quarta-feira, 9 de abril de 2025

Contos das Mil e Uma Noites (O homem que queria ser califa por um dia)

Conta-se, ó rei afortunado, que havia em Bagdá um jovem solteiro chamado Abu-Hassan. Seus vizinhos nunca o viram convidar alguém por dois dias seguidos ou convidar alguém de sua própria cidade. Todos os que visitavam sua casa eram estrangeiros. Não compreendendo seu comportamento, chamaram-no Abu-Hassan o Excêntrico. 

Todas as tardes, ia esperar na ponte de Bagdá. Quando avistava um estrangeiro, rico ou pobre, jovem ou velho, apresentava-se a ele com um sorriso urbano e rogava-lhe aceitar a hospitalidade na primeira noite de sua permanência em Bagdá. Levava-o para sua casa, tratava-o  com generosidade e distinção e agradava-o com sua conversação viva e espirituosa. Mas na manhã seguinte, dizia-lhe: “Jurei nunca convidar um estrangeiro por dois dias seguidos, fosse o mais encantador dos filhos dos homens. Por isso, vejo-me obrigado a separar-me de ti e até peço-te, se alguma vez nos encontrarmos nas ruas de Bagdá, que finjas que não me conheces.” Com essas palavras, Abu-Hassan conduzia o hóspede a um khan da cidade e despedia-se dele para sempre. 

Durante muito tempo, Abu Hassan procedeu assim, hospedando um estrangeiro diferente cada noite. Uma tarde, estava na ponte de Bagdá quando viu chegar um rico mercador vestido à maneira dos mercadores de Mossul e seguido por um escravo de aspecto imponente. Tratava-se nada menos que do califa Harun Al-Rachid disfarçado. Pois ele gostava de examinar pessoalmente, escondido pelo anonimato, o que se passava em Bagdá.

Abu-Hassan, ignorando quem ele era, convidou-o para sua casa, conforme seu hábito; e o estrangeiro aceitou. Jantaram os excelentes pratos preparados pela mãe de Abu-Hassan, e este escolhia os melhores pedaços e oferecia-os ao hóspede. Beberam vinho e conversaram. Harun Al-Rachid, encantado, disse a Abu-Hassan: “Peço-te como lembrança desta noite memorável, que exprimas um desejo; e comprometo-me, sobre a Kaaba sagrada, a satisfazê-lo. Fala com sinceridade e não receies que teu pedido seja grande demais, pois Alá me cumulou com seus benefícios e não há nada que não possa realizar.” 

Abu-Hassan afirmou que lhe bastava a alegria da presença de seu hóspede. Mas o califa insistiu, dizendo que se sentiria ofendido se seu anfitrião não atendesse a seu desejo. 

Disse Abu-Hassan: “Agradeço tua generosidade, mas como não tenho desejo a satisfazer nem ambição a concretizar, sinto me perplexo... a menos que te dirija um pedido louco que só Harun Al-Rachid poderia atender... Seria que me tornasse califa por um dia.” 

- O que farias, se fosses califa por um dia? perguntou o hóspede. 

– “Deves saber, ó forasteiro, que a cidade de Bagdá é dividida em bairros, sendo cada bairro administrado por um xeique. Desgraçadamente, o xeique de meu bairro é uma criatura tão horrível que deve ter nascido da cópula de uma hiena e de um porco. Emite um cheiro pestilento, e sua boca parece o buraco de uma latrina. Não há doença que não tenha atacado aquele corpo. “É precisamente este ignóbil libertino que lança a desordem em todo o bairro com a ajuda de dois outros devassos, um dos quais é filho de uma prostituta e de um cão que se faz passar por nobre muçulmano, quando não passa de um cristão da mais baixa extração, e o outro é uma espécie de bobo gordo que parece prestes a cada palavra a vomitar as tripas. Se fosse Príncipe dos Crentes por um dia, não procuraria enriquecer ou favorecer parentes e amigos, mas apressar-me-ia a libertar o bairro desses três desprezíveis canalhas.” 

O califa elogiou seu anfitrião por preocupar-se com o interesse geral mais do que com o seu próprio e disse-lhe: “Vou agora encher a tua taça, pois até então tens sido tu que encheste a minha.” 

E o califa misturou uma pitada de benj (anestesiante) com o vinho do anfitrião. Este, antes de perder a consciência, disse ao califa: “Sinto que vou dormir. Por favor, ao sair pela manhã, não esqueças de fechar a porta atrás de ti.” 

E Abu-Hassan adormeceu profundamente. O califa chamou então seu escravo e mandou-o carregar Abu-Hassan nas costas. E foram todos embora, deixando a porta aberta apesar da recomendação. 

Entraram no palácio por uma porta secreta. Harun Al-Rachid mandou tirar a roupa que Abu-Hassan vestia, substituí-la por vestes do próprio califa e deitá-lo na sua própria cama. Depois, reuniu os dignitários do palácio e deu-lhes ordens severas para que, no dia seguinte, tratassem Abu-Hassan como se fosse o califa e executassem todas as suas ordens e satisfizessem todos os seus desejos. 

Na manhã seguinte, Harun Al-Rachid colocou-se por trás de uma cortina no quarto onde dormia Abu-Hassan para tudo ver e observar sem ser visto. Então, entraram os dignitários, as damas de honra, os escravos e escravas, e um eunuco aproximou-se de Abu-Hassan e acordou-o. Abu-Hassan abriu os olhos e achou-se num leito estranho cujas cobertas eram feitas de brocado vermelho e de pérolas. Viu-se numa grande sala com as paredes revestidas de cetim. Rodeavam-no jovens mulheres e escravas de cativante beleza e uma multidão de vizires, emires, dignitários, altos funcionários, todos inclinados respeitosamente diante dele. E ao lado da cama, viu, estendido sobre um tamborete, o inconfundível vestuário do Emir dos Crentes. 

Persuadido de que estava sonhando, voltou a fechar os olhos. Mas o grão-vizir Jafar aproximou-se dele e, depois de beijar o chão três vezes, disse-lhe: “Ó Emir dos Crentes, permiti a vosso escravo acordar-vos, pois é hora das preces matinais.” 

No mesmo instante, a um sinal de Jafar, os tocadores de instrumentos fizeram ouvir um concerto de harpas, alaúdes e violas, e as vozes dos cantores soaram harmoniosamente. 

Abu-Hassan gritou: “Onde estou? E quem sou eu?” 

Masrur respondeu num tom cheio de deferência: “Vós sois nosso amo e senhor o Emir dos Crentes, o califa Harun Al-Rachid, e estais em vosso palácio, rodeado por vossos servidores e escravos. E eu sou Masrur, um deles.” 

Voltando-se então para uma das jovens escravas, Abu-Hassan fez-lhe sinal que se aproximasse. Estendeu um dedo e pediu-lhe: “Morde este dedo! Só assim saberei se estou sonhando ou não.” 

A escrava mordeu o dedo até o osso. Abu-Hassan soltou um grito de dor e disse: “Ai! agora vejo que estou acordado.” E perguntou à rapariga: “E tu, me conheces? Quem sou eu?” 

Respondeu a jovem: “O nome de Alá esteja sobre o califa e à sua volta! Vós sois nosso amo e senhor, o Emir dos Crentes, o califa Harun Al-Rachid, vigário de Alá.” 

Pouco a pouco, Abu-Hassan foi convencendo-se de que algo extraordinário lhe tinha acontecido. E pensava: “Por Alá, não é uma coisa maravilhosa! Ainda ontem, eu era AbuHassan, e hoje sou Harun Al-Rachid!” 

Depois de o terem lavado e perfumado, vestiram-no com as vestes reais, coroaram-no com o diadema, puseram-lhe nas mãos o cetro de ouro e conduziram-no ao trono. E Abu-Hassan pensou: “Califa ou não, vou comportar-me como califa.” 

E conseguiu manifestar toda a autoridade e dignidade do cargo. Na sala do trono, diante da multidão de dignitários, cortesãos e homens do povo, Jafar tirou um rolo de papel e pôs-se a enumerar os assuntos do dia. E embora fossem todos novos para Abu-Hassan, pronunciou-se sobre cada caso com tamanho tato e propriedade que o califa, que estava escondido na sala, ficou maravilhado.

Quando Jafar terminou o relatório, Abu-Hassan mandou vir o chefe da polícia e deu-lhe a seguinte ordem: “Leva dez guardas e vai à casa tal na rua tal no bairro tal. Lá encontrarás um horrível porco que é o xeique daquele bairro, sentado entre dois canalhas não menos ignóbeis que ele. Prende os três e começa por dar a cada um quatrocentas bastonadas nas plantas dos pés. Depois, manda empalar o xeque pela boca e atira seu corpo aos cães. Faze o mesmo com o homem glabro de olhos amarelos. Quanto ao terceiro, sendo ele mais bobo que perverso, manda-o passar a vida sentado na mesma cadeira. Assim estarão punidos os caluniadores, maculadores de mulheres, destruidores da ordem pública que agridem as pessoas honestas e apoderam-se do que não lhes pertence. E volta com as provas de que cumpriste tua missão.” 

Depois, mandou levantar o divã, pensando: “ Agora, não posso mais duvidar. Sou realmente o Emir dos Crentes.” 

Momentos depois, chegou o chefe da polícia e entregou-lhe as provas de que tinha cumprido sua missão. Abu-Hassan ficou tão satisfeito que o apetite lhe voltou e fez com alguns dignitários uma lauta refeição.

Harun Al-Rachid, que tinha assistido a tudo, rejubilava-se por ter o destino posto no seu caminho um homem como aquele. Mas o sonho tinha que acabar. Uma das jovens acompanhantes, obedecendo às ordens, disse a Abu-Hassan: “Ó Emir dos Crentes, suplico-vos que bebais mais esta taça de vinho à saúde de todos.” 

Abu-Hassan bebeu a taça de um trago. Nela, a moça havia instilado o anestesiante benj. Abu-Hassan perdeu imediatamente os sentidos, e caiu no chão.

O califa mandou o escravo que havia retirado Abu-Hassan de sua casa carregá-lo para lá de volta e depositá-lo na sua cama. Quando Abu-Hassan acordou no dia seguinte, achou-se num quarto o menos parecido possível com o palácio onde dava ordens na véspera como se fosse o senhor do mundo. Certo de que estava sonhando, pôs-se a gritar para acordar e a chamar Jafar e Masrur para junto de si. A única pessoa que acorreu foi sua mãe, que procurou acalmá-lo. 

Abu-Hassan quis saber quem o havia destronado. E como ela ficou atônita e não respondeu, insultou-a com tamanha violência, tentando até agredi-la, que a pobre mulher teve que chamar os vizinhos para contê-lo. 

No dia seguinte, suas alucinações aumentaram contra os que o haviam destronado, inclusive sua mãe e os vizinhos, a quem ameaçava de morte. A mãe foi obrigada a apelar para um médico. O médico diagnosticou que Abu-Hassan tinha enlouquecido e devia ser internado num hospício. Lá foi necessário amarrá-lo e submetê-lo a diversos tratamentos.

Somente três semanas depois, começou a voltar à normalidade e a reconhecer que era mesmo Abu Hassan. Sua mãe levou-o então de volta para casa e procurou consolá-lo: “Meu filho, nada do que aconteceu é culpa tua. Todo o mal se deve àquele mercador estrangeiro que convidaste por último e que partiu pela manhã sem sequer fechar a porta atrás de si. Ora, todos sabem que cada vez que a porta de uma casa é deixada aberta antes do nascer do sol, o chaitan (diabo) entra nessa casa e toma conta do espírito de seus habitantes. Agradeçamos a Deus por não ter permitido desgraças maiores”.

Abu-Hassan concordou. O califa, que acompanhara todo o drama por intermédio de informantes, censurou-se por sua conduta e procurou compensar as aflições causadas. Recebeu Abu-Hassan no palácio real. Casou-o com a jovem Cana-de-Açúcar que fazia parte das escravas de Abu-Hassan como califa e que lhe havia particularmente agradado. E para manifestar a retidão e o senso de responsabilidade de seu caráter, estabeleceu uma renda vitalícia a Abu-Hassan e Cana-de-Açúcar, que lhes permitiu viverem felizes e seguros até o último de seus dias.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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