O TEMPO é um tecelão habilidoso, entrelaçando os fios da vida com a destreza de um mestre. Ele tece memórias, sonhos e desejos em um padrão único e nós, meros observadores, assistimos enquanto o pano de fundo se forma majestoso. Corre uma tarde bonita e calma, dessas em que o sol se esconde tímido atrás das folhas douradas. Na praça principal, aliás, a única aqui deste lugarejo, bancos de cimento acalentam histórias de amor. Lembram risos e choros. Festejam os idos de casais namorando. Os pombos esfomeados não são os mesmos, tampouco os passarinhos. Nem os bebês em seus carrinhos e babás. Eu estou sentado em um desses bancos sujos, olhando o tempo passar.
Uma senhora de idade, ossos e células longínquas, as vestes estropiadas, os cabelos em desalinho, se aproxima. Endereça-me uma boa tarde e pergunta se pode se sentar a meu lado. Respondo com um sorriso largo no rosto fechado. Seus olhos carregam a sabedoria de quem viu muitas outras e não aproveitou nenhuma. Ela se acomoda, olha para o céu e diz:
— O tempo se esvai, meu jovem. Por vezes, rápido demais. Em outras, devagar, quase parando, como um rio, de passos cansados, trazendo águas de muito longe... de repente, seu leito se queda preguiçoso dormitando exausto ao sabor de uma das margens.
Ela me conta, após esta introdução criativa, sobre a sua juventude. Fala dos amores perdidos. Descreve os sonhos realizados e os que ficaram pelo meio do caminho, como cachorros que por algum motivo caíram dos caminhões de mudanças e jamais foram encontrados:
— Tudo passa – repete três vezes tais palavras, como se recitasse um mantra. As estações, como as de um trem, mudam. As pessoas embarcam ou desembarcam, se transformam.… Todavia, o que cria raízes, são as memórias póstumas. Automaticamente elas também se decompõem. Vem e vão. As horas correm. Na verdade, voam. Perceba que os ponteiros são “incansáveis”. O que vemos estático, são as lembranças.
Eu olho discretamente para o relógio da torre da igreja do outro lado junto ao coreto. Os ponteiros dançam marcando o compasso da vida. O vento sussurra segredos em meus ouvidos. E a senhorinha ali, falando pelos cotovelos:
— Tudo se esvai, meu prezado. As dores, as alegrias, os momentos de solidão, os abraços apertados dos que nos sãos caros. Os choros dos recém-nascidos, a voz da nossa mãe chamando para o café, o pai saindo para o trabalho... as crianças afoitas em direção a escola, em suntuosas algazarras...
De repente, do nada, ela se levanta. Sem se despedir, vira as costas e vai embora. Se afasta numa lentidão carente, como se o peso da sua idade fosse o principal motivo dos seus pés descalços se fazerem demasiadamente lentos e sem um destino pré-estabelecido.
Naquela tarde, ao voltar para minha casa, prometi a mim que viveria cada instante com mais intensidade. Que não deixaria o tempo escorrer por entre meus dedos como a areia fina. Que abraçaria o efêmero sabendo que no fim, o que importava, o que realmente fazia a diferença não é outra coisa senão as histórias que vivemos e as almas que tocamos ou que nos abordaram.
Na praça silenciosa, sei que o tempo continuará o seu trabalho. As folhas cairão, o vento soprará e as memórias se entrelaçarão num amplexo indescritível. Após ela ter se levantado, eu fui também. Bati a poeira da sujeira do banco. E segui. Os demais que encontrei durante o trajeto até chegar ao meu destino, eram pessoas que iam ou vinham de algum lugar. Engraçado: umas ao cruzarem comigo, educadas e gentis, resmungam um “boa noite”; outros somente um “olá” insosso. Como os passantes avulsos, segui meu trilhar. No rosto, lágrimas insistentes turvam a visão da vida que me contempla silenciosa. Sem parar, passo pela birosca do Alfredo. Sempre cheia!
Lá dentro, uma chusma de frequentadores em pé, ou encostada às paredes, bebe com força e manda para dentro, (com sorrisos mostrando dentes cariados), uns tira-gostos acondicionados numa vitrine enorme de vidros sujos sobre o balcão repleto de garrafas, latinhas e copos vazios. Cruzo pelo salão da barbearia do Edgar, àquela hora, vazio. Ele cochila sentado na cadeira à espera de um freguês retardatário. Logo adiante, na padaria de dona Nicete, as moscas ensandecidas disputam espaços em mesas ociosas.
Apenas a lindíssima e encantadora dra. Simária, a dentista (a única da cidade), se farta bebendo um refrigerante e comendo um sanduiche de pão dormido com mortadela. Em contíguo , o salão da Lisandra, cabelereira, se vê fechado. O mercado do Aristides Abreu (onde se vende de tudo) as três moças dos caixas esperam bater as vinte horas. Enquanto isso, fofocam em gritos pictóricos, um amontoado de estridências obscenas vividas com seus namorados em finais de noite alta na plataforma da estação de trem. Neste curso, ora riem, fazem gestos, ora tiram fotos e exibem nos celulares as filmagens, disputando competitivamente quem havia aprontado mais na noite anterior.
Na verdade, cada uma delas, em particular, granjeia chamar a atenção para si mesma, demonstrando, na maioria, fatos que não iam além de quimeras envoltas em invenções mentirosas. Em suma, apenas o gosto saboroso de chamar a atenção. Pois bem! Antes de chegar ao portão da minha residência, prometo a mim mesmo (os dedinhos cruzados), asseverando que daquele dia em diante, sempre que saísse do meu universo particular, viveria em cada esquina, em cada pedra que topasse, em cada rosto que me endereçasse um olhar mais delongado, enfim, em cada instante que me fosse permitido, com a intensidade que recebo do Pai Maior, agradecer por estar literalmente vivo.
Do mesmo modo, desfrutaria, saborearia, apeteceria a sucessão das graças recebidas e viveria. Viveria, viveria, viveria. Deixaria de ser um estabanado átomo fugidio, um desgostoso fantasma insone, tipo um sujeito encolhido atrás de uma muralha, negando a visão da própria realidade. Tomo consciência que preciso, sem mais delongas, me desavergonhar da sucessão dos meus janeiros vividos. Desvencilhar-me do cara quadrado, imbecil e atoleimado que eu sou agora. Desgarrar-me de uma vez por todas da consciência pesada que me subjuga, que me agrilhoa, e que me oprime aflitivamente, com uma avidez tresloucada e enlouquecedora.
Levanto a cabeça. Sempre faço isso, quando retorno. Espio demoradamente para o infinito. Sorrio. Em seguida, faço o sinal da cruz, e entro. Ai então, não paro mais. Desembesto, afoito, direto e sem me deter em direção ao meu cantinho. No portal que acessa a minha varanda, a mãe colocou um retrato meu. Uma foto esmaecida pelo tempo. Um mimo, a bem da verdade. Ao lado dele, um enorme vaso com rosas vermelhas que ela sempre mantém colhidas do jardim do seu olhar. Eu moro, faz dez anos aqui. Meu endereço? Anota, por favor. Avenida dos Ipês, quadra dezenove, jazigo perpétuo, sepultura de número mil novecentos e cinquenta e três.
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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