona Rosa,
quando eras inda botão
disseram-te alguma cousa
de a flor não ter coração?

Eu vi ao longe um navio
que tinha uma vela só,
ia sozinho no mar...
Mas não me fazia dó.

Floriu a roseira toda
Com as rosas de trepar...
Tua cabeça anda à roda
Mas sabes-te equilibrar.

Frescura do que é regado,
por onde a água inda verte...
Quero dizer-te um bocado
do que não ouso dizer-te.

Manjerico que te deram,
amor que te querem dar...
Recebeste o manjerico.
O amor fica a esperar.

O canário já não canta.
não canta o canário já.
Aquilo que em ti me encanta
talvez não me encantará.

O laço que tens no peito
parece dado a fingir.
Se calhar já estava feito
como o teu modo de rir.

O malmequer que colheste
deitaste-o fora a falar.
Nem quiseste ver a sorte
que ele te podia dar.

O que sinto e o que penso
de ti é bem e é mal.
É como quando uma xícara
tem o pires desigual.

O ribeiro bate, bate
nas pedras que nele estão,
mas nem há nada em que bata
o meu pobre coração.

Quando ela pôs o chapéu
como se tudo acabasse,
sofri de não haver véu
que inda um pouco a demorasse.

Quem te deu aquele anel
que ainda ontem não tinhas?
Como tu foste infiel
a certas ideias minhas!

Tens um anel imitado,
mas vais contente de o ter.
Que importa o falsificado
se é verdadeiro o prazer.

Uma boneca de trapos
não se parte se cair.
Fizeste-me a alma em farrapos…
Bem: não se pode partir.

Fonte:
PESSOA, Fernando, Quadras ao gosto popular, Lisboa, Ática, 1994.

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