quinta-feira, 5 de junho de 2025

Asas da Poesia * 33 *

 

Soneto de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Aos que começam...

Se escreves, nesse humilde e obscuro anonimato,
a enfrentar, com denodo, os lances audaciosos,
para a glória de um texto ou graça de um relato,
que não te anule o brilho, astral, dos mais famosos!

Sabes bem que o trabalho é teu fiel retrato.
Se és capaz de conter delírios ambiciosos,
no labor hás de ter o perfil mais exato
do ideal que conduz à frente os vitoriosos!

Quem folheia um jornal, pela manhã bem cedo,
desconhece, por certo, a nobre e intensa lida
que envolve o jornalista em seu diurno enredo.

Mas, quanto o valoriza aquele que, enfim, pensa:
- como seria o mundo apático e sem vida,
sem o bravo clamor... das máquinas da imprensa!
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Trova de
LUCÍLIA A. T. DECARLI
Bandeirantes/PR

Quando não mais se vislumbra
nem réstia de um bem-querer,
saudade é doce penumbra
pairando em nosso viver.
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Poema de 
ANTONIO JURACI SIQUEIRA
Belém/PA

Incógnito

Parti no alvorecer, ainda menino,
à procura do Amor e da Verdade
mas antes de se por o sol a pino
entre pedras perdi a identidade.

Debalde tento agora reencontrá-la
em cada esquina, em cada gesto e olhar...
- Quem sou?  -  pergunto ao céu e ele se cala;
- Que sou? – desesperado indago ao mar.

E sem respostas – pássaro sem ninho –
vou pela vida na indefinição
de quem procura, às cegas, um caminho
para o porto inseguro da ilusão.
= = = = = = = = =  

Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Prazer é sentir os dedos
de nossas mãos artesãs
pintando os lindos segredos
das auroras das manhãs!
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Soneto de
PAULO R. O. CARUSO
Niterói/RJ

Esperança ante a praga

Tantos se foram, Pai, ante esta maladia 
arrepiante que arrebata tantas vidas!
Toda a alegria viu-se filha da agonia!
Tantas famílias hoje mortas e falidas! 

Valas comuns a gente amada em galhardia!
Pilhas de corpos lado a lado desvalidas!
Um frio intenso pela espinha me aturdia 
até que ouvi sacras palavras perseguidas. 

Tal como a praga pipocara ardentemente,
uma esperança veio a então cristalizar-se
na ponta doce duma agulha que nem arde!

Santa vacina abençoada, um grão presente
como o do trigo a gerar pão, multiplicar-se 
e salvar vidas cedo, agora e mesmo tarde! 
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

A dor que meu peito tem,
meu coração não publica.
Tome amor com quem quiser
que essa mágoa cá me fica.
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Poema de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA (1847 – 1871) Salvador/BA

O baile na flor

Que belas as margens do rio possante, 
Que ao largo espumante campeia sem par! 
Ali das bromélias nas flores doiradas 
Há silfos e fadas, que fazem seu lar... 

E, em lindos cardumes, 
Sutis vaga-lumes 
Acendem os lumes 
Pra o baile na flor. 

E então — nas arcadas 
Das pet’las doiradas, 
Os grilos em festa 
Começam na orquesta 
Febris a tocar... 
E as breves Falenas 
Vão leves, 
Serenas, 
Em bando 
Girando, 
Valsando,
Voando no ar! …
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Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Há muita gente vaidosa
seguindo o exemplo da lua,
e refletindo, vaidosa,
uma luz que não é sua...
= = = = = = = = =  

Poema de
CRIS ANVAGO
Setúbal/ Portugal

Tudo é importante?
Não!

Só é importante o que eu quero que seja!
Os teus lábios cor de cereja
O teu sorriso que abraça o meu
O teu corpo mel
E, o meu corpo, extensão do teu…

O teu olhar que me encanta
No rio ou no mar sempre me espanta
A maneira do sorriso do teu olhar

Quando me canso do dia
volto para ti,
tudo é harmonia.
Foram minutos que perdi
que são preciosos todos os dias

Nas madrugadas despertas
Nas horas tão incertas
O sol sempre nasce
mesmo que não apareça

Tu sentes o calor do abraço
Não existe espaço entre nós
O coração bate no mesmo compasso
No mundo que é só nosso!
= = = = = = = = =  

Trova de
ARI SANTOS CAMPOS
Balneário Camboriú/SC

As saudades não têm fim;
a luz do sol se apagou...
Secou a flor do jardim 
e o trem da vida passou.
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Soneto de
MARTINS FONTES
Santos/SP, 1884 – 1937

Beijos mortos

Amemos a mulher que não ilude,
e que, ao saber que a temos enganado,
perdoa, por amor e por virtude,
pelo respeito ao menos ao passado.

Muitas vezes, na minha juventude,
evocando o romance de um noivado,
sinto que amei, outrora, quanto pude,
porém mais deveria ter amado.

Choro. O remorso os nervos me sacode.
e, ao relembrar o mal que então fazia,
meu desespero, inconsolado, explode.

E a causa desta horrível agonia,
é ter amado, quanto amar se pode,
sem ter amado, quanto amar devia.
= = = = = = = = =  

Haicai do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Folhas pelo chão,
São meus sonhos que se arrastam
cheios de ilusão!
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Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Caíram, uma a uma, pelo chão
(Verso de Glória Merreiros)

Caíram, uma a uma, pelo chão
As perlas que eu chorei e tu choraste
Nessa hora em que, triste, me abraçaste
Fugindo ao mundo vil da solidão.

Tão frágil, a sofrer, teu coração
Batia no teu peito feito haste
Ao vento dessa dor que recusaste
E punha o teu olhar na escuridão.

De amor puxei teu corpo contra o meu
E quando a força usada me doeu
Eu cri que os nossos braços deram nó.

Mais forte do que nunca o nosso abraço
Deixou entre nós dois tão pouco espaço
Que eu soube que no amor somos um só.
= = = = = = = = = 

Trova de
RENATO ALVES
Rio de Janeiro/RJ

Contemplando este cenário
que avisto dos coqueirais,
no barquinho solitário
eu navego com meus ais!
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Soneto de
MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

Lindóia

Vem, vem das águas, mísera Moema,
Senta-te aqui. As vozes lastimosas
Troca pelas cantigas deleitosas,
Ao pé da doce e pálida Coema.

Vós, sombras de Iguaçu e de Iracema,
Trazei nas mãos, trazei no colo as rosas
Que amor desabrochou e fez viçosas
Nas laudas de um poema e outro poema.

Chegai, folgai, cantai. É esta, é esta
De Lindóia, que a voz suave e forte
Do vate celebrou, a alegre festa.

Além do amável, gracioso porte,
Vede o mimo, a ternura que lhe resta.
"Tanto inda é bela no seu rosto a morte!"
= = = = = = 

Trova de
MILTON S. SOUZA
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS

Com textos, fotos ou mapas,
o bom livro é uma estrutura
onde o leitor, entre as capas,
mata a sede da cultura.
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Poemeto de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

Sou uma leve brisa,
o beijo do dia.
Uma lágrima na noite
fria, solidão sombria.
Sou doce perfume,
suave sangria.
Gargalhada aprisionada
ou veneno, sua alforria.
Sou a rosa do tango,
drama na alegria.
Rodopiando na valsa
sorrio, faço poesia.
= = = = = = = = =  

Trova de
GERSON CESAR SOUZA
São Leopoldo/RS

Quando a dor se manifesta,
não desisto, sigo em frente,
pois sei que a luz que me resta
é Sol para muita gente.
= = = = = = = = =  

Soneto de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

Meu verso

Cheguei aqui para escrever meu verso,
trago papel, caneta e o pensamento.
Quero implorar à musa do Universo
inspiração e amor no meu intento.

Se este mundo se mostra tão perverso,
quero a flor, o perfume e o sentimento,
que o coração, contrito, esteja imerso
neste festim da rima, o meu alento.

Que a natureza, então, em vivas cores
seja mostrada em todos seus valores
e no meu verso não tenha rival.

Minha esperança é ver a natureza
amada, respeitada e com certeza;
- meu soneto seria universal! 
= = = = = = = = =  

Trova de
LUIZ CARLOS ABRITTA
Cataguases/MG, 1935 – 2021, Belo Horizonte/MG

Todos querem sufocar,
com disfarces atrevidos,
e sordidez invulgar,
o grito dos excluídos .
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Poema de
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/ Portugal

Fala-me…

Fala-me ao nascer do dia,
no primeiro raio de Sol.
Fala-me com o perfume das flores
e eu pintarei o arco-íris com outras cores.

Fala-me ao entardecer,
quando o céu encontra o mar.
Fala-me com o voar das andorinhas
e eu mandar-te-ei lembranças minhas.

Fala-me no silêncio da noite,
na tranquilidade da cidade.
Fala-me com um simples olhar
e eu deixar-me-ei por lá ficar.

Porque entre nós as palavras são escassas,
são os nossos gestos que falam por si.
= = = = = = = = =  

Poeminha de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Apressados
passos
passam.
Por que
não passeiam?
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Dobradinha Poética de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

O oratório

Ao atender meu apelo
se a vida se faz ingrata,
chego a sentir o desvelo
com que Deus sempre me trata!
* * *

A casa, da fazenda, imensa e bela!...
No quarto, que o lampião iluminava,
um oratório... e, à noite, acesa a vela,
alegre ou triste, minha avó rezava.

A casa, na cidade, bem singela!...
No quarto, quando o dia se apagava,
um oratório... e eu lembro a imagem dela,
alegre ou triste, minha mãe orava.

No quarto simples, quando a noite cai,
um oratório... e, a sós, eu clamo ao Pai,
alegre ou triste, muito Lhe agradeço

os dons da paz, saúde, vida e amor
e, de mãos postas, louvo ao meu Senhor,
pois deu-me muito mais do que mereço.
= = = = = = = = =  

Trova de
MAURÍCIO NORBERTO FRIEDRICH
Porto União/SC, 1945 – 2020, Curitiba/PR

Num relógio, vendo a hora,
no outono de minha lida,
vejo que não há demora
no ocaso de minha vida!
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Soneto de
JÉRSON BRITO
Porto Velho/ RO

Gostosa embriaguez

No teu abraço encontro placidez,
No teu sorriso, singular dulçor,
Na tua boca provo do licor,
Motivo da gostosa embriaguez.

Provoca-me teu corpo sedutor
E, assim, quando passeio em tua tez,
Mergulha o coração em calidez,
São toques revestidos de furor.

Se te entregares, linda, notarás
Meus olhos radiantes a fulgir.
Na busca do prazer sou fera edaz.

Confesso que teu mágico elixir
Maravilhosamente me compraz,
Não posso aos teus encantos resistir.
= = = = = = = = =  

Poetrix de
DALTON LUIZ GANDIN
São José dos Pinhais/PR

Arte
 
Meu papel foi natura.
Agora,
eu imprimo cultura.
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Poema de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/SP

Desejo

Sou feita de atos e pensamentos
corpo e alma das letras em ação.
Mas o que mais me identifica e desenha meu perfil
são  as  palavras.
Eu sou o que escrevo, sou a palavra que me  revela
nas  entrelinhas dos meus poemas.
Queria tocar os corações das pedras,
queria que as pedras me lessem!
= = = = = = = = =  

Haicai de
ANDRÉ RICARDO ROGÉRIO
Arapongas/PR

A coruja pia
Inverno, fito e deito
Com jeito ela espia.
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Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Quem há de...

- Quem há de... - indagaste-me, vaidosa- 
fazer minha razão titubear?
Bailávamos... estavas tão charmosa, 
e eu, perdido inteiro, em teu olhar. 

- Quem há de... - retruquei - que causa às rosas-
inveja, mesmo ao se despetalar? 
e tu sorriste tão... maravilhosa... 
que nem meu coração quis mais pulsar. 

Fazendo, do salão, a alegoria
do enredo de um sonho particular, 
o enlevo conduziu-me à fantasia

e quando  me dei conta, despertei... 
- Quem há de ser feliz sem se deixar
levar por este sonho que eu... sonhei?
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Trova de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

Não temas qualquer enigma
que venha te causar dor;
pois trazes na alma o estigma
daquele que é trovador!
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Soneto de
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

Amigos

Deus proíbe a livre escolha de um irmão,
Consanguíneo ser gerado pelos pais;
Mas as forças dos Céus não negam, jamais,
Um amigo de verdade a nossa opção.

Quando a dúvida me vinha por inteiro
Face a algumas derrocadas frente à vida,
Foram teus braços abertos a acolhida,
À maneira de um confrade verdadeiro.

Pelas mãos firmes do amigo, pus-me em pé...
Teu apoio proporciona-me energia.
Nossa troca de instruções é sinergia
Que nos faz crescer na vida pela fé.

Horizontes amplos, tem nossa amizade!
Aprendi muito com teus ensinamentos
E também já te passei conhecimentos;
São pilares de total fraternidade.

Sobre o próximo, nós temos convergência
Com propósitos cabais de paz e amor...
Num planeta sem conflitos e sem dor,
Com o "ser" vencendo o "ter" na convivência.
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Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

Parceria

Como não te sorrir, se vens tão mansa?…
Silente e a passos lentos me acompanhas,
sem nada me exigir, sem artimanhas;
parceira a me seguir desde criança!…

E como não chorar pelas façanhas, 
tornando-se retalhos de lembrança,
se a idade pesa o prato da balança
e não me deixa chances de barganhas?…

Mas sem queixumes vãos… e sem tolice!
Nascemos “um pro outro”, (eu e a velhice),
e se estou vivo e aqui, é o que interessa.

Acato as leis do tempo, de bom grado,
e até feliz em ter-te, do meu lado…
Se assim não for, eu morro mais depressa!
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Trova de
ANGÉLICA VILLELA SANTOS
Guaratinguetá/SP, 1935 – 2017, Taubaté/SP

No palco da vida, atuante,
junto a comédias e dramas,
o destino, ator brilhante,
vai tecendo sua trama…
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Poema de
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
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Figueiredo Pimentel (A moça do lixo)


Passavam um dia duas fadas por um jardim formosíssimo e bem tratado, quando viram um monte de estrume que o chacareiro havia deixado para estercar a terra.

– Que coisa nojenta! – Disse uma delas. – Como é que se consente num jardim tão belo tamanha porcaria, ainda que seja por um momento!...

– Tive uma ideia, disse a outra. – Eu faço para que essa esterqueira se transforme numa mulher tão linda como Leona, a princesa adivinha, que é a mais formosa criatura do mundo.

– E eu faço, retorquiu a outra, para que ela tenha um anel no dedo. Enquanto estiver com esse anel, só poderá pronunciar a palavra “porcaria”, sem que nada mais possa dizer. Tirando-lhe o anel, será uma moça instruída e espirituosa, ao passo que, quem o usar, ficará com o mesmo defeito.

As duas fadas desapareceram, e, do estrume, surgiu uma moça maravilhosamente formosa.

Era nos jardins reais. O príncipe, passando por acaso, viu-a e ficou apaixonado. Perguntando-lhe quem era, de onde vinha, como se chamava, só obteve em resposta:

– Porcaria! Porcaria!...

Admirado por ouvir aquela grosseria, tão suja, em boca tão formosa, sua alteza insistiu. Em vão! A deslumbrante moça respondia sempre:

– Porcaria!... Porcaria!...

O príncipe quis fazê-la sua esposa, mas o rei, os ministros, os conselheiros da coroa e os grandes dignatários não o consentiram.

Não podendo, entretanto, deixar de vê-la a todos os instantes, o futuro soberano fê-la alojar no palácio.

Tempos depois teve de se casar, como era obrigado por lei. Deram-lhe como noiva uma princesa, filha de um imperador vizinho e aliado.

Preparando-se a toalete da noiva, uma criada lembrou-se que Porcaria tinha um anel sem igual.

Tirou-o, e apresentou-o à sua nova ama, que o enfiou no dedo.

Quando o cortejo chegou à igreja, na hora da celebração do casamento, perguntando o padre à noiva, se livremente recebia o príncipe, ouviu-a dizer:

– Porcaria!... Porcaria!...

Não houve meios de se lhe arrancar outra coisa: – Porcaria!... Porcaria!... falava sempre. O príncipe, em vista daquilo, exclamou:

– Não! Não me serve! Porcaria por porcaria, tenho lá na palácio uma melhor.

Foram buscar a outra, que encontraram falando e conversando com todo o espírito, e o casamento foi celebrado.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
ALBERTO FIGUEIREDO PIMENTEL nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 — 1914 foi além de poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.

Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado originalmente em 1896. 
Disponível em Domínio Público. 
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Juan Barnav (Como escrever um livro) – 4. Os personagens de sua obra


(tradução do espanhol, por José Feldman)

No início, foi mencionado que existem duas maneiras de abordar um tema: por meio da ficção ou recriando a realidade. Ou seja, um romance ou talvez uma obra histórica será escrita.

Como essas obras são tipicamente repletas de ação, e não reflexões filosóficas, alguém deve realizá-las; ou seja, deve haver um ou mais personagens. Em outras palavras, o primeiro passo em nossa chave de quatro é determinar os personagens que nossa obra apresentará.

Se optamos por escrever uma biografia histórica, o personagem principal já estará definido: Napoleão, Hipócrates, etc. Depois de determinar as características fundamentais do personagem escolhido, devemos identificar outras figuras importantes que também foram decisivas na evolução de sua existência.

Quando se trata de uma obra com rigor histórico — ou seja, aderindo aos fatos de forma indispensável, como é o caso de uma biografia — é necessário pesquisar inúmeras fontes documentais ou, se o personagem for contemporâneo, entrevistar pessoas que o conheçam, a fim de obter informações em primeira mão.

Isso significa que nosso sujeito não precisa necessariamente ter falecido para ser o objeto de nosso estudo.

Por outro lado, se decidimos escrever um romance, nossos horizontes se expandem enormemente em termos de determinar o número de personagens e suas características. Pode ser apenas um ou um grande número de personagens.

Se, durante o desenvolvimento de sua obra, seja ficção ou realismo, você perceber que alguém está faltando, não se preocupe; sempre haverá tempo para introduzi-lo na trama. Mesmo que em algum momento você se encontre preso e não saiba como resolver as coisas, você pode inventar alguém que saiba toda a verdade ou que recupere a memória repentinamente.

As infinitas possibilidades que existem para a escrita são incríveis; por exemplo, em uma obra de ficção, de um conto a um grande romance, podem ser criadas personagens cuja história única, graças à inventividade do autor, cada uma possui sua própria história e, portanto, a trama pode seguir uma ampla variedade de caminhos.

Ao criar personagens, é essencial determinar sua identidade e outros aspectos interessantes de suas vidas, desde quem são seus familiares, como foi sua infância, se são saudáveis ou sofrem de alguma doença física ou mental (personagens com doenças mentais sempre foram um recurso para autores de obras dramáticas ou de ação); seu local de residência, sua condição social e econômica, já que nem sempre estão relacionados, e até mesmo sua morte e a forma como ela ocorreu devem ser observadas.

Se tivermos dificuldade em criar personagens, podemos recorrer a pessoas que conhecemos: amigos, familiares, professores, colegas de trabalho, vizinhos. Todos eles podem servir de modelo para um dos personagens da nossa história.

Você também pode fornecer ao personagem "armas" para ajudá-lo a ter um melhor desempenho, especialmente se for uma obra de suspense. Um deles pode possuir "o segredo" que resolverá a trama; outro pode se desenrolar com base em mentiras, complicando a história, o que ajuda a criar confusão entre os demais.

Mas mudemos de assunto. Nem todos nós temos inclinação para escrever histórias de suspense. As crianças não têm o direito de ler? Para elas, pode-se inspirar em Esopo, o escravo núbio que entrou para a história graças às suas fábulas, bem como no francês Lafontaine e no espanhol Samaniego, que deram personalidade a objetos e animais.

Depois de ler estas recomendações, você certamente nunca se sentiu tão livre para criar histórias e personagens que fluem em sua imaginação, apenas esperando a oportunidade de brotar dela e ganhar forma nas páginas que você está prestes a escrever. Vá em frente, então.

Exercício:
Seguindo o seguinte formato, descreva seus personagens. Lembre-se de que nem todas as suas características precisam ser necessariamente preenchidas, nem todos os personagens precisam ser tão ricos nelas. Mas é uma boa maneira de começar a defini-los.

Sexo Idade Nome: Informe sua escolaridade, se tiver. Indique sua profissão, se tiver, tipo e motivos. Filho(a): Chefe de família. Sem família. Sem dinheiro, com meios para sobreviver, rico ou milionário. Ascendência nobre, títulos. Descendente de criminosos, etc. Classe social baixa, média ou alta. Saúde física boa ou ruim. Características físicas, ascendência média: olhos, cabelo, constituição física, altura, características distintivas, etc. 
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continua… 5. Definição da Época

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

José Feldman (Mini contos Encruzilhadas da vida) 1 - 5


1. Decisões
Em uma encruzilhada, Lia parou, seu coração acelerado. Para a esquerda, um caminho seguro, mas monótono; à direita, uma trilha cheia de incertezas e desafios. Ela respirou fundo e decidiu seguir o caminho desconhecido. À medida que avançava, cada passo revelava novas oportunidades e, ao mesmo tempo, novos medos. No final, percebeu que a encruzilhada das decisões era onde realmente encontrava a si mesma.

2. O Tempo
Ananias sempre se sentia preso ao relógio. As horas passavam como sombras, e ele se via correndo atrás de prazos. Um dia, decidiu se desconectar. Ao andar sem pressa, descobriu pequenas maravilhas ao longo do caminho: flores que nunca tinha notado, risadas de crianças brincando. No labirinto do tempo, ele aprendeu que viver o presente é o verdadeiro tesouro.

3. Memória
Mariana encontrou um velho diário empoeirado. Cada página era um emaranhado de memórias, algumas doces, outras amargas. Ao lê-las, ela percebeu como as experiências moldaram sua identidade. Ao final da leitura, decidiu que, em vez de se perder nas lembranças, queria criar novas histórias. A teia da memória se tornaria um mapa para o futuro.

4. Relações
Lucas sempre teve dificuldades em se conectar com as pessoas. Cada amizade parecia um labirinto, cheio de paredes invisíveis. Um dia, conheceu uma mulher que lhe mostrou que a vulnerabilidade era a chave. Abrindo-se, ele começou a desbravar a estrada das relações, encontrando laços mais profundos e significativos, onde antes havia solidão.

5. Autoimagem
Júlia olhava-se no espelho e via apenas imperfeições. A sociedade impunha padrões que a faziam sentir-se perdida. Um dia, decidiu se afastar das redes sociais e se reconectar com sua essência. Ao explorar o espelho de sua autoimagem, ela aprendeu a se amar como era, percebendo que a verdadeira beleza reside na autenticidade.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Poeta, trovador, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e professora da UEM, Alba Krishna, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, e depois em Maringá/PR desde 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul e Gralha Azul Trovadoresca. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou de sua autoria 4 ebooks.. Dezenas de premiações em poesias e trovas no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. Disponível em Domínio Público.  
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Newton Sampaio (Noturno)


Nota prévia: Um amigo me fez o favor de não gostar, por escrito, das publicações esparsas que venho fazendo de meus pobres livros. Ele acha que isso me está estragando muito (está estragando o meu “nome”, como diz o amigo, com largo cavalheirismo, referindo-se a uma coisa que absolutamente não possuo ainda, nem no Paraná: um nome literário). A falta de continuidade — argumenta o colega — impede o leitor de compreender o sentido de minhas palavras. E o entrosamento da narração não pode ser percebido, palidamente sequer.

Ora, eu tenho um hábito muito feio. Gosto de fazer justamente aquilo que os outros acham que não devo fazer. Tenho prazer em contrariar os outros. Em ofender os outros. Em remar contra a corrente. Desde criança fui assim. Por isso — só porque me criticaram — atiro hoje, nestas colunas, mais um excerto. O qual, como os anteriores, não vai gozar o menor efeito. O leitor, aliás, pode fazer o juízo que quiser sobre estas “amostras” de minhas criações literárias. E quando, de futuro, vier a percorrer, por desfastio, as narrativas ordenadas em volume, reforce o juízo desfavorável ou modifique-o, da maneira que lhe aprouver. Pois, no mundo, há uma coisa com que absolutamente eu não me incomodo: a opinião alheia. Sobretudo em questões de literatura.

Aproveito a ocasião para explicar o seguinte: os erros de gramática que têm aparecido nos excertos anteriores correm, em sua maioria, por minha conta. E, em sua minoria, por conta do linotipista. Dos que correm por minha conta não me penitencio. Dona Gramática é uma senhora muito antipática e eu tenho prazer em destratá-la. Eu erro sem remorsos. Erro porque, muitas vezes, uma frase errada exprime, com precisão muito maior do que uma frase corretíssima, a emoção de tal ou qual personagem. Por exemplo:

Em uma das publicações anteriores, Damião ficou com vontade ser canalha. Ora, vontade ser, isso sim. Acontece, porém, que se eu dissesse que Damião estava com vontade de ser canalha, aquele de iria estragar tudo. Iria artificializar o desejo do rapaz. E eu, em minhas narrativas, quero mais é fixar emoções e não demonstrar conhecimentos de linguística. No romance, dizem todos os críticos, o fato é tudo, a palavra é nada. E quando esse fato não é objetivo, mas psicológico, muito mais razão tenho para desconhecer a gramática. Nunca ninguém consultou previamente as leis da sintaxe e etc. ao sentir qualquer emoção, banal ou chocante.

Outra observação: de vez em quando aparecem aqui expressão ditas de “imorais” pelos puritanos. Ora, eu adoto conceitos revolucionários nesse terreno. Isto é: não admito a existência da imoralidade. Acho que as coisas verdadeiras não são imorais. Aliás, é fácil concluir que a moralidade também não existe.

Existe Moral, com M grande, uma coisa abstrata, longínqua, grande demais para merecer nossas conjecturas. Mas moralidade não existe. Isso é ficção. É invenção daqueles que se sentem com coragem de violá-la. Mas isso não vem ao caso. Queria dizer, apenas, que tenho empregado termos crus em meus escritos. Esses termos, porém, são crus porque há, por aí, convenções muito estúpidas, muito cretinas, e há no mundo muita gente hipócrita. Além do mais, se eu pronuncio esses termos, se você os pronuncia, se todos os pronunciam — que mal há em escrevê-los, com todas as letras? Se eu não tenho escrúpulos de falar ou ouvir um termo feio, não devo ter escrúpulos de escrevê-lo. O papel não é mais digno do que os meus lábios ou os meus ouvidos. E, nos livros, as pessoas devem falar do jeito que falam na vida. Na vida, quase sempre, nós falamos coisas tão sujas, tão torpes, tão amargas...

Largado no banco do jardim, meio encoberto pela sombra da palmeirinha, Boito percebe o ruído que vem da sala. A confusão de palavras e risadas cresce e diminui alternadamente. Às vezes chega ao pianíssimo, quase fica imperceptível, depois ondula, e de repente explode, decidida. Sinal de que a anedota terminou, e o comentário resolve tomar corpo, em todos os lábios.

Boito escuta, e machuca com os dedos uma folha muito verde. A luz que sai da sala caminha no terraço, insinua-se pelo gradil, vai projetar-se, de mansinho, no primeiro canteiro. Ali morre, de supetão. Morre justamente onde começa o pequeno rastilho do luar. Do luar que cobre toda a cidade, como uma bênção.

Dona Amélia, sorridente, gorduchona, é a primeira que sai, metida numa roupa de lã.

— Irá à novena? — pensa Boito. — Não há mais tempo...

Será que dona Amélia adivinhou-lhe o pensamento? Ela explica incontinenti à Virgínia:

— Vou fazer uma visitinha à Candoca. Dizem que está passando mal, já sabia?

As banhas da mulher se movimentam e atravessam o portão.

Agora são os rapazes que surgem.

— Tá esfriando...

— Vamos dar uma volta, Mendoncinha?

— Por meia hora, vamos. Preciso me aprontar cedo.

— Por causa do bate-coxa brabo na casa do Crespo.

— Ahn!

— Nem queira saber.

E Mendoncinha faz um gesto canalha, bem na frente dos outros.

— Quero deixar um arco na cintura da irmã dele. A pequena há de satisfazer oito vezes nos meus braços.

— Oito vezes? Não dá pra tanto. A fisiologia sexual, meu amigo...

E Gilberto desenrola a sabedoria dos compêndios.

Raras vozes na sala. O empregado limpa as mesas, em silêncio. Cresce um som de talheres e pratos, na cozinha. Dona Emerenciana dá ordens. Janelas se iluminam. Outras escurecem. O tenente sai, mais a mulher. Vão ruminar o jantar na rua, apesar do tempo. O Neves, tremendo-tremendo, custa a acertar a cadeira de vime.

Boito se assusta.

— Será ela? É mesmo. Não pode ser outra.

Dulce atravessa o jardinzinho. Nem olha para os lados. Está tristinha.

— Dulce.

— Ah! Você! Não tinha visto...

— Eu sou o Homem Invisível.

(E a inflexão de Boito é forçada, cheia de intenções).

— Lembra-se da fita? A cabeça enrolada, o nariz escondido assim, as orelhas, o queixo, tudo. Tal e qual.

— Já vem você com as histórias de sempre.

— Histórias? São fatos, minha nega. Ando ou não ando parecido com o homem da fita?

Dulce não desanima.

— É impressão sua. Quando você tirar os panos, ficará o que era antes.

— O que era antes? Coitado de mim! Então eu não tenho espelho no quarto? Estou com a boca torta. Eu sei.

— Exagero...

E Dulce resolve cortar o assunto.

— Bem, vamos parar.

(Muda o tom de voz)

— Como vão as meninas?

— Mais ou menos. Quer entrar?

— Não. Fico mais um pouquinho.

— Aqui você se resfria.

Pausa.

— Por que a Dorita não veio?

— Por nada. A coitadinha está muito aborrecida. Ficou chorando...

— Chorando?

— Ela quer ir à festa na casa dos Crespos.

— E não vai?

— Por falta de companhia.

— E você?

— Eu?

— Sim. Por minha causa não se prenda. Nós ainda não somos noivos. Vá a festas, divirta-se, faça o que quiser.

— Não fica bem.

— Fica, sim senhora. Pra tristezas, bastam as minhas.

— Mas, Boito...

— É isso mesmo. Vá. Divirta-se. O que é que tem?

— Prefiro não ir.

— Bobagem. Por minha causa não se prenda.

(Custa dissimular o nervosismo).

— Que culpa tem a Dorita de minhas loucuras? Nenhuma. Você deve ir. Acompanhe a coitadinha.

Dulce não sabe o que dizer. Para falar a verdade, é bem grande o desejo de ir.

— Que diabo! — pensa. — Eu sou moça, preciso me divertir.

Pergunta ao Boito.

— Se eu for, você não zanga?

— Claro que não.

— Prometo me comportar, não namorar ninguém...

— Ora!

— E saio cedo. Só pra contentar Dorita. É tão bobinha!

O diálogo se prolonga. Por fim, Dulce entra, a cumprimentar dona Emerenciana. Demora-se pouco. Na saída ainda fala.

— Olhe lá, Boito. Não zangue, viu? Amanhã venho contar tudo.

— Está bem.

Dulce caminha, no andarzinho leve de sempre. Está cada vez mais bonita. E Boito sente uma opressão... Tem medo de perdê-la. Ou por outra. Tem quase certeza de que Dulce não será sua, nunca mais...

Sobe ao quarto. Pensa, pensa. Por que diabo fora ele cometer aquela asneira? Que coisa estúpida. Ele próprio não sabe explicar bem. Fizera tudo inconscientemente, empurrado por mãos escondidas.

Vem uma vontade de chorar. Uma vontade impertinente, sem fim.

Vai à janela. Espia vagamente. O cérebro trabalha sem descanso. Mergulha no passado. Aflora no presente. Planeja. E rememora outra vez. E considera. E imagina.

Nem sente passar o tempo. Quando vê, a casa inteira está silenciosa. O relógio bate onze vezes.

Deserta a rua. O silêncio. O luar desenhando coisas oblongas na calçada. Um guarda apita. O colega responde no outro quarteirão.

Um casal passa. Ele, de casaca. Ela, de vestido comprido. Discutem baixinho. E seguem.

Chegam de longe, vez ou outra, sons perdidos, indistintos. É a cidade que arqueja de sono. São bailes principiando. Grandes farras que começam. E a noite fria, fria, insinuando conchegos misteriosos.

A criança do vizinho se põe a chorar. A mãe intervém. A criança silencia.

Damião passeia no quarto de baixo, lentamente. Tosse duas vezes. E continua.

A mocinha triste do seu Valério está sozinha na sala. Ela é romântica. Olha a lua e sonha. Sonha com os amantes que nunca teve — príncipes loiros e esbeltos talvez.

A mocinha, de repente, apaga a luz. Toma o violino. As cordas vibram. O arco desliza. Os dedos caminham, mansos, dóceis.

É muito conhecida a melodia. Um noturno. A mana Guguti toca isso sempre. Mas não atinge nunca a emoção da mocinha triste do seu Valério. Não realiza, nunca, uma surdina assim. O noturno fica mais delicado, mais penetrante.

Lá embaixo, na calçada, passa um garoto de casaco esfarrapado. Segura a certinha. E grita, pra rua deserta:

— Mendoim torradinho... Quentinho, quentiiinho...

O violino não cessa. A música se torna mais angustiada. Parece um soluço feito harmonia.

O garoto já vai mais longe. Oferece outra vez, no esforço medonho de encontrar freguês.

E o pregão morre na noite quieta, longe, longe.

— Mendoim torradinho... Quentinho, quentiiinho...
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Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
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