sexta-feira, 11 de abril de 2025

Asas da Poesia * 2 *


Soneto de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Profecia
(Elo partido...)

Muitas vezes te disse - tens lembrança?:
– Muda! por nossos filhos! - E, também,
que a renúncia constante anula, cansa,
quando improfícua... e só de um lado vem.

Lembrei-te (quantas vezes!] é a confiança
base que o templo conjugal sustém.
E estremecia a última esperança
de envelhecermos juntos... mal ou bem!

Cumpriu-se a profecia! O eco ressoa!
Cai o arruinado templo! Embora doa,
nossos elos partiram-se! Defuntos,

os sonhos se perderam no caminho!
Tanta mentira e ausência de carinho,
que ao fim da estrada, não chegamos juntos!
= = = = = = = = =  

Poema de
MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

Mundo interior

Ouço que a natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
De sol à ínfima luzerna.

Ouço que a natureza, — a natureza externa, —
Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida
Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna
Entre as flores da bela Armida.

E contudo, se fecho os olhos, e mergulho
Dentro em mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,

Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,
Um segredo que atrai, que desafia — e dorme. 
= = = = = = = = =  

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Casulo de vidro

Ofusca-me a visão
Esses encontros com o espelho
A dualidade entre o passado
E o  presente, repleto de ausências,
Dos traços envoltos em brumas
O doloroso mergulho:
Quebrar o espelho
Sem fragmentar a essência
Sentir na pele, a lâmina que corta
E recorta - cura -
Desfalecer de dor
No silenciar da alma,
Na solidão do "casulo de vidro"
Buscando respostas
Na sequência de pétalas eternas-
“Flor da Vida”-
Aroma de bálsamo –
Aquietando meu coração.
= = = = = = 

Poetrix de
PEDRO CARDOSO
Brasília/DF

Outono 

as folhas amareladas
dizem que o meu coração
mudou de estação
= = = = = = 

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Sou um cansaço que findou no sono
(Narciso Alves Pires, in “Para além do adeus”)

Sou um cansaço que findou no sono
Da tarde triste em que morreu o dia
E quando a noite o meu corpo acolhia
O sol desceu do seu dourado trono.

A doce paz nasceu desse abandono
Mistura de mistério e nostalgia
E, aos poucos, o meu ser desfalecia
Como folha que tomba pelo Outono.

A mansidão abraça-se ao sossego
E eu fico numa luz, num aconchego
Como nunca, em meus dias, eu vivi.

O tempo foi passando devagar
E não sendo eu capaz de me acordar
Só então é que eu soube que morri.
= = = = = = = = = 

Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Ida

Para a porta do céu, pálida e bela,
Ida as asas levanta e as nuvens corta.
Correm os anjos: e a criança morta
Foge dos anjos namorados dela.

Longe do amor materno o céu que importa?
O pranto os olhos límpidos lhe estrela...
Sob as rosas de neve da capela,
Ida soluça, vendo abrir-se a porta.

Quem lhe dera outra vez o escuro canto
Da escura terra, onde, a sangrar, sozinho,
Um coração de mão desfaz-se em pranto!

Cerra-se a porta: os anjos todos voam...
Como fica distante aquele ninho,
Que as mães adoram... mas amaldiçoam!
= = = = = = 

Soneto de
ANTERO DE QUENTAL
Ponta Delgada/Portugal, 1842 – 1891

Intimidade

Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela - e se te não comparo à rosa,
É que a rosa, bem vês, passou de moda...

Anda-me às vezes a cabeça à roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.

Mas é na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!

E não te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo,
Juras - mentindo - que me tens amor...
= = = = = = = = =  

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

A distância nos redime 
se a saudade nos escolta; 
ir pra longe é tão sublime 
como sublime é a volta!
= = = = = = 

Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/ Portugal

Teu nome

Fecho os olhos pela luz dos teus
A escuridão tem o teu nome
Quando chegas sem pedir licença.

Trazes nos gestos a graciosidade da açucena
Um brilho distinto de beleza sem mácula
Vontade projetada pelo fulgor dos sentidos.

Tudo o que vejo, tudo o que sinto
É um sorriso, um ansiado aroma teu
Um olhar suspenso no tempo
Naquele dia onde esmoreceu.

Abro os olhos de ofuscada saudade.
O que me falta em palavras
Sobra-me de teus gestos ausentes!
= = = = = = 

Haicai de
GUILHERME DE ALMEIDA
Campinas/SP 1890 – 1969 São Paulo/SP

O Pensamento

O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, uma ruga.
= = = = = = 

Poema de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Saudade

Que me dizias, Augusto Meyer,
naquele tempo que não passa,
na mesa, junto à vidraça,
naquele bar que era um barco?

Por ela passavam mares,
passavam portos e portos,
ali que os ventos ventavam,
dos quatro cantos do mundo!

O que dizíamos? Sei lá!
não falemos em nossas vidas...
nem, por nós, se salvou o mundo...

Mas, Amigo, eu sei que tenho
— naquelas horas perdidas —
o meu ganho mais profundo!
= = = = = = 

Hino de
ANAHY/ PR

Neste solo gentil dadivoso
Onde outrora o café imperou
O pioneiro com seu braço valoroso
O agreste sertão desbravou
Na clareira do mais puro encanto
A capela de Sant'Ana se ergueu
e anunciando o progresso ao recanto
Anahy majestosa nasceu

Na lavoura a magia singela
O algodão canta um hino de amor
Com o milho e a soja tão bela
Revezando com o trigo em flor
Qual presentes da mãe natureza
A irrigar as riquezas daqui
Correm rios da mais alva beleza
Irmanados ao rio Piquiri

Tuas portas estão sempre abertas
Acolhendo com carinho e afeição
Todo aquele que procura rotas certas
Aqui encontra abrigo e união
Anahy és um exemplo seguro
A inspirar este povo gentil
No labor construindo o futuro
E a grandeza do nosso Brasil
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Meu primeiro amor

Lembras nosso primeiro carnaval?
Eu dançava no corso na avenida...
Ao me vês acenaste da calçada
A música era bela e original.

Ao ver-te disparou meu coração,
O amor que despertava no momento
Sob o som da marchinha, e o sentimento,
Trouxe à minha alma muita inquietação.

Cheguei naquele dia no trabalho,
Mas teu olhar em fuga deixou o meu
Percebi que sentias tal qual eu.

Meu amor que nasceu sob o orvalho,
Deu frutos, em dois filhos que gerou,
E em cinco netos o amor eternizou
= = = = = = = = =  = = = = 

Trova de
CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/ SP, 1945 – 2021, Santos/ SP

Imensidões veneráveis, 
que me fazem navegar, 
céu e mar, inseparáveis, 
na linha do meu olhar.
= = = = = = = = = 

Soneto de
CRUZ E SOUZA
Florianópolis/SC, 1861-1898, Antonio Carlos/MG

Sonho branco

De linho e rosas brancas vais vestido,
Sonho virgem que cantas no meu peito!...
És do Luar o claro deus eleito,
Das estrelas puríssimas nascido.

Por caminho aromal, enflorescido,
Alvo, sereno, límpido, direito,
Segues radiante, no esplendor perfeito,
No perfeito esplendor indefinido...

As aves sonorizam-te o caminho...
E as vestes frescas, do mais puro linho
E as rosas brancas dão-te um ar nevado...

No entanto, Ó Sonho branco de quermesse!
Nessa alegria em que tu vais, parece
Que vais infantilmente amortalhado!
= = = = = = = = =  

Uma Lengalenga de Portugal
O QUE ESTÁ NA GAVETA?
 
 O que está na gaveta?
Uma fita preta.
O que está na varanda?
Uma fita de ganga
O que está na panela?
Uma fita amarela
O que está no poço?
Uma casca de tremoço
O que está no telhado?
Um gato malhado
O que está na chaminé?
Uma caixa de rapé
O que está na rua?
Uma espada nua
O que está atrás da porta?
 Uma vara torta
 
O que está no ninho?
Um passarinho
Deixa-o no morno
 Dá-lhe pãozinho.
Vamos ver se ele pia?
Piuuuuuuuuuuuuuu!
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
FERNANDO MÁXIMO
Avis/ Portugal

Cria um filho para ser
paladino das verdades,
não o cries para ter
vícios… defeitos… maldades…
= = = = = = = = =  

Soneto de
MÁRIO ZAMATARO
Curitiba/PR

Ingenuidade

Quero ter a minha voz
pra dizer abertamente
que uma farsa aperta os nós
e disfarça impunemente!

E direi como é feroz,
como faz tranquilamente
o papel doce de algoz
e se crê ser inocente.

Usa a lei como sofisma,
tem acordo com a ilusão
pra fazer cavilação.

Quer impor sempre o seu prisma
e não vê nisso maldade,
deve ser ingenuidade!
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Poemeto de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

Ouvia-se os respingos
caindo inertes, sem emoção.
Não era chuva, orvalho,
tampouco pranto.
Somente borrifadas...
Talvez poesia,
talvez um nada no chão. 
= = = = = = = = =  

José Feldman (E se…?)

Era uma tarde abafada em um café literário do Rio de Janeiro, onde o velho charme das calçadas se misturava com a modernidade das telas de celular, um escritor contemporâneo, Lucas, estava sentado em uma mesa, digitando freneticamente em seu laptop, quando, de repente, uma figura conhecida entrou no estabelecimento. Era ninguém menos que Machado de Assis, com seu famoso chapéu e um olhar perspicaz.

Lucas: (olhando para cima, surpreso) Uau, é você, Machado de Assis! O que faz aqui no século XXI?

Machado: (com um sorriso sutil) Ah, jovem, o tempo é uma construção tão maleável quanto a narrativa. Vim ver como andam as letras modernas.

Lucas: (sorrindo) Pois é, a escrita mudou bastante. Você já pensou em como seriam seus livros hoje? Imagina "Dom Casmurro" com redes sociais!

Machado:(levanta uma sobrancelha) Redes sociais? Como assim?

Após algum tempo, regado a várias xícaras de capuccino, explicando resumidamente para Machado de Assis as mudanças entre os séculos, suas inovações e avanços, continuaram a debater as obras.

Lucas:(animado) Pense! Bentinho faria um perfil no Instagram, postando fotos da Capitu. E você sabe como as pessoas adoram uma polêmica! Imagina os comentários!

Machado:(rindo) Capitu teria que ter um filtro especial para esconde-los, não? O que seria da sua fama com uma "influencer" ao lado?

Lucas: Exato! E Quincas Borba, com seu "Humanitismo", poderia ter uma página de autoajuda no Facebook!

Machado:(pensativo) Hummm... e o que ele diria? “Seja feliz ou não, mas não se esqueça de compartilhar seu progresso”?

Lucas: (rindo) Sim! E imagina a briga entre Quincas e o Robson, agora discutindo em threads de Twitter!

Machado: (com um brilho nos olhos) E a ironia? Ah, meu caro, a ironia seria a estrela! “Humanitismo: mais likes, menos empatia!”

Lucas: (aproximando-se) Vamos ser sinceros, hoje em dia, seria um sucesso! Mas e "Dom Casmurro"? Você ainda acha que ele foi ciumento ou só inseguro?

Machado: (com um sorriso maroto) Ah, meu jovem, a dúvida é o que torna a história tão intrigante. Afinal, quem não tem suas inseguranças? Até mesmo neste café, quem sabe se você não está sendo traído por um croissant?

Lucas: (rindo alto) Bom ponto! Mas eu acho que a Capitu teria um podcast, falando sobre o "casamento moderno". Seria um sucesso!

Machado: (pensando) Um podcast sobre infidelidade? Isso poderia ser um verdadeiro "narrador não confiável" em áudio! Teríamos que chamar o Bentinho para debater.

Lucas: (fazendo gestos) Ouvintes votariam: “Capitu traiu ou não traiu?” E no final, a conclusão seria: “Nada como uma boa conversa no divã!”

Machado: (acena com a cabeça) Uma nova forma de análise, sem dúvida. Mas me conte, como é a literatura atual? Os jovens ainda leem clássicos?

Lucas: (pensativo) Alguns sim, mas muitos preferem resumos e adaptações. E há uma pressão enorme por conteúdo rápido. A leitura se tornou quase um “fast-food”!

Machado: (franzindo a testa) Que pena! A profundidade se perde. A literatura é um banquete, não uma refeição rápida! O que seria de Quincas Borba sem suas reflexões?

Lucas: (com um brilho nos olhos) Certo! Imagino um aplicativo de leitura, onde cada página virada poderia ser um prêmio. “Leia e ganhe pontos!”

Machado: (rindo) Seria um "Humanitismo" gamificado? “Parabéns, você acaba de refletir sobre a condição humana!”

Lucas: (aplaudindo) Exato! E o que você diria aos jovens escritores de hoje?

Machado: (pensativo) Que escrevam com sinceridade. A tecnologia pode mudar, mas a essência da escrita permanece. O olhar humano, as emoções... isso nunca deve se perder.

Lucas: (sorrindo) Palavras sábias, Machado. Vou usar isso na minha próxima obra. 

Machado: (levantando a xícara de café) Então brindemos à literatura, que sempre encontrará um caminho, seja no século XIX ou XXI!

Lucas: (erguendo seu copo) À literatura e ao diálogo entre épocas!

E assim, entre risadas e reflexões, o escritor contemporâneo e o mestre do século XIX continuaram a troca de ideias, mostrando que, independentemente do tempo, a literatura sempre será um terreno fértil para a criatividade e o humor.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Poeta, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com uma escritora, poetisa, tradutora e professora da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, e depois em Maringá/PR desde 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria e Voo da Gralha Azul. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Eduardo Martínez (Vida dupla)

Aureliano, minucioso que era, ficava irritado com qualquer nota fora do compasso, ainda mais porque, quase sempre, tirava o brilho do oboé, justamente o instrumento que tocava na orquestra sinfônica. O sujeito era tomado por tamanho ódio, que parecia surdo a partir de então.

— Aureliano, algum problema?

— Margô, você não viu?

— Viu o quê?

— O trompete atrasou e foi atropelado pelo trombone.

Margô, a maestrina, talvez para não provocar pendenga entre os músicos, fingia desconhecimento da falha levantada pelo colega. Este, por sua vez, não raro, enrugava ainda mais a testa, como se fossem quebra-molas na vastidão do Saara, que tomava conta da sua racionalidade, que se tornava nenhuma. Paciência, realmente, não era seu forte. 

Aureliano, empertigado quando o assunto era música clássica, parecia outro assim que se embrenhava entre os talentos da bateria da escola de samba do Cruzeiro. Ali, o gajo era conhecido como Aurê da Cuíca, justamente o instrumento que havia abraçado desde que fora fisgado pelo som da ARUC, a mais tradicional do Distrito Federal. 

Aureliano e seu alter ego, apesar das disparidades, pareciam viver em harmonia. Até mesmo a vida amorosa do gajo andava às mil maravilhas, inclusive com promessas de casamento. É que o músico acabara de firmar namoro sério com Maria Helena, violinista das mais talentosas. Ao lado do rapazola, a moça era destaque na orquestra. 

O oboé e o violino pareciam fadados a tocarem em harmonia para o resto da vida. Entretanto, sempre há um entretanto para atazanar a vida dos bem-aventurados, e, certa noite, noite de sexta-feira, durante o ensaio da ARUC, eis que a cuíca do Aurê se esbarrou no pandeiro da Lucimara. Pra quê? Os desavisados poderiam imaginar que o aconteceu na madrugada fossem gritos de socorro. Ledo engano, não passavam de urros de luxúria, cujas faíscas poderiam ser vistas na escuridão por todo Cruzeiro.

Na manhã seguinte, durante o ensaio da orquestra, Maria Helena foi a primeira a notar a desafinação do oboé. Pois é, justamente do oboé! Era como se o instrumento estivesse alheio aos caminhos da partitura.

— Aureliano!

— Oi.

— O que é isso?

— Isso o quê?

— Eu é que pergunto! 

Margô, antes que a discórdia prosseguisse, tratou de dar uma pausa. Era nítida a falta de condição do Aureliano de prosseguir. Todos ficaram boquiabertos com tamanha descompostura do mais exigente dos músicos. É óbvio que alguns possuíam mágoas por outrora terem sido humilhados pelo instrumentista. O trompetista foi o primeiro a expor a ferida aberta.

— Margô, não seria a hora de arrumar outro oboísta?

Aureliano, mesmo mais pra lá do que pra cá, quis dar uma oboezada na cabeça do desafeto. Foi impedido pelo flautista e, se o imbróglio não virou rebu, foi graças à intervenção da maestrina, que deu por encerrado o ensaio. Rusgas, entretanto, foram inevitáveis. Perfeccionista que era, Maria Helena não perdoou Aureliano, que não teve alternativa a não ser enfiar o oboé entre as pernas e ir para casa chorar suas mágoas.

O homem acabou adormecendo no sofá da sala e, já tarde da noite, despertou. Levantou-se, passou pelo oboé como se ele não existisse e se dirigiu ao quarto. Abriu o armário e se deparou com a cuíca, que o recebeu sorridente. Não teve dúvida, saiu em busca da Lucimara, que, requebrando os dedos sobre o pandeiro, já aguardava o amante.
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EDUARDO MARTÍNEZ possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Blog do Menino Dudu
https://blogdomeninodudu.blogspot.com/2025/04/vida-dupla.html
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Eduardo Affonso (O dilema das rodas)

Estou pensando em fazer um documentário em que ex-executivos da Volkswagen, da Fiat, da Ford, da Toyota e, por que não, da Gurgel, se penitenciam diante das câmeras por terem desenvolvido automóveis.

– Eles provocam desastres – lamenta X, desviando o olhar após uma pausa dramática.

– Nós sabíamos dos riscos e, ainda assim, colocamos aceleradores – diz, enxugando uma furtiva lágrima, o engenheiro Y.

Os herdeiros de Daimler e de Benz falarão da inveja causada pelas Mercedes inventadas por seus antepassados.

– Já havia ressentimento demais no planeta. Mas vovô foi insensível e… – não conseguirá terminar o depoimento.

Sim, a indústria automobilística é perversa. Mauzona, maldosa e malvada.

– Fui alto executivo da Ferrari. Por mim, teríamos produzido apenas ambulâncias. E carros do Corpo de Bombeiros. Mas havia pessoas gananciosas e o que poderia ser um lindo projeto acabou se perdendo.

No cenário frio (este documentário pede cenários frios), com pequenos trechos do meiquinhofe (este documentário pede maquiadores tirando o brilho da pele de um, reristáilistes ajustando as mechas de outra), um a um os ex-ciiôus lavarão roupa suja, a centrifugarão e farão enxague completo com amaciante e Lysoform.

– Claro que estava nos planos, desde o início, que ladrões usariam nossos carros nas fugas – confessará K (inicial fictícia), engenheiro de produção da Nissan.

– E que agrobois tunariam nossos produtos, incluindo uma potente aparelhagem de som para ouvir dupla sertaneja no volume máximo, com o porta-malas aberto, no domingo, no Parque Barigui – continuará W (inicial mais fictícia ainda), gerente de projetos da Jeep.

– Devíamos ter resistido e abortado o Ford Bigode enquanto era tempo, mas… fomos fracos.

O documentário levantará questões sobre segurança (“Os erbegues não foram instalados nos calhambeques para não atrapalhar a estética. Eles teriam salvo a vida de milhares de melindrosas inocentes”), sobre liberdade (“Sim, o cinto de três pontos foi pensado como forma de manter as pessoas mais tempo presas dentro dos veículos, ouvindo propaganda no rádio. A JB FM e a Super Rádio Tupi injetaram muita grana nesse projeto”) e sobre manipulação (“O viagra foi adiado por décadas para que pudéssemos continuar vendendo Simca Chambords, Mavericks e Camaros amarelos”).

Alguém lembrará que carros também servem para transportar hortifrútis para o Ceasa, levar as crianças à escola, visitar a avó em Taubaté, ver corrida de submarino na Niemeyer. Será um contraponto necessário – afinal, há de ser um documentário isento, neutro e imparcial.

Se fizer sucesso, já tenho engatilhado aqui um sobre a indústria do papel (“Sabíamos que iam imprimir livros de autoajuda, e continuamos produzindo celulose assim mesmo”) e sobre a indústria fonográfica (“Larguei tudo e decidi virar monge tibetano quando saiu aquele disco da Ana Carolina e do Seu Jorge. Isso foi há 15 anos, e até hoje pratico a autoflagelação, para tentar expiar minha culpa.”).

Alguém aí tem algum contato na Netflix pra me passar?
~

[Disclêimeres: Este texto contém provocação. Sim, eu sei que a questão não é tão simples assim. Claro, o assunto é muito mais complexo. Lógico, não dá pra tratar esse tipo de coisa tão levianamente. Evidente que é impossível comparar uma coisa com a outra. Concordo que você entendeu tudo e eu não entendi nada.
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EDUARDO AFFONSO. Arquiteto mineiro de Belo Horizonte, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique Nenhum livro publicado.

Fontes:
Blog do Eduardo Affonso. 20 outu 2020
https://tianeysa.wordpress.com/2020/10/20/o-dilema-dos-motores/
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quarta-feira, 9 de abril de 2025

Asas da Poesia * 1 *


 Poema de 
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN
Lisboa (1919 – 2004) Porto

Cantata de paz

Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietnam
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.
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Soneto de
VICENTE DE CARVALHO
Santos/SP (1866 – 1924)

Velho tema (III)

Belas, airosas, pálidas, altivas,
Como tu mesma, outras mulheres vejo:
São rainhas, e segue-as num cortejo
Extensa multidão de almas cativas.

Têm a alvura do mármore; lascivas
Formas; os lábios feitos para o beijo;
E indiferente e desdenhoso as vejo
Belas, airosas, pálidas, altivas...

Por quê? Porque lhes falta a todas elas,
Mesmo às que são mais puras e mais belas,
Um detalhe sutil, um quase nada:

Falta-lhes a paixão que em mim te exalta,
E entre os encantos de que brilham, falta
O vago encanto da mulher amada.
= = = = = = 

Poema de
WASHINGTON DANIEL GOROSITO PÉREZ
Irapuato/ Guanajuato/ México

Poeta

A noite me pede um poema
é indulgente com este bardo,
ferido pelo silêncio.
Faz minha caneta dançar,
meu ritmo, minhas palavras.
Letras noturnas, letras na solidão.
Escrevo algumas na minha mão esquerda,
Elas serão o início de um poema.
Há folhas que não admitem poesia
e armazenam palavras escondidas.
Você sente o aroma do verbo.
Letras que saltam,
para construir poemas para loucos
como a balada de Ferrer,
com espírito insurrecional
versos de vaga-lume,
iluminam
Morre a noite
e também o poeta,
um pouco a cada verso,
que derrotará a ferrugem do tempo,
e a poeira do esquecimento,
escreve poesia.

(tradução do espanhol por José Feldman)
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Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

A Rua dos Cata-ventos (VII)

Avozinha Garoa vai contando
Suas lindas histórias, à lareira.
"Era uma vez... Um dia... Eis senão quando..."
Até parece que a cidade inteira

Sob a garoa adormeceu sonhando...
Nisto, um rumor de rodas em carreira...
Clarins, ao longe... (É o Rei que anda buscando
O pezinho da Gata Borralheira!)

Cerro os olhos, a tarde cai, macia...
Aberto em meio, o livro inda não lido
Inutilmente sobre os joelhos pousa...

E a chuva um' outra história principia,
Para embalar meu coração dorido
Que está pensando, sempre, em outra cousa…
= = = = = = = = = 

Trova do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Saudade – no fim do dia, 
já sei por que me dói tanto: 
aumenta a melancolia, 
dobra as dores do meu pranto! 
= = = = = = 

Poema de 
JOSÉ PEDRO DA SILVA CAMPOS D’OLIVEIRA
Moçambique (1847 – 1911)

A Uma Virgem
(Improviso)

Motora dos meus martírios!
Causa da minha saudade!
Ingênua e casta deidade!
Minha terna inspiração!
Condói-te da triste sorte
Do jovem que te ama tanto,
Que por ti verte agro pranto
Gerado no coração!
Rasga-me o peito, se queres,
E vê nele a intensa chama,
Que há três anos o inflama
Em cruas dores, sem fim...
De padecer já cansado
Vou sentindo a morte dura
Arrastar-me à sepultura,
E na flor da idade assim!...

E podes ser tão tirana,
Que possas ver indif´rente
D´anos de´nove somente
Morrer o teu trovador?!
Ai! Não! Alenta-me a vida,
Reprime esta dor infinda
Dando-me só, virgem linda,
O teu puro e casto amor!...

(obs: foi mantida a grafia original)
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Poema de
OLIVER FRIGGIERI
Floriana/Malta

Somos água viva

Nossa história deve terminar algum dia
Como água do manancial que ao remanso chega
Ou pedra que rola até deter-se,
Como um pêndulo de relógio que ao fim se imobiliza.
Cada dia ao anoitecer, em nossas casas
Quando nossos filhos perguntam o que está passando
Trocamos de tema ao não ter resposta
E cantamos o estranho hino de nossa idade:

“Somos água viva e nada a bebe
Porque nas ondas se encontra o sal da destruição.
Somos pedras eliminadas dos altares
De Deuses enfermos que iam mortos desesperados
Em uma luta contra eles mesmos. Pêndulo somos
Que está a ponto de gastar o seu vigor.”

(Tradução do Maltês e Espanhol por José Feldman)
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Poema de
LUCIANA SOARES CHAGAS
Rio de Janeiro/RJ

Iara, menina do encanto

Na praia dourada, a menina a brincar,
Iara, com olhos negros a brilhar.
Sorriso faceiro, de encanto sem par,
Sua alegria faz o mundo dançar.

Cabelos cacheados, como ondas do mar,
Bailam no vento, livres a sonhar.
Inteligente e doce, um brilho especial,
Sua presença é luz, um dom celestial.

Amiga querida, sempre a cativar,
Com um toque de rosa, um sonho a criar.
Unicórnios encantam seu mundo infantil,
Irmã e companheira, de amor tão gentil.

Toda charmosa com suas vestes de bailarina,
Iara, sua risada é melodia divina.
Um poema pra ti, menina...
És estrela brilhante, de alma cristalina.
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Esperança

Enquanto há vida, eu sei, há esperança
que é uma das virtudes teologais,
foi isso que aprendi desde criança
e na verdade não esqueci jamais.

As outras são: o amor que não se cansa,
e a fé, que todo dia eu tenho mais!
E aí, querida, está minha confiança:
juntos faremos nossos esponsais!

Vou esperar o quanto for preciso,
certo de que não perderei o juízo,
até o dia que você me amar.

E nesse dia eu serei tão feliz,
que vou levar você até a Matriz,
e sob bênçãos, vamos nos casar!
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Hino de 
SÃO TOMÉ/PR

Quando os homens rasgaram um dia
Os mistérios do velho sertão
Entenderam por certo que havia
Um poder incomum neste chão
Visionários, a voz da esperança.
Numa luta de ardor e de fé
Na paisagem da verde pujança
Projetaram à luz São Tomé

ESTRIBILHO
Na mata virgem deslumbrante,
Rio dos Índios o solo a irrigar
A cachoeira borbulhante
Um poema de amor a entoar,
É tão belo, neste recanto.
Outro igual asseguro não há
São Tomé que eu amo tanto,
É orgulho do meu Paraná.

A riqueza brotando imponente
Desta terra de cor peculiar
A mostrar o valor de tua gente
No labor de uma faina invulgar
Na cadência marcada dos passos
Deste povo que ruma seguro
Carregando alegria nos braços
Para um grande soberbo futuro.
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Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Tu nasceste nesta rua,
eu nasci além dos mares,
mas foi sempre a mesma lua
que juntou nossos olhares!
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Recordando Velhas Canções
SOLIDÃO 
(samba-canção, 1961) 
Adelino Moreira

Não, não quero mais o seu amor
Chega de amar, chega de dor
E de esperar em vão

Quando desperto
E vejo o leito vazio
Eu sinto frio no coração

Não, não quero mais ficar sozinha
Já Estou cansada de esperar
Acalentando a promessa
De que um dia
Você vem para ficar

Quem não tem direito ao amor
Não deve amar
Para não sofrer
Para não chorar

Veja meus Deus
A triste sorte minha
Na solidão do quarto
Eu beijo o seu retrato
E vou dormir sozinha
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