segunda-feira, 6 de junho de 2016

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 1a. Parte

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RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo apresentar um estudo das Tragédias Cariocas, último ciclo do teatro de Nelson Rodrigues, sob a perspectiva do trágico moderno. Para isso, estudiosos do gênero, como Peter Szondi e Raymond Williams, foram tomados como base para compreender a modificação que tem ocorrido dentro do gênero no decorrer dos séculos. Aspectos como o funcionamento das três unidades aristotélicas, as personagens e a ação desenvolvida através da relação intersubjetiva, além, é claro, da própria ideia que a palavra trágico tem se apropriado, é fundamental para entender o mecanismo interno deste gênero literário.
                                                                           
1. Introdução

O que segue é uma análise voltada à tragédia como gênero literário e em seu sentido popular, ou seja, no seu sentido mais acadêmico e no uso comum do termo. A princípio, as peças em estudo são classificadas como tragédias, denominação que Nelson adotou antes de falecer quando na elaboração do seu teatro completo. Porém, verificarei se podem realmente ser definidas como tragédias, uma vez que a base do gênero mudou radicalmente. Isso porque desde o surgimento da tragédia grega, com os helênicos, passando por uma crise, com Eurípides, até uma tentativa de salvamento, com os alemães[1], tal formação teatral pouco manteve de sua ideia inicial, da sua ambivalência dionisíaca e apolínea. Da tragédia grega à tragédia moderna houve uma transformação gigantesca. E esse resultado é o que mais me interessa, visto que é com base na tragédia moderna que analisarei Nelson Rodrigues.

Quando falamos em tragédia, numa concepção atual e vulgar do termo, sempre nos vem à mente um acontecimento ruim, relacionado ou a acidentes, ou a problemas sérios. E quando falamos, então, em ler uma tragédia ou assistir a uma tragédia, pensamos logo numa peça de teatro que envolva acontecimentos tristes, mortes, desgraça para as personagens. É certo que isso vem de uma tradição e se mantém até hoje, extrapolando as fronteiras da dramaturgia e inserindo-se no cotidiano. E isso é ainda mais forte quando vinculado ao nome de Nelson Rodrigues, um dramaturgo tido por maldito, cujas peças são infestadas de mortes, assassinatos, suicídios, relações incestuosas. Mas também é certo que quando falamos em tragédia, principalmente no aspecto literário, abordamos o fator estético: o gênero trágico. E falar de estética literária implica saber como funcionam sua trama, sua estrutura. Para o meio acadêmico, trágico é antes de tudo o gênero. É claro que não devo desconsiderar uma natural ligação entre os dois sentidos de trágico: o sentimento trágico e o gênero trágico.

A tragédia é um gênero que percorreu milhares de anos. Existente desde os helênicos em Sófocles e Ésquilo, ultrapassou todo esse tempo e persiste até hoje entre nós. Obviamente, depois de tanto tempo, ela não permanece com as mesmas características. A tragédia helênica, conforme explica Nietzsche, tinha como base principal o coro, que com o tempo, mais precisamente com a influência de Sócrates sobre Eurípides, foi abolido, perdendo a tragédia seu elemento ambivalente fundamental[2]. Hoje se consegue distinguir a tragédia clássica, medieval, renascentista, elisabetana, neoclássica e a tragédia moderna[3]. A que mais me interessa neste momento é a última, a permanência da tragédia moderna, pois é a partir dela que pretendo analisar as tragédias rodrigueanas.

2. Trágico rodrigueano

A obra dramática rodrigueana tem suas peculiaridades estéticas e formais, principalmente se formos percebê-la sob a perspectiva da tradição da tragédia. Falo de peculiaridades tanto se olharmos Nelson com base nesta tradição quanto se o vermos dentro de seu próprio conjunto de peças, uma vez que ele sempre tentou experimentar novos formatos.

Nas Tragédias Cariocas, Nelson elaborou o próprio sentido do trágico, misturado ao riso e ao grotesco. Daí provêm as várias nomenclaturas para designar suas peças, variando de “tragédia carioca” à simples “peça”. A questão é se, com tais nomenclaturas, o dramaturgo manteve uma linha trágica, com elementos do trágico clássico e do trágico moderno, fundando o que eu prefiro chamar de trágico rodrigueano.

Se por um lado a tragédia clássica baseava-se na representação do mito a partir de uma perspectiva externa, a tragédia moderna se funda na esfera do intersubjetivo, numa perspectiva interna. Assim, o que interessa na tragédia helênica é o que está fora, tanto das personagens quanto da sua própria estética. Já na tragédia moderna, interessa o que está dentro.

Conforme Schiller explica em Teoria da tragédia (1991), a tragédia é a representação do real, apenas transparecendo imagens dos homens enfrentando situações-limite impulsionados pelas crenças espirituais. “O trágico apresenta o homem naquela situação-limite em que, ser natural que é, comprova contudo a sua destinação espiritual.” (1991:12) Assim, a tragédia mostra o homem sofrendo, mas resistindo a esse sofrimento graças à dignidade. Mostra, enfim, a luta que há entre a vontade e a natureza, a moral e o natural, não sem sofrimento, mas com resistência.

Sabe-se, entretanto, que Schiller desenvolveu suas ideias acerca da tragédia clássica. Apesar de ser um olhar voltado ao clássico, essa carga de tragicidade, de sofrimento, perdurou por muito tempo e ainda hoje resiste. Embora as bases da tragédia tenham mudado radicalmente, pode ser identificada, pelo menos em Nelson Rodrigues, a tendência em demonstrar a vontade do herói em luta contra a natureza. Ou seja, o herói [4] possui uma vontade interna iminente que entra em conflito com um fator externo, social, natural, desafiando as “forças do universo”.

Exemplos disso são os heróis das tragédias de Nelson Rodrigues. Há neles uma tentativa à adequação moral imposta pela sociedade vigente, em que eles se portam conforme são ditadas as regras, comportando-se como bons maridos, esposas, filhos e pais de família. Entretanto, a vontade interior de cada um deles clama por uma libertação. Daí surge o conflito que se passa no íntimo das personagens: a luta entre o que elas querem e o que elas devem. Porém, chega um momento em que os desejos são mais fortes, sobressaem-se às regras sociais, extrapolam protocolos e são, enfim, revelados. Então, surgem a agonia e o sofrimento, pois as personagens digladiam consigo mesmas e com outras personagens, até que elas deixam de resistir, resignam-se a aceitar a força maior do desejo evidente.

Assim é o caso de Zulmira, Tio Raul, “Seu” Noronha, Aprígio, Werneck e Herculano – cada qual com suas peculiaridades. São personagens que sofrem por um desejo reprimido e sucumbem a esse desejo depois de um estado de luta entre a vontade e o natural. Nesse aspecto, Nelson Rodrigues consegue atualizar o que o trágico clássico pretendia, como também consegue, ao mesmo tempo, refletir aquilo que há de mais incômodo na sociedade contemporânea: a relação conflitante entre desejo e repressão social. No entanto, há no herói e no sábio da arte trágica uma superioridade, pois eles não sofrem suas dores, comovem-se e comovem-nos. Tanto é assim que o sofrimento do homem virtuoso nos comove mais dolorosamente que o do depravado. Já a felicidade de um malfeitor nos faz sofrer muito mais que a infelicidade de um homem virtuoso. Nelson Rodrigues comentou atitude sua semelhante, ao comparar seu trabalho dramático com Brecht:

Brecht inventou a “distância crítica” entre o espectador e a peça. Era uma maneira de isolar a emoção. Não me parece que tenha sido bem-sucedido em tal experiência. O que se verifica, inversamente, é que ele faz toda sorte de concessões ao patético. Ao passo que eu, na minha infinita modéstia, queria anular qualquer distância. A plateia sofreria tanto quanto o personagem e como se fosse também personagem. A partir do momento em que a plateia deixa de existir como plateia – está realizado o mistério teatral.
 
O “teatro desagradável” ofende e humilha e com o sofrimento está criada a relação mágica. Não há distância. O espectador subiu ao palco e não tem a noção da própria identidade. Está ali como o homem. (RODRIGUES, 1995:286)

Com isso, o dramaturgo apresenta sua intenção que já fica clara em suas peças: levar o sofrimento humano, sem distanciamento, para o palco, para que o público possa refletir sobre suas dores. Além, é claro, que possa sofrer ao mesmo tempo em que a personagem sofre no palco. Em suma, a intenção de Schiller está transparecida na intenção de Nelson Rodrigues. Se o herói sofre, o espectador sofre junto.

Aquele estado de luta do qual Schiller fala, e transcrevo aqui, acontece justamente para que o homem mantenha a adequação moral. É por conta desse princípio que a tragédia é o gênero literário que mais proporciona prazer moral. Na tragédia os instintos naturais são suprimidos em prol da adequação moral. Assim é o processo de Nelson Rodrigues nas suas tragédias, pois as personagens não conseguem carregar em si a força da moral e sucumbem, depois de um estado de luta, à força natural, ou melhor, ao instinto.

Se formos utilizar o exemplo de Zulmira, de A falecida, identificamos um viés semelhante ao explanado por Schiller. Zulmira tem uma estranha doença não diagnosticada pelo médico, mas instintivamente descoberta pela própria heroína. Ao mesmo tempo, sabemos da implicância que ela tem com sua prima Glorinha, inclusive atribuindo a ela o motivo de sua doença. Inconscientemente, Zulmira sacrifica-se em prol de uma moral, uma vez que a sua traição foi descoberta e, moralmente, ela não aceita o fato de ter um amante. Daí, a busca de uma doença para compensar a traição.

(Zulmira num desespero maior.)
ZULMIRA – Mas ela tem razão! Eu é que não podia ter um amante!
PIMENTEL – Vem cá!
(Pimentel tenta segurar Zulmira, que se desprende com violência.)
ZULMIRA – Não me toque!
PIMENTEL – Dá um beijo!
ZULMIRA – Nunca!
PIMENTEL – Por quê?
ZULMIRA – Não adianta. Não acho mais graça em beijo, não acho mais graça em nada! (RODRIGUES, 1985:110-1)

Mas é aqui que acontece o caminho inverso da tragédia clássica: a adequação moral está no interior da própria personagem, não no externo, representado na ação trágica. Há a busca da realidade, mas da realidade interior. E a realidade interior de Zulmira é que não podia ter traído o marido, por isso agora não pode amar mais ninguém e abstém-se do amor.

Um outro exemplo é o do jovem Arandir, de O beijo no asfalto. Aparentemente um herói inexoravelmente virtuoso, mas cuja virtude vai sendo, pouco a pouco, destruída pelas matérias sensacionalistas do repórter Amado Ribeiro. Aos olhos do público, Amado faz Arandir aparecer como um homossexual, que empurrou o amante para debaixo do lotação e o beijou. Dentro do texto, sabe-se que Arandir não empurrou o rapaz, pois o próprio Amado confirma que é invenção sua. Por outro lado, sobre o beijo dado no atropelado, paira uma dúvida durante toda a peça, pois há o testemunho de Arandir, de Aprígio e de Amado, sempre contraditórios e ambíguos. Esse é um fator que faz desta peça uma das grandes obras-primas de Nelson: a questão do beijo não é resolvida, ninguém fica sabendo em que circunstâncias o beijo foi dado, visto que o próprio Arandir se contradiz sobre o beijo que ele mesmo deu.

SELMINHA (com surda irritação) – Primeiro, responde. Preciso saber. O jornal botou que você beijou.
ARANDIR – Pensa em nós.
SELMINHA – Com outra mulher. Eu sou tua mulher. Você beijou na...
ARANDIR (sôfrego) – Eu te contei. Propriamente, eu não. Escuta. Quando eu me abaixei. O rapaz me pediu um beijo. Um beijo. Quase sem voz. E passou a mão por trás da minha cabeça, assim. E puxou. E, na agonia, ele me beijou.
SELMINHA – Na boca?
ARANDIR – Já respondi.
SELMINHA (recuando) – E por que é que você, ontem!
ARANDIR – Selminha.
SELMINHA (chorando) – Não foi assim que você me contou. Discuti com meu pai. Jurei que você não me escondia nada!
ARANDIR – Era alguém! Escuta! Alguém que estava morrendo. Selminha. Querida, olha! (Arandir agarra a mulher. Procura beijá-la. Selminha foge com o rosto) Um beijo.
SELMINHA (debatendo-se) – Não! (Selminha desprende-se com violência. Instintivamente, sem consciência do próprio gesto, passa as costas da mão nos lábios, como se os limpasse.) (RODRIGUES, 1990:128)

Por ter beijado na boca outro homem, por ter sucumbido a uma vontade maior, a uma força natural, Arandir encontra-se em luta consigo mesmo, num sofrimento solitário, pois ninguém mais acredita nele, que, ainda assim, resiste contra as forças externas, as imposições e protocolos sociais.

Para Schiller, o teatro é uma forma artística capaz de elevar o sentimento humano a um sublime entretenimento. É no teatro que se evocam as coisas mais inteligíveis e autênticas, onde há homens de vício e virtude, onde há a felicidade e a desgraça. É no teatro que o homem confessa suas paixões, onde tira suas máscaras, onde a verdade se mantém incorruptível. Assim vejo o teatro de Nelson Rodrigues: nele, os homens não conseguem se manter nas formalidades que a sociedade impõe e revelam os seus maiores problemas, suas verdades, sejam elas quais forem.

As personagens trágicas, essas são seres reais, que obedecem à violência do momento e representam um indivíduo e revelam a profundeza da humanidade. Assim são as personagens de Nelson Rodrigues: parecem ser representantes da espécie, uma espécie repleta de segredos, os quais elas vêm revelar. Revelam não somente as suas verdades, mas a realidade de uma sociedade inteira.

Conforme explica Peter Szondi, em Teoria do drama moderno (2001), o conceito de drama possui vínculos históricos também com sua origem e não somente com seu conteúdo. Uma vez que a arte expressa algo inquestionável, seu entendimento só é total em uma época para a qual o evidente se tornou problema. Ou seja, do ponto de vista estético, uma obra de arte só é compreensível em uma certa época em que foi escrita e quando a sua problemática estava em voga.

A esfera do “inter”, no drama moderno, parecia o essencial da existência do homem, mas não é nada senão o seu interior que se manifesta e torna-se presença dramática. Tudo o que ficava aquém ou além dessa esfera, deveria permanecer estranho ao drama, principalmente o que era desprovido de emoção. Desse modo, toda a temática do drama se manifesta na esfera do “inter”.

Nesse meio intersubjetivo, o meio linguístico utilizado era o diálogo e, no Renascimento, se tornou o único componente da tessitura dramática. Isso é o que distingue o drama da tragédia antiga, da peça religiosa medieval, da peça histórica e do teatro barroco. Assim, o diálogo se compõe no segundo elemento constitutivo do drama, sendo o primeiro a própria ação intersubjetiva.

O diálogo reflete aquilo que se passa no decorrer da trama da peça, dentro do drama. Nada de fora interessa ou é transmitido com o domínio do diálogo. O diálogo é o principal instrumento para a realização das relações interhumanas, ou seja, a ação do “inter” encontra no diálogo sua melhor forma de expressão. O diálogo é o transmissor exclusivo da dinâmica interna do drama moderno.

Nesse caso específico do diálogo, Nelson o incorpora não só enquanto portador de toda ação dramática. O dramaturgo vai além, ele inova na simples forma dialógica teatral. Peças como Boca de Ouro, A falecida, O beijo no asfalto e Toda nudez será castigada, por exemplo, têm toda a peculiaridade nos diálogos. Coerentes com seus propósitos, as personagens mantêm o uso vocabular específico, distintivo. Mas, mais do que isso, é a estruturação dos diálogos, curtos, entrecortados, facilitando a dinâmica interna do texto.
__________________________
Notas:
Este texto é parte integrante da dissertação de mestrado denominada Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: um estudo crítico social das personagens rodrigueanas, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

[1] A respeito disso, Friedrich Nietzsche desenvolve todo o livro O nascimento da tragédia (2001).

[2] Irã Salomão, em Nelson, feminino e masculino (2000), observa que nas tragédias de Nelson Rodrigues acontece algo semelhante a essa ambivalência, mas entre o feminino e o masculino, que entram em conflito dentro da estrutura dramática, mas não se anulam. “Masculino e feminino realizam um jogo, no qual as regras e seus participantes são muito diferentes de cada lado. (...) Uma fricção e uma fluidez acontecem intermitentemente dentro de cada um destes universos. Da mesma maneira tais contatos e trocas ocorrem entre eles. Neste movimento, nenhuma parte se anula mas, ao contrário disto, elas possuem e reafirmam sua identidade concomitantemente ao seu digladiar.” p. 71.

[3] Quem dá uma abordagem mais detalhada da tragédia de cada época é Raymond Williams em Tragédia Moderna (2002).

[4] Faço observar que, embora seja evidente essa relação entre a vontade e a natureza no teatro rodrigueano, em geral a perspectiva é interna da personagem. Daí Nelson figura-se como dramaturgo moderno. Esse assunto será retomado adiante, quando tratado o trágico moderno.

continua…

Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores

sábado, 28 de maio de 2016

Samuel da Costa (Poemas Escolhidos)



O POETA E A MUSA
(a beleza na escuridão)
Para Fá Butler

É o poeta que sofre e chora...
Todas as dores do mundo!

Em algum lugar existe
Um místico e nevoento vergel
Orvalhado pela noite outonal eviterna

É o poeta que sangra e chora
Pela virginal musa etérea
Em um voo noturno!

É o bardo perdido em...
Um jardim encantado
Habitado por grandes,
Perdidos e secretos amores

Para o aedo...
Um simples eu te amo não basta!
Ele prefere apreciar...
A beleza eterna
Na escuridão infinda...
Sangrar e morrer por platônicos amores!
Sagrar em odes imortais
A divinal musa vaporosa
Em horas improprias!

Pois um simples eu te amo...
Para menestrel não basta!
MAR AZUL CÉU AZUL

Mar azul
Céu azul
Navego sozinho pelo mar da tranquilidade
Cheio de esperanças

Tenho pensamentos probos
Tenho pensamentos bons
Pois sei que tenho
Um longo caminho a percorrer

Mar azul
Céu azul
A minha negra arte não conhece limites
Criou asas
Voo para além do infinito

Mar azul
Céu azul
Tenho um longo e tortuoso caminho
Pela frente
Mas sei que ela vai estar lá
A minha espera
Tão linda como só ela sabe ser

Mar azul
Céu azul
Já não dói mais...
A minha negra arte tão carregada
De dor e sofrimento
Não existe mais
A minha negra dor se foi
Dobrou a esquina e desapareceu
Por completo

Mar azul
Céu azul
O crepúsculo eviterno
Já não cega mais meus quasímodos olhos
Não temo a negra noite eterna
Com seus mistérios infindos

Mar azul
Céu azul
Tenho o sono tranquilo
Pois sei que ela estará
Ao meu lado
Quando eu acordar pela manhã

BLACK-FACE

A minha poesia é letra morta
Está descalça.
Está ferida...
Está magoada!
Que pede licença para Tupã.
Embrenha-se mata virgem!
E evanesce!
Em ouvidos surdos.

As minhas entoadas!
São belas-letras sideradas...
Aceleradas!
Que foge do capitão-do-mato!
Baladas dos loucos.
Tortas e abstratas!

A minha écloga ouve o ladrar...
Dos cães selvagens!
E vai se abrigar no Quilombo.

Não! Não minha Deusa de Ébano
Minha sacrossanta virgem vaporosa
Não falaremos do nosso ontem
Nem do nosso amanhã
Muito menos do nosso hoje
Ficamos nos dois deitados
Mudos!
Calados
Inertes!

Ainda vejo a tua carne nua!
Carne trêmula...
Extrema...
O teu corpo incorpóreo

Não me fale do teu ontem.
Nem do teu amanhã
Ficamos nos dois mudos
Abrigados no silêncio eviterno
Para todo o sempre

POEMA PEDRA E A REALIDADE LIQUEFEITA
Para Roberto Lamim

Preciso compor um poema!
Com a urgência...
Escrever com poesia.
Palavras lançadas ao vento!
Sem regras e sem lógicas...
Sem rimas!
Sem dores!
Sem choros e sem lágrimas.
Sem velas.

Preciso esculpir na pedra-sabão.
Um poema com pretéritos...
Mais que perfeitos!!!
Sem deméritos.
Para me recompor...
Com o mundo líquido!
Com a realidade mutável...
Re-produzir a vida sem regras.
Sem rumos...
Onde reina as incertezas...

Mais que preciso...
Tenho que re-escrever!
A vida pós-moderna!
Sem crases...
Sem vírgulas...
Sem métricas...
E sem um ponto final.

Preciso com toda a emergência...
Escrever poemas na areia da praia...
Com verbos mais que perfeitos.
Com poética!

Peças soltas do mais...
Puro platonismo démodé...
Milimetricamente imperfeitos!
Em uma mimese...
Que não imita coisa alguma
Peças ocas liquefeitas
Que nada valem
Que não duraram nano-segundos!
Poemas sintéticos...
Para a Deusa de Ébano!

Re-produzir o deserto dentro de mim!
Re-produzir as belas-artes...
Em pedra-sabão,
Sem gritos sintéticos de dor!
Sem sustos...
Soluços...
E sem ponto final

Quero esculpir a minha negra poesia
Na dita pós-modernidade!
Virar as páginas em branco.
Sair do mundo virtual...
Ganhar as ruas...
Dobrar as esquinas...
Voar e voar leve como uma pluma
Ganhar os céus sem nuvens...
Abraçar os astros.
E se perder no cosmo infindo!
Ser livre afinal!
De todas as dores
E de todos os amores

Fonte:
O Autor

Olivaldo Júnior (A Fonte Azul)

Era uma vez uma antiga vila que sofria com a falta do bem mais precioso que existe: a água. Por mais que tivessem bens de toda a espécie, coisas que o dinheiro compra, lhes faltava o H2O, néctar, o supra sumo que faz o mundo girar, circular, se animar.

Eis que um dia, do grito da gruta mais funda, do fundo da concha mais cálida, do sal da terra mais doce, um fio cristalino do que em nós é quase tudo, a água brotou de uma fonte que, refletindo o rosto do sol, se azulava e foi chamada por todos de "Fonte Azul".

Essa fonte ficava bem no meio de uma divisa de terras entre quatro cidades, que eram como os quatro cantos da Terra. De quem seria essa dádiva? A quem pertenceria aquela que matava a sede do justo e do injusto, do "Cristo" e do iníquo, sem olhar a quem?

Juntaram-se homens das quatro cidades e, por mais que suas mulheres pedissem a eles que se sentassem e resolvessem pelo bem comum, ou seja, pela partilha do mel que sacia a sede, aqueles homens estavam dispostos a derramar sangue pela água.

Assim, num dia em que o sol tinha jeito de lua, nova, com a face escondida mesmo à mostra, em batalha, cada exército de cada cidade, com lança nas mãos, guerreou pela fonte que azulava ao sol pleno em seu fino cristal, pronta a saciar quem a visse.

Depois de uns dias assim, a fonte, em meio a guerra por ela, de azul foi passando a cinza e, de cinza, a negra, escura, pastosa, até que, no lugar de água, vertia mesmo petróleo. Quem pode querer beber ouro negro em vez da prata azul que o sustenta?

Uma a uma, caíram as lanças no chão, todo negro, sem água, em nada adiantou a peleja. Assim que os pobres se deram conta de que morreriam de sede, as mulheres, devagar, buscaram cada uma seu homem. A luta fora vã. A "Fonte Azul" era morta.

Fontes:
O Autor
Imagem = http://www.pt.dreamstime.com

Pedro Du Bois (Poemas Avulsos)


NATURAL

Na natureza decomposta
a dor exposta
em espécies
abatidas
cortadas
decepadas
depenadas
destocadas na força dos tratores
matrizes dos progressos: o homem
traz na aproximação a visão incolor do lucro
e a subsistência dos excluídos se defronta
com a terra ressecada após as passagens
a recomposição do solo exala
a acidez perpetrada
nos tempos desnecessários
das farturas: o homem
esquece o inconsentido passado
em projetos futuros inexequíveis
onde se debatem mortes
e avanços ao fim do mundo.

CONTIGO
Estarei contigo no tempo
partilhado das indecisões

na rapidez com que transitamos
reteremos imagens da coragem
divididas entre dívidas e dúvidas.

Recolheremos o bastante
recebido em dádiva: estarmos juntos
conduz os corpos ao esgotamento
do encontro em duradouras
combinações sensíveis

juntos no conjunto bipolarizado
das refregas e fugas diremos ao silêncio
em gestos de desilusões na perpetuação
dos entrelaces em que nos prendemos livres
dos aconselhamentos em desvãos abertos
no recolhimento sutil dos amorosos.

ASPEREZA
Não ouço o som
do vento contra a vidraça

no farfalhar da cortina
o estampido

sou silêncio
esculpido em pedra
árida
seca
descoberta no tempo
cristalizado.

DESFECHO
No desfecho
fecho a porta
e dentro
esqueço
a hora
permitida
aos pensamentos
filosóficos

o desvelo com que cuido
meu tempo permitido
na desilusão aleatória
dos enganos

fecho o caderno
e repouso a mão
sobre o tempo

o grafite inerte
sobre razões confessadas
em juízo.

DESGOSTOS

Não gosto do sentimento expressado
em náuseas: ondas elevam o nível
d’água ao extremo desgosto.
No afogamento o corpo levado ao fundo
do recomeço em outra forma: informalidade
com que sentimentos transitam
ódios e amores desgastados em gostos
negativos atrelados à memória.
Reparo no erro imperceptível e o amplifico
em externo conhecimento
onde o demonstrado gesto
recupera o sentido: retraído
o desgosto gera o espaço
em que me recolho: o desgosto
tolhe o movimento empedrado
em irrefletidas lembranças.

HORIZONTES

Na fórmula encerra o contexto.
Nenhum número impensado à palavra.
Nenhum verbo disparado à ação.
Nenhuma palavra armada em números.

O lugar comum permite ao cientista
avançar a busca: o inalcançável
se faz longe em horizontes.

(Os horizontes se repetem).

TÁCITO

Acordo: faço-me desconhecido
ao amigo: sofro suas dores: retorno
ao ponto inicial no me dizer ávido
em consolos: reencontro palavras
ao negar o confronto: acordos
não escritos perduram silêncios.

PODER

Posso indicar o mar como consolo
a vista como alcance e a companhia
como distração. Mentir amizades
e razões. Dialogar palavras
de desengano.

Posso ficar no silêncio
de escuros quartos. Desdenhar
o esquecimento e omitir
fatos desenhados.

Posso refazer as paredes
e entre tábuas enxergar
o lado de fora.

Fonte:
O Autor

Irmãos Grimm (Branca-de-Neve e Rosa-Vermelha)

Uma pobre viúva vivia isolada numa pequena cabana. Em seu jardim havia duas roseiras: em uma florescia rosas brancas, e, na outra, rosas vermelhas. A mulher tinha duas filhas que se pareciam com as roseiras: uma chamava-se Branca de Neve; a outra Rosa Vermelha. As crianças eram obedientes e trabalhadeiras. Branca de Neve era mais séria e mais meiga que a irmã. Rosa Vermelha gostava de correr pelos campos; Branca de Neve preferia ficar em casa ajudando a mãe. As duas crianças amavam-se muito e quando saíam juntas, andavam de mãos dadas.

Elas passeavam sozinhas na floresta, colhendo amoras. Os animais não lhes faziam mal nenhum e se aproximavam delas sem temor. Nunca lhes acontecia mal algum. Se a noite as surpreendia na floresta elas se deitavam na relva e dormiam.

Uma vez, passaram a noite na floresta e, quando a aurora as despertou, viram uma linda criança, toda vestida de branco sentada ao seu lado. A criança levantou-se, olhou com carinho para elas e desapareceu na floresta. Então viram que tinham estado deitadas à beira de um precipício e teriam caído nele se houvessem avançado mais dois passos na escuridão. Contaram o fato à mãe que lhes disse ser provavelmente o anjo da guarda que vigia as crianças.

As meninas mantinham a choupana da mãe bem limpa. Durante o verão, era Rosa Vermelha que tratava dos arranjos da casa e no inverno, era Branca de Neve. À noite, quando a neve caía branquinha e macia, Branca de Neve fechava os ferrolhos da porta.

À noite sentavam perto da lareira e enquanto a mãe lia em voz alta num grande livro as mãozinhas das meninas fiavam; aos pés delas, deitava-se um cordeirinho, e atrás, em cima do poleiro, uma pomba muito branca dormia com a cabeça entre as asas.

Uma noite, quando estavam assim tranquilamente, ouviram bater à porta e a mãe mandou Rosa Vermelha abrir a porta pois devia ser alguém procurando abrigo.

Ao abrir a porta Rosa Vermelha, um enorme urso meteu a grande cabeça através da abertura da porta. Ela soltou um grito e correu para o quarto; o cordeirinho pôs-se a balir, a pomba a voar, e Branca de Neve se escondeu atrás da cama da mãe.

- Não tenham medo. - falou o urso - Estou gelado me deixem aquecer perto da lareira.

-Pobre animal! - disse a mãe - Chega perto do fogo, mas cuidado para não se queimar.

Então a mãe chamou as meninas. Elas voltaram e, pouco a pouco, aproximaram-se o cordeirinho e a pomba, sem medo.

-Meninas!  - disse o urso – Por favor tirem a neve que tenho nas costas!

As meninas pegaram a vassoura e limparam o seu pelo. Em seguida, o urso estendeu-se diante do fogo, grunhindo satisfeito. Não demorou muito, ela puseram-se a brincar com ele. Puxavam o pelo com as mãos, trepavam nas suas costas ou batiam nele com uma varinha de nogueira. Ele só reclamou quando elas se excederam.

- Rosa Vermelha e Branca de Neve! - ele disse – Tratem o pretendente como se deve!

Quando chegou a hora de dormir e as meninas foram deitar-se, a mãe disse ao urso:

-Fique perto do fogo e você estará ao abrigo do frio e do mau tempo.

Logo que amanheceu, as meninas abriram a porta ao urso e ele se foi para a floresta, trotando sobre a neve. A partir desse dia, ele voltou todas as noites, à mesma hora. Estendia-se diante do fogo e elas brincavam com ele.

Chega a primavera e tudo se cobre de verde, então o urso disse a Branca de Neve que tinha que ir embora e não voltaria durante o verão, pois tinha que proteger seus tesouros dos maus anões. No inverno eles permaneciam nas tocas, mas quando o sol derrete a neve eles saem e roubam tudo o que podem, escondendo em suas cavernas.

Ela ficou muito triste e quando abriu a porta para o urso passar, ele esfolou a pele na lingueta da fechadura e Branca de Neve viu o brilho de ouro, mas não teve certeza.

Algum tempo depois, a mãe mandou as meninas apanharem gravetos na floresta. Lá chegando, viram uma árvore caída ao solo, e no tronco, entre a relva, qualquer coisa se agitava, pulando de um lado para o outro. Ao se aproximaram, viram um anão de rosto acinzentado, envelhecido e enrugado, com uma barba branca muito comprida. A ponta da barba estava presa numa fenda da árvore. Ao vê-lo Rosa Vermelha perguntou como sua barba ficara presa na árvore.

- Sua estúpida!- respondeu o anão - eu quis partir esta árvore para ter lenha miúda na cozinha, porque, com pedaços grandes, o pouco que pomos nas panelas queima logo. Nós não precisamos de tanta comida como vocês, gente estúpida e glutona! Tinha introduzido a minha cunha no tronco, mas a maldita madeira é muito lisa, a cunha saltou e a árvore fechou-se tão depressa prendendo minha linda barba. Riem, suas bobonas!

As meninas fizeram muitas força para livrar o homenzinho, mas não conseguiram desprender a barba, então Rosa Vermelha disse que precisariam de ajuda.

- Suas burras! - estrilou o anão - Chamar mais gente? Não podem ter uma ideia melhor?

-Não fique nervoso! - disse Branca de Neve - Vou resolver isto.

Tirou do bolso uma tesourinha e cortou a ponta da barba. Ao se ver livre, o anão agarrou um saco cheio de ouro oculto nas raízes da árvore e, pôs às costas, sem agradecer, saiu resmungando:

-Suas brutas! Cortaram-me a ponta de minha barba! O diabo que vos recompense!

Passado algum tempo, Branca de Neve e Rosa Vermelha foram pescar peixes para o jantar. Quando chegaram perto do rio, viram uma espécie de gafanhoto grande saltitando à beira d'água. Correram até lá e reconheceram o anão.

Rosa Vermelha perguntou: - Você não quer se jogar na água?

- Não sou tão burro! - gritou o anão – É esse maldito peixe que me arrasta para a água.

Para pescar o anão lançou a linha, mas o vento enroscou sua barba na linha e, nesse momento, um grande peixe mordeu a isca do anzol e suas forças não eram suficientes para mantê-lo fora da água, mesmo agarrando-se aos ramos.

As meninas seguraram o anão para desembaraçar sua barba, mas foi necessário usar mais uma vez à tesourinha e cortar outro pedaço da barba. Ele gritou, zangado:

- Isso é modo, suas patas chocas, de desfigurar a cara de uma pessoa? Já não bastava cortarem minha barba da outra vez, agora cortaram a parte mais bonita!

Pegando um saco de pérolas, escondido numa touceira ele sumiu atrás de uma pedra.

Pouco tempo depois, a mãe mandou as meninas à cidade comprar linha, agulhas, cordões e fitas. O caminho serpeava por uma planície de rochedos. Lá viram um grande pássaro pairando no ar, que depois de descrever um círculo cada vez menor, foi descendo, até cair sobre um rochedo não muito distante. No mesmo instante ouviram um grito. Correram e viram com horror que a águia segurava nas garras o seu velho conhecido, o anão, e se dispunha a carregá-lo pelos ares. As meninas seguraram o anão com todas as forças, e puxa de cá e puxa de lá, por fim a águia teve de largar a presa. Quando o anão voltou a si do susto, gritou-lhes com voz esganiçada:

- Não podem me tratar com mais cuidado? Estragaram o meu casaco! Suas palermas!

Depois pegou um saco cheio de pedras preciosas e deslizou para dentro da toca, entre os rochedos. Sem se incomodar com sua ingratidão, elas foram pra cidade.

Ao regressarem pela floresta, elas surpreenderam o anão, que tinha despejado o saco de pedras preciosas num lugar limpinho. Os raios do sol caiam sobre as pedras, fazendo-as brilhar tanto, que as meninas, deslumbradas, pararam para as admirar.

- Que fazem aí de boca aberta? - berrou o anão. Seu rosto acinzentado estava vermelho de raiva. Ia continuar xingando, quando se ouviu um grunhido surdo e, um enorme urso negro saiu da floresta.

O anão deu um pulo de medo, mas não teve tempo de alcançar um esconderijo, o urso cortou-lhe o caminho. Então ele implorou:

- Querido urso eu lhe darei todos os meus tesouros! Deixe eu viver! Você nem me sentirá entre seus dentes. Pegue essas duas meninas gordinhas para o seu estômago!

O urso não ouviu suas palavras, deu-lhe uma forte patada que o estendeu no chão.

As meninas fugiram, mas o urso chamou os seus nomes e elas reconheceram a sua voz e pararam. Quando o urso as alcançou, caiu a sua pele e, surgiu um formoso rapaz, todo vestido de trajes dourados.

- Sou filho de poderoso rei. - disse ele - Este anão mau me condenou a vagar pela floresta sob a forma um urso depois de ter roubado os meus tesouros e só com sua morte eu poderia me libertar.

Branca de Neve, pouco tempo depois, casou com o príncipe e Rosa Vermelha com seu irmão. Partilharam, entre todos, os tesouros que o anão tinha acumulado na caverna e a velha mãe viveu ainda muitos anos tranquila e feliz junto de suas queridas filhas e as duas roseiras que foram plantadas diante da janela dos seus aposentos. E todos os anos elas continuaram a dar as mais lindas rosas brancas e vermelhas.

Fonte:
http://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/titles

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Caravelas da Poesia (Portugal)

Eugênio de Sá (Sintra)
Ontem...


Ontem, perdi as ilusões de ser feliz
Pensei... que depois do adeus, te veria de volta
Mas, bárbaro destino; nenhum de nós o quis!

Depois de ontem...

Ontem, esquecido o norte, barco à solta
Sem leme, sem vontade a dar-me rumo
Já nem um esgar assumo, de revolta.

Um ano depois de ontem...

Ontem, vi-te num bar; queres um café?
Como vai tua vida, estás feliz?
E as mãos se deram, sem saber porquê.
________________________________

Tiago Barroso (Paredes)
Sinais da Idade


O verso já não flui com à vontade,
As rugas, o meu rosto, vão sulcando,
A noite, já mais cedo, está chegando,
E há mais recordações da mocidade.

No peito, cresce, agora, uma saudade,
Cabelos brancos há, mas rareando,
E, aos poucos, um inverno se instalando,
Promessas de trovões e tempestade.

Sinais, tantos sinais que a vida dá,
Que vão surgindo aqui, ou acolá,
Mas sempre com condão, ou com virtude

De esclarecer, em mim, grande dilema,
Devo, ou não, elaborar novo poema
Se inda há, no pensamento, juventude?
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Tito Olívio (Faro)
Meu Futuro


Vou pintar meu futuro de esperança
E pôr-lhe asas azuis, da cor do céu,
Para atingir o sol, se houver bonança,
Sem ninguém ver, oculto por um véu.

Será, porque assim quero, apenas meu,
Já que o passado foi, desde criança,
Luta minha, que a sorte pouco deu,
Mas passei a ter já mais confiança.

Quero beber a luz de cada aurora,
Chorar cada minuto de demora
P’las coisas que no tempo já perdi.

Não sei quanto me resta. Quero só,
Até ser finalmente outra vez pó,
Gozar tudo o que ainda não vivi.
________________________________

Isidoro Cavaco (Loulé)
Sonho Louco


És a luz no infinito
E o sonho em que acredito
Poder contigo encontrar;
Faço poemas na rua
Com os retalhos de Lua
Que vejo no teu olhar.

Grito mais alto que o vento
Porque trago em pensamento
Esse amor que tanto quero,
Neste silêncio que é meu,
Onde apenas vivo eu
E a toda a hora te espero.

Dizer que te amo é pouco
Ao viver meu sonho louco
Numa ilusão permanente;
Até nas ondas do mar
Eu oiço pronunciar
Teu nome constantemente.

Tenho na alma esculpida
Essa tua imagem qu’rida,
Que já não posso apagar
Deste meu destino estreito,
Que vegeta no meu peito
Sem asas para voar.
________________________________

Luís da Mota Filipe (Sintra)
De Uma Lisboa Esquecida


Das ondas, das maresias
Dos mares, dos rios
Das canastras, das varinas
Dos barcos, dos pescadores

Das vielas, das guitarras
Dos fados, dos destinos
Das revistas, das canções
Dos teatros, dos aplausos
Das tertúlias, das declamações
Dos poetas, dos Cafés
Das sinas, das sortes
Dos pregões, dos cauteleiros
Das floristas, das feiras
Dos arraias, dos mercados
Das rosas, das sardinheiras
Dos cravos, dos manjericos
Das esquinas, das calçadas
Dos Pátios, dos azulejos
Das praças, das fontes
Dos jardins, dos namorados
Das janelas, das varandas
Dos telhados, dos beirais
Das rezas, das procissões
Dos devotos, dos amantes
Das saudades, das paixões
Dos amores, dos corações

De uma Lisboa… esquecida
________________________________

Cremilde Vieira da Cruz (Lisboa)
Embrulho


Embrulhei-me num embrulho,
Fiquei assim embrulhada.
Quis desfazer o embrulho,
Mas fiquei mais embrulhada.

Pus o embrulho num canto,
Perdi o canto do embrulho.
Fiz de tudo uma embrulhada,
Perdi até o meu canto;

Ficou dentro do embrulho.
Ando assim desesperada,
À procura do embrulho!
De campainha na mão,

Subo escada, desço escada,
Chamo, chamo, pelo embrulho,
Espreito pelo corrimão,
vejo só uma embrulhada.
_______________________________
Fonte:
Os Confrades da Poesia. Boletim Nr. 59. Novembro/Dezembro 2013.

Olivaldo Júnior (Conto para os que amam ou @AmorPraSempre)

No ano de 2046, o amor tinha virado peça de museu. Eu explico: a rapidez da comunicação virtual tinha suplantado a comunicação real de um tal modo que as pessoas sequer falavam umas com as outras. Tudo era na base da transmissão energético-magnética, e os homens eram cada vez mais impelidos a se comunicar sem palavras. E, sem elas, o toque foi ficando ausente das relações sociais, e o mundo intensamente high-tech cobrava seu preço dos tão maravilhados usuários de redes sociais e afins, que dominaram a cabeça, o corpo e a alma da gente. Onde entra o amor nessa história? No caso de amor entre um moço e uma moça do futuro que estão ali...

Ele, recostado na parede de um shopping ultra, super, hiper, mega moderno, mal pode esperar por ela, que já mandou telepaticamente uma mensagem para ele, com o ícone de um coração. Palavras? Elas tinham cedido lugar aos desenhos, e todo o mundo se comunicava mais por símbolos que pela fala, ou pela escrita. Tudo era um símbolo. O do amor, claro, era um doce coração, que variava entre um e outro, de acordo com o humor. O daquele casal adolescente era um coração cercado de estrelas, cada uma representando uma semana de namoro. Relações duráveis? O que era durável para um povo que já falava com o outro através do pensamento e, daqui a pouco, quem sabe, se locomoveria pelas dimensões no Expresso Quântico, que já era uma tendência em países mais adiantados que o nosso. Viajar no tempo? Isso não era coisa de cinema, mas do dia a dia. E você? Para onde quereria ir, hein?

Voltemos ao jovem esperando a namorada. Quando ela chegou, enviou para ele um beijinho metafórico, que foi prontamente respondido com outro, um pouco mais afoito, que mereceu repreensão. Certas coisas nunca mudam... O shopping, aliás, era um ambiente bem parecido com o que temos agora, mas os produtos não ficavam mais expostos. Tudo era visto e sentido em hologramas sensoriais. O que se queria era mentalmente pedido em forma de compra que, em questão de minutos, era materializado na frente do pensador, digo, comprador. Onde o romantismo de se escolher a mercadoria, pedir para entregá-la, enfim, todo o trâmite da compra? Não havia mais. Assim como o amor. Ficava-se junto porque se ficava. O amor, como questão de posse, pertença a outra pessoa, era coisa do passado, da vovó... Gostar de alguém era um luxo. Aqueles jovens passeando pelo shopping era um luxo.

Ao fim do passeio, nada de beijos. A moça percebeu uma intenção mais quente no moço e, pra fim de conversa, "blindou" sua mente, e ele ficou sem poder se comunicar com ela por quase um mês. Foi um gelo cibernético, sabe? Depois, passaram a conversar pelo WhatsApp versão 5005, que nem consigo descrever do que era capaz. Mais uma coisa não tinha mudado: a sensação de saber que era possível burlar as regras e fazer diferente dos demais contemporâneos. Marcando encontro com ela, tirou seu chip do encaixe atrás da orelha direita e pediu a ela que também fizesse o mesmo. Assim, quando se encontrassem, seriam puros, naturais. E assim se deu. Tiraram a tecnologia excessiva, a pedra, do meio do caminho, e, tão soltos quanto um verso bem livre, beijaram-se muito quando se viram.

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Fontes:
O Autor
Imagem = http://www.noticiasdeitauna.com.br

Irmãos Grimm (O Músico Maravilhoso)

Num país distante havia um músico que tocava muito bem violino. Como a vida não lhe corria muito bem, decidiu procurar um companheiro. Foi até à floresta e pôs-se a tocar, até que lhe apareceu um lobo assustando-o. O lobo disse-lhe que tocava muito bem e que gostava de aprender a tocar como ele. O músico prometeu ensinar-lhe se ele fizesse tudo o que lhe mandasse. Então ao dirigirem-se para um carvalho velho, que estava oco e que tinha uma fenda a meio do tronco, o músico disse ao lobo que se quisesse aprender a tocar violino teria que meter a pata nessa abertura. O lobo obedeceu e o músico apanhou uma pedra, entalando a pata do lobo na fenda.

Como o músico queria encontrar um companheiro, lá continuou a tocar violino com entusiasmo, até que apareceu uma raposa encantada com a música, dizendo-lhe que gostava de aprender a tocar como ele. Pelo que o músico respondeu que para isso bastava que ele fizesse tudo o que lhe mandasse e então continuaram a andar até chegarem a um caminho estreito, aí ele prendeu com os pés dois ramos de aveleira e dizendo à raposa que se quisesse aprender a tocar violino lhe desse a pata esquerda. O animal obedeceu e o homem atou uma das patas a um ramo e a outra ao segundo ramo. Ao tirar os pés dos ramos, eles endireitaram-se e a raposa ficou suspensa pelas patas.

Como ainda não tinha encontrado o companheiro para formar sociedade e ganhar a vida, sentou-se a tocar o violino. Entretanto apareceu uma linda lebre que ao gostar da música lhe pede para o ensinar a tocar. O músico promete-lhe ensinar se ela obedecer às suas instruções. A lebre aceita e deixa-o atar um cordel à volta do pescoço, prendendo-a a um tronco.

Entretanto o lobo debatendo-se consegue soltar a pata e enfurecido vai atrás do músico, encontrando pelo caminho a raposa que lhe pede para a soltar. Ao passarem perto da lebre esta gritou por ajuda e foram todos os três em busca do músico. Este entretanto, tinha atraído com a sua música um caçador que lhe pede para aprender a tocar. O músico satisfeito disse-lhe que o ensinaria de muito bom agrado, já que tocar bem um instrumento era um privilégio de homens e piscando-lhe o olho deu-lhe sinal para os animais que se aproximavam furiosos.

O caçador apontou-lhes a arma ameaçando-os pelo que assustados fugiram todos a correr.

O músico ficou todo satisfeito por ter encontrado um companheiro e assim passaram a andar de vila em vila tocando e caçando para que nunca lhes falte comida.

Fonte:
http://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/titles