domingo, 25 de maio de 2025

Asas da Poesia * 27 *

 

Trova de
JOSÉ VALDEZ DE CASTRO MOURA
Florianópolis/ SC

Tento fugir da rotina,
conquistar um novo espaço...
mas minha tristeza assina
seu nome por onde passo...
= = = = = =

Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Tão leve estou que já nem sombra tenho
Mário Quintana in "A rua dos Cataventos", p. 48

Tão leve estou que já nem sombra tenho
Como nuvem que passe transparente
No céu dos dias onde é sempre ausente
A cor forte do velho e nobre estanho.

Sou como o traço fino de um desenho
Magro e sumido, um corpo em seu poente
Que viva da palavra e se alimente
Do verso que estiver de bom tamanho.

Tão leve, qualquer dia eu me evaporo
Deste corpo onde quase já não moro
Por castigo ou capricho do destino.

Mas por graça da suma divindade
Subirei através da claridade:
Vou ser eternamente e só menino!
= = = = = = = = =  

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

O sol, silencioso, desce,
e é mais um dia a morrer;
mas do outro lado, uma prece
lhe agradece o renascer.
= = = = = = = = =  

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Faço-me lágrima

Quando àquelas distantes
nuvens
Nublam teu olhar
(Abraço teus tons
de gris)
Abro e
fecho
parênteses
E inebriada, silencio-me

Faço-me lágrima
Para deslizar dos teus cílios,
Alongando desejos
De te beijar
E desaguo no cantinho
Dos teus lábios
E, assim desperto uma pontinha
Do teu sorriso...
= = = = = = 

Trova de
MAURÍCIO NORBERTO FRIEDRICH
Porto União/SC, 1945 – 2020, Curitiba/PR

Num relógio, vendo a hora,
no outono de minha lida,
vejo que não há demora
no ocaso de minha vida!
= = = = = = 

Soneto de
LAÉRCIO BORSATO
Poços de Caldas/MG (via Port Hope, Canadá)

... Às margens do Lago Ontário 

Andando às margens do lago Ontário
Por alguns instantes, após o sol posto.
Dia vinte e seis deste lindo mês de agosto.
Como o sol, havíamos cumprido o itinerário...

Nessa tarde sentia-me feliz e disposto,
Caminhava e tinha em mente, involuntário
Desejo de voltar. Via naquele cenário,.
O espelho das águas, esculpir o meu rosto...

Desviei o olhar nas orlas do horizonte
Ataviadas em cores róseas. Vi o monte
Exibindo um verde que não vira, até então.

Nesse devaneio ao meio a lindas flores,
Vi estrelas mostrando seus resplendores;
E a saudade invadiu de vez meu coração.
= = = = = = = = = 

Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Incontentado

Paixão sem grita, amor sem agonia,
Que não oprime nem magoa o peito,
Que nada mais do que possui queria,
E com tão pouco vive satisfeito...

Amor, que os exageros repudia,
Misturado de estima e de respeito,
E, tirando das mágoas alegria,
Fica farto, ficando sem proveito...

Viva sempre a paixão que me consome,
Sem uma queixa, sem um só lamento!
Arda sempre este amor que desanimas!

Eu, eu tenha sempre, ao murmurar teu nome,
O coração, malgrado o sofrimento,
Como um rosal desabrochado em rimas.
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

O papel que eu desempenho 
na poesia, não tem preço; 
pelos amigos que eu tenho… 
Ganho mais do que mereço!
= = = = = = 

Poema de 
JOSÉ FARIA NUNES
Caçu/GO

Poesia e liberdade

A caneta do poeta
rebela-se
ante a injustiça
do poder.
E faz-se poder
na liberdade
do ato de pensar.
Quando o poder
em seu império de força
impõe-se
sobre a caneta do poeta
então este carece
de ser mais que poeta:
dele se exige
a engenharia dos deuses
na construção mágica
do amor.
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Na briga que o meu cabelo, 
e a careca estão travando 
lamento ter que dizê-lo, 
a careca está ganhando...
= = = = = = 

Poema de
TERESINKA PEREIRA
Ohio/Estados Unidos

As portas 

Não podemos aceitar 
todo o sofrimento 
que nos impõe o desconhecido. 
Para cada porta fechada 
haverá mais de cem portas abertas 
na história da nossa vida. 
Nossa mente fará a jornada 
se permitirmos que nos deve 
mais uma vitória 
neste vertiginoso romance 
com as pessoas que nos amam 
o suficiente para entender-nos.
= = = = = = 

Trova de
CAROLINA RAMOS 
Santos/ SP

As bandeiras desfraldadas..,
O povo em vai-vem nas ruas...
e as esperanças sonhadas
são minhas... e também tuas!
= = = = = = 

Hino de
BODOCÓ/ PE

No sopé dessa serra planalto
Bodocó se afirmou e cresceu
E é hoje o destaque mais alto
No cenário erudito e plebeu

Já contando alguns anos de vida
Desde que por lei se emancipou
É a nossa cidade querida
A quem rendemos nosso louvor

A cidade sempre adolescente
Com orgulho costuma mostrar
Sua juventude inteligente
Que estuda e quer prosperar

O seu povo é muito ordeiro
Pois aqui só se pensa em crescer
E o exemplo há de ser pioneiro
Do progresso e do bom conviver
= = = = = = = = =  

Soneto de 
MÁRCIA SANCHEZ LUZ
São Paulo/SP

Bilhete de Julieta

Por que você partiu sem me contar
que o fim estava próximo e que nós
não poderíamos nos ver após
a cotovia, lúgubre, cantar?

Não foi de fato amor de acarinhar,
nem foi de fato amar de amor feroz.
Da forma como veio, assim veloz,
partiu e me deixou sem me acordar.

E agora o que fazer sem seu carinho
para acalmar a febre em sonhos meus?
Não quero mais ninguém em nosso ninho.

Eu sei – a vida é assim –, dirá quem ler,
mas não sei mais o que fazer, meu Deus!
Como é difícil deste amor morrer!
= = = = = = = = =  = = = = 

Trova Premiada de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

Não diga adeus por favor, 
me deixa assim , iludida. 
Quero pensar que este amor 
não tem porta de saída.
= = = = = = = = =

Décima do
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

O sertão

No sertão tem poesia,
tem o preá no serrote
tem mocó dando pinote
e tem cabra dando cria;
tem coalhada na bacia
tem fogueira de São João,
tem festa de apartação
tem porteira e passadiço;
quem nunca viu tudo isso
não sabe o que é sertão!
= = = = = = = = =  

Trova Humorística do
LACY JOSÉ RAYMUNDI
Sananduva/RS, ???? – 2014, Garibaldi/RS

É mentira ou é verdade?
É verdade ou é mentira?
Se a mulher disser a idade
não acredite: confira!…
= = = = = = = = =  

Martelo Agalopado do
PROFESSOR GARCIA
(Francisco Garcia de Araújo)
Caicó/RN

Minha avó também teve competência,
com seu fuso na mão, foi de primeira,
também tinha uma roca de madeira
que lhe deu o sustento, e deu vivência.
Enedina, um sinal de resistência,
não sentia o torpor da nostalgia,
na pobreza do campo onde vivia
resistiu aos insultos da escassez,
mas viveu com ternura e sensatez
encantada com tudo que fazia!
= = = = = = = = =  

Aldravia da
JUÇARA REGINA VIEGAS VALVERDE
Rio de Janeiro/RJ

respingos
do
ontem
nublam
o
hoje
= = = = = = = = =   

Soneto Alexandrino de
MARIA JOÃO BRITO DE SOUZA
Oeiras/Portugal

Memórias do mar

Sei duma vozinha que contava estórias,
Dizia segredos que só eu escutava
E que, tantas vezes, me deliciava
Quando me falava de velhas memórias...

 Sempre que contava das antigas glórias
Nos tempos remotos em que navegava
Uma caravela que então procurava
As suas conquistas, as suas vitórias

 Nessa descoberta das terras douradas,
Da canela em pau, do café em grão,
Das madeiras nobres e do açafrão,

De mil coisas lindas para ser usadas,
Coisas requintadas, coisas que só são...
Porque o mar me disse que as teve na mão!
= = = = = = = = =  

Poema de
SILVIAH CARVALHO
(Sílvia Helena de Carvalho)
Manaus/AM

A menina do Rio Amazonas

Fiquei na margem do rio,
Desanuviando minha mente,
Meditando na constância das águas,
No desapego da alma, neste vazio...

Vi pessoas passarem às margens,
E notei, cada um faz seu próprio rio!
E navegam em suas esperanças,
Levando as lendas em suas lembranças.

Vi a menina sentada à beira do rio,
Sonhando com a felicidade,
Esperando o boto... Não sei!
Que a tire da beira e, se faça seu rei.

Na espera inútil à tristeza vem à tona,
Não há encantamento... Eu chorei!
Vendo a tristeza nos olhos da menina
Do rio amazonas...

Eu a vi partindo só e com frio,
Deixando nas margens o fim do seu rio,
Eu a vi sofrer por um conto infantil,
Eu soube que ela nunca mais sorriu.

E eu! Ainda espero só,
Na margem do rio,
Do meu rio...
= = = = = = = = =  

Epigrama de
JOÃO SALOMÉ QUEIROGA
Serro/MG, 1810 – 1878

Oh, deste patrono a musa,
Diz o povo, não se entende,
Pois quando defende, acusa,
E quando acusa, defende…

(a um advogado no júri)
= = = = = = = = =  

Écloga de
MIGUEL TORGA
(Adolfo Correia da Rocha)
São Martinho de Anta, 1907 – 1995, Coimbra

Na ribeira que secou
Bebia o gado que eu tinha;
Quando chegava à noitinha,
A voz das águas chamava,
E o rebanho que pastava
Deixava os tojos e vinha.

Eu próprio molhava as mágoas
Na pureza da nascente;
Metia as mãos docemente
Na limpidez da frescura,
E as caricias da corrente
Davam-me paz e ternura.

O gado, farto, bebia;
E eu deixava-me correr
Naquele suave prazer
Que me levava consigo...
Eu não tinha que fazer,
E o gado tinha pascigo (1).
´
A noite, então, vinha mansa
Cobrir a lã das ovelhas;
Era um telhado de telhas
Furadas ou embutidas
De luzes muito vermelhas
Por todo o céu repartidas.

E aquela viva irmandade
Do rebanho e do zagal (2)
Era ali tão natural
Que apagava dos sentidos
A saudade do curral
Feita de sono e balidos.
´
Mas a ribeira secou.
Não sei que praga lhe deu
Que no leito onde correu
Há pedras e maldição...
E o meu rebanho morreu
De sede e de mansidão.
=======================
(1) Pascigo = lugar onde o gado pasta.
(2) Zagal = pastor
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Soneto de
JOSÉ ALBANO
Fortaleza/CE, 1882 – 1923, Montauban/França

Soneto da dor

Mata-me, puro Amor, mas docemente,
Para que eu sinta as dores que sentiste
Naquele dia tenebroso e triste
De suplício implacável e inclemente.

Faze que a dura pena me atormente
E de todo me vença e me conquiste,
Que o peito saudoso não resiste
E o coração cansado já consente.

E como te amei e sempre te amo,
Deixa-me agora padecer contigo
E depois alcançar o eterno ramo.

E, abrindo as asas para o etéreo abrigo,
Divino Amor, escuta que eu te chamo,
Divino Amor, espera que eu te sigo.
= = = = = = = = =  

Aldravia de
ILDA MARIA COSTA BRASIL
Porto Alegre/RS

uma
palavra
inúmeras
faces
vários
escritos
= = = = = = = = =  

Poema de
SILVINO POTÊNCIO
Natal/RN

O tempo é breve!…
(Poema numero 8)

O tempo é breve... Já vou andando,
Descendo por escadas em poeira.
Vou caindo pra morada derradeira,
Que existe na terra guardando,
Pra sempre os restos de um corpo,
Do mundo,... já se vai porque está morto!

Sinto náuseas fedorentas,
Em contato ao pensamento.
Sinto passos de almas lentas!!!???...
- Ah!... mas já não me fazem tormento!.

Saudades não levo nem deixo.
Tristezas!?... morreram já há algum tempo.
Concordem que não fui contratempo,
E só porque já não me queixo,
Não pisem no meu mausoléu...
Se alguém o ergueu para o céu!
= = = = = = = = =  

Poema do Príncipe dos Poetas Paranaenses
EMILIANO PERNETA
Curitiba/PR, 1866 – 1921

Oração da manhã

Amanheceu. A luz de um claro e puro brilho
Tem a frescura ideal de uma roseira em flor :
Antes de tudo o mais, ajoelha-te, meu filho,
Ajoelha-te e bendize a obra do Criador.

Ajoelha-te aqui, e sorvendo esse aroma
De feno, e rosa, e musgo, e bálsamo sutil,
Que vem do seio azul dessa manhã, que assoma,
Na radiosa nitidez de uma manhã de Abril,

Bendize a força, a graça, a seiva, a juventude,
A hercúlea robustez daqueles pinheirais,
Que resistem, de pé, dentro da casca rude,
Aos mugidos do vento e aos rijos temporais.

Ama essa terra como um fauno que por entre
A silva agreste vive; ama tudo o que vês;
Todos somos irmãos, filhos do mesmo ventre,
Filhos do mesmo amor e da mesma embriaguez.

Abraça os troncos nus, beija esses ramos de ouro,
Ajoelha-te aos pés dos que te querem bem :
Que riqueza, Senhor, que límpido tesouro!
Que grande coração que o arvoredo tem!

Pede a Deus que conhece os bons e maus caminhos
Que conhece o passado e conhece o porvir,
Que te aponte de longe os cardos e os espinhos,
E que te estenda a mão, quando fores cair...
= = = = = = = = =  

Décima de
FRANCISCO JOSÉ PESSOA 
(Francisco José Pessoa de Andrade Reis)
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

Palhaço

A vida se nos faz meros palhaços...
sorriso solto num choro prendido,
querer que é dado nunca agradecido
saltar ao vento sem pisar os passos.
Tragar o fumo dos prazeres baços
embebedar-se tanto pra esquecer,
sentir-se ser alguém, mesmo sem ser,
no picadeiro, o aplauso, a falsa glória,
imagem tão real quanto ilusória
pranto da morte rindo pra viver!
= = = = = = = = =  

Trova do
LUIZ OTÁVIO
(Gilson de Castro)
Rio de Janeiro/RJ, 1916 -1977, Santos/SP

Ele cai... não retrocede!...
Continua... até sozinho...
que a fibra também se mede
pelas quedas no caminho…
= = = = = = = = =  

Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Chuva e saudade

Cai a chuva… é triste o dia…
A manhã é cinzenta e baça…
E eu mudo vejo a chuva fria,
A correr de leve na vidraça…

E a chuva cai… cai e não passa…
Nem sequer a chuva estia…
Para que um pouco se desfaça,
A saudade de quem eu tanto queria!…

Qual essa vidraça, está meu rosto…
E meus olhos não querem desanuviar…
É por demais sofrido o meu desgosto…

Aumenta a chuva e com ela a minha dor…
Soluço qual criança perdida, sem cessar,
Na incerteza de ao menos rever-te amor!…
= = = = = = = = =  

Geraldo Pereira (Quarto de Hotel)


Aqui, neste quarto de hotel, distante de tudo e de todos, faço o exercício da solidão ou a prática do diálogo interior, que é o monólogo d’alma. Sou ao mesmo tempo, descubro, duas pessoas: uma que pergunta, apenas, e outra que responde, somente. Rejeito as companhias que tenho, os trovões e os relâmpagos nos céus de Belo Horizonte e vou à janela convocar parceiros para a longa jornada do absolutamente nada. Afinal, os programas de televisão não passam dos desenhos inteiramente desanimados e dos filmes de monstros. Nenhum diretor de TV considera, com razão, que no horário da tarde um marmanjo qualquer possa ligar o receptor. Ora, cheguei com 12 horas de antecedência e não há o que fazer, senão isso, refletir e olhar os ares do mundo. Há gente, todavia, como posso identificar, nos arredores do imenso prédio em que me encontro. À direita e à esquerda, em frente, especialmente: cumprem todos as rotinas do dia-a-dia das coisas. Uma senhora muito velha, a jogar baralho, e uma moça findando o banho, um casal, o chefe e a secretária, encerrando o expediente e finalmente um jovem digitador, ao computador, mas com fones de ouvido, para esquecer da labuta o tédio!

A idosa mulher distribui as cartas sobre a mesa e fiel às regras do jogo realiza, com paciência, a união dos valetes e das damas, dos reis de copas e de outros naipes, também. Tem muita dificuldade em juntar as peças da sua partida solitária, mas vai fazendo como pode, coçando a cabeça branca, vez por outra, num princípio de desespero que não lhe toma o espírito. Por certo, é viúva, já viveu dias melhores e pôde dispor de companhia em horas assim, de isolamento estabelecido. Se foi feliz no casamento, se teve filhos ou não, é impossível concluir dessa distância, numa visão simplória de seu apartamento, tão apertado quanto a gaiola de seu pássaro. Um canário belga, então, trinando os acordes das saudades, porque as aves encarceradas cantam em louvor à fêmea imaginária, sempre. Desiste do baralho e liga o aparelho de televisão, sintoniza o canal desejado e se deita numa cadeira enorme. É gorda, descubro, obesa mesmo, imagino, enquanto lhe observo o jeito, alisando o imenso ventre, posto assim, à curiosidade de forasteiro como eu, sem ocupação, que seja. Abre a boca, fortemente, arriscando deslocar a mandíbula, tal o sono de que é tomada. Faz o sinal-da-cruz na cavidade oral, aberta como está, virada para o mundo. Apaga a luz e se recolhe. Vai dormir, imagino! Não tem insônia, reflito! É diferente de mim!

À esquerda, porém, há mais vida e mais movimento, na larga vivenda do quarto andar. A empregada, vestida a caráter, de azul marinho e golas brancas, arruma a cama do casal, bate o lençol e forra a colcha que me parece de cor vermelha. A moça, ao banheiro, por trás do vidro quase fosco, deixa aparecer do pescoço para cima, apenas, com a toalha posta à semelhança dos lutadores de boxe e passa o pente nos longos cabelos negros. Lembro-me de Sophia, então, musa dos meus anos de menino, trancafiada em casa, para não mostrar a beleza a toda a gente da rua. Olha, da forma mais fixa possível, em direção à janela do hotel, assistindo, de longe, à minha solidão. Termina o exercício com o largo e bem cuidado, parece, manto piloso e sai, vai assistir televisão, também, na sala de casa. Não chegaram os pais, compreendo, ocupados ainda com os ardores do trabalho e a telinha ajuda a matar o tempo. A escuridão da noite, entretanto, vai acendendo as luzes da moradia, uma na frente e outra atrás, a do corredor e a da varanda, a da área, finalmente, onde vive a criada, fantasiando o porvir, nutrindo os devaneios da metamorfose da criatura, cujos horizontes, socialmente estreitos, reclamam larguezas.

Diante de mim, bem na frente, um escritório vive o final de mais um dia e o chefe, de gravata encarnada, salpicada com detalhes que não posso divisar, exatamente, faz o balanço da jornada com a jovem secretária, cuja blusa, percebo, é da mais pura seda, champanhe na cor. Noto que ajeita os cabelos, bem soltos, com as mãos, dando um jeito, que seja, no penteado armado e arrumado pela manhã, ainda. Ouve as palavras nascidas na boca da autoridade competente e sustenta o diálogo, uma observação ou outra, mostra um papel e anota um lembrete, reúne formulários diversos e encerra o expediente, penso. Pelo menos, desliga a iluminação por inteiro. Vou descendo para jantar, quase informo, não fosse a distância dessa separação dos convívios. Escolho o prato à sugestão do garçom, que em Portugal se chama escarção, dizia Paulo Malta, e de logo retorno à solidão do quarto. À janela, outra vez, posso flagrar acesas todas as luzes do escritório. E a mais do que jovem secretária, terminando de vestir a blusa, passa o pente, agora, na beleza de seus cabelos, dando adeus ao chefe. Pareço ouvir: “Até amanhã!”

A cama é grande e fria. O sono é bem maior e os sonhos inebriam o espírito. Até amanhã, também!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Geraldo José Marques Pereira nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.

Fontes:
Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Adobe Firefly   

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 33 *

 

Aluísio de Azevedo (Aos vinte anos)


Abri minha janela sobre a chácara. Um bom cheiro de resedás (planta nativa de China e Índia) e laranjeiras entrou-me pelo quarto, de camaradagem com o sol, tão confundidos que parecia que era o sol que estava recendendo daquele modo. Vinham ébrios de abril. Os canteiros riam pela boca vermelha das rosas; as verduras cantavam, e a república das asas papeava, saltitando, em conflito com a república das folhas. Borboletas doidejavam, como pétalas vivas de flores animadas que se desprendessem da haste.

Tomei a minha xícara de café quente e acendi um cigarro, disposto à leitura dos jornais do dia. Mas, ao levantar os olhos para certo lado da vizinhança, dei com os de alguém que me fitava; fiz com a cabeça um cumprimento quase involuntário e fui deste bem pago, porque recebi outro com os juros de um sorriso; e, ou porque aquele sorriso era fresco e perfumado como a manhã daquele abril, ou porque aquela manhã era alegre e animadora como o sorriso que desabotoou nos lábios da minha vizinha, o certo foi que neste dia escrevi os meus melhores versos e no seguinte conversei a respeito destes com a pessoa que os inspirou.

Chamava-se Ester e era bonita. Delgada sem ser magra; morena, sem ser trigueira; afável, sem ser vulgar; uns olhos que falavam todos os caprichosos dialetos da ternura; uma boquinha que era um beijo feito de duas pétalas; uns dentes melhores que as joias mais valiosas de Golconda; cabelos mais lindos do que aqueles com que Eva escondeu o seu primeiro pudor no paraíso.

Fiquei fascinado. Ester enleou-me todo nas teias da sua formosura, penetrando-me até ao fundo da alma com os irresistíveis tentáculos dos seus dezesseis anos. Desde então conversamos todos os dias, de janela contra janela. Disse-me que era solteira e eu jurei que seríamos um do outro. Perguntei-lhe uma vez se me amava, e ela, sorrindo, atirou-me com um bogari que nesse momento trazia pendente dos lábios.

Ai! Sonhei com a minha Ester, bonita e pura, noites e noites seguidas. Idealizei toda uma existência de felicidade ao lado daquela meiga criatura adorável, até que um dia, já não podendo resistir ao desejo de vê-la mais de perto, aproveitei-me de uma casa à sua contígua, que estava para alugar, e consegui, galgando o muro do terraço, cair-lhe aos pés, humilde e apaixonado.

—Ui! Que veio o senhor fazer aqui? — perguntou-me trêmula, empalidecendo.

—Dizer-te que te amo loucamente e que não sei continuar a viver sem ti! Suplicar-te que me apresente a quem devo pedir a tua mão e que marques um dia para o casamento, ou então que me emprestes um revólver e me deixes meter aqui mesmo duas balas nos miolos!

Ela, em vez de responder, tratou de tirar-se do meu alcance e fugiu para a porta do terraço.

— Então?… Nada respondes?… — inquiri no fim de alguns instantes.

— Vá-se embora, criatura!

— Não me amas?

— Não digo que não. Ao contrário, o senhor é o primeiro rapaz de quem eu gosto, mas vá-se embora, por amor de Deus!

— Quem dispõe de tua mão?

— Quem dispõe de mim é meu tutor.

— Onde está ele? Quem é? Como se chama?

— Chama-se José Bento Furtado. É capitalista, comendador, e deve estar agora na praça do comércio.

— Preciso falar-lhe.

— Se é para pedir-me em casamento, declaro-lhe que perde o seu tempo.

— Por quê?

— Meu tutor não quer que eu case antes dos vinte anos e já decidiu com quem há de ser.

— Já? Com quem é?

—Com ele mesmo.

— Com ele? Oh! E que idade tem seu tutor?

—Cinquenta anos.

— Jesus! E a senhora consente?

— Que remédio! Sou órfã, sabe? De pai e mãe. Teria ficado ao desamparo desde pequenina se não fosse aquele santo homem.

— É seu parente?

—Não, é meu benfeitor.

— E a senhora ama-o?

— Como filha, sou louca por ele.

— Mas esse amor, longe de satisfazer a um noivo, é pelo contrário um sério obstáculo para o casamento… A senhora vai fazer a sua desgraça e a do pobre homem!

— Ora! O outro amor virá depois.

— Duvido!

—Virá à força de dedicação por parte dele e de reconhecimento por minha parte.

—Acho tudo isso imoral e ridículo, permita que lhe diga!

— Não estamos de acordo.

— E se eu me entender com ele? Se lhe pedir que me dê, suplicar, de joelhos, se preciso for?… Pode ser que o homem, bom como a senhora diz que é, se compadeça de mim, ou de nós, e…

— É inútil! Ele só tem uma preocupação na vida: ser meu marido!

— Fujamos então!

—Deus me livre! Estou certa de que com isso causaria a morte do meu benfeitor!

—Devo, nesse caso, perder todas as esperanças?

— Não! Deve esperar com paciência. Pode bem ser que ele mude ainda de ideia, ou — quem sabe? —pode ser que morra antes de realizar o seu projeto.

— E acha a senhora que esperarei — sabe Deus por quanto tempo! — sem sucumbir à violência da minha paixão?

—O verdadeiro amor a tudo resiste, quando mais ao tempo! Tenha fé e constância, é só o que lhe digo. E adeus!

— Pois adeus!

— Não vale zangar-se. Trepe de novo ao muro e retire-se. Vou buscar-lhe uma cadeira.

— Obrigado. Não é preciso. Faço todo o gosto em cair, se me escorregar a mão! Quem me dera até que morresse da queda, aqui mesmo!

— Deixe-se de tolices! Vá!

Saí; saí ridiculamente, trepando-me pelo muro, como um macaco, e levando o desalento no coração. Ah! Maldito tutor dos diabos! Velho gaiteiro e libertino! Ignóbil maluco, que acabava de transformar em fel todo o encanto e toda a poesia da minha existência! A vontade que eu sentia era de matá-lo, era de vingar-me ferozmente da terrível agonia que aquele monstro me ferrara no coração!

— Mas não as perdes, miserável! Deixa estar! —prometia eu com os meus botões.

Não pude comer, nem dormir, durante muitos dias. Entretanto, a minha adorável vizinha falava-me sempre, sorria-me, atirava-me flores, recitava os meus versos e conversava-me sobre o nosso amor. Eu estava cada vez mais apaixonado.

Resolvi destruir o obstáculo da minha felicidade. Resolvi dar cabo do tutor de Ester.

Já o conhecia de vista: muita vez encontramo-nos à volta do espetáculo, em caminho de casa. Ora, a rua em que habitava o miserável era escusa e sombria… Não havia que hesitar: comprei um revólver de seis tiros e as competentes balas.

— E há de ser amanhã mesmo! — jurei comigo.

E deliberei passar o resto desse dia a familiarizar-me com a arma no fundo da chácara; mas, logo às primeiras detonações, os vizinhos protestaram. Interveio a polícia e eu tive de resignar-me a tomar um bode da Tijuca e ir continuar o meu sinistro exercício no hotel Jordão.

Ficou, pois, transferido o terrível desígnio para mais tarde. Eram alguns dias de vida que eu concedia ao desgraçado.

No fim de uma semana, estava apto a disparar sem receio de perder a pontaria. Voltei para o meu cômodo de rapaz solteiro; acendi um charuto, estirei-me no canapé e dispus-me a esperar pela hora.

— Mas — pensei já à noite — quem sabe se Ester não exagerou a coisa?… Ela é um pouquinho imaginosa… Pode ser que, se eu falasse ao tutor de certo modo… Hein? Sim! É bem possível que o homem se convencesse e… Em todo o caso — que diabo! — nada perderia eu em tentar!… Seria até muito digno de minha parte… Está dito! — resolvi, enterrando a cabeça entre os travesseiros. — Amanhã procuro-o; faço-lhe o pedido com todas as formalidades. Se o estúpido negar, insisto, falo, discuto; e, se ele, ainda assim, não ceder, então bem, zás! Morreu! Acabou-se!

No dia imediato, de casaca e gravata branca, entrava eu na sala de visitas do meu homem.

Era domingo e, apesar de uma hora da tarde, ouvi barulho de louça lá dentro.

Mandei o meu cartão. Meia hora depois apareceu-me o velhote, de rodaque branco, chinelas, sem colete, palitando os dentes.

A gravidade do meu traje desconcertou-o um tanto. Pediu-me desculpa por me receber tão à frescata, ofereceu-me uma cadeira e perguntou-me ao que devia a honra daquela visita. Que, lhe parecia, tratava-se de coisa séria…

— Do que há de mais sério, senhor comendador Furtado! Trata-se da minha felicidade! Do meu futuro! Trata-se da minha própria vida!

— Tenha a bondade de pôr os pontos nos ii.

—Venho pedir-lhe a mão de sua filha.

— Filha?

— Quer dizer: sua pupila.

— Pupila?!

—Sim, sua adorável pupila, a quem amo, a quem idolatro e por quem sou correspondido com igual ardor. Se ela não o declarou ainda a V.Sa. é porque receia com isso contrariá-lo. Creia, porém, senhor comendador, que…

— Mas, perdão, eu não tenho pupila nenhuma!

—Como?! E dona Ester?

— Ester?!

— Sim! A encantadora, a minha divina Ester! Ah! Ei-la! É essa que aí chega! —exclamei, vendo que a minha estremecida vizinha surgiu na saleta contígua.

— Esta?! — balbuciou o comendador, quando ela entrou na sala. — Mas esta é minha mulher!
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Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu em São Luís/MA, em 1857 e faleceu em 1913, em Buenos Aires/Argentina. Caricaturista, jornalista, escritor e cônsul brasileiro. Sua trajetória literária inaugurou a estética naturalista no Brasil. Demonstrou, desde muito jovem, grande interesse por desenho e pintura, o que o levou a mudar-se para o Rio de Janeiro em 1876, a fim de matricular-se na Imperial Academia de Belas Artes. Para manter-se na capital, desenhava caricaturas para os jornais O Fígaro, A Semana Ilustrada, O Mequetrefe, e Zig-Zag. Também rascunhava cenas de romances. Em 1878, retorna a São Luís, onde dá início à sua carreira de escritor no ano seguinte, com o romance “Uma lágrima de mulher”, ainda aos moldes da estética romântica. Trabalha também para a fundação do jornal O Pensador, publicação anticlerical e abolicionista. Em 1881, lança seu primeiro romance naturalista, “O mulato”, abordando o assunto do preconceito racial. Bem recebido na corte, apesar da temática da obra ter sido considerada escandalosa, Aluísio embarca de volta para o Rio de Janeiro, decidido a ganhar a vida como escritor. Produz diversos folhetins, que garantiam sua sobrevivência. Nos intervalos dessas publicações, geralmente melodramáticas e românticas, dedicava-se à pesquisa e à escrita naturalista, que o consagrou como grande autor brasileiro. Foi nessa época que lançou suas principais obras, Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). Aprovado em concurso para o cargo de cônsul em 1895, abandona a carreira literária. Reside na Espanha, no Japão, na Inglaterra, na Itália, na França, no Uruguai, no Paraguai e na Argentina, onde falece, em Buenos Aires, em 1913.

Fontes: 
Gazeta de Petrópolis. RJ: 6 de novembro de 1897. Disponível em Domínio Público.   
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Mark Twain (Inspeção na arca de Noé)


Ninguém poderá negar que são verdadeiramente notáveis os progressos realizados na arte da construção naval desde os tempos em que Noé construiu o seu navio. As leis da navegação talvez não existissem ou pelo menos não eram aplicadas rigorosamente. Agora, elas são tão sabiamente combinadas que, à primeira vista, parecem papel de música. O pobre patriarca não poderia fazer hoje o que fez com tanta facilidade naquela época, pois a experiência, mestra da vida, ensinou-nos que é necessário preocuparmo-nos com a segurança das pessoas dispostas a atravessar os mares.

Se Noé quisesse sair do porto de Bremen, as autoridades lhe negariam redondamente o certificado de navegação. Os inspetores poriam toda espécie de defeitos à sua esplêndida embarcação.

Vocês podem imaginar, em todos os seus pormenores, o diálogo entre o patriarca-marinheiro e as autoridades? Chega o inspetor, vestido impecavelmente com um vistoso uniforme militar, e todos se sentem constrangidos pelo respeito diante da majestade que brilha em sua pessoa. É um perfeito cavalheiro. De uma finura requintada, mas tão imutável como a própria estrela polar, desde que se trate do cumprimento dos seus deveres oficiais.

Começaria por perguntar a Noé o nome da povoação do seu nascimento, sua idade, a religião ou seita a que pertencia, o montante de sua renda, sua profissão habitual, sua posição na escala social, o número de seus filhos e de seus criados, e o sexo e idade de seus filhos e criados! Se o patriarca não estivesse provido de passaporte, seria obrigado a preparar todos os papéis necessários. Feito isto — nunca antes — o inspetor visitaria a arca.

— Comprimento?

— Duzentos metros.

— Altura da linha de flutuação?

— Vinte e dois metros.

— Material de construção?

— Madeira.

— Pode-se especificar?

—Cedro e acácia.

—Pintura e verniz?

—Piche por dentro e por fora.

— Passageiros?

— Oito.

 —Sexo?

—Quatro homens e quatro mulheres.

 —Idade?

—A mais jovem tem cem anos.

 —E o chefe da expedição?

 —Seiscentos.

 —Pelo que vejo, o senhor vai a Chicago. Fará negócio na exposição. Nome do médico?

 —Não levamos médico.

 —Tem que levar médico e também um agente funerário. São requisitos indispensáveis. Pessoas de certa idade não podem se aventurar em uma viagem como esta sem grandes precauções. Tripulantes?

—As oito pessoas mencionadas.

—As mesmas oito pessoas?

—Sim, senhor.

—Já prestaram seus serviços à marinha mercante?

—Não, senhor.

—E os homens?

— Também não.

—Qual dos senhores já navegou?

—Nenhum.

—Que profissão tiveram até hoje?

—Agricultores e fazendeiros.

—Como o navio não é a vapor, precisa pelo menos de uma tripulação de oitocentos homens. É preciso procurá-los, custe o que custar. É necessário também ter quatro imediatos e nove cozinheiros. Quem é o capitão?

—Este seu criado.

—É preciso um capitão. E é necessário, pelo menos, uma camareira e oito enfermeiras para os oito anciãos. Quem fez o projeto e os detalhes do navio?

—Eu.

—É a sua primeira experiência?

—Sim, senhor.

—Já supunha. Que carga leva?

—Animais.

 —De que espécie?

—De todas.

—Que animais domésticos leva a bordo?

 —Quase todos são selvagens.

—Exóticos ou do país?

—Principalmente exóticos.

—Enumere os mais notáveis.

— Megatérios, elefantes, rinocerontes, leões, tigres, lobos, serpentes; numa palavra, levo animais de todos os climas. Um casal de cada espécie.

—As jaulas estão solidamente construídas?

—Não há jaulas.

—É preciso levar jaulas de ferro. Quem é o encarregado de alimentar as feras?

—Nós.

—Os oito anciãos?

—Sim, senhor.

— É um perigo para as feras e, sobretudo, para os anciãos. Precisa de empregados competentes, muito fortes e habituados a esse trabalho. Número de animais?

 —Grandes, sete mil. Contando todos, grandes, médios e pequenos... noventa e dois mil.

—Precisa de mil e duzentos empregados. Que método de ventilação adotou: ou melhor, quantas janelas e portas tem a embarcação?

—Duas janelas.

—E onde estão?

—Junto ao respiradouro.

—E um tonel de duzentos metros conta apenas com dois respiradouros? É impossível permitir isso. Terá que abrir janelas e instalar iluminação elétrica. Não podemos permitir a partida sem que a embarcação leve, pelo menos, uma dúzia de lâmpadas voltaicas e mil e quinhentas lâmpadas de outra espécie. Número de bombas?

—Não temos bombas.

—É preciso instalar bombas. Como conseguirá água potável para as pessoas e bichos?

—Penduraremos tonéis nas janelas.

—Não podemos aceitar isso. Força motriz?

—Força... o quê?

—Força motriz. Preste atenção. Como fará o navio andar?

—Eu não emprego força. Ando sozinho.

—Precisará velas ou vapor. Tem leme?

—Não.

—Como governa a embarcação?

 —Não a governamos.

 —Precisa instalar tudo o que é necessário para o leme. Âncoras?

 —Não temos.

 —São necessárias seis pelo menos. Se não levar seis, não lhe permitiremos navegar. Tem lanchas salva-vidas?

—Não.

—É preciso vinte e cinco. Há salva-vidas?

—Não.

—Precisa dois mil. Quanto tempo durara a travessia?

—Um ano, mais ou menos.

— Vai ser longa. Enfim, ainda chegará a tempo para a exposição. Que material empregou para o casco?

—Nenhum especial.

—Mas, homem de Deus, a brincadeira vai rebentar o navio, e antes de um mês não restará dele senão destroços. O senhor está irremediavelmente destinado a habitar os profundos abismos do oceano. Sem um bom reforço metálico, não sairá daqui. E, já ia esquecendo de fazer uma advertência: Chicago fica no interior do continente e com este navio não pode chegar até lá.

—Chicago? Mas que história é essa de Chicago? Nunca pensei em ir lá.

—É verdade? Mas então não compreendo por que leva tantos animais a bordo.

— São animais de reprodução.

 —Não são suficientes os que existem no mundo?

 —São, para o estado atual da civilização. Mas como os outros animais vão ser afogados pelo dilúvio, estes servirão para garantir a perpetuação de suas espécies.

—Dilúvio, diz o senhor?

—Sim, senhor. Um dilúvio.

—Tem certeza?

—Absoluta. Choverá durante quarenta dias e quarenta noites.

 —E o senhor se preocupa por isso? Aqui chove até oitenta dias e oitenta noites.

—Mas não se trata de uma chuva como essas. A que cairá, há de cobrir os cimos das mais altas montanhas, e fará desaparecer a superfície da Terra.

 —Se assim é, e isso sem compromisso, devo dizer-lhe que não lhe resta outra solução que não seja o uso do vapor ou da vela: precisará prover-se de máquinas a vapor, pois não poderá levar água para onze ou doze meses. Além disso, precisará de um potente condensador.

— Já lhe disse que colocarei tonéis nas janelas.

—Mas que ingenuidade! Antes que o dilúvio tenha coberto as mais altas montanhas, toda a água doce se terá transformado em uma salmoura pelo efeito da água do mar. O senhor precisará de uma máquina a vapor para destilar a água. Vejo, efetivamente, que é este seu primeiro passo na arte da construção naval.

 —É verdade. Nunca fiz estudos especiais e procedi sem conhecimento das respectivas noções.

—Considerando as coisas desse ponto de vista especial, considero verdadeiramente notável a sua obra. Juraria que jamais foi lançada à água uma embarcação de caráter tão extraordinário.

—Agradeço-lhe muito os elogios que me faz. A recordação que guardarei da sua visita será imperecível. Muito obrigado, mil vezes obrigado, e adeus, senhor.

—Será inútil que diga adeus, velho e venerável patriarca! Sob o exterior afetuoso e cortês desse inspetor alemão, oculta-se uma vontade de ferro. Juro-lhe, velho e venerável patriarca, que o inspetor não autorizará a sua partida.
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MARK TWAIN, nome verdadeiro Samuel Langhorne Clemens, nasceu em 30 de novembro de 1835, na pequena cidade de Florida, Missouri, EUA. Ele cresceu em Hannibal, uma cidade ribeirinha que influenciou muito suas obras. Twain era o sexto de sete filhos, mas apenas três de seus irmãos sobreviveram até a idade adulta. A vida de Twain foi marcada por dificuldades financeiras, especialmente após a morte de seu pai em 1847. Ele abandonou a escola aos 12 anos para ajudar a sustentar a família, trabalhando como aprendiz de tipógrafo em um jornal local. Essa experiência despertou seu interesse pela escrita e pela literatura. Antes de se tornar um escritor famoso, Twain trabalhou em várias ocupações, incluindo piloto de barco a vapor no rio Mississippi, uma experiência que mais tarde influenciaria suas histórias. Durante a Guerra Civil Americana, ele se juntou a uma milícia da Confederação, mas logo abandonou essa carreira para se mudar para Nevada, onde começou a escrever. A carreira de Twain como escritor começou a ganhar destaque em 1865, quando ele publicou o conto "The Celebrated Jumping Frog of Calaveras County." O sucesso deste conto o levou a se estabelecer como um autor de renome. A partir daí, Twain começou a publicar uma série de obras que se tornaram clássicos da literatura americana. Mark Twain é conhecido por suas obras icônicas e sua escrita satírica. Algumas de suas principais obras incluem: “As Aventuras de Tom Sawyer”(1876): Um romance que narra as travessuras de um garoto que vive no sul dos EUA; “As Aventuras de Huckleberry Finn” (1884): Considerado um dos maiores romances americanos, aborda questões sociais e raciais através da jornada de Huck e Jim, um escravo fugitivo; “O Príncipe e o Mendigo”* (1881): Uma história sobre duas crianças que trocam de lugar, explorando temas de classe social e identidade; “A Morte de um Caixeiro Viajante” (1891): Uma crítica ao capitalismo e à sociedade americana. Twain teve uma vida pessoal tumultuada. Casou-se com Olivia Langdon em 1870, e o casal teve quatro filhos. No entanto, Twain enfrentou várias tragédias familiares, incluindo a morte de sua esposa e de três de seus filhos, o que profundamente afetou sua escrita e sua visão de mundo. Mark Twain faleceu em 21 de abril de 1910, em Redding, Connecticut. Sua obra continua a ser estudada e admirada, e ele é lembrado como um dos maiores escritores da literatura norte-americana. Twain não apenas entreteve seus leitores, mas também desafiou as normas sociais de sua época, deixando um legado duradouro que ressoa até os dias de hoje.

Fontes: 
Jornal Carioca. n. 626. 02/10/1947. pag.6 e 58.
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