Estou pensando em fazer um documentário em que ex-executivos da Volkswagen, da Fiat, da Ford, da Toyota e, por que não, da Gurgel, se penitenciam diante das câmeras por terem desenvolvido automóveis.
– Eles provocam desastres – lamenta X, desviando o olhar após uma pausa dramática.
– Nós sabíamos dos riscos e, ainda assim, colocamos aceleradores – diz, enxugando uma furtiva lágrima, o engenheiro Y.
Os herdeiros de Daimler e de Benz falarão da inveja causada pelas Mercedes inventadas por seus antepassados.
– Já havia ressentimento demais no planeta. Mas vovô foi insensível e… – não conseguirá terminar o depoimento.
Sim, a indústria automobilística é perversa. Mauzona, maldosa e malvada.
– Fui alto executivo da Ferrari. Por mim, teríamos produzido apenas ambulâncias. E carros do Corpo de Bombeiros. Mas havia pessoas gananciosas e o que poderia ser um lindo projeto acabou se perdendo.
No cenário frio (este documentário pede cenários frios), com pequenos trechos do meiquinhofe (este documentário pede maquiadores tirando o brilho da pele de um, reristáilistes ajustando as mechas de outra), um a um os ex-ciiôus lavarão roupa suja, a centrifugarão e farão enxague completo com amaciante e Lysoform.
– Claro que estava nos planos, desde o início, que ladrões usariam nossos carros nas fugas – confessará K (inicial fictícia), engenheiro de produção da Nissan.
– E que agrobois tunariam nossos produtos, incluindo uma potente aparelhagem de som para ouvir dupla sertaneja no volume máximo, com o porta-malas aberto, no domingo, no Parque Barigui – continuará W (inicial mais fictícia ainda), gerente de projetos da Jeep.
– Devíamos ter resistido e abortado o Ford Bigode enquanto era tempo, mas… fomos fracos.
O documentário levantará questões sobre segurança (“Os erbegues não foram instalados nos calhambeques para não atrapalhar a estética. Eles teriam salvo a vida de milhares de melindrosas inocentes”), sobre liberdade (“Sim, o cinto de três pontos foi pensado como forma de manter as pessoas mais tempo presas dentro dos veículos, ouvindo propaganda no rádio. A JB FM e a Super Rádio Tupi injetaram muita grana nesse projeto”) e sobre manipulação (“O viagra foi adiado por décadas para que pudéssemos continuar vendendo Simca Chambords, Mavericks e Camaros amarelos”).
Alguém lembrará que carros também servem para transportar hortifrútis para o Ceasa, levar as crianças à escola, visitar a avó em Taubaté, ver corrida de submarino na Niemeyer. Será um contraponto necessário – afinal, há de ser um documentário isento, neutro e imparcial.
Se fizer sucesso, já tenho engatilhado aqui um sobre a indústria do papel (“Sabíamos que iam imprimir livros de autoajuda, e continuamos produzindo celulose assim mesmo”) e sobre a indústria fonográfica (“Larguei tudo e decidi virar monge tibetano quando saiu aquele disco da Ana Carolina e do Seu Jorge. Isso foi há 15 anos, e até hoje pratico a autoflagelação, para tentar expiar minha culpa.”).
Alguém aí tem algum contato na Netflix pra me passar?
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[Disclêimeres: Este texto contém provocação. Sim, eu sei que a questão não é tão simples assim. Claro, o assunto é muito mais complexo. Lógico, não dá pra tratar esse tipo de coisa tão levianamente. Evidente que é impossível comparar uma coisa com a outra. Concordo que você entendeu tudo e eu não entendi nada.
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EDUARDO AFFONSO. Arquiteto mineiro de Belo Horizonte, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique Nenhum livro publicado.
Fontes:
Blog do Eduardo Affonso. 20 outu 2020
https://tianeysa.wordpress.com/2020/10/20/o-dilema-dos-motores/
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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