segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Asas da Poesia * 64 *


Trova de
SÍLVIA ALICE DE CARVALHO SOARES
Angra dos Reis/RJ

Acredito que a empatia
é sentimento sagrado,
um dom, uma epifania
que me deixa arrebatado!
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Poema de 
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE
Pinhalão/PR

Flor dos vales
“Sou a açucena dos campos,
a flor dos vales.” (Cf.2.1)

O flor dos vales
A transpirar
Cheirosa,
Face de pétala
De suavidade
Airosa*,
A natureza
Te fez tão bela!
Serei teu lírio,
Se és minha rosa!

Pousa soberba
Para que eu vá
Pintar-te…
Ó perfeição,
Que só me fez
Amar-te.
Deixa-me ver:
- Que maravilha!
Serei artista,
Porque és a arte!

Com que meiguice
Te acaricio,
Amor!
Com que cuidado
Te afastarei
Da dor!
Que zelo tenho
Por tua seiva!
Sou jardineiro,
Se és minha flor!

O sangue ferve,
O seio é túmido*
(Eu sei),
Cegam-se os olhos
Tremulam lábios
(É lei),
O mundo foge
Naquele êxtase*...
Se fores minha,
Só teu serei!

Doce visão,
Felicidade
A minha;
Sonho e lirismo*
No peito meu
Se aninha;
Luz de esperança
No horizonte:
Sou eu teu servo
Porque és rainha.
= = = = = = = = = = =
V0CABULÁRIO DO POETA:
Airosa: Elegante, garbosa, esbelta.
Êxtase: Arrebatamento, enlevo, arroubamento, transe.
Lirismo: Sentimentalismo.
Túmido: Inchado, cheio, intumescido.
= = = = = = = = =  

Trova de
LUCÍLIA A. T. DECARLI
Bandeirantes/PR

Nossos momentos vividos,
de alegria ou de tristeza,
alguns foram concebidos
ao sabor da correnteza...
= = = = = = = = =  

Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

Ela 
Dizia que era Maria 
E eu,
De que era José.
Mas o que ela
Mesmo queria,
Tinha um nome
Qualquer.
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Depois que tu foste embora,
no meu peito, o desencanto
não desabafa nem chora,
não tem voz e não tem pranto...
= = = = = = 

Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Doce fantasia

Quando toco tuas mãos... que não mais vejo
... e as beijo com meu pranto mais sentido,
Meu olhar... que sempre foi tão colorido,
Redescobre o quanto é vão o meu desejo.

Entretanto, cada lágrima vertida
Dá mais vida ao meu jardim de abstrações
E, assim, cultivo flores e emoções,
Celebrando a minha dor mais... colorida.

Não te foste e nem te vais... eu te eternizo...
Sem aviso tu retornas quando queres
E eu apenas te recebo no impreciso,

Tomo um drinque... um brinde à tua companhia!
... volta sempre, meu amor, quando puderes
Despertar minha mais doce fantasia.
= = = = = = 

Trova de
SÉRGIO FONSECA 
Mesquita / RJ

Tolera ofensa, ameaça
e tudo o mais que se vingue
quem, antes de ser vidraça
já foi pedra de estilingue.
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Gotas de Emoção

Em cada lágrima, retratos de emoção...
Em cada retrato:
um rosto, lembranças e sonhos,
desenhados pela saudade:
nas telas pequenas  e mágicas das lágrimas...
= = = = = = 

Quadra Popular

Lá vai uma ave voando
com as penas que Deus lhe deu,
contando pena por pena,
mais penas padeço eu.
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Soneto de
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895-1926

Ingratidão

Nunca mais me esqueci!... Eu era criança
E em meu velho quintal, ao sol-nascente,
Plantei, com a minha mão ingênua e mansa,
Uma linda amendoeira adolescente.

Era a mais rútila e íntima esperança...
Cresceu... cresceu... e, aos poucos, suavemente,
Pendeu os ramos sobre um muro em frente
E foi frutificar na vizinhança...

Daí por diante, pela vida inteira,
Todas as grandes árvores que em minhas
Terras, num sonho esplêndido semeio,

Como aquela magnífica amendoeira,
Eflorescem nas chácaras vizinhas
E vão dar frutos no pomar alheio...
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Brincante como um garoto, 
planas no espaço sem fim... 
– Só o poeta, irmão piloto, 
consegue voar assim! 
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Sonetilho de
THALMA TAVARES
São Simão/SP

Das certezas

Conhecer-se a si mesmo e ter certeza
de que Deus nos ampara com firmeza
e nos conhece a todos sem enganos;

saber que a morte não põe termo à vida,
que é passagem apenas, concedida
para nova existência noutros planos;

amar a Deus mais que às coisas do mundo
e ao próximo querer como a si mesmo,

são sinais de entender quanto é profundo
viver no mundo sem viver a esmo.
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Trova de
CÉSAR TORRACA
Rio de Janeiro/RJ

Ela é nova e ele velhinho...
e veio um par de rebentos...
- curioso é que, ao vizinho,
não faltaram cumprimentos...
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Água

Oh, abençoada água que sacia
a sede natural das criaturas,
não falte nunca em nosso dia a dia,
nas suas fontes mil que jorram puras!

Reconhecendo a sua cortesia,
não iremos manchar o que depuras;
jamais seremos causa de avaria
ao bem que a todos nós só traz venturas!

Aos jovens prometemos ensiná-los
que sejam sempre seus fiéis vassalos
em uso altamente consciencioso.

E assim os homens, plantas e animais,
nosso planeta, enfim, terá jamais
um final triste, por demais sequioso!
= = = = = = 

Trova de
LUIZ OTÁVIO
(Gilson de Castro)
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

Busquei definir a vida,
não encontrei solução,
pois cada vida vivida
tem uma definição...
= = = = = = 

Soneto de
FLORBELA ESPANCA 
Vila Viçosa, 1894 – 1930, Matosinhos

Charneca em Flor

Enche o meu peito, num encanto mago,
O frêmito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu ouço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E nesta febre ansiosa que me invade, 
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor, 
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Não são as galas do mundo,
nem os ricos mausoléus.
São a virtude, a constância,
que levam almas aos céus.
= = = = = = 

Poemeto de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Expresso com poesia
as emoções ilusórias
alvoroçadas no vento,
acolhidas no baú do tempo.
Em meus versos sou rimas,
a brisa girando o catavento.
Demonstro na poesia, a flor
do beija-flor em sutil alento.
= = = = = = 

Trova de 
GLÓRIA TABET MARSON
São José dos Campos/SP

Buscando tecnologia,
o mundo, de hoje, se esquece
que a família em harmonia
tem o amor que nos aquece!
= = = = = = 

Poema de 
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

Lua Cheia, a do Brasil!
 
Meu Brasil tropical vive esta luta,
"Brilho do sol versus clarão da lua".
Entendo que a noite ganha a disputa,
é o que a massa romântica insinua.
 
Como é lindo o luar de minha terra
nas noites de brisa primaveril!
Lua cheia em seu esplendor encerra
toda a magia dos céus do Brasil!
 
Encanta-me o panorama estelar,
de lua cheia fazendo clarão;
passo muitas horas a contemplar
tal obra divina na imensidão.
 
Chego ao êxtase com tanta beleza
das noites de celestial aquarela.
Sem a luz do sol, vejo a natureza
sob lua cheia, alumbrada por ela.
 
Lua cheia, no Brasil, traz saudade,
emoção que só nosso idioma explica.
Machuca o coração de quem se evade
e estilhaça o coração de quem fica.
= = = = = = 

Trova de
JOANA D’ARC DA VEIGA
Nova Friburgo/RJ

Na gaveta da memória,
guardados que me comovem,
vão guardando a minha história
nas histórias que se movem.
= = = = = = 

Soneto do
Príncipe dos Poetas Piracicabanos
LINO VITTI
Piracicaba/SP, 1920 – 2016

Velho casarão

Casarão - mausoléu glorificado-
a entesourar recordações mediúnicas.
Rotas paredes - testemunhas únicas -
da história milenar do seu passado.

Solitário solar de horror povoado,
de duendes e fantasmas de alvas túnicas.
O chão ressuma ainda ondas budúnicas
e há um cavo estalar de ossos no assoalhado.

No silêncio da noite o casarão
revive pelos velhos aposentos
os dramalhões brutais da escravidão.

E quando entre os desvãos do amplo telhado
ganem soturnamente, os longos ventos
são gemidos de um negro chicoteado.
= = = = = = 

Poetrix de
SILVANA GUIMARÃES 
Belo Horizonte/MG

oh jardineira

eu vou te contar um caso:
o vaso ruim quebrou,
mas sobrou eu, seja como flor.
= = = = = = 

Soneto de
CAMILO PESSANHA
Coimbra, 1867 — 1926, Macau/China

Caminho (I)

Tenho sonhos cruéis: na alma doente
sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
do peito afugentar bem rudemente,
devendo, ao desmaiar sobre o poente,
cobrir-me o coração de um véu escuro!...

Porque a dor, esta falta d’harmonia,
toda a luz desgrenhada que alumia
as almas doidamente, o céu d’agora,

sem ela o coração é quase nada:
um sol onde expirasse a madrugada,
porque é só madrugada quando chora.
= = = = = = 

Trova de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/ SP

Querendo ver o acidente,
ele abriu caminho a murro...
Foi dizendo: "Sou parente"...
Mas quem morreu foi um burro!
= = = = = = 

Poema de 
ANTÓNIO FLORÊNCIO FERREIRA
Lisboa/Portugal, 1848 – 1914

VIII

Meu coração foi sangrado;
Já se não usa a sangria…
Por isso, caso hoje raro,
Ele sangra noite e dia.

Foi operante… quem amo;
A lanceta… o seu olhar;
A ligadura… seus beijos,
Que não tardei a furtar.

E assim ele está gemente,
O meu pobre coração,
Á espera de que mais beijos
O estanquem e ponham são!
= = = = = = 

Trova de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Eu vejo a terra cansada,
a cada passo mais linda,
sofrendo golpes de enxada,
e dando frutos ainda.
= = = = = = 

Hino de 
Bagé/RS

I
Dos teus campos a linda verdura
Mostra a força, a grandeza, a pujança,
E na guerra, demonstra bravura
O teu filho, empunhando uma lança!
Ribombou no teu seio o canhão
Dos combates gravados na História!...
Revivemos, da glória, a canção.
Sons de sinos dobrando vitória

II
Estribilho
Em teu seio nasceram heróis
Que souberam honrar ao Brasil!
A grandeza da Pátria constróis,
Minha Terra, Bagé Varonil.

III
Junto ao cerro das bandas do Sul,
Tu te estendes alegre, garrida,
Minha terra, de céu tão azul,
Sentinela da Pátria querida!...
És rainha, sustentas a palma
De que tanto me orgulho e me ufano!
Retempero meu corpo e minh'alma
Ante o sopro feroz do minuano! ...

IV
Estribilho
Em teu seio nasceram heróis
Que souberam honrar ao Brasil!
A grandeza da Pátria constróis,
Minha Terra, Bagé Varonil.
= = = = = = 

Trova de
MERCEDES LISBÔA SUTILO
Santos/SP

Abençoada esta terra
que alvissareira recebe
o migrante, pois, sem guerra,
a paz em todos percebe!
= = = = = = 

Poema de 
ROBERTO PINHEIRO ACRUCHE
São Francisco de Itabapoana/RJ

Ela

Se ela soubesse
que a minha poesia
é inspirada em sua beleza,
que tenho por ela
uma paixão louca
que me invade o peito
e faz ferver o coração,
que me encanto com seu olhar,
presença e jeitinho de caminhar,
que ela é, aparência única
em meus sonhos
que transcendem
as minhas ilusões,
que só em pensar
nos seus beijos
acentuam os meus desejos
que tomam
completamente meu ser,
certamente perceberia
porque todos os dias
estou no mesmo lugar
e no horário que ela passa!
= = = = = = 

Trova de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Nas serestas da lembrança
onde o orvalho enfeita a tela,
a minha ilusão te alcança,
mas a razão diz:- Cautela!!!
= = = = = = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

Aviso de Sócrates

Sócrates fez umas casas
De Atenas em certa rua,
Para nelas habitar
Com a pouca família sua.

Que eram baixas uns diziam,
E outros bastante elevadas,
E em suma convinham todos
Em que eram muito apertadas.

«São apertadas, é certo
— Disse o sábio; — mas eu sei
Que de amigos verdadeiros
Cheias jamais as verei.»

É mais raro do que a Fénix
Um amigo verdadeiro:
Não há nome tão sagrado,
Que seja mais corriqueiro.
= = = = = = = = =  

Sammis Reachers (Malandro demais se atrapalha)

Agora vamos falar de um motorista que passou toda a sua carreira na empresa Ingá. Bom malandro, mulherengo e beliscador, nosso amigo tem um apelido inusitado: Videocassete. Isso mesmo, um malandro com alcunha de eletrodoméstico.

Bem, nosso amigo era chegado numa 'infração'. No tempo em que os ônibus da empresa não tinham câmeras, ele, se encontrasse um cobrador que também gostasse do 'belisco', fazia a festa: eram montes de passageiros pela porta da frente.

Eis que um belo dia nosso personagem está na garagem, e seu cobrador efetivo, que já estava acostumado aos trâmites e métodos de Videocassete, faltou ao serviço. Na garagem, 'torrando' (na sobra ou sem linha fixa) um cobrador novato, com somente uma semana de casa; negro magrinho, cria do morro Santo Cristo, no Fonseca, em Niterói. Nosso sagaz Videocassete olhou e pensou: "Êpa, olha ali um frango novo, vou colocar ele do jeito que eu gosto."

E lá foram os dois, fazendo linha na saudosa 62 Fonseca x Charitas. Mas, ainda saindo da garagem, enquanto estavam sozinhos no veículo, Videocassete perguntou ao rapaz, a quem ele avaliara como muito parado, muito devagar:

- E aí meu compadre, me diz ai: Você gosta de arrumar o do lanche? (Do lanche, fique claro, era a senha para roubar algumas passagens).

- Pô, gosto sim. Mas eu sou novo e fico meio cabreiro...

- Esquenta não, deixa comigo. Hoje a gente vai arrumar muito dinheiro.

E lá foram eles para a jornada de trabalho. Lá pelas tantas, já perto da última viagem, Videocassete chama o rapaz e lhe diz:

- Filho, você está começando agora, então vou lhe ensinar: Eu joguei um monte de passageiro pela porta da frente. Em compensação, a maior parte da arrecadação é minha. Entendeu? Se der cem reais, setenta são meus e trinta seus, pois o trabalho foi todo meu.

Ao ouvir isso, o cobrador pulou:

- Espere aí, mas Isso está errado! O certo é ser meio a meio! E se algum fiscal ver, quem vai pra rua sou eu, que não estou rodando a roleta quando me pagam!

Videocassete insistiu, desesperado para engabelar o rapaz:

- Rapaz, aqui funciona assim. Todo mundo faz assim. Ou você se enquadra no esquema ou fica ruim pra você.

O jovem, encurralado, resolveu assentir, para que Videocassete acreditasse que ele aceitou a sinistra divisão.

Ao fim    dos trabalhos,    o jovem calcula o valor conseguido: algo em torno de oitenta reais. Ao comunicar a Videocassete, ele disse:

- Imaginei isso mesmo, daqui da frente eu fico só contando... Então, já sabe: cinquenta para mim e trinta para você.

Já na garagem, o rapaz, após marcar junto ao despachante o número final da roleta e encerrar a guia (ficha) de trabalho, vai em direção ao nosso querido Videocassete, para lhe entregar, de maneira encoberta, a sua parte do despojo que amealharam. Faz de conta que está apertando a mão do mesmo, lhe entrega seu crachá e junto, a soma em dinheiro, em notas bem dobradinhas.

Videocassete, malandro velho, coloca imediatamente a soma no bolso, sem conferir, para que ninguém visse o movimento.

Dias depois. Videocassete avista o jovem rapaz na garagem. Faz menção de chamá-lo, mas o rapaz faz sinal de que não tem nada pra falar com ele. Videocassete, bastante irritado, vai em direção ao jovem, e ao chegar perto, cochicha:

- Rapaz, qual é a sua? Você me deu uma porrada de notas de dois reais enroladas, um volume enorme, mas tinha só vinte reais! E você ficou com sessenta!

Ao que o rapaz respondeu;

- Amigo, você acha que por eu ser novo aqui, sou algum otário seu? Fui criado na favela, no pé da malandragem. Acha que vim aqui pra tomar volta? Na escola em que você estudou, eu já dei muita aula.

E saiu andando, rindo de nosso velho Videocassete, que, dentro da garagem e à vista dos chefes, nada mais poderia fazer ou dizer.

É como se diz: O mal do malandro é achar que todo mundo é otário…
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Sammis Reachers Cristence Silva nasceu em 1978, em Niterói/RJ, mas desde sempre morador de São Gonçalo/RJ, ambos municípios fluminenses. Sammis é poeta, escritor, antologista e editor. Licenciado em Geografia atua em redes públicas de ensino de municípios fluminenses. É autor de dez livros de poesia, três de contos/crônicas e um romance, e organizador de mais de cinquenta antologias.  Aos 16 anos inicia seus escritos e logo edita fanzines, participando do assim chamado circuito alternativo da poesia brasileira, com presença em jornais e informativos culturais. Possui contos e poemas premiados em concursos do Brasil, bem como textos publicados em antologias e renomadas revistas de literatura.

Fontes:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários. São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021. Enviado pelo autor.
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Bernardo Trancoso (Diário de um Sonetista)

Tem horas que a gente fica com uma vontade louca de escrever e, mesmo sabendo que para escrever é preciso muito mais do que uma simples vontade, abre a gaveta às pressas à procura de lápis e papel. Há quem já arranque a folha do caderno antes que surjam as primeiras palavras. Há quem arrisque rabiscar o que lhe vem à mente, sem preocupação com a coerência, com a gramática, ou com o destino aonde aquilo tudo vai levar. Embora saiba o propósito deste texto, que é o de introduzir no meu sítio um lugar para a minha prosa, na intenção de que isto possa um dia ajudar alguém a começar as suas andanças pela literatura, neste exato instante eu pertenço a esta categoria de escritores compulsivos: não sei sobre o que vou escrever.

Só que minha vontade louca resolve, ao invés de enveredar pelos caminhos complicados da importância de escrever, que é tão ou mais valiosa do que a de ler, percorrer as trilhas seguras e sensatas do prazer que dá ao escritor o texto completo, bem feito. Não estou falando, outra vez, das concordâncias verbais e dos reguladores linguísticos impostos pela gramática. Em matéria de palavras escritas, sou um pecador como qualquer outro: cometo minhas confusões com verbos, substantivos e vírgulas. Não sei mais distinguir a diferença entre uma oração subordinada causal e outra, concessiva. Agente da passiva, então, nem se fala. O editor de texto que estou usando é o meu corretor básico, o restante é o que lembro das aulas da Dona Edna e dos demais professores que tive… Enfim, perdoe-me pelos erros de português, aquela história… Mas, por favor, me deixe terminar este texto. Ou, como o autor do último livro que li dizia, não me perdoe, os erros são propositais.

Leio muito, eu. Adoro o prazer de um bom livro. Eles me fazem navegar por universos ainda inexplorados e que na maioria das vezes acabam ensinando algo. Recentemente, li um muito interessante sobre um jovem indiano que atravessa o Pacífico com uma hiena, um tigre de bengala e um orangotango… Quem tiver a oportunidade, o livro em português chama-se “A vida de Pi”. Não vou falar mais nada dele, pois livro é igual xampu: para a cabeça de uns, serve; para a de outros, não. Se você não gostar, não me culpe. Nem culpe o autor, pois ele não pode, sob nenhuma hipótese, ser retirado do pedestal onde se colocou ao romper a barreira da imortalidade e escrever um livro. Algumas dicas para ler sempre: troque regularmente de autor e de assunto, para não enjoar; se não gostar de um livro e demorar em terminá-lo, tente voltar a ele no máximo três vezes e depois desista (levei um ano para ler um livro do Salman Rushdie… arrependo-me até hoje); com todo respeito aos tradutores, se puder leia um livro no idioma em que foi escrito e, finalmente, não procure grandes livros apenas em grandes autores – é muito bom ser surpreendido por um autor pouco conhecido no meio.

Veja só o leitor como já saí do tema inicial deste texto e enfurnei-me por outros caminhos. É assim com a poesia, é assim com a vida da gente onde nem tudo sai do jeito que esperamos, por que não haveria de ser assim com um artigo de abertura de uma página sobre o prazer de escrever? A magia da escrita está na liberdade que ela proporciona. Quando lemos algo, o fim já está escrito, ainda que não o conheçamos. No ato de escrever, o poder criador passa a ser do autor. Porém, com este poder advém, de certo modo, uma responsabilidade para responder pelas suas palavras. Salman Rushdie – convém citá-lo novamente – que o diga… Por isso é que escrever é arte; ler não é arte. Voltemos, então, ao tema principal.

“Como se escreve menos hoje em dia, como se escreve tanto hoje em dia”. Li isso buscando na Internet um artigo sobre isso mesmo, e parei por aí. Escrevemos demais. Na frente de um computador, conversamos no aplicativo de mensagens instantâneas, enviamos e-mail, digitamos o endereço de uma página da Internet… A vida de muitas pessoas – a minha, inclusive, e cada vez mais a sua – gira hoje em torno de um quadrado de quinze polegadas com resolução de 800 por 600. Digito muito o dia inteiro mas, ao final, não escrevi nada. E o que isso representa? Menos livros, menos poesias, mais conteúdo para satisfazer necessidades momentâneas e egoístas e, portanto, inútil em um contexto mais amplo. Há os que alertam sobre o fim das relações entre as pessoas com o advento do Messenger e, mais recentemente, do iPod. Neste artigo, que já está ficando comprido, não entrarei no mérito deste tipo de discussão. Para mim a música é e sempre foi uma representação artística que abre a cabeça, inspirando outras artes. Basta fazer um teste para ver quantas músicas você conhece de memória. Música é poesia. Portanto, sem saber já estamos cheios de poesia dentro de nós. Agora, expressar esta poesia, acrescentando nela o elemento diferenciador de que somos feitos, que é a nossa personalidade, são outros quinhentos. E isso é o que me preocupa. Sinto que, em proporção com o século passado, estamos cada vez mais carecendo de escritores. E não estou falando apenas de dissertações, mas também de poemas e – para caber neste espaço – sonetos. Como eu gostaria de encher o meu sítio de sonetistas novos…

Não posso esquecer dos blogs, ou diários virtuais que muitos mantêm em um sítio na rede mundial de computadores. São geralmente compostos de textos curtos, relatos de acontecimentos esparsos que, sem dúvida, no mínimo ajudam a praticar o português. Afinal, ninguém gosta de entrar em um blog e encontrar a palavra “menas”, popularizada não se sabe como nem por quem, mas que é cada vez mais comum na linguagem falada e dói ao ouvido daqueles que são um pouco mais cultos. Por isso, seus donos devem ter cuidado com o que publicam. Sim, os blogs são uma tendência louvável (isso aqui é uma espécie de blog), mas sinto que ainda falta um passo na evolução, ou melhor, na recuperação do prazer da escrita na era digital.

E é aqui que este artigo termina, meu amigo, sem definir solução alguma para o problema da perda de escritores. Espero, com o tempo e com outros textos como este, dar a minha contribuição para o tema. Estou até com um livro na gaveta que pretendo publicar em um futuro não muito distante. Novos sonetos meus, que já fluíram com mais vigor, ajudar-me-ão a manter o apego pelo conjunto lápis e papel. Mas o propósito, mesmo, é repassar o lápis. E quem sabe, um dia, no meio deste amontoado de palavras e de versos, passe por aqui um sujeito tímido e sonhador, com uma mente frenética ocultada por um olhar distante, e quem sabe ele resolva que nasceu para ser escritor, e quem sabe a partir de suas palavras eu encontre inspiração para mais um artigo, que inspire outro escritor num círculo vicioso e não menos romântico… Ah, aí neste momento, já não terá sido em vão… Já estou até ouvindo a minha mãe dizer: “deixa de sonhar, menino!”.

São Paulo, 20 de março de 2005. Bernardo Trancoso

P.S.: Relendo o primeiro parágrafo, no afã de revisar o que foi feito, empolguei-me por conseguir adequar o texto à sua proposta inicial de escrever compulsivamente. Todavia, nos demais parágrafos, senti pesar sobre mim a responsabilidade de deixar algo de inspirador e interessante para os leitores, e o que vi foi mais uma crítica do que um incentivo ao ato de escrever. Fiquei até meio triste com o texto… Será que eu também terei perdido o prazer de escrever e vou me juntar ao grupo dos que passeiam pela vida sem deixar uma mensagem escrita, como um testamento de sua alma, para as gerações vindouras? Ou tudo isso é saudade do estimado autor Fernando Sabino?

Fontes: 
http://www.sonetos.com.br/vep1.php  Acesso em 03.01.2013 (site desativado)
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Folclore Sueco (Ingeborg e Hialmar)

HIALMAR, o herói descendente dos Vetars, tinha feito um pacto de fraternidade com Orrar Oddur, o Viking.

Juntos se haviam apresentado ao rei de Sigtune, Ané, prometendo-lhe fidelidade absoluta.

O rei Ané tinha uma filha chamada Ingeborg, que amava secretamente Hialmar, e sentia-se desgraçada porque acreditava que o herói não reparara em sua beleza. Estava, porém, enganada, pois que também Hialmar a queria, embora jamais tivesse confessado seu amor.

Em Bolmsé, país próximo de Sigtune, remava Ansgrim, o gigante, pai de doze filhos, todos audazes guerreiros. O mais velho, Hiovard, tinha contemplado uma única vez a formosura de Ingeborg e por ela se apaixonara de tal maneira que, quando chegou a festa de Yul — a festa do verão — e Ansgrim e seus filhos brindaram com a taça de hidromel para que cada um deles propusesse uma nova gesta com que se expandisse sua fama de heróis, Hiovard declarou que aquele ano conseguiria a mão da princesa de Sigtune, mesmo que a isso se opusessem o Rei e todo o país.

Ansgrim, prudente, lembrou ao filho a presença em Sigtune de dois irmãos de armas: Orrar Oddur, o Viking, e Hialmar, o herói. Hiovard assegurou que estava disposto a bater-se fosse com quem fosse, e dez de seus doze irmãos beberam a taça de hidromel, declarando que se colocariam ao lado de seu irmão em qualquer circunstância, e que lutariam em defesa dele contra todos os guerreiros de Sigtune reunidos.

Angandyr, o mais moço, tinha ainda intacta sua taça de hidromel. O pai, surpreendido, perguntou-lhe se ele seria suficientemente covarde para não se unir à luta de seus irmãos pela conquista de Ingeborg. Levantou-se, então, o mais moço dos irmãos e declarou que acompanhar os demais na luta contra Sigtune parecia-lhe pouca coisa. Queria encontrar, e apoderar-se da espada Tirfing, cujo fio era envenenado e saía vitoriosa de todas as lutas. Os anões, inimigos dos deuses do Valhala, tinham forjado aquela espada, havia muito tempo. Vários heróis tinham-na possuído, e com ela conquistado memoráveis vitórias. Agora estava escondida nas profundezas da terra, e ninguém sabia de seu paradeiro.

Tanto o pai como os onze irmãos do jovem admiraram-lhe a coragem de formular tal promessa, que consideravam impossível de realizar.

Pouco tempo depois, os doze irmãos dirigiram-se para Sigtune, onde foram recebidos em audiência pelo rei, rodeado de todos os seus guerreiros. Angandyr olhou atentamente para a espada de todos os presentes, sem poder descobrir a Tirfing entre elas.

Ao oferecer-lhe Ané a taça de hidromel, Hiovard recusou-a, dizendo que não tinha vindo em ânimo pacífico nem para beber com ele. Vinha buscar a princesa Ingeborg, que solicitava como esposa.

Antes que o Rei tivesse tempo de responder, levantou-se Hialmar com tal violência que sua armadura ressoou estrepitosamente. Colocou-se na frente do Rei e disse-lhe que ele havia defendido todo o tempo as costas de seu Estado, que as rochas do mar podiam dar testemunho dos numerosos combates que às suas margens tinha ganho. Nunca pedira uma recompensa, porque sentia satisfação em cumprir a promessa, que fizera quando ainda era quase uma criança, de dedicar sua vida à salvaguarda de seu país. Agora se tornara um homem e não se sentia disposto a esperar, só e sem lar, a chegada da morte. Também ele amava a princesa Ingeborg, e solicitava-lhe a mão dela.

O velho Rei vacilou. Não podia prescindir de Hialmar, mas também temia a cólera dos filhos de Ansgrim. Não sabendo como resolver a questão, decidiu chamar sua filha, para que fosse ela quem escolhesse entre os dois apaixonados.

Apareceu Ingeborg ante eles, mais bela do que nunca. Ao saber o que dela se esperava, sorriu, feliz, e, sem temor algum, sem vacilar um único instante, estendeu a mão para Hialmar, declarando que de há muito desejava ser sua esposa.

Hiovard e seus onze irmãos, indignados pela afronta que, segundo eles, lhes infligia Hialmar, desafiaram-no a que fosse a Samsé, combater com eles. Hialmar aceitou o repto.

Os doze gigantes saíram do palácio de Ané com o coração repleto de ódio e desejos de vingança. Mas chegaram apenas onze à casa de seu pai. Angandyr ficou pelo caminho, meditando sobre a maneira de apoderar-se de Tirfing e vingar-se de Hialmar.

Vagou pelos montes durante muito tempo, e, cansado enfim, com aquela caminhada, aproximou-se de umas pedras cobertas de musgo e deixou-se tombar sobre elas. Estava anoitecendo, e o jovem adormeceu.

Acreditou ver, em sonhos, como que uma luz azul que iluminava o espaço. No meio daquela claridade, Angandyr percebeu os anões que dançavam em torno de um átrio enegrecido. Entre saltos e risos entoavam uma canção, em que diziam que apenas um guerreiro forte e valente, que fosse digno de tal coisa, conseguiria encontrar Tirfing, a espada envenenada.

Quando a estranha visão se desvaneceu, Angandyr despertou e viu a seu lado uma espada. Apanhou-a, surpreendido. Era a Tirfing.

Aproximava-se a data do combate em Samsé. Ingeborg tecia uma forte couraça de seda para Hialmar, mas um terrível pressentimento impedia-a de adiantar o trabalho. As agulhas caíam-lhe das mãos e a jovem chorava amargamente, porque, embora confiando no valor e na audácia de seu amado, tinha a certeza de que ele morreria em combate.

Também Hialmar tinha esse pressentimento. Só a Orrar Oddur, que devia acompanhá-lo ao combate, confiara seus temores.

Chegou o momento da partida, e os dois apaixonados, com o coração cheio de dor, despediram-se à beira do mar. Ingeborg entregou ao seu noivo um anel de ouro, como prenda de seu amor e de sua fé. Hialmar colocou o anel no dedo e ao ver o amor que lhe dedicava a princesa a quem adorava, sentiu renascer a confiança e a coragem para afrontar o perigo da espada envenenada de Angandyr. O pensamento de que era ela o prêmio para a sua façanha dissipou seus lúgubres pressentimentos.

Orrar Oddur e Hialmar chegaram a Samsé e encontraram os doze irmãos. Onze deles precipitaram-se sobre Oddur. Hialmar lançou-se contra Angandyr.

Enquanto Orrar se defendia do violento ataque dos onze irmãos, gritava a Hiovard que aquele não era procedimento digno de nobres. Que cada um deles viesse à luta por sua vez, e ele daria boa conta de todos. Assim o fizeram, e, um por um, caíram os onze aos golpes fortes da espada do Viking.

Terminada a luta, Orrar voltou-se a procura de Hialmar. Angandyr jazia morto e Tirfing estava a seu lado, manchada com o sangue de Hialmar. Este continuava de pé, mas tinha no rosto a lividez da morte.

Ao ver aproximar-se seu irmão de armas, Hialmar pareceu reunir as poucas forças que lhe restavam. Dezesseis feridas dilaceravam-lhe as carnes. O veneno de Tirfing ia penetrando em seu coração.

Arrancou de seu dedo o anel que Ingeborg lhe dera ao despedir-se, e, entregando-o ao seu amigo, rogou-lhe que o devolvesse à sua amada dizendo-lhe que seu último pensamento tinha sido para ela.

Orrar deu sepultura aos doze irmãos. Apanhou depois o amigo e depositou-o no fundo da embarcação.

Dirigiu-se, muito triste, para Sigtune. Ao chegar, foi ver Ingeborg, que o recebeu ansiosamente. Entregou à princesa o anel de Hialmar, transmitindo-lhe, ao mesmo tempo, as derradeiras palavras do guerreiro, que tinham sido uma doce lembrança de amor para ela.

A dor de Ingeborg foi imensa. Contemplou, absorta, o anel, e, de súbito, vendo as manchas de sangue que nele havia, teve a ideia de reunir-se a Hialmar. Aplicou, pois, os lábios ao sangue envenenado, e absorveu-o desesperadamente. O veneno deslizou pelas suas veias, chegando até o coração.

Tirfing, ao matar Hialmar, tinha matado também Ingeborg.

Orrar Oddur transladou os corpos dos dois enamorados e enterrou-os em Samsé. 

Conta o mito que pouco tempo depois nasciam junto à sepultura duas bétulas frondosas e esbeltas, tão aproximadas uma da outra, que seus ramos entrelaçavam-se, como os braços de dois apaixonados. E ainda se assegura que nas noites de ventania, as copas das árvores, ao balançarem, pronunciam docemente, os nomes de Hialmar e Ingeborg.

Fontes:
Maravilhas do conto mitológico. Adaptação de Nair Lacerda. Cultrix, 1960.
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