sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Chico Anysio (A Moça da Vila)

"Vila Santa Cecília" eram as palavras que ocupavam, com letras góticas, o alto do arco que servia de entrada para a vila de 12 casas de porta e janela — seis de cada lado — onde moravam famílias pobres, porém honradas. Não ficava num subúrbio, mas numa travessa da Rua do Catete, perto do Palácio. Não era incomum um garoto chegar correndo com a notícia.

— Paiê. Vi o Presidente.

— O Dr. Getúlio? — desacreditava o pai. — Viu mesmo?

— Na janela do Palácio. Tava de pijama.

Se ver Presidente já era uma coisa que pouca gente no Rio tinha oportunidade, ainda mais de pijama.

Quando o carro preto passava, com batedores à frente, quem viajava nos carros ou nos bondes abaixava a cabeça numa tentativa de descobrir o Presidente no banco traseiro e nem sempre conseguia essa glória. E o menino da vila, voltando do armazém com um quilo de açúcar, vira-o. E de pijama!

Seu Olegário, um dos moradores da "Vila Santa Cecília", motorneiro à beira da aposentadoria, fazia disso um bicho de sete cabeças.

— Viu mesmo?

— De pijama — sublinhava o pai do menino a quem Deus dera a subida honra de ser testemunha da intimidade presidencial.

— Mentira.

— De pijama, colega! De terno, qualquer um pode ter visto. Até eu já vi.

— Eu também vi. — incluiu-se Olegário.

— Mas de pijama só quem viu foi o meu filho. — vangloriava-se — De pijama, só ele. Olegarinho! — gritava — Vem contar como foi que tu viu o Dr. Getúlio?

E o garoto recontava o que contara mil vezes, acrescentando, como já se habituara, qualquer coisinha no final.

— De pijama, na janela. Fazendo ginástica, como a gente faz na escola. Abrindo e fechando os braços, assim. Ginástica, sabe, moço?

Na casa 4 da vila morava Seu Pacheco, um homem mais antigo do que essa estória. Ainda usava colarinho engomado, postiço, que mandava lavar e engomar numa pequena loja da Galeria Cruzeiro. Trabalhava na Caixa Econômica fazia 19 anos. Qual a sua ocupação, ninguém sabia, mas, pela importância que se dava, calculava-se que era o homem que dizia "sim" ou "não" aos empréstimos solicitados. Creio que nem a mulher tinha conhecimento do seu serviço real. Se a própria mulher ignorava, muito menos sabiam seus filhos, que eram cinco: quatro homens e uma moça.

Esta, a moça da vila, que dá nome à estória. Maria da Glória tinha 18 anos. Era professora primária e ensinava advérbios e conjunções, numa escola pública de Laranjeiras. Morena, com a cor do sapoti e o gosto da cor. O corpo não ficava nada a dever àquele da moça sentada numa motocicleta que enfeitava a folhinha que o dono do açougue não se cansava de olhar, com pensamentos delicadamente malévolos.

Na folhinha estava o corpo de uma moça de Hollywood; em Maria da Glória, um corpo ao alcance não apenas dos olhos, mas, quem sabe... Tudo dependia de uma conversa. O homem do açougue não era dono. Viria a ser, depois que o pai morresse e ele, filho do dono, passasse a dono real das alcatras e das rabadas.

Tinha 26 anos, uma sombra azulada de barba, como os portugueses finos, e um jeito que, com boa vontade, chegava a lembrar Tyrone Power em Sangue e Areia.

— Me dá um quilo de contra-filé, Seu Nequinho — comandava Maria da Glória, na ida diária ao açougue.

— Prontinho. Pesado com carinho.

— Quanto é?

— Nada. Você pediu que eu desse, estou dando. É presente. Presentinho pra você. — falava Nequinho, mexendo muito com a boca, numa tentativa de charme.

— Oh, Seu Nequinho, deixa de coisa. — pedia sem vontade a moça da vila.

— Deixar de coisa, como? — acrescentava Nequinho, já de olhar prometendo pecado. — Eu quero é começar...

De início, Maria da Glória levou na brincadeira. Mas Nequinho não se incomodava. Um dia, ela iria entender que as intenções dele eram as melhores. Ou não seriam? Tinha que insistir, persistir, incomodar. Dizia, sempre, uma frase: — De uma boa conversa ninguém escapa.

Tenta de cá, busca de lá, procura daqui, insiste dali, joga indiretas hoje, concede contra-filé amanhã, convida agora, insiste depois, propõe uma, propõe duas, um dia deu pé.

Marcaram um passeio a Paquetá, de onde Maria da Glória, a moça da vila, voltou mulher.

Acontecesse isto hoje, talvez desse para ser contornado. Mas era 1951. E, para Seu Pacheco, 1951 ainda cheirava a trinta e poucos. Basta que se diga que ainda contava lances da revolução paulista como um fato acontecido ontem.

Maria da Glória contou para a mãe, que mãe é para essas coisas. Também e principalmente.

— Minha filha, o que você foi fazer?

— Agora está feito. — resumiu Maria da Glória.

— Tá feito, tá feito, — resmungou a futura vovó — é só o que você diz. E quando seu pai souber? Ele te mata de pancada.

— Mas meu pai não vai saber.

— Quem disse?

— Eu que tou dizendo.

— O jeito é você casar.

— Casar, eu não caso.

— E por que não?

— Só caso com um homem que eu goste.

Aí é que a mãe não entendia mais nada. Se ela não gostava do Nequinho, como foi que deixou que ele...? E se não foi por amor, então por que foi que ela...? E se era só brincadeira, como é que...?

— Essas coisas acontecem, mãe. — falou Maria da Glória, com uma tranquilidade que merecia o tapa que a mãe ameaçou.

— Acontecem, sim, mas não com filha minha.

Uma filha dela não era de se levar em conta. O diabo é que tinha acontecido com uma filha do Seu Pacheco, provável proprietário da Caixa Econômica Federal do Rio de Janeiro.

— Quem é que já sabe? — quis saber a mãe, numa aflição compreensível. Era 1951.

— Nós três, mãe.

— Nós três, quem? Eu, você e quem mais? Quem é mais que sabe dessa desgraça, menina?

— Nequinho, né?

Claro que Nequinho sabia. Antes de D. Guiomar, inclusive. Sabia e temia; tanto, que contou ao pai cardíaco.

— Pai, estou perdido. Sabe a Maria da Glória? Aquela moça da "Vila Santa Cecília"?

— Sei. Que é que tem?

— Foi comigo domingo a Paquetá e...

— E o quê? — indagou o pai, mostrando, pela total falta de inteligência, que se morresse não faria muita falta ao mundo.

— E aí eu... entendeu?

— Você o quê, Nequinho? — redarguiu o pai, pondo em néon sua burrice.

— Executei.

O pai sentou na banqueta de dividir o boi. Sentado, ficava devendo, na altura.

O pai de Nequinho, a quem chamavam no bairro de "Metade", andou de um lado para o outro, do boi ao porco, seguidas vezes, antes de chegar à conclusão.

— Você vai pra Minas.

— Pra quê?

— Pra não casar. Ou você quer casar com ela?

— Ninguém tá falando em casar.

— Ninguém aqui em casa. Você pensa que Seu Pacheco... ela não é filha de Seu Pacheco?

— É, acho que é.

— Acha, uma ova. Você sabe que é. Você pensa que Seu Pacheco...? Você vai pra Minas e, qualquer coisa, eu nego. Nego até morrer.

— Pois pode tirar Minas da ideia, que eu não vou! — exclamou Nequinho, já meio arrependido de ter feito o pai de confidente.

— Não vai? Então, casa. Pode preparar seu enxovalzinho, porque do altar você não escapa.

Realmente, à primeira vista, não havia outra solução: casar ou fugir. A não ser que Maria da Glória — moça muito evoluída e compreensiva até demais — tivesse algo melhor a sugerir.

— Mamãe, vou para os Estados Unidos.

— Pronto. Além do mais, ficou maluca. Como é que você vai pros Estados Unidos? Você pensa que seu pai é o dono do Lóide? Pensa que ele pode pagar uma passagem, te dar e acabou?

— Já resolvi. Vou pros Estados Unidos.

— Eu posso saber com que roupa?

— Não sei. De que jeito, não sei, mas eu vou, eu vou.

Pessoa alguma ficou sabendo o jeito que deu. Mas antes que a barriguinha se fizesse notar, Maria da Glória tinha passaporte, passagem, alguns dólares e as malas arrumadas.

Seu Pacheco aceitou a ideia da filha ir para aquela "terra de gente louca", graças à invejável catequese de D. Guiomar.

Maria da Glória tinha que agradecer à mãe não apenas a compreensão pela desgraça, mas o auxílio enorme para o consentimento do pai. Iria, mesmo sem o "sim" do Seu Pacheco, mas assim, com o beneplácito dele, era melhor.

E foi de avião.

A "Vila Santa Cecília", em peso, compareceu ao bota-fora, no aeroporto. E também foram duas pessoas do "Açougue Modelo".

 Seu Pacheco recebia duas cartas por mês. Lia-as no banheiro para que ninguém o visse chorar. As cartas contavam apenas novidades da terra. Dizia dos aparelhos elétricos, das máquinas formidáveis, do conforto excepcional, das majestosas estradas de alta velocidade, dos filmes que ela já entendia (já falava inglês) e dos teatros onde "você nem pode calcular quanta coisa divina apresentam". Falava da Broadway.

— "Comparada à Broadway, a Cinelândia é um deserto" — escrevia numa das cartas, o que fez Seu Pacheco calcular a claridade que havia, pois em 1951 a Cinelândia era a Broadway do Brasil.

— Deve ser dia.

— Só pode ser! — concordava D. Guiomar, preparando o guisado. — Não foram eles que inventaram a luz, Pacheco? Luz, lá, ninguém paga. Eles inventaram a luz, a luz, pra eles, é de graça.

— Mas você já notou uma coisa? Maria da Glória fala de tudo, mas não fala dela.

— Ora, Pacheco, — desconversava a mãe da ex-moça — não fala porque não tem o que falar. Ou você quer que a menina invente que é artista de cinema? Você tem cada ideia, Pacheco! Maria da Glória ser artista.

Seu Pacheco bem que já tinha admitido esta hipótese: a filha nas telas. Não estava na terra onde se fazem filmes? Não havia nada de espantar se, um dia, na rua, um homem do cinema olhasse para a filha...

Nas vezes em que ia ao Politeama ou ao São Luís, quando era filme passado em Nova Iorque, ele perdia o enredo, a tentar descobrir, no meio dos transeuntes, a figura da filha.

— Capaz dela estar por aí — cutucava D. Guiomar, sem saber que há muito ela procurava também descobrir a filha no povo da rua, que o filme ia mostrando.

— Acho que não. — respondia da boca pra fora. Achava que não, mas o fato é que desejava vê-la ali ainda mais do que o marido. Por dentro, tinha certeza de que ali a filha nunca seria vista. A não ser que fosse cena noturna.

 Primeiro chegou a carta em que Maria da Glória contava do desejo de voltar. Depois veio outra em que ela falava que não suportava mais a saudade. A terceira já trazia a data da chegada.

No dia em que ela ia retornar, a "Vila Santa Cecília" botou roupa de festa. Seu Pacheco, fugindo ao padrão de economia em que pautava seus gestos, mandou até fazer um terno de S-120, no "London Taylor's".

O irmão mais velho, casado e pai de dois meninos, que já não morava na vila, mas num quarto-e-sala, no Rio Comprido, compareceu para a recepção.

Chegou sem os filhos. D. Guiomar intrigou-se.

— Por que não trouxe meus netos?

— Porque não.

Ela entendeu a curta resposta.

O dono do botequim emprestou o carro que, dirigido pelo filho do seu Olegário (o que vira Dr. Getúlio de pijama), conduziu a família ao cais do porto.

Seu Pacheco ficava na ponta dos pés, querendo descobrir a filha no convés. Lembrou, por um segundo, do tempo em que procurava descobri-la na multidão, nos filmes.

— Ali, perto do padre! — gritou uma voz.

— Não é ela. A não ser que tenha engordado. — contestou outra voz.

— Lá! — aponta a D. Guiomar. — Lá, junto do comandante.

— Já vi. Está de vestido branco e chapéu — afirmou o filho do Seu Olegário, homem que se vira o Dr. Getúlio na janela, por que não veria Maria da Glória no convés?

— Onde? — perguntava sem parar Seu Pacheco. — Onde, que só eu não vejo?

— Perto da escada, papai — indicou o irmão mais velho, sem o menor entusiasmo.

— Ah, já vi. É ela, sim. Está dando adeus.

E todos os braços se ergueram no aceno de boas-vindas. D. Guiomar agitava o lenço — o mesmo que usava para aparar as lágrimas que insistiam em cair. Seu Pacheco desabotoou o paletó, para que a filha visse que ele já usava gravata colorida.

Maria da Glória gritava de lá, a vila gritava daqui, e os gritos caíam no mar onde o navio deslizava lerdamente, na atracação. Desceram a escada, e Maria da Glória não chegou para os abraços.

— Está a mesma coisa.

— Como vai, minha filha?

— Glorinha, é verdade que lá tudo que a gente ganha vai pro Governo?

— Trouxe o meu gravador?

— E o rádio?

— O que foi que você trouxe?

— Quantas malas?

— Você viu o Marlon Brando?

— Como é a televisão colorida?

Maria da Glória não disse uma palavra do porto até a vila. Não havia tempo de responder às perguntas que se sucediam, num metralhar histérico e incontrolável. Ela apenas segurava a mão da mãe, num aperto tão forte que contava a verdade.

— Até menininho de dois anos fala inglês, não é?

— Tu sabe falar inglês, mesmo?

— Fala aí, pra gente ver.

— E a moda?

— Por que você veio de chapéu?

— Não é verdade que lá só se come cachorro-quente?

Quando o carro parou na entrada da vila, parecia que era um deputado quem estava chegando. O povo fez um corredor por onde ela passou sob palmas e perguntas.

— Lá faz frio?

— Você pisou na neve?

— Cinema lá também tem letreiro?

— Veio pra voltar ou veio de vez?

Ela entrou em casa no silêncio em que vinha. Sentou na poltrona da sala sem notar que o estofamento tinha sido mudado, e de repente, como se todos tivessem combinado, na casa 4 da vila só estava a família. Seu Pacheco, de terno novo, D. Guiomar — de lenço nos olhos — e os 4 irmãos: 3 com um sorriso de esperança e o mais velho — sentado de costas — descascando uma tangerina. Seu Pacheco foi quem quebrou o silêncio.

— Glorinha, você, nas suas cartas — tá tudo guardado na gaveta da sua mãe — nunca disse o que era que fazia lá. Você era o quê, menina?

Maria da Glória olhou para o irmão mais velho, que se levantou em direção à cozinha, depois passou o olhar pela mãe, que lhe sorriu a compreensão materna. Espiou os três irmãos, que se afligiam de expectativa pelos presentes e, por fim, encarou o pai.

— Eu trouxe o gravador, Julinho. E trouxe o rádio japonês, também, José. Pra você, Mário, eu trouxe 5 discos de música de juventude. Trouxe uma torradeira pra mamãe. Uma torradeira que a torrada pula, quando está pronta. E pro senhor, papai, sabe o que eu trouxe? Um relógio que marca a data.

— Como é? — perguntou o irmão com cabelo de recruta.

— Estou dizendo. Tem os ponteiros, que marcam as horas, e, num canto, um quadradinho que marca o dia. O dia que for o relógio marca. Deixa abrir as malas que eu mostro.

— Mas você não me respondeu. — insistiu Seu Pacheco. — Você lá era o quê, Glorinha?

Foi D. Guiomar quem respondeu.

— Modelo, Pacheco. Eu nunca disse, porque podia ser que você não gostasse. Glorinha era modelo.

— Não gostar por quê? É uma profissão muito decente!

E repetia: "muito decente, muito decente", já agora abrindo os presentes que a filha trouxera.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.

Minha Estante de Livros (Rachel de Queiroz e Cora Coralina)

Pedra Encantada e outras histórias, de Rachel de Queiroz


Reúne contos de Rachel de Queiroz sobre eventos do cotidiano, episódios insólitos, memórias e impressões de viagem. Selecionados por Maria Luiza de Queiroz, irmã da escritora, os textos primam pelo bom humor e estilo cativante, marcas registradas de Raquel. Reeditada como parte do projeto de comemoração do centenário de nascimento da autora, comemorado em 2010.

Este volume oferece ao público juvenil uma criteriosa seleção de crônicas escritas por uma das maiores autoras brasileiras, Rachel de Queiroz. Através da leitura dessas histórias, o jovem leitor poderá entrar em contato com uma escritora fundamental, assim como aquele mais maduro redescobrirá o sabor de um clássico da nossa literatura. Esta coletânea reúne narrativas entre as melhores já publicadas, nas quais se encontra uma diversificação de temas, como: memórias, episódios vividos no Rio de Janeiro, registros do cotidiano, histórias insólitas, a morte, impressões de viagem, o sertão e o sertanejo, questões humanas. Tudo isto contado com humor em uma linguagem coloquial. Mas aqui também está presente o estilo despojado e destemido da autora de O Quinze e Memorial de Maria Moura.

Pedra encantada e outras histórias apresenta ao público uma seleta de narrativas fantásticas, crônicas egressas das páginas dos jornais, mas que são, no entanto, merecedoras da permanência entre o que há de melhor no patrimônio literário brasileiro.

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Estórias da Velha Casa da Ponte, de Cora Coralina

Escrito com a insuperável simplicidade e leveza de estilo de Cora Coralina, Estórias da Casa Velha da Ponte traça um retrato fiel e pitoresco da cidade de Goiás, no final do século XIX e início do XX, com as suas histórias domésticas, o registro de velhas tradições, as prostitutas segregadas, casos de assombração e assombramento.

Em 1985, seu primeiro livro de contos, Estórias da casa velha da ponte, é publicado, postumamente. Compõe-se de dezoito peças em escrita leve e bem humorada. São casos folclóricos alguns, mas em todos se sobressaem o cotidiano, o absurdo da vida e ensinamentos.

Vem de dentro um cheiro familiar de jasmins, resedã e calda grossa – doce de figo ou caju. Dispõe de uma linguagem despojada, bem aprumada e traz uma ressalva, cujo título é “Nada Novo...”, alertando o leitor sobre a possibilidade de encontrar mesmices já lidas, pois se trata de histórias diversas de cunho popular, recriadas por outros autores goianos, mas acrescenta que cada escritor tem seu estilo e recursos próprios, mostrando-se consciente da natureza do gênero e senso crítico em relação a possíveis comentários.

Cora Coralina conhece como ninguém histórias de sua gente e se insere no grupo de narradores clássicos que sem sair de seu país conhece suas histórias e tradições. Mesmo tendo vivido várias décadas longe da terra natal ela não consegue desvencilhar-se da tradição familiar de contadores de histórias e assume a tarefa de narrar à história de sua gente, dos reinos de Goiás, “antes que o tempo passe tudo a raso” . A partir de então, passa a cantar e contar notícias suas e dos outros

Os contos são escritos com linguagem simples e, ao mesmo tempo, complicada, já que Cora usa diversas expressões e palavras regionais o que faz com que o leitor tenha que recorrer ao dicionário para saber o significado de muitas delas.

Um tema recorrente nos contos deste livro é a gravidez indesejada que causava tanta vergonha às famílias mais puritanas, muito comum à época., porém a autora trata deste assunto de forma bastante humorada.
 
Fontes:
Amazon
Editora José Olympio

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Versejando 86

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 36 –

Manhãzinha ainda e não mais do que de repente ele chegou agitando as terras, os campos, as herdades. Com a sua cantoria inconfundível animou o ambiente dos beija-flores, do joão-de-barro, dos sabiazinhos e outros da linhagem. Assobiou, zuniu tarde a fora vaticinando mudanças na atmosfera. E assim anoiteceu.

Aos poucos a noite silenciou. O viandeiro do tempo seguiu rumos. Precursores de uma chuvinha, os velhos ventos viageiros seguiram a senda dos insondáveis caminhos. Os ponteiros do relógio grande já se preparavam para dar as doze badaladas da meia noite... quando ela chegou!

Veio mansinha, sem alarde, quase na surdina, como acontece com tantas coisas boas. E o bulício das aguinhas nos telhados avançou madrugada a dentro, embalando os sonhos dos mais dormidores, sem incomodar os sonâmbulos.

Chuvinhas noturnas são sonatas que acalentam as almas na nebulosa do sono e dos sonhos. Quisera ser bom dormidor para alcançar alvoreceres no colo das notas musicais do chuvisqueiro que se vai quando surgem os primeiros raios do sol.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Rachel de Queiroz (Amigos)

SIM, amigo é coisa muito séria. Acho que a gente pode viver sem emprego, sem dinheiro, sem saúde e até sem amor, mas sem amigos, nunca. Pois o amigo é capaz inclusive de suprir discretamente essas faltas e lhe conseguir trabalho, lhe emprestar dinheiro, lhe tratar na doença. Só não pode se envolver em assunto de amor, porque aí deixa de ser amigo; e a maior tolice a que se arrisca a incorrer alguém é misturar amigo com amor.

Amizade e amor são quantidades paralelas na vida de cada um: se conhecem, até se estimam, mas nunca se encontram ou se confundem. Aliás não estou dizendo novidade nenhuma, todo mundo sabe que namoro, noivado, casamento, amores são relações essencialmente antípodas da amizade. Quer pela sua impermanência, ou, quando são permanentes, pela sua natureza tumultuária, absorvente, egoísta, as relações de amor têm que ter categoria à parte. Transforme em amante o seu amigo ou amiga, e você perde o amigo e terá um péssimo amante, que sabe de todos os seus defeitos, lhe conhece do tempo em que você não se enfeitava para ele, não lhe escondia as suas falhas do corpo e da alma, e que, portanto, sabe de todos os seus pontos fracos. Fica impossível.

A primeira lei da boa amizade creio que é ter poucos amigos. Muitos camaradas, colegas, conhecidos cordiais, mas amigos poucos. E, tendo poucos, poder e saber tratá-los. Jamais criar tempo de rivalidade entre os amigos: cada um há de ter a sua área específica, a sua zona própria de influência.

Não misturar os amigos uns com os outros. Não vê que cada amigo, por ser o único no seu território, não precisa sequer conhecer os donos dos outros territórios.

É que, sendo a nossa alma tão variada nas suas exigências, precisamos de amigos de acordo com os diferentes ângulos do nosso coração. O amigo da comunicação intelectual não pode ser o mesmo amigo da confidência íntima, o velho companheiro de infância não tem nada a ver com o precioso camarada adquirido nos anos da maturidade.

E há outras razões práticas para não misturar os amigos: eles podem se coligar contra a gente, ou se tornar amigos entre si, por conta própria, nos excluindo. Ou também podem se chatear uns com os outros, porque os compartimentos espirituais deles nem sempre correspondem aos nossos. Se você adora fulano porque toca em suas cordas nostálgicas contando-lhe lembranças de mocidade passadas na barranca de um rio em Mato Grosso, o seu amigo intelectual talvez não tolere regionalismo e por isso desdenhe intensamente as barrancas de Mato Grosso. Assim com o futebol, os debates sobre religião, as intrigas políticas, os negócios, o gosto de recordar  os sambas de Noel Rosa. Insisto, mantenha com rigor cada amigo no seu compartimento.

Axioma absoluto em assunto de amizade: amigo é insubstituível. O que um lhe deu, jamais outro lhe poderá dar igual. Pode vir um amigo novo para preencher a área vazia deixada pelo amigo que se foi por morte ou briga. Mas só ocupará mesmo aquele espaço físico. E há vezes em que nem isso é possível: e o melhor será fechar aquele nicho do coração, dada a dificuldade de encontrar outro ser vivo que satisfaça ante nós as especificações do ausente. Ai de mim, bem o sei. Minha amiga de infância que morreu, deixou no meu peito esse santuário vazio.

Respeite os seus amigos. Isso é essencial. Não procure influir neles, governá-los ou corrigi-los. Aceite-os como são. O lindo da amizade é a gente saber que é querida a despeito de todos os nossos defeitos. E nisso está outra superioridade da amizade sobre o amor: a amizade conhece as nossas falhas e as tolera, e até mesmo as encara com condescendência e afeto. Já o amor é só de extremos e, ou se entrincheira na intolerância, ou se anula na cegueira total. Amigo entende, aguenta, perdoa, “Amigo é pra essas coisas”, como diz aquela cantiga tão bonita.

Se você não é capaz de ter amigos, você é um erro da natureza, você é como o unicórnio, o animal de que se fala mas que não existe. Porque até os bichos têm amigos; e dizem que, depois da morte, no outro mundo, as almas mantêm sublimadas as amizades cá de baixo, naquela quintessência de excelências que só o céu pode dar.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 13

já fui coisa
escrita na lousa
hoje sem musa
apenas meu nome
escrito na blusa
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o mestre gira o globo
balança a cabeça e diz

o mundo é isso e assim

livros alunos aparelhos
somem pelas janelas

nuvem de pó de giz
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você para
a fim de ver
o que te espera

só uma nuvem
te separa
das estrelas
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ana vê alice
como se nada visse
como se nada ali estivesse
como se ana não existisse

vendo ana
alice descobre a análise
ana vale-se
da análise de alice
faz-se Ana Alice
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tão longe eu lhe disse até logo
um pouco de tudo passou-se outra vez
e foi uma vez toda feita de jogos
aquela outra vez que não soube ser vez
pois voltou e voltou e voltou
sem saber que de duas uma
nunca são três
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carta ao acaso

a carta do baralho
grande gilete
corta sem barulho
o olho do valete
o rei a fio de espada
a água e a farinha
uma só passada
a espada na rainha
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soubesse que era assim
não tinha nascido
e nunca teria sabido

ninguém nasce sabendo
até que eu sou meio esquecido
mas disso eu sempre me lembro
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meus amigos
quando me dão a mão
sempre deixam
outra coisa

presença
olhar
lembrança calor

meus amigos
quando me dão
deixam na minha
a sua mão
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nascemos em poemas diversos
destino quis que a gente se achasse
na mesma estrofe e na mesma classe
no mesmo verso e na mesma frase

rima à primeira vista nos vimos
trocamos nossos sinônimos
olhares não mais anônimos

nesta altura da leitura
nas mesmas pistas
mistas a minha a tua a nossa linha
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acordei bemol
tudo estava sustenido

sol fazia
só não fazia sentido

Fonte:
Paulo Leminski. caprichos & relaxos. Publicado em 1983.

Hans Christian Andersen (O pé do cardo)


Diante de um rico castelo senhorial estendia-se um belo jardim, bem tratado, cheio de árvores e de flores raras. As pessoas que iam visitar o proprietário exprimiam a sua admiração diante daqueles espécimes trazidos de países longínquos, e daqueles canteiros dispostos com tanta arte; e via-se facilmente que esses cumprimentos não eram simples fórmulas de polidez. As pessoas dos arredores, habitantes dos burgos e das aldeias vizinhas, iam aos domingos pedir permissão para passear naquelas magníficas alamedas. Quando as crianças das escolas se portavam bem, levavam-nas lá para lhes recompensar a aplicação.

Junto ao jardim, mas do lado de fora, ao pé da sebe que o cercava, havia um grande e vigoroso pé de cardo; sua raiz vivaz estendia rebentos para todos os lados, e ele sozinho formava uma moita. Ninguém, entretanto, lhe dava a menor atenção, a não ser o velho burrinho que arrastava o carrinho da leiteira. Ela costumava amarrá-lo às vezes perto da moita, e o animal esticava o pescoço para o cardo o mais que podia, dizendo-lhe:

- Que lindo estás! Mesmo a ponto de ser trincado!

Mas o cabresto era muito curto, e o burrico não podia chegar até lá.

Um dia reuniu-se no castelo numerosa sociedade. Eram pessoas finas, a maior parte provinda da capital; e entre elas havia muitas moças lindas.

Uma, mais linda de todas veio de longe. Nasceu na Escócia, descende de alta nobreza e possuía vastos domínios. Um rico partido. E os moços dizem, e as mães dos moços dizem também:

- Feliz do que for seu noivo!

Toda aquela mocidade se lança aos jogos sobre os gramados. Depois os grupos dos países no Norte, cada moça colhe uma flor e coloca-a na botoeira de um dos moços. A estrangeira leva muito tempo para escolher a sua flor: parece que não encontra nenhuma do seu gosto. Mas eis que seu olhar cai sobre a sebe, além da qual está a moita de cardo, com suas flores vermelhas e azuis.

Sorri e pede ao filho da casa que vá colher uma daquelas flores para ela.

- É a flor do meu país - explica a moça. - Figura nas armas da Escócia. Quer ir buscá-la para mim?

Apressa-se o moço em ir colher a mais bela - e não se viu quite sem se picar nos espinhos. A jovem escocesa põe-lhe na botoeira a flor vulgar, e ele se sente particularmente lisonjeado. Todos os outros moços teriam de boa vontade trocado suas flores raras por aquela, oferecida pela mão da bela estrangeira.

Se isso enchia de orgulho o filho da casa, que dizer então do cardo? Já não era só alegria o que sentia; era uma satisfação, um bem, como quando os raios do sol, depois de uma boa orvalhada, vinham reaquecê-lo.

- Sou pois alguma coisa bem mais importante do que pareço! - dizia consigo. - Sempre o desconfiei mesmo. A bem dizer, eu devia estar lá dentro da sebe e não cá fora. Mas é que neste mundo a gente nem sempre se acha no seu verdadeiro lugar. Pois sim: mas ao menos lá dentro está uma das muitas filhas, que transpôs a cerca, e até se pavoneia na botoeira de um belo cavalheiro.

E ele contava esse caso a todos os brotos que se desenvolveram sobre seu trono fértil, a todos os gominhos que lhe surgiram nos galhos.

Poucos dias depois soube, não pelas palavras dos que passavam, não pelos gorjeios dos passarinhos, mas por esses mil ecos que espalham por toda a parte o que se diz no interior dos apartamentos, quando deixamos abertas as janelas  ele soube, dizíamos, que o moço que fora adornado com a flor do cardo pela bela escocesa, obtivera também seu coração.

- E eu é que os uni! Eu é que fiz esse casamento!- gritava o cardo.

E agora, mais do que nunca, contava o memorável acontecimento a todas as flores novas que lhe cobriam os ramos.

- Agora certamente me transplantarão para o jardim - dizia ele ainda. - Bem que o mereci! Quem sabe até se não me vão meter em um vaso precioso, onde minhas raízes terão uma terra bem adubada...Parece que é essa a maior honra a que pode aspirar uma planta.

No dia seguinte estava já tão convencido de que as provas de distinção lhe choveriam em cima, que garantiu à menor de suas florzinhas que não tardariam em recolhê-las a todas e dispô-las em um vaso de faiança, e que ela própria havia de ornar a botoeira de um príncipe - a mais rara fortuna com que poderia sonhar uma flor de cardo.

Mas... essas altas esperanças não se realizaram; vaso de faiança... pois sim! Nem sequer de terracota. Também não saiu mais nenhuma flor daquela moita para florir botoeira alguma. Continuaram as flores a respirar o ar e a luz, a beber os raios do sol e as gotas de orvalho. E não receberam outra visita senão a das abelhas e dos besouros que lhes sugavam o mel.

- Ladrões! Salteadores! - gritava o cardo, indignado - Ah! Se eu pudesse espetá-los a todos com meus espinhos! Como ousam vocês roubar assim o perfume destas flores, destinadas a ornar o botoeira dos namorados?

Mas por mais que falasse, não se modificava a situação. As flores acabaram por curvar a cabecinha. Empalideceram, fanaram-se; mas iam sempre brotando outras novas. E a cada flor nova que nascia dizia o pai, com uma confiança inalterável:

- Chegas mesmo como o bacalhau na quaresma. Não podias vir mais a propósito! Espero a todo o instante passar para o outro lado da sebe.

Algumas margaridas inocentes e uma humilde bonina que ficavam ali perto ouviram essas palavras e acreditavam  nelas, com a maior candura. E daí em diante passaram a testemunhar grande admiração ao cardo que, em troca, as desprezava profundamente.

O velho asno, mais ou menos cético por natureza, não confiava tão cegamente no que o cardo proclamava com tanta segurança. todavia, para se precaver contra qualquer eventualidade, fez novos esforços para apanhar a apreciada planta, antes que ela fosse transplantada para  lugar inacessível. Mas puxava em vão o cabresto: era curto demais, e ele não conseguia parti-lo.

De tanto pensar o cardo glorioso que figura nas armas da Escócia, persuadiu-se afinal o outro de que era da sua descendência; que tinha seus antepassados naquela família ilustre, e que provinha de algum rebento vindo da Escócia em tempos remotos. Eram pensamentos esses bastante exagerados, mas as grandes ideias iam bem em um cardo tão grande que formava por si só uma moita.

A vizinha urtiga aprovava-o inteiramente:

- Muitas pessoas são de alto nascimento sem o saber; é coisa que se vê todo o dia. Pois eu, por exemplo, estou convencida de que não sou uma planta vulgar. Não forneço a mais fina musselina, a que serve para vestir as rainhas?

Passou o verão, passou depois o outono. As árvores despiram-se de sua folhagem. As flores vão tomando tons mais carregados, e já tem menos perfume. Enquanto isso o jardineiro, que recolhe as hastes, canta com toda a força dos pulmões:

Rio acima, rio abaixo,
Desce e sobe na corrente;
Assim subindo e descendo
Vai indo a vida da gente!


Os pinheirinhos novos do mato voltam a pensar no Natal, naquele belo dia em que se veem enfeitados de laços de fita, de bombos e velinhas de cor. Aspiram a esse destino brilhante sabendo, embora que o pagarão com a vida. E o cardo dizia:

- Como! Ainda estou aqui, e há oito dias que se celebrou o casamento! Contudo, fui eu que o fiz, esse casamento! E parece que ninguém lá se lembra de mim... é como se eu nem existisse! Deixam-me aqui para brotar de novo. Mas eu sou muito orgulho; não dou um só passo para aqueles ingratos! É verdade que não posso nem mexer-me... Só o que me resta é ter paciência, paciência ainda.

Passaram-se algumas semanas. Lá estava o cardo, com a sua única e derradeira flor; era uma flor grande e viçosa: parecia até uma flor de alcachofra. Brotara junto da raiz, e era uma flor robusta. Mas começou o vento frio a castigá-la; desapareceram as cores tão vivas. E elas ficou feito um sol prateado.

Um dia, o casal novo - pois eram agora marido e mulher - foi passear no jardim. Aproximaram-se os dois da sebe, e a bela escocesa olhou por cima, para o campo, e disse:

- Olha! Lá está ainda aquele cardo. Que pena! Não tem mais flores!

- Sim, sim: lá está ainda uma . ou pelo menos o espectro dela - disse o moço, mostrando o cálice já ressequido e esbranquiçado.

- Pois olha, é muito bonita assim – replicou. - Vamos apanhá-la, para mandar reproduzi-la no quadro do nosso retrato?

E o moço teve de ir colher a flor fanada. Esta não deixou de picá-lo fortemente; não a chamara de espectro? Mas ele não se incomodou por isso: sua jovem esposa estava contente!

Ela levou a flor para o salão. Lá estava uma tela com o retrato dos dois esposos: o marido tinha uma flor de cardo na botoeira. Falaram muito naquela flor e também na outra, a última , que brilhava como prata e que ia ser esculpida na moldura.

O ar levou longe tudo quanto disseram.

- Eis o que é a vida! - disse o cardo. - Minha filha mais velha achou lugar em um botoeira, e meu último rebento foi posto em um quadro dourado. E eu - onde me meterão?

O burro estava amarrado ali perto, e deitou-lhe um olhar de esguelha, dizendo:

- Se queres ficar bem acomodado, muito bem acomodado mesmo, ao abrigo do frio, vem para dentro do meu estômago, minha joia! Aproxima-te, que eu não te alcanço: esta maldita soga (corda de esparto) é muito curta.

Nada respondeu o cardo a essas grosseiras, propostas. Foi ficando cada vez mais sonhador, e, de tanto virar e revirar seus pensamentos na cabeça, lá por volta do Natal chegou a esta nobre conclusão - muito acima, certamente, da sua baixa origem:

- Ora, contanto que meus filhos se achem bem colocados, eu, seu pai, posso resignar-me a ficar fora da sebe, neste lugar mesmo onde nasci!

– É um pensamento que te honra muito, sem dúvida. - disse o último raio de sol. - E não ficarás esquecido, acredita!

- Alguém vai por-me em um vaso? Ou irei para algum quadro?

- Nem uma coisa nem outra - segredou o raio de sol, antes de se eclipsar. - Vais ser posto em um conto!

Fonte:
Contos da Tita

terça-feira, 9 de novembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 15: Colbert Rangel Coelho


 

Artur da Távola (Entes e Duendes dos meus Cinemas)

Dentre tantas alegrias a vida reservou-me uma dor: ver a demolição de muitos cinemas: Rian, Ipanema, Pirajá, Astória, Azteca, aqueles dois da Praia do Flamengo, Alvorada, Ritz, Metro Copacabana, Metro Tijuca. Tantos... Demo-lição. Será o ato de demolir uma lição do demo, o (im) popular demônio? Uma demolição? Talvez. O demônio agita-se oculto no que tomba para ser trocado por algo de menor sentido. E cinema que acaba é alegria que roubada.

Em cada cinema que morreu eu vi, no último dia da demo-lição os olhos enormes de Maureen O’Hara a chorar saudades da beleza; a sedução de Greta Garbo; os ideais de Glauber, Cacá Diégues e Davi Neves; a cultura cinematográfica de Walter Lima Júnior; o mau humor do Arnaldo Jabor: Sinto a perda da pele e dos olhos das faces e das costas de Ingrid Bergman e ouço o grito da garotada quando o mocinho, enfim, superou a maldade do bandido. Sim, os fantasmas das atrizes e as luzes dos ideais dos cineastas perduram na atmosfera sofrida de um cinema que tomba comido pela voragem da especulação imobiliária ou substituído por salas pequeninas, telas apertadas, cheiro de desinfetante e o irritante barulho dos sacos de pipoca que a má educação contemporânea timbra em mastigar durante a projeção...

Pode ser que antes de cair a última pedra de um cinema que tomba, a alma dos celulóides dele escape de madrugada e possa haver um grande e generoso baile com quem habitou suas telas ou poltronas com emoção. Eu posso dançar a valsa com Ingrid Bergman e roçar, deslumbrado, os dedos em suas costas largas e sedutoras. Você poderá namorar à vontade Gary Grant, ó jovem cinqUentona de meus tempos, ou consolar o Marlon Brando pela perda machucante da filha. Quanta gente que ama cinema poderá se ver, rever, trocar ideias, o Paulo Perdigão com a Paulette Goddard. O Fernando Ferreira com o Frank Capra a conversar. Humberto Mauro a discorrer, generoso, sobre o que foi sentar as bases do cinema no Brasil. Glauber Rocha a proclamar sua última tese sobre as afinidades entre o céu e o inferno como síntese verdadeira de uma dualidade falsa que sempre atormentou a humanidade. Orizon Muniz poderá enfim namorar em paz a Ruth Roman. Arlindo Coutinho rever películas com a Alberta Hunter, João Luiz Albuquerque mudar o fim de "Casablanca", vale dizer, tudo o que sentimos de bom e melhor pelo cinema e seus personagens de sonho e realidade poderemos encontrar no grande baile noturno das últimas horas de cada um, onde todos juntos dançaremos ao som do La Valse de Ravel.

Só esta doce alegria imaginária compensa a dor de ver a cidade grande engolir os cinemas de meu amor e da nossa nostalgia.

Fonte:
Artur da Távola (site desativado).

Augusto Frederico Schmidt (Poemas Escolhidos) 2

A CHUVA NOS CABELOS

A chuva molhava os seus cabelos,
A chuva descia sobre os seus cabelos
Voluptuosamente.
A chuva chorava sobre os seus cabelos,
Macios,
A chuva penetrava nos seus cabelos,
Profundamente,
Até as raízes!

Ela era uma árvore,
Uma árvore molhada
E coberta de flores.
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ELEGIA

Entrou na sala e ficou em pé tocando piano,
Sua mão pequena batia no teclado
duramente.
Lembro que estava de vermelho
Lembro que tinha nas tranças finas uma fita preta
Lembro que era de tarde
E entrava pelas janelas abertas o vento do
mar.
Não lembro se tinha flores perto dela
Mas nascia um perfume do seu corpo.

Que amor o meu!
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LEMBRANÇA

Todos os que estão neste cinema agora,
Neste cinema alegre,
Um dia hão de morrer também:
Nos cabides as roupas dos mortos
penderão tristemente.

Os olhos de todos os que assistem
as fitas agora,
Se fecharão um dia trágica e dolorosamente.
E todos os homens medíocres
se elevarão no mistério doloroso da morte.
Todos um dia partirão —
mesmo os que têm mais apego às coisas do mundo:
Os abastados e risonhos
Os estáveis na vida
Os namorados felizes
As crianças que procuram compreender —
Todos hão de derramar a última lágrima.

No entanto parece que os frequentadores deste cinema
Estão perfeitamente deslembrados de que terão de morrer
— Porque em toda a sala escura
há um grande ritmo de esquecimento e equilíbrio.
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PEQUENA IGREJA

Eu queria louvar-te, pequena e humilde igreja
Desta cidadezinha que está morrendo.
Eu queria agradecer-te a compreensão que me deste
Das coisas humildes e eternas.

Eu queria saber cantar a tua tranquilidade
E a tua pura beleza,
Ó igreja da roça, adormecida diante do jardim cheio de rosas!
Ó pequena casa de Jesus Cristo,
irmã das outras casas solenes e graves.
Escondida e modesta, com as tuas torres e os teus sinos
Que sabem encher o ar matinal com um tão doce apelo,
E no instante vesperal lembram que é hora de dormir para a
[grande família dos passarinhos inquietos,
Dos passarinhos que tumultuam o pobre jardim cheio de flores!
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SONETO A CAMÕES

As tuas mágoas de amor, teus sentimentos
Diante das leis que regem nossas vidas,
Desses fados que dão e logo tiram,
E a que estamos escravos e sujeitos.

As tuas dores de amar sem ser amado,
De procurar um bem que não se alcança,
E no canto clamar desesperado
Pelo que nunca vem quando se busca.

Poeta de enamoradas impossíveis
E que num negro amor desalteraste
Essa sede de amar dura e terrível,

As tuas mágoas de amor, tuas fundas queixas,
Como uma fonte ficarão chorando
Dentro da língua que tornaste eterna.
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VAZIO

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.

Fontes:
A poesia fluminense no século XX. RJ/DF: FBN/Imago/UMC, 1998, RJ/DF .
Nova Antologia Poética. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964
http://www.revista.agulha.nom.br/

Mario de Andrade (Será o Benedito!)

A primeira vez que me encontrei com Benedito, foi no dia mesmo da minha chegada na Fazenda Larga, que tirava o nome das suas enormes pastagens. O negrinho era quase só pernas, nos seus treze anos de carreiras livres pelo campo, e enquanto eu conversava com os campeiros, ficara ali, de lado, imóvel, me olhando com admiração. Achando graça nele, de repente o encarei fixamente, voltando-me para o lado em que ele se guardava do excesso de minha presença. Isso, Benedito estremeceu, ainda quis me olhar, mas não pôde aguentar a comoção. Mistura de malícia e de entusiasmo no olhar, ainda levou a mão à boca, na esperança talvez de esconder as palavras que lhe escapavam sem querer:

— O hôme da cidade, chi!...

Deu uma risada quase histérica, estalada insopitavelmente dos seus sonhos insatisfeitos, desatou a correr pelo caminho, macaco-aranha, num mexe-mexe aflito de pernas, seis, oito pernas, nem sei quantas, até desaparecer por detrás das mangueiras grossas do pomar.

***
Nos primeiros dias Benedito fugiu de mim. Só lá pelas horas da tarde, quando eu me deixava ficar na varanda da casa-grande, gozando essa tristeza sem motivo das nossas tardes paulistas, o negrinho trepava na cerca do mangueirão que defrontava o terraço, uns trinta passos além, e ficava, só pernas, me olhando sempre, decorando os meus gestos, às vezes sorrindo para mim. Uma feita, em que eu me esforçava por prender a rédea do meu cavalo numa das argolas do mangueirão com o laço tradicional, o negrinho saiu não sei de onde, me olhou nas minhas ignorâncias de praceano, e não se conteve:

— Mas será o Benedito! Não é assim, moço!

Pegou na rédea e deu o laço com uma presteza serelepe. Depois me olhou irônico e superior. Pedi para ele me ensinar o laço, fabriquei um desajeitamento muito grande, e assim principiou uma camaradagem que durou meu mês de férias.

***
Pouco aprendi com o Benedito, embora ele fosse muito sabido das coisas rurais. O que guardei mais dele foi essa curiosa exclamação, "Será o Benedito!", com que ele arrematava todas as suas surpresas diante do que eu lhe contava da cidade. Porque o negrinho não me deixava aprender com ele, ele é que aprendia comigo todas as coisas da cidade, a cidade que era a única obsessão da sua vida. Tamanho entusiasmo, tamanho ardor ele punha em devorar meus contos, que às vezes eu me surpreendia exagerando um bocado, para não dizer que mentindo. Então eu me envergonhava de mim, voltava às mais perfeitas realidades, e metia a boca na cidade, mostrava o quanto ela era ruim e devorava os homens. "Qual, Benedito, a cidade não presta, não. E depois tem a tuberculose que..."

— O que é isso?...

- É uma doença, Benedito, uma doença horrível, que vai comendo o peito da gente por dentro, a gente não pode mais respirar e morre em três tempos.

— Será o Benedito...

E ele recuava um pouco, talvez imaginando que eu fosse a própria tuberculose que o ia matar. Mas logo se esquecia da tuberculose, só alguns minutos de mutismo e melancolia, e voltava a perguntar coisas sobre os arranha-céus, os "chauffeurs" (queria ser "chauffeur"...), os cantores de rádio (queria ser cantor de rádio...), e o presidente da República (não sei se queria ser presidente da República). Em troca disso, Benedito me mostrava os dentes do seu riso extasiado, uns dentes escandalosos, grandes e perfeitos, onde as violentas nuvens de setembro se refletiam, numa brancura sem par.

Nas vésperas de minha partida, Benedito veio numa corrida e me pôs nas mãos um chumaço de papéis velhos. Eram cartões postais usados, recortes de jornais, tudo fotografias de São Paulo e do Rio, que ele colecionava. Pela sujeira e amassado em que estavam, era fácil perceber que aquelas imagens eram a única Bíblia, a exclusiva cartilha do negrinho. Então ele me pediu que o levasse comigo para a enorme cidade. Lembrei-lhe os pais, não se amolou; lembrei-lhe as brincadeiras livres da roça, não se amolou; lembrei-lhe a tuberculose, ficou muito sério. Ele que reparasse, era forte mas magrinho e a tuberculose se metia principalmente com os meninos magrinhos. Ele precisava ficar no campo, que assim a tuberculose não o mataria. Benedito pensou, pensou. Murmurou muito baixinho:

— Morrer não quero, não sinhô... Eu fico.

E seus olhos enevoados numa profunda melancolia se estenderam pelo plano aberto dos pastos, foram dizer um adeus à cidade invisível, lá longe, com seus "chauffeurs", seus cantores de rádio, e o presidente da República. Desistiu da cidade e eu parti. Uns quinze dias depois, na obrigatória carta de resposta à minha obrigatória carta de agradecimentos, o dono da fazenda me contava que Benedito tinha morrido de um coice de burro bravo que o pegara pela nuca. Não pude me conter: "Mas será o Benedito!...”. E é o remorso comovido que me faz celebrá-lo aqui.

Fonte:
ANDRADE, Mário de. Será o Benedito! SP: Ed. da PUC-SP, 1992.

Minha Estante de Livros (Tristão e Isolda)


Tristão e Isolda é a versão escrita de uma lenda celta cujas origens remontam ao século IX. Conta a história de um jovem casal que, após encontrar-se de forma inusitada, apaixona-se, mas se depara com diversos obstáculos políticos e sociais para permanecer juntos.

Os muitos estudos históricos discordam das origens reais de ‘Tristão e Isolda’, tornando impossível identificar uma origem em comum para a lenda. Porém, há ecos de sua narrativa em diversas culturas. As origens da lenda remetem ao início do século XII, e envolvem muitas fontes e versões, sendo as mais antigas do folclore celta do norte da França. Dois poetas da época, Thomas of Britain e Béroul detêm os primeiros textos mais conhecidos e, apesar de pequenas diferenças, ambos possuem a essência da história.

Versões

Na versão de Béroul, Tristão vai à Irlanda em busca de Isolda para que ela se case com seu tio Marke. Porém, no caminho de volta, os dois bebem uma poção mágica que faz com que se apaixonem perdidamente. Nesta versão, Tristão não é um nobre, apesar de ser um valente guerreiro.

Existem apenas 8 fragmentos da versão de Thomas of Britain, e que se referem à parte final da história. Historiadores acreditam que este trecho é somente um sexto da versão original. A história de Thomas é considerada pelos historiadores a primeira versão ‘nobre’ da lenda.

Na versão irlandesa, seus nomes são Grainne e Diarmat. No texto ‘A perseguição de Diarmat e Grainne’, o velho Rei irlandês Fionn mac Cumhail deseja se casar com a jovem Grainne, porém, na cerimônia de união, o guerreiro Diarmat se apaixona por ela. Grainne dá uma poção de sono aos presentes e foge com Diarmat. Há uma lenda persa do século XI, chamada ‘Vis and Ramon’ com estrutura similar.

Esta forma arquetípica de amor, honra e traição dentro da nobreza possui versões e pergaminhos em diversas línguas. A história de Tristão é popular na Itália, onde o guerreiro protagoniza diversas aventuras. Na Espanha, no século XIV, Arcipreste de Hita escreveu a sua versão da história de ‘Tristão e Isolda’. Na biblioteca nacional de Viena, há um fragmento de 130 linhas de uma versão em holandês da história de ‘Tristão e Isolda’ de Thomas of Britain.

No início a história de Tristão e Isolda não tinha relação alguma com a do Rei Artur. Porém, a partir do século XIII, este conto passa a se confundir com a literatura arturiana, que mostra o Rei Artur e o triângulo amoroso entre sua amada, Guinevere, e seu maior guerreiro, Lancelot. Em um texto chamado ‘vasta prosa de Tristão’, ele é um dos reis presentes à távola redonda, e participa da busca pelo santo Graal.

Influências

‘Romeu e Julieta’, a famosa obra de William Shakespeare, dramaturgo do século XVI, tem as suas origens em poemas como o de Arthur Brooke, de 1562, que, por sua vez, se inspirou em lendas e contos como o de ‘Tristão e Isolda’.

Entre 1857 e 1859, Richard Wagner, um dos maiores compositores alemães de todos os tempos, realizador entre outras da famosa ‘Cavalgada das Valquírias’, compõe ‘Tristão e Isolda’, ópera em 3 atos baseada na lenda Celta.

Em 1909, ‘Tristão e Isolda’ chega pela primeira vez ao cinema, no filme francês mudo ‘Tristan et Yseult’. Em 1948, Jean Delannoy dirige o filme francês "O Eterno Retorno", com Madeleine Sologne e Jean Marais nos papéis principais. Apesar de seguir as versões francesas, o filme foi adaptado aos tempos modernos, daí destoar algo do mito, uma vez que este está associado à cavalaria ou mesmo ao medievalismo, a despeito de ser um mito celta. Em 2006, mais de 100 anos depois das primeiras versões de ‘Tristão e Isolda’ serem registradas, chega aos cinemas a versão produzida por Ridley Scott e estrelada por James Franco. Este último é um filme rico historicamente, pois podemos averiguar no contexto entre invasões e heroicas batalhas a história de muitos povos e o surgimento de uma língua. Na história da língua inglesa encontramos muitas referências aos povos e locais citados no romance e que são bem nítidos e definidos no filme, direcionando-nos a uma visão o mais próxima possível do que possa ter acontecido durante a dita Idade das Trevas ou seja, a Idade Média, com suas sangrentas batalhas por disputas de terras.

UMA LEITURA DE TRISTÃO E ISOLDA
Por Celuy Roberta Hundzinski Damasio

A obra Tristão e Isolda é originária de uma tradição oral popular. Várias são as versões que daí surgiram, as mais conhecidas são Roman de Tristan, do normando Béroul, que data de 1170 et Tristan de Thomas d’Angleterre, datada de 1175. A tradução que utilizaremos é do original intitulado Le Roman de Tristan et Iseut, escrita em 1900, par Joseph Bédier.

Esse romance entra na história da literatura no século XII, quando esta deixava de ser exclusivamente em latim, que poucos compreendiam, e começava a ser escrita nas línguas ditas "vulgares". Nesse período tivemos um tipo de narração intitulada literatura cortês, caracterizada, entre outros, pelo "amor cortês" que, apesar da oposição, não deixava de possuir alguns traços do "amor dionisíaco".

Amor cortês foi um conceito europeu medieval de atitudes, mitos e etiqueta para enaltecer o amor, e que gerou vários gêneros de literatura medieval, incluindo o romance. Ele surgiu nas cortes ducais e principescas das regiões onde hoje se situa a França meridional, em fins do século XI. Em sua essência, o amor cortês era uma experiência contraditória entre o desejo erótico e a realização espiritual, "um amor ao mesmo tempo ilícito e moralmente elevado, passional e auto-disciplinado, humilhante e exaltante, humano e transcendente". (wikipedia)

Este tipo de amor representa a relação apaixonada, comumente, entre uma dama casada e um homem solteiro, dito "jovem" neste contexto literário. Aí, em seu ápice, este sentimento tornou-se o terreno onde todas as perfeições morais e culturais floresceram. Devido a este estilo, o amante é puro e virtuoso.

Na época, o Teocentrismo e a Igreja, que detinha o poder, tinham uma influência muito forte sobre os atos e pensamentos humanos, como podemos observar nesse livro. É mostrado como as pessoas, tanto a plebe quanto os poderosos, vêem a religião que muitas vezes, era focalizada através do ponto de vista de um "Falso Poder"; porém, outras vezes a crença era, realmente, fortíssima.

A Igreja passou, nessa época, a considerar o casamento como um sacramento equivalente à ordenação eclesiástica. Consequentemente, a separação passou a ser proibida, e o conceito de indissolubilidade do matrimônio foi adotado. Todavia, para que fosse contraído, era obrigatório o consentimento dos noivos. Assim sendo, a mulher poderia ter a liberdade de escolher quem mais lhe agradasse ou quem fosse digno de conquistá-la.

A história nos conta que um jovem, chamado Tristão, filho do rei Rivalino e Brancaflor, ficou órfão e foi servir ao Rei Marcos que, por sua vez, ficou sabendo que Tristão era seu sobrinho, somente, quando a corte precisou de um homem forte, de família nobre, para derrotar um gigante que, já há muito tempo, estava atormentando seu castelo.

Tempos passaram e Tristão encontrou uma linda mulher, chamada Isolda, para que seu tio pudesse se casar, ganhando-a, para ele, em uma luta e, como o combinado, levou-a para Cornualha. Havia uma poção mágica, que deveria ter sido dada a Isolda e seu futuro marido, todavia, foi Tristão quem, por engano, a tomou e os dois se apaixonaram. Como Isolda era esposa do rei, eles se encontravam às escondidas.

Brangia a serviçal de Isolda foi a culpada pelo ocorrido e, com a consciência pesada, criava oportunidades para que o casal adúltero pudesse se encontrar. Mesmo correndo perigo de serem pegos nas emboscadas feitas pelos homens da corte, Tristão e Isolda se amaram até a morte.

Visamos, aqui, verificar, de maneira concisa, algumas características dos personagens, e os aspectos que nos ajudam entender a estrutura e sua importância, tais como: Ordálio, amor cortês e erótico, a religião e o valor que têm, na obra, as três Isoldas que ocupam um papel fundamental no desenrolar das ações.

Personagens

Podemos observar uma mudança de personalidade em Isolda e Tristão conforme o desenrolar da narrativa.

Falaremos, primeiramente, de Tristão, que morava com seus pais em Tintagel, até que um dia, com a morte destes, foi para a Cornualha a procura de seu tio Rei Marcos. Chegando lá, não se identificou como seu sobrinho e, mesmo assim, ganhou-lhe a confiança.

Tristão possuía as características que o definem muito bem como personagem da literatura cortês: um rapaz forte, inteligente e deveras habilidoso. Era muito confiante em si mesmo e, para provar a sua lealdade ao soberano e ao seu povo, usava desta qualidade (ser forte) para mostrar que era honesto e que jamais seria desleal.

Sendo muito esperto, disse que traiu Marcos porque estava sob efeito da poção. Ele pode ser considerado como um homem "normal", ou seja, caracterizado como alguém que ama e um herói que luta. Entretanto, passou de fiel à infiel, coisa que era inadmissível para ele, no início da narração. A virtude, ocupando lugar de destaque nesse estilo literário, não permite que os protagonistas assumam sua culpa, direcionando-a sempre para fora de si. Enquanto herói, Tristão jamais foi traidor, tornando-se, desta forma, um mito adorado por todos.

É possível fazer uma analogia com o nome de Tristão, que seria o aumentativo de Tristeza, para assim designar a grandeza de seu sofrimento, na luta entre o amor cortês e dionisíaco, durante todo o romance.

Outra personagem central é Isolda, que morava na Irlanda, juntamente com seus pais, o Rei Gormond e Isolda (a mãe). Igualmente denotando particularidades do gênero literário cortês, era uma moça muito bonita, de cabelos loiros e, por isso, muito cobiçada por homens de todas as idades e posições sociais. Foi, juntamente com Tristão, para Cornualha, porque estava prometida a se casar com o Rei Marcos. Por causa de sua acompanhante, Brangia, que a colocou em um triângulo amoroso, a personalidade de Isolda, sofreu mudanças logo no início da história, assim prosseguindo até o final, onde já estava completamente diferente.

No começo do livro, ela era ingênua, não possuía a malícia de sair-se bem de certas situações; o convívio com sua serviçal, Brangia, e com a necessidade de ludibriar seu marido, acabou por tornar-se uma mulher sagaz, inteligente e por demais esperta, livrando-se da condenação, com grande astúcia.

Passaremos ao terceiro personagem: Marcos, o Rei de Cornualha. Vivia rodeado pelos membros da sua corte e nada fazia sem a aprovação deles. Talvez, por isso, tenha passado ao leitor, a ideia de não possuir personalidade própria. Deixava-se levar, sempre, pelas opiniões dos seus aliados. Por causa das ideias alheias, foi induzido, principalmente pelos barões, a desconfiar de sua esposa e sobrinho.

Seus conselheiros eram pessoas invejosas, calculistas e queriam ver Tristão longe da amada. Armavam todas as emboscadas para que o rei pudesse ver "com que tipo de mulher ele casara" e que seu sobrinho não era tão fiel quanto ele pensava. No entanto, a valentia destes "traidores" não durava muito quando eram postos à luta, pois eram os primeiros a darem desculpas para livrarem-se da situação.

Quanto a Brangia, possuía características psicológicas marcantes, porém, o que a distinguiu dos outros foi, justamente, seu caráter ter continuado forte desde o início até o final da história.

Serviçal de Isolda, era fiel à sua senhora e nunca demonstrou ser desleal. Causadora do triângulo amoroso, desde o ocorrido, nunca mais abandonou sua patroa. Querendo compensar sua negligência, sempre fez com que Isolda matasse seu desejo encobrindo o "pecado". Uma das provas de fidelidade que Brangia deu à sua senhora, foi quando se deitou com Rei Marcos para fazer as vezes de sua esposa, sendo que ela ainda era virgem.

Assim como Brangia, temos Jorvenal que, também, foi fiel até a morte de seu senhor, Tristão. Ele nunca fez nada para que Tristão desconfiasse de sua lealdade. Por isso, sua personalidade se manteve estável durante toda a narração.

Ordálio

O Ordálio consistia a fazer o acusado passar diversas provas físicas com o objetivo de mostrar sua inocência. Isso acontecia diante da divindade tutelar da justiça que, por definição, não podia deixar o inocente sucumbir ou a injustiça triunfar.

Há quem afirme, por causa do caráter religioso e místico marcante, que era uma espécie de mandamento que a Igreja possuía para punir as pessoas que pudessem, naquela época, vir a cometer o adultério. Não obstante, sendo associado a uma violência extrema, representa, do ponto de vista teológico, um teste à bondade divina, o que é condenado claramente pela bíblia e pela Igreja Católica.

Tristão e Isolda viviam em constantes "provações e emboscadas" e, era através delas que o Rei Marcos passou a desconfiar da lealdade dois. A cada aproximação dos amantes, havia um "invejoso" que tentava mostrar a falta de Tristão, para que o tio visse, com seus próprios olhos, que estava sendo traído.

Sempre no momento em que os amantes estavam sendo emboscados, estes encontravam uma grande saída e, geralmente, eram obrigados a usar da mentira para que se livrassem dos apuros e, assim, do Ordálio.

Após a noite de núpcias, Kariado, fiel de Marcos, com inveja dos amantes e desejando o lugar de Tristão perante o soberano, começou a lhe mostrar que estava sendo enganado pela própria mulher e sobrinho. O rei pôs em prova a lealdade da esposa, simulando uma viagem, onde Isolda se traiu pedindo que ficasse protegida pelo amado.

A estratégia, entretanto, não deu resultado porque Brangia os alertara sobre o perigo que corriam, avisando-os que Kariado maquinara tudo para que ela se entregasse. Quando o esposo veio testá-la pela segunda vez, ela já estava preparada para que não deixasse que as suspeitas levantadas pelo vassalo prosseguissem, e quando ele diz: "Bela amiga – disse -, nada me é tão profundamente caro como vós, e o pensamento de que nos vamos separar, ...(p. 61). Isolda, em sua perspicácia, responde: "Em nome de Deus, ficai ou deixai-me, cativa, ir convosco"! (p. 61).

O rei achou esquisito a esposa ter mudado de ideia quanto a ficar sob a guarda de Tristão, mas, como ela sabia que estava sendo provada, prosseguiu a conversa citando-o:... Finge ser meu amigo porque matou o meu tio e lisonjeia-me para que não me vingue dele, pode no entanto ter isto por certo: todos os seus belos semblantes não me podem consolar da grande dor, da vergonha e do mal que causou a mim e a minha família. Se não fosse vosso sobrinho, há já muito tempo que o teria feito sentir a minha cólera. Queria nunca mais o ver, nunca mais lhe falar.(p. 61).

Kariado não se convenceu e pediu ao rei para experimentá-la pela terceira vez. Isolda, novamente, traiu-se, pois não queria que Tristão fosse embora. Tentou defender a ida do amante. Contudo, quando percebeu que estava, mais uma vez, sendo provada, soube persuadi-lo de que Tristão nada representava para ela.

As dúvidas de Marcos se foram. No entanto, a inveja que os homens da corte sentiam dos amantes não permitiu que os deixassem em paz. Assim, nova estratégia foi providenciada. Audret, outro vassalo, fez com que o soberano fosse testemunhar o encontro dos dois sob um grande pinheiro. Todavia, como Tristão era uma pessoa muito esperta, não se intimidou quando percebeu que estava em uma armadilha, soube sair-se sem deixar nenhuma dúvida de sua lealdade.

Foi armada uma quinta emboscada, em que colocaram farinha no chão pra que deixassem rastros. Tristão, tendo a característica cortês de jovem deveras astucioso, quase escapou, mas foi apanhado pelo seu próprio sangue. Desta vez, não houve saída e seu tio acabou presenciando o ocorrido.

O fato fez com que o casal amedrontado fugisse, desaparecendo por dois anos, quando o rei os encontrou deitados numa cabana na floresta e, ainda assim, mesmo depois de tudo, convenceu-se que não havia sido traído, pois os encontrou juntos, deitados como irmãos, com a espada de Tristão desembainhada entre os dois. Este ato significava "respeito" e, por consequência, acreditou na lealdade dos dois.

Desta forma, Isolda teve a permissão de permanecer no castelo, entretanto, Tristão teria que partir. Para que o esposo voltasse a confiar plenamente em Isolda, esta armou uma situação, onde jurou, perante o rei Arthur e a Deus, que nunca traíra seu marido. Porém, consciente de que este falso juramento seria pecaminoso, e demonstrando sua crença, usou de dúbias palavras para que não mentisse a Deus e, como sempre, saiu-se bem.

Tristão voltou a encontrar-se com Isolda, mas o rei desconfiou de sua presença e foi persuadido, pelos seus "fiéis", a colocar lanças no chão, para mais uma tentativa de emboscada. Não obstante, a astúcia de Tristão foi maior e não se deixou pegar.

Podemos dizer que a maneira como é mostrado o Ordálio, foi feita uma crítica a um dos mandamentos da lei de Deus ou, mais especificamente, ao modo como se tentava impor e conservar o sacramento da Igreja Católica; pois, como já foi dito, sua finalidade era de punir os amantes em caso de adultério e traição.

Todo o desenrolar da obra, marcado pelas tentativas de desmascaramento e pela vitória dos "pecadores" quer mostrar que a punição não vem de Deus e este "mandamento" era a amostra de um "falso poder": para os que mandavam (governavam) era mais fácil manter o poder fazendo com que as outras pessoas acreditassem que o Poderoso iria puni-los aqui mesmo, na terra. Este castigo, entre outros, era a fogueira. Uma vez que "Deus" fosse o responsável, a culpa deixava de ser humana.

Por outro lado, além de ser mostrado que existiam pessoas que se utilizavam da fé como uma simples forma de provar que era a lei de Deus que punia e não os homens, é apontado, também, que a fé que as pessoas desta época possuíam podia ser uma crença verdadeira ou, apenas, uma educação religiosa recebida dos pais.

A Religião e a Trindade das Isoldas

Observamos que a religião tem lugar de destaque, demonstrando a crença e o misticismo da época. Várias vezes é mencionado o nome de Deus ou falado claramente sobre a Igreja, santos, sinais religiosos ou, ainda, há muitas alusões a termos ou fatos bíblicos.

Disso, queremos destacar a trindade das Isoldas. São três mulheres de caráter bastante diferentes, mas com o mesmo objetivo: o "amor verdadeiro". As características de cada uma destas personagens estão marcadas pelas suas ações e anseios. Poderia ser uma analogia ao Pai, Filho, Espírito Santo, cada um com suas características, todos chamados "Deus", em busca de um mesmo alvo: não o amor verdadeiro, mas fazer conhecer esse AMOR que são eles próprios.

Tudo começou com Isolda, mãe, representando um ser mitológico que acreditava que, através da poção mágica, a sua filha iria se apaixonar pelo prometido e ser feliz. Ela estava preocupada com a preservação da família que a sua filha iria adquirir casando-se com o Rei Marcos.

Desejava, além disso, defender a moral de sua filha, pois se caso Isolda não viesse a gostar do soberano, seu casamento não iria dar certo, terminando, possivelmente, por um adultério e, consequentemente, pela separação. Naquela época isso seria inadmissível, escandaloso e imoral. Além do mais, Isolda, a mãe, queria a união das famílias nobres, ou seja, a união do reino Gormond com o reino de Marcos.

Isolda Loira (filha) era a imagem da sedução, sendo que todos os homens não conseguiam resistir à tal beldade. Era considerada como o símbolo da beleza. Uma mulher movida pelo amor carnal e pela paixão (o amor erótico). Amante e amada. Fiel a Tristão, pois por nada deixou de amá-lo, contudo, infiel ao Rei Marcos, porque jamais deixou de amar Tristão.

Tudo isto teve início por causa da poção mágica feita por Isolda mãe. Antes da poção, Isolda Loira possuía um amor cortês, que foi transformado no amor erótico, ou seja, o amor dionisíaco que é conduzido, não pela razão, mas por um feitiço. Um amor que se transforma numa louca paixão, onde os amantes estão sempre correndo riscos por causa dela. Assim era o sentimento entre os personagens principais. Todavia, veremos que, depois do efeito da poção, eles voltam ao estado inicial recuperando, racionalmente, o amor cortês.

Com o fim do sortilégio teve início o predomínio da razão. Tristão e Isolda Loira agora conscientes dos seus atos, não deixaram de se amar, mas sabiam que não poderiam continuar juntos ocorrendo, então, a separação.

Algum tempo depois que acabou o efeito da poção, Tristão conheceu outra Isolda, a das mãos brancas, e com ela, viveu um amor cortês. Esta Isolda era uma mulher bonita, ingênua, pura, leal e honesta. Foi iludida e aceitou a viver apenas com os carinhos de Tristão. O amor vivido por esses dois foi movido pela razão e eles acabaram se casando. Para ele, este casamento foi uma fuga, onde esperava esquecer a Isolda Loira. O amor carnal não foi concretizado e deu-se o amor cortês. Mas, esta união não deu em nada, fracassando.

Isolda das mãos brancas descobriu que estava sendo enganada e, impulsionada pelo ciúme, mentiu. A mentira levou Tristão e, em seguida, Isolda Loira à morte. A concretização do amor em Tristão e Isolda Loira só foi possível acontecer logo depois de suas mortes, sendo evidente, assim, que precisaram da terceira Isolda para que o amor perdurasse eternamente.

No túmulo de Isolda, a loira, plantou uma roseira vermelha e no de Tristão um cepo de nobre vinha. Os dois arbustos cresceram juntos e os seus ramos entrelaçaram-se tão intimamente que foi impossível separá-los; de cada vez que os podavam, tornavam a crescer com todo o vigor e confundiam a sua folhagem. (p. 175).

Constatamos que a reunião destas três Isoldas resultou na formação da "mulher comum", que é a verdadeira deusa. Aquela que tudo faz pelos filhos e pelo amor quando se sente traída. As ações são causadas pelas três, e cada uma delas teve fundamental importância no romance. Importância que, até então, as mulheres não tinham nas obras literárias.

Temos, no livro, a ação proveniente dos atos heroicos de Tristão. Nota-se, claramente, que todo o desencadeamento das ações teve o seu início, propriamente dito, com a vitória de Tristão sobre o Norholt. O narrador procurou mostrar todo um mundo de ficção e magia, com intuito de deixar transparecer, claramente, o sentido e a capacidade heroica de Tristão.

Esta obra foi fundamental, para a época, por retratar mudanças ideológicas, culturais e sociais que estavam ocorrendo. A mulher começava a ter um papel mais relevante na literatura e isso influenciava em todo contexto. O papel da religião, também, estava sendo questionado. Podemos, consequentemente, afirmar que a obra foi um grande passo para os posteriores. A inovação, a partir dela, foi constante, sobretudo, no que se refere ao lugar que a mulher, a religião e o poder passam a ocupar, literariamente, daí em diante.

Fontes:
Wikipedia
DAMASIO, Celuy Roberta Hundzinski. Uma leitura de Tristão e Isolda. In: Revista Espaço Acadêmico, Ano VII. no. 78 – Novembro de 2007. Maringá: UEM.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Adega de Versos 55: Divenei Boseli

Fonte da Imagem: Revista Contemporartes

Lima Barreto (Na janela)

— Você sabe: o Alfredo não me trouxe o broche.

— Que desculpa ele deu?

— Que o sete não tinha dado a noite toda...

— Vai ver, Mercedes, que ele foi gastar com a Candinha... Ah! Os homens! São uns malandros!

— Não sei, mas... enfim todos eles são iguais.

— No começo é aquilo, parece que a gente é pouca ou que eles são muito mais. Vivem atrás de nós, descobrem, adivinham os nossos pensamentos; depois... não sei o que dá neles... esfriam, esfriam...

— Meu marido foi assim. No tempo de noivo, nem sabia falar quando estava perto de mim; olhava-me só e o seu olhar parecia que me vestia, que me beijava, que me ameigava... Meses depois de casada, deixou-me só, sem dinheiro, sem parentes, nesta cidade tão grande... Bem fez você que não se casou!

— Mas namorei...

— Muitos?

— Sem conta!

— Você não amou nenhum?

— Não sei... Creio que todos me agradavam o bastante para casar.

— É difícil compreender.

— Ora, é fácil... Eu fui sempre engraçada. Aos treze anos, quando saía com meu pai, todos na rua me olhavam. Um dia até, no bonde, uma senhora de aparência rica, muito grande, muito alta, perguntou a meu pai: é sua filha? Sim, respondeu ele. A senhora olhou-nos muito, a mim e a ele, virou a cara e sorriu duvidosa. Aos quatorze, tive o primeiro namorado. Era o caixeiro da venda... Um portuguesinho louro, que dizia "binho", "benda", mas com uns olhos azuis cor do céu pelas bonitas manhã. E daí não parei mais. Tive um segundo, um terceiro... quando cheguei ao quinto já escrevia cartas. Minha mãe pegou uma e deu-me uma surra; mas não me emendei — continuei. Não sabia resistir... Eles choravam, juravam.., e eu namorava quase ao mesmo tempo. Era como se — em grande riqueza inesgotável — não negasse esmolas. Você sabe: quando se tem muito vai se dando.

Parece que não acaba; mas acaba e então chora-se pitanga. Fui assim: pediam-me beijos, abraços, cabelos; e eu dava por pena, unicamente. Se eu tivesse sido mais sovina, não estava "nesta vida"... E a sorte, que se há de fazer?

— Mas, e o “tal”?

— É verdade! Um dia fui a um baile, como sempre, tinha lá uma chusma de adoradores; mas apareceu um novo. Não sabia quem era, muito diferente de todos. Educado, parecia doutor ou estudante de verdade, de estudos difíceis. Olhou-me e eu olhei, e namorei-o. Não troquei palavra. Dancei com ele e o ouvi falar a um outro. Que voz! Antes da meia-noite saiu. No outro ano, em dia de festa na mesma casa, já não pude ir lá mais; tinha vindo a tal encrenca... corpo de delito... Você sabe... Não deu em nada; ou antes: deu "nisto".

— Nunca mais você viu “ele"?

— O "tal"? Há dois anos que sempre o vejo na rua do Ouvidor, nos teatros...

— Ele não fala com você?

— Não. Olha-me um instante e baixa a cabeça.

— Engraçado! Outro qualquer...

— É verdade! Perguntei quem era, disseram é um doutor fulano de tal e é solteiro.

— Mas nunca você procurou falar com ele?

— Só uma vez. Cheguei-me e sem mais aquela sentei-me à mesa em que estava. Perguntei-lhe se não me conhecia. De vista, respondeu. Se não tinha ido a um baile assim, assim. Nunca! afirmou. Contei-lhe então a história e indaguei-lhe se, de fato, fosse ele não se daria a conhecer. Hesitou e, por fim, respondeu-me umas coisas embrulhadas que, afinal, me pareceu quererem dizer que eu, a menina do baile, era outra coisa que não sou eu mesma atualmente; e quem me tinha visto no baile não me via ali, num jardim de teatro.

— Era um tolo; um...

— Não. Eu o vi, mais tarde, muito alegre, com uma outra no automóvel...

Nos elétricos que passavam, os passageiros que olhavam aquelas duas mulheres com olhares cheios de desejos não seriam capazes de adivinhar a inocência de sua conversa, na janela de uma casa suspeita.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXII

 “Do seu longínquo reino cor-de-rosa”

Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
Voando pela noite silenciosa,
A fada das crianças vem, luzindo.
Papoulas a coroam, e , cobrindo
Seu  corpo todo, a tornam misteriosa.

À criança que dorme chega leve,
E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,
Os seus cabelos de ouro acaricia  -
E sonhos lindos, como ninguém teve,
A sentir a criança principia.

E todos os brinquedos se transformam
Em coisas vivas, e um cortejo formam:
Cavalos e soldados e bonecas,
Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam,
E palhaços que tocam em rabecas...

E há figuras pequenas e engraçadas
Que brincam e dão saltos e passadas...
Mas vem o dia, e, leve e graciosa,
Pé ante pé, volta a melhor das fadas
Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.
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“Doura o dia. Silente, o vento dura”
 
Doura o dia. Silente, o vento dura.
Verde as árvores, mole a terra escura,
Onde flores, vazia a álea e os bancos.
No pinal erva cresce nos barrancos.
Nuvens vagas no pérfido horizonte.
O moinho longínquo no ermo monte.
Eu alma, que contempla tudo isto,
Nada conhece e tudo reconhece.
Nestas sombras de me sentir existo,
E é falsa a teia que tecer me tece.
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“Doze signos do céu o Sol percorre”
 
Doze signos do céu o Sol percorre,
E, renovando o curso, nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência,
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que não há no céu.
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“Durmo, cheio de nada, e amanhã”
 
Durmo, cheio de nada, e amanhã
é, em meu coração,
Qualquer coisa sem ser, pública e vã
Dada a um público vão.

O sono! este mistério entre dois dias
Que traz ao que não dorme
À terra que de aqui visões nuas, vazias,
Num outro mundo enorme.

O sono! que cansaço me vem dar
O que não mais me traz
Que uma onda lenta, sempre a ressacar,
Sobre o que a vida faz?!
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“Durmo. Regresso ou espero?”
 
Durmo. Regresso ou espero?
Não sei. Um outro flui
Entre o que sou e o que quero
Entre o que sou e o que fui.
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“É boa! Se fossem malmequeres!”
 
É boa! Se fossem malmequeres!
E é uma papoula
Sozinha, com esse ar de "queres?"
Veludo da natureza tola.

Coitada!
Por  ela
Saí da marcha pela estrada.
Não a ponho na lapela.

Oscila ao leve vento, muito
Encarnada a arroxear.
Deixei no chão  o meu intuito.
Caminharei sem regressar.
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É Inda Quente
 
É inda quente o fim do dia...
Meu coração tem tédio e nada...
Da vida sobe maresia...
Uma luz azulada e fria
Para nas pedras da calçada...
Uma luz azulada e vaga
Um resto anônimo do dia...
Meu coração não se embriaga
Vejo como quem vê e divaga...
E uma luz azulada e fria.
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O Louco
 
 E fala aos constelados céus  
De trás das mágoas e das grades  
Talvez com sonhos como os meus ...  
Talvez, meu Deus!, com que verdades!  

As grades de uma cela estreita  
Separam-no de céu e terra...
Às grades mãos humanas deita  
E com voz não humana berra...

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).

Raul Pompéia (Dia de gala)

Era duplamente dotada de fibra e de imaginação; com este aparelho arma-se uma criatura terrível; terrível ou deliciosa: pontos de vista. Para completar, moça e viúva.

A viuvinha sofria, assim, de uma viuvez carnal, saudade orgânica do esposo (esposo aqui em gênero, não em caso) como deve padecer a roda dentada, da ausência absurda da engrenagem conjugante.

Era religiosa. No êxtase da crença, oferecia aos numes do oratório o sacrifício difícil dos seus desgostos.

Na restrita pobreza dos recursos de costureira, por meio de vida, faltavam-lhe divertimentos. Ela morava ali, no largo do Paço, naquela casa de perspectiva secular que parece como uma boa velha antiquíssima a debruçar-se para a gente a contar histórias do Sr. D. João VI, que Deus tenha. Valia-lhe de prazer o panorama do mar e por exceção, na monotonia da vida, as procissões do Carmo e as paradas de grande gala

As procissões produziam-lhe um meio enlevo beato, agradável como uma baforada de incenso, mas triste no fundo: como em geral nas solenidades eclesiásticas parecidas todas com um funeral. O seu melhor prazer eram as paradas. Fazia-lhe gosto à viuvez solitária ver em massa tantos homens fortes.

As dragonas, sacudindo ouro aos ombros de alta patente, as baionetas cintilando à grande gala do sol, percorridas de frêmitos incertos, como uma seara metálica, os penachos cor-de-rosa da oficialidade, arrufando as penas como aves guerreiras sobre as barretinas e a temerosa cavalaria, mascando impaciência, transpirando espuma sob os arreios, os possantes corcéis apeados de estátuas equestres. E o tinir seco das bainhas contra as esporas e as vozes nervosas impertinentes de comando, na boca de capitães obesos e as salvas à hora do beija-mão, na marinha de guerra e nas fortalezas. O rumor, o espetáculo produziam-lhe estranho abalo. Ela pensava em combates, multidões armadas atropelando-se, desaparecendo em fumo, surgindo em sangue; pensava nos acampamentos cobertos de tendas e marmitas; deixava-se levar na meditação imaginadora a conceber a reação de amor selvagem dessas populações nômades sem família, depois de uma jornada de morticínio; pensava nas mulheres do campo dos lugares por onde passa um exército e nas vivandeiras moças; pensava com terror lascivo nas cidades entregues ao saque, em que os soldados acham que vale a pena poupar a vida às mulheres; ocorria-lhe um episódio da campanha russo-turca, citado no Jornal do Comércio: quarenta mulheres vitimadas por um batalhão inteiro, num paiol abandonado, entre elas uma de doze anos apenas... a medida que passeava ao longo das filas um binóculo de teatro, visitando a infinidade de caras, bronze fundidos na soalheira das marchas.

Não foi, porém, na predisposição comum que a surpreendeu aquela data: dois de dezembro. Sentia-se presa de um mal-estar indefinido, um alvoroço no organismo que a inquietava como a iminência de uma crise, um desassossego de espírito que lhe tolhia a atenção para o trabalho, impossibilitando mesmo que lhe morasse no cérebro por dois segundos a mesma ideia, ímpetos de choro sem causa, vontade louca de rolar no chão em assomos de convulsões.

Dois de dezembro, cortejo no Paço da cidade.

Era um presente de céu aquela data, pensava ela desfolhando o calendário à parede. Pertencia-lhe a grande gala. O que em outra ocasião fora um divertimento, naquele dia era uma necessidade; naquele dia, distrair-se era um curativo.

Às onze e meia já lá estavam os pelotões em forma. Pelas objetivas do binóculo começou a passar a tropa sucessivamente, em revista sui generis da curiosidade feminina. Uma por uma sucediam-se as caras da soldadesca em cerrada continuidade de galeria numismática. E do sótão ignorado caíam, chuva de rosas sobre as fileiras, olhares de simpatia tão bons, tão expansivos que fariam esquecer o serra-fila ao galucho basbaque que os colhesse no ar.

Tinham decidida preferência as fisionomias duras, viris, douradas a fogo pelo verão das campanhas, riscadas de preto no vinco das rugas, indelével gravura do ritos de severidade marcial que é como o uniforme dos rostos. Mas, que interessante variedade! as faces deformadas por um gilvaz glorioso e devastador, outras picadas de varíola em caprichosas granulações de carne; cá, um semblante de criança grandes olhos negros sobre malares proeminentes do Norte, nadando em candura, ao lado da baioneta feroz; mais além, uma cara branca, crivada de sardas, sobrancelhas louras ásperas; algumas reclamando a baixa do serviço ativo na expressão mórbida; em compensação, algumas apopléticas, sufocadas na gravata de couro como no laço de uma forca.

A viúva olhava como se aspirasse de longe a emanação do pano grosso das fardas suarentas, úmidas às axilas e na constrição dos talins.

Depois o binóculo visitava os oficiais. Era outra coisa. A rudez militar suavizava-se geralmente em fisionomias elegantes, peles aristocráticas amaciadas na sinecura das comissões de paz, carinhas guardadas em algodão e perfumadas para a ostentação oportuna das paradas, altivas, sobre a plebe do exército, como lambrequins de luxo sobre uma torre de ferro, militares de salão meigos e amáveis que possuem palas de tartaruga para a rua do Ouvidor e frascos de brilhantina para a perpétua frescura do bigode; soldados queridos de outras mulheres, não dela, dessas mulheres masculinas que desejam no homem o desconto do que no próprio caráter há de mais. Ela preferia os oficiais de grosso trato, que lembravam o marido, um bravo do Paraguai, que lhe morrera nos braços não sei por que, talvez mesmo porque ela o amara muito.

Ia por estas conjunturas quando o binóculo parou sobre o rosto do capitão Mauro, do 13.o, formado ali, sob as janelas do Paço.

Fazia um tempo admirável. A pobre solitária bebia tentações no ambiente da praça, sobre a florescência de sangue dos flamboyants.

Formosa era ela. Não achava segundo marido por muitas razões, a primeira: por essa desconfiança que persegue as belas viúvas, muito razoável em teoria, mas injusta de fato. Muitas razões ou, pode ser, simplesmente para dar assunto a esta narrativa.

Foi um relâmpago.

— Emília!

Emília era a criada, trefegazinha e esperta. Discreta ou não, no momento convinha que fosse. Foi-lhe confiado este bilhete em letra miúda e nervosa, este lacônico bilhete:

"Hoje, às quatro horas, sr. capitão, espera-o alguém na rua... numero... para dizer-lhe duas palavras amáveis."

O lugar do encontro era a casa de uma amiga ausente, de que tinha a chave a viuvinha.

A nossa heroína esperou que a carta tivesse partido para arrepender-se, mas o arrependimento foi vivíssimo. Aterrou-se com a imagem da temeridade a que se arrojara. Ela conhecia o capitão Mauro, frequentador da casa nos tempos do marido. Um homem atirado, audaz para todas as empresas, na sua construção de aço e saúde. Estava sinceramente arrependida. Tranquilizou-a, felizmente, o alea jacta dos supremos apertos, acolitado pela ponderação de que não custava nada deixar o capitão bater com o nariz na porta.

Emília tinha ordem de acompanhar o batalhão no fim do cortejo e entregar a missiva no quartel.

A viúva avistou no largo a criada insinuando-se pela multidão. Viu sair o imperador, no coche de ouro, para S. Cristóvão, com os seus Polichinelos sovados de libré verde e galões largos à traseira e os empoeirados jóqueis, dirigindo a atrelagem, de corpete curto, camisa a mostra, sobre o cós dos calções e a cavalaria lascando a calçada com a violência do galope; viu afinal desfilar a tropa música à frente Nunca lhe pareceram tão verdes as bandeiras cobrindo os pelotões, abertas amplas ao vento do mar.

Depois, distraidamente foi ao guarda-roupa e tirou uma pequena máscara que lá estava, velha lembrança de um baile Com a tesourinha pôs-se a cortar o veludo, alargando o rasgão dos olhos o mais possível; deixando bastante pano, contudo, para que não a reconhecesse o capitão Mauro. Pobrezinha! Como se já não estivesse decidida a afogar brutalmente no peito mais aquele sonho culpado...

Apesar dos impedimentos possíveis da disciplina, o nosso oficial à noitinha, mandava apalpar as dragonas perguntando se não sentiam ainda o metal quente - da insolação do cortejo, é possível, mas provavelmente de um colar de braços nus que o haviam estrangulado. Agora é que sei, notava mais, o que é ter amor à farda.

E muito tempo depois, entre outras boas histórias de sacristia, um padre do Carmo contava, sem violação do sigilo, o que certa confissão lhe dissera de um dia de gala na monotonia triste da viuvez.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.