quarta-feira, 28 de maio de 2025

Asas da Poesia * 29 *

 

Soneto de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

O saber

O saber, que arrebata e que mantém ativo
o lampejo do gênio e a fluência da história,
abre portas e as fecha, em rigor decisivo,
soberano senhor das chaves da memória.

Esse mesmo saber pode tornar cativo
o incauto que se ilude às promessas de glória
e, a erguer-se em pedestal, não mais que tolo altivo,
permite que a soberba o enleie compulsória!

Ao ver tombar ao chão seus castelos e aprumos,
na busca ao próprio eu, o homem se desengana
a revelar-se anão de limitados rumos!

Sem saber de onde vem, sequer sabe quem é!...
- Toda arrogância vã, toda a vaidade humana,
desmoronam aos pés, humílimos, da Fé!
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Poema de 
ANTONIO JURACI SIQUEIRA
Belém/PA

Há horas que o homem deve
estar só com seus consigos;
outras vezes quer chamego
quer ombros, braços, abrigos…
Deve, pois, ser uma ilha
cercada de… mil amigos!
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Você ontem me falou
que não anda, não passeia,
como é que hoje cedinho
eu vi seu rasto na areia?
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Soneto de
VINICIUS DE MORAES
Rio de Janeiro/RJ, 1913 – 1980

Soneto a Quatro Mãos

Tudo de amor que existe em mim foi dado
Tudo que fala em mim de amor foi dito
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.

Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.

Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.

Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.
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Soneto de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA (1847 – 1871) Salvador/BA

Aqui, onde o talento verdadeiro
Não nega o povo o merecido preito;
Aqui onde no público respeito
Se conquista o brasão mais lisonjeiro.

Aqui onde o gênio sobranceiro
E, de torpes calúnias, ao efeito,
Jesuína, dos zoilos* a despeito,
És tu que ocupas o lugar primeiro!

Repara como o povo te festeja...
Vê como em teu favor se manifesta,
Mau grado a mão, que, oculta, te apedreja!

Fazes bem desprezar quem te molesta;
Ser indif'rente ao regougar** da inveja,
"Das almas grandes a nobreza é esta."
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* zoilos = críticos invejosos, apaixonados.
** regougar = resmungar.
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Soneto de
MARTINS FONTES
Santos/SP, 1884 – 1937

Crepúsculo

Alada, corta o espaço uma estrela cadente.
As folhas fremem. Sopra o vento. A sombra avança.
Paira no ar um langor de mística esperança
e de doçura triste, inexprimivelmente.

À surdina da luz irrompe, de repente,
o coro vesperal das cigarras. E mansa,
E marmórea, no céu, curvo e claro, balança,
entre nuvens de opala, a concha do crescente.

Na alma, como na terra, a noite nasce. É quando,
da recôndita paz das horas esquecidas,
vão, ao luar da saudade, os sonhos acordando...

E, na torre do peito, em plácidas batidas,
melancolicamente o coração chorando,
plange o réquiem de amor das ilusões perdidas.
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Haicai do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Minha mãe, de joelhos,
com o velho terço entre os dedos,
pede a Deus, conselhos!
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Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Enerva-me esta chuva impertinente
(Fernandes Valente Sobrinho in "Poemas Escolhidos", p. 127)

Enerva-me esta chuva impertinente
Que tomba lá dos céus feitos de breu
E as gotas são o pranto que nasceu
De nuvens que tivessem dor de gente.

O vento ainda faz mais repelente
Cada pingo que o meu rosto ofendeu
Lágrima que do ar se desprendeu
Como um cristal da mágoa que alguém sente.

A chuva tudo alaga, tudo invade
Deixando o fino véu dessa umidade
Caído pelo chão, pênsil dos ramos.

E sobe uma revolta ao meu olhar;
Por que há de a Natureza assim chorar
Do modo como nós também choramos?
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Poema de
MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

Gonçalves Crespo

Esta musa da pátria, esta saudosa
Níobe dolorida,
Esquece acaso a vida,
Mas não esquece a morte gloriosa.

E pálida, e chorosa,
Ao Tejo voa, onde no chão caída
Jaz aquela evadida
Lira da nossa América viçosa.

Com ela torna, e, dividindo os ares,
Trépido, mole, doce movimento
Sente nas frouxas cordas singulares.

Não é a asa do vento,
Mas a sombra do filho, no momento
De entrar perpetuamente os pátrios lares.
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Poemeto de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

Um olhar pode eternizar um momento
mas uma noite não dura para sempre.
Um sorriso às vezes é aconchego, ou
pode ser um retrospecto, um lamento.
Mas na noite... O sonho torna-se cura.
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Soneto de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

Mudança de rumo

Não consigo entender tua procura
e essa corrida que não tem descanso,
se a vida foi madrasta, triste e dura,
melhor é procurar outro remanso.

Às vezes, o capricho é uma loucura,
não traz felicidade nem avanço
na procura da Paz e da Ventura,
o Amor fala mais alto, embora manso.

Por que buscar carinho na incerteza,
se aqui mesmo tens luz e tens beleza
que podem transformar o teu desejo?

É melhor prosseguir naquela estrada
onde a felicidade fez morada
e estará te esperando com um beijo.
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Poema de
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/ Portugal

Mais

O teu coração nunca me amou,
o teu olhar nunca me encontrou.
E as vezes em que a tua pele a minha tocou,
foram vezes vazias, 
de ti nada ficou…

E eu queria receber mais, 
apenas uma réstia
do que sempre te dei.

As horas, os minutos e os segundos,
o tempo que te dediquei,
deitaste fora sem pensar
que me poderias magoar.

Dei-te o que nunca tive em troca,
porque quem ama
também espera ser amado.
Mas em vez de amor
recebi a dor 
de um ser abandonado.

E eu queria receber mais, 
apenas uma réstia
do que sempre te dei.

Os passos lentos que davas
quando eu corria
e caía nos teus braços.
Sorria-te,
ignoravas-me.

Pedia-te tempo,
dizias ter pressa.
E a cada momento
uma promessa.

E eu queria receber mais, 
apenas uma réstia
do que sempre te dei.

Nunca soubeste o que era o amor.
A vida, para ti, sempre foi fugaz,
intensa de coisas banais.
Nunca perdeste o teu tempo
para ser mais.
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Poema de
SILMAR BOHRER
Caçador/SC

Lágrimas
         
 A nossa vida é um padecer incessante.
Em cada lágrima um mistério profundo
verte nos olhos o tormento constante
que aflige a alma humana neste mundo.

Em cada lágrima sangra com ardimento
a ferida duma paixão que silenciamos
e escorre da intimidade o sofrimento
pelo delírio do amor que alimentamos.

Em cada lágrima vivemos a desventura
dum adeus tristonho e o mais sagrado
anseio da volta esperada com ternura.

Em cada lágrima existe uma constância
a instruir que só após termos chorado
aprendemos a ver melhor uma distância.
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Poeminha de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Ostras
e palavras.
Conteúdo:
pérolas.
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Soneto de
JÉRSON BRITO
Porto Velho/ RO

O cálice

As madrugadas atravesso em claro
Tendo este cálice por companhia,
Sorvo d'angústia o paladar amaro,
Nada mais fulge, nada me alumia.

Quanto negrume verte meu suspiro,
Essa lembrança, quando vem, magoa,
Nenhum alento no horizonte miro,
Somente um brado lastimoso ecoa.

Devaneando nest'alcova escura
Vejo-me à beira dum abismo fero.
Nem mesmo estrelas tem o céu... Nem lua!

A dor me cinge e se tornou clausura,
Se regressares, meu amor, espero
Embebedar-me da meiguice tua.
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Poetrix de
TASSO ROSSI
Porto Velho/RO

Geométrica Mente

tuas curvas,
meus planos…
tangentes.
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Poema de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/SP

Eu e o tempo

Nos meus poemas faço uma profunda reflexão
sobre  o  sentido da vida.
Vivi, vivo, sofro e faço versos.
Mas a vida engole com sofreguidão as minhas rimas,
as  minhas  metáforas,  meus  tempos  verbais,
que  tanto  sustentaram  meus quereres.
 E meus poemas já pedem escoras.
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Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Antes de nós

Quando eu partir para o destino derradeiro
Irá  comigo, o amigo que... ficar
e eu dormirei dentro da luz do seu olhar 
mais fraternal, mais luminoso e prazenteiro.

Ele há  de rir, sorrir, cantar o que eu cantei,
lembrar-se-á até  das minhas gargalhadas,
remoerá, com alegria, as piadas
que me contou e que eu também já lhe contei.

Se ele se for antes de mim, hei de guardá-lo 
no coração, porque a bênção  fraternal
que há em nós há de fazer-me preservá-lo 

e preservar- me dentro do seu coração, 
porque o amor que torna o outro tão  igual. 
sempre abençoa quem foi verdadeiro irmão.
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Poema de
J. G. DE ARAÚJO JORGE
Tarauacá/AC (1914 – 1987) Rio de Janeiro/RJ

A espera

Ela tarda... E eu me sinto inquieto, quando
julgo vê-la surgir, num vulto, adiante,
- os lábios frios, trêmula e ofegante,
os seus olhos nos meus, linda, fitando...

O céu desfaz-se em luar... Um vento brando
nas folhagens cicia, acariciante,
enquanto com o olhar terno de amante
fico à sombra da noite perscrutando...

E ela não vem...Aumenta-me a ansiedade:
- o segundo que passa e me tortura,
é o segundo sem fim da eternidade...

Mas eis que ela aparece de repente!...
- E eu feliz, chego a crer que igual ventura
bem valia esperar-se eternamente!...
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Soneto de
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

Beijos de verdade
(Anadiplose*)

Verdade! Beijos poéticos, dei!...
Dei no rosto, com afeto e carinho.
Carinho à cova dos seios, sonhei;
Sonhei e me deliciei de mansinho.

De mansinho, fui; te beijei na nuca;
Na nuca, sempre pensei te beijar.
Beijar devagar, te deixar maluca;
Maluca, enfim, sem poder disfarçar.

Disfarçar, nunca foi, aliás, teu forte.
Forte é, mesmo, o amor que sinto por ti.
Por ti, faço tudo, busco meu norte.
Meu norte é teu rumo, eu não desisti.

Eu não desisti de abraçar-te ao vivo.
Ao vivo, em cores, sentir teu calor.
Calor presente, eis um forte motivo.
Motivo que sublima nosso amor.

Amor tão sofrido alimenta os sonhos.
Sonhos tais de te abraçar à vontade...
Vontade de ver teus lábios risonhos.
Risonhos, para beijos de verdade!
_____________________________
(*) - Figura de linguagem que consiste na repetição da palavra (ou últimas  palavras) de um verso (frase) como palavra(s) inicial(ais) do verso seguinte.
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Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

Anjos e demônios

Se acaso ainda sofre, noite afora,
em sua infinitude mal dormida;
se a insônia, em noites tristes, apavora
e o pranto ainda inunda a sua vida...

Talvez seja o momento, então, querida,
de ponderar que enquanto você chora 
minha alma, aqui, também está sofrida
e a dor da despedida me devora.

Bem sei que tenho em mim algum defeito
mas nem por isso a vejo no direito
de impor a culpa inteira a mim somente.

Nenhum de nós é santo ou pecador,
mas creio que erra ainda mais, amor,
não assumindo o que deveras sente!...
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Poema de
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964

Alva

Deixei meus olhos sozinhos
nos degraus da sua porta.
Minha boca anda cantando,
mas todo o mundo está vendo
que a minha vida está morta.

Seu rosto nasceu das ondas
e em sua boca há uma estrela.
Minha mão viveu mil vidas
para uma noite encontrá-la
e noutra noite perdê-la.

Caminhei tantos caminhos,
tanto tempo e não sabia
como era fácil a morte
pela seta do silêncio
no sangue de uma alegria.

Seus olhos andam cobertos
de cores da primavera.
Pelos muros de seu peito,
durante inúteis vigílias,
desenhei meus sonhos de hera.

Desenho, apenas, do tempo,
cada dia mais profundo,
roteiro do pensamento,
saudade das esperanças
quando se acabar o mundo…
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Trova de
NEI GARCEZ
Curitiba/PR

Há emoções que a gente sente
e, que encantam tanto, tanto,
que, se expressas, verbalmente,
perdem parte deste encanto.
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Soneto de
EMÍLIO DE MENESES
Curitiba/PR, 1816 – 1918, Rio de Janeiro/RJ

A chegada

Noite de chuva tétrica e pressaga*.
Da natureza ao íntimo recesso
Gritos de augúrio vão, praga por praga,
Cortando a treva e o matagal espesso.

Montes e vales, que a torrente alaga,
Venço e à alimária** o incerto passo apresso.
Da última estrela à réstia ínfima e vaga
Ínvios*** caminhos, trêmulo, atravesso.

Tudo me envolve em tenebroso cerco
D'alma a vida me foge, sonho a sonho,
E a esperança de vê-la quase perco.

Mas uma volta, súbito, da estrada
Surge, em auréola. o seu perfil risonho,
Ao clarão da varanda iluminada!
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*Pressaga = que pressagia, prevê ou pressente
**Alimária = animal de carga
***Ínvios = Em que não se pode passar, transitar em caminho, estrada etc.).
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Quadra Popular

Sonhei contigo esta noite,
mas oh! que sonho atrevido!
Sonhei que estava abraçado
à forma do teu vestido !
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Epigrama de
ROBERTO CORREIA
Salvador/BA 1876 – 1937

Carroceiro, desalmado,
– diz o burro – vê que tu és
meu irmão! mas, aleijado,
que nasceste com dois pés!
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Martelo Agalopado de
JOSÉ CAMELO DE MELO REZENDE
Pilõezinhos/Distrito de Guarabira/PB, 1885 – 1964, Rio Tinto/PB

O orgulho nasceu em noite escura, 
E é filho da triste ignorância, 
Ao descer o seu corpo à sepultura, 
Cai-lhe verme por cima, em abundância, 
E seu todo se torna uma figura, 
Que nos causa a maior repugnância. 
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Haicai de
HANA HARUKO
(Clevane Pessoa de Araújo Lopes)
Belo Horizonte/MG

Pássaros canoros 
Energia em expansão 
Almas projetadas… 
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Trova de
ARTHUR THOMAZ
(Arthur Thomaz da Silva Neto)
Campinas/SP

Não tem preço, a amizade,
é o ditado popular.
E os amigos de verdade
são difíceis de encontrar.
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Carlúcio Oliveira Bicudo (Tô cansado!)


─ Alfredo, vá ao supermercado pra mim?

─ Ah, mãe! Estou tão cansado!

─ Ai... Ai... Cansado de que, Alfredo?

─ Mãe, a senhora pensa que não cansa ficar o dia todo batendo pernas?

─ Alfredo, você é demais, meu filho. Tão novo e já cansado. Pelo jeito, já nasceu cansado, não é?

─ A senhora diz isso porque não brinca com pipas e nem de pique de esconder. Queria ver a senhora disputando corridas com o Luís Pesão.

─ Deixe de bobagem, moleque! Tenho muito que fazer todos os dias. Lavo, passo, cozinho, arrumo a casa e, de quebra, ainda tenho que pôr você para tomar banho todos os dias.

─ Ué! A senhora não se cansa desta trabalheira toda?

─ Claro que sim, meu filho, mas tenho que fazer. Se não fizer, quem fará o meu trabalho?

─ Deixe para o papai fazer.

─ Seu pai? Coitado! Passa o dia todo pegando no pesado lá na fábrica. Quando chega em casa é mais do que justo que descanse para começar tudo de novo no outro dia.

─ Pois é, o meu pai, a senhora diz que vive cansado. E eu? Por que não posso me cansar? Afinal, todos os dias eu corro para esticar as pernas. Tento dominar o vento com as minhas pipas multicoloridas.

─ É, pelo jeito, você anda muito ocupado mesmo, não é filho?

─ E como! A senhora não sabe o trabalhão que dá  ficar contando carneirinhos ou descobrindo novos animais escondidos nas nuvens. E contar estrelas durante a noite, como é cansativo.

─ Já vi tudo. Eu mesma terei que ir ao supermercado. Esse menino, pelo jeito, anda com a mente ocupada demais.

 ─ Ainda bem que a senhora entendeu, mamãe!  Eu ainda tenho que descobrir um jeito de mudar as cores do arco-íris. A senhora não sabe o trabalhão que dá ficar pensando num jeito para que isso seja possível. Isso dá uma canseira!

─ Toma tento, menino, não tá vendo que isso é praticamente impossível?

 ─ Que nada! Já projetei novo modelo de casa para o João de Barro. Inventei um jeito de domesticar piolho.

─ O que você está falando, menino? Já estou ficando cansada de ouvir tantas asneiras. Você tá ficando é louco!

─ Louco não, mãe! Tô cansado!

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Paulo Lima (Corpo estranho)


Até o dia em que fez a terrível descoberta, Ana podia dizer que levava uma vida estável e satisfatória. Bom emprego, filhos já crescidos e um marido compreensivo e amigo. “Um companheirão”, era seu cartão de visitas sempre que se referia a ele, romantizando um casamento de vinte e cinco anos com raras manifestações de ciúmes de ambas as partes. Mas era mais velha que ele, e a diferença de cinco anos despertava o receio de que um dia ele pudesse trocá-la por outra mais jovem. Ela nunca discutia esses temores abertamente. Cuidava de manter a forma em dia, como um atleta que precisa estar sempre pronto para uma prova.  Encontrava uma brecha em sua rotina para ir ao menos duas vezes por dia à academia. Produtos especiais para o corpo ocupavam uma margem elevada em seu orçamento. Já passara por pelo menos três cirurgias plásticas para consertar alguma imperfeição que só ela via em si mesma. Se, ao se observar no espelho, notava uma nova ruga, entrava em pânico. O dia estava irremediavelmente perdido. Mas nada podia se comparar ao sentimento de pavor que a invadia, caso ela, explorando o próprio corpo, concluísse que a nádega já não exibia a mesma solidez. Tatear a si mesma buscando imperfeições era um hábito que ela cultivava da mesma forma como se cultiva um hobby ou esporte favorito.
            
Não se pode afirmar que o zelo em excesso pela própria imagem fosse um sintoma de futilidade ou de egocentrismo da parte dela. Uma vez por semana, Ana doava parte do seu tempo às reuniões da Associação de Adultos com Traumas Psicológicos, o que era um atestado de que se preocupava com as pessoas. Havia também nessa atitude um sentido utilitário. “O contato com aquela gente faz com que eu me conheça melhor”, era o que dizia.    
            
Mas havia também um pragmatismo em sua atividade. Ela podia exercer, ainda que de forma muito incipiente, as funções de socióloga, aspiração que o casamento precoce e um emprego público tolheram por completo.

Parte do trabalho na Associação consistia em receber de tempos em tempos uma ou outra vítima para um trabalho de socialização na casa de um dos associados. Era uma chance de ouro, pensava Ana, de conhecer melhor uma personalidade marcada por uma tragédia que muitas vezes se localizava num ato de violência cotidiana, como um roubo, um sequestro ou um estupro. Cuidar da resiliência dessas vítimas a traumas diversos era um trabalho que envolvia paciência e dedicação. Tantas vezes ela falou essa palavra em casa, resiliência, que praticamente a incorporou ao linguajar da família. Todos haviam aprendido seu sentido exato, e gostavam de usar a palavra quando queriam conferir um grau de importância ao trabalho dela.

A família ainda se lembrava de um homem já velho que Ana trouxe para um almoço, como parte dessas visitas de socialização e resiliência. Esse homem tinha um trauma curioso: jamais usava elevadores. Com a cidade cada vez mais apinhada de prédios altos, era possível imaginar suas dificuldades para levar uma vida normal. O homem resolvia todos os compromissos vencendo degraus e mais degraus, mesmo que o prédio fosse muito alto. Com o tempo adquirira uma capacidade aeróbica invejável. Até se transformara num corredor de maratona mediano favorecido pela força que seu corpo conquistara ao longo dos anos. O trauma, ele explicou durante o almoço, surgiu do nada quando ele completou 20 anos de idade.  Mas traumas não aparecem assim – plim! – do nada. O homem frequentava a Associação já há alguns anos, mas ainda não se livrara do trauma, nem mesmo o havia diagnosticado, embora se sentisse confortável entre criaturas com dificuldades aparentemente insuperáveis.

Um dia Ana recebeu a notícia de que aquele homem morrera de repente de ataque cardíaco ao subir as escadas do prédio em que morava. A notícia só não a abalou mais do que a descoberta que ela veio a fazer no dia seguinte ao ver, na roupa do marido, um pelo muito longo que não condizia nem com o seu padrão (louro e encaracolado), nem com o do marido (já grisalhando nas partes baixas).

Ana isolou o pelo com o mesmo zelo e curiosidade aguda de um pesquisador que acabou de descobrir um tipo raro de vírus ou bactéria durante um exame.  De repente, as paredes do quarto se estreitaram na mesma proporção em que sua respiração ia se tornando pesada. Ela estava em choque atingida pela intuição do que aquele pelo poderia significar. A palavra se alojou lá no fundo de sua mente e pressionava para vir à tona. Seu ritmo cardíaco se acelerou, como se seu corpo inteiro fosse explodir pelas têmporas. Ana reprimia os pensamentos, mas a palavra por fim aflorou, e Ana não pôde conter o choro.

Traição.

Não que em muitas ocasiões ela não tivesse pensado que aquilo não ocorreria. Já vira os exemplos que aconteceram muito perto, com amigas e até na própria família. Há pouco tempo, testemunhou o fim de um longo casamento de uma de suas melhores amigas. Ela podia apostar cem contra um que aquela relação jamais terminaria. Havia demonstrações públicas de carinho entre aquele casal. A notícia da separação a atingiu como uma bomba. Aquela, porém, era uma realidade muito distante dela, apesar de já estar casada há um bom tempo. O marido jamais demonstrara qualquer tipo de tédio com a relação. Jamais foi torturada por qualquer suspeita. Mas então ela descobriu aquele pelo, e a palavra, uma palavrinha persistente como um diabrete, começou a incendiar sua mente.   
              
“Minhocas, são tudo minhocas suas”, disse sua melhor amiga, a única a quem ela teve a coragem de confidenciar tudo. “Se fossem ao menos marcas de batom”, continuou. “E mesmo assim não seria nada”, consolou, “nada mesmo, pois uma colega dele podia tê-lo simplesmente cumprimentado no trabalho ou na rua”.

Ana pouco se convencera. Era como se um pelo inofensivo tivesse a capacidade de provocar uma rachadura de proporções imprevisíveis. Era como se um dique, até então seguro, tivesse se rompido. O que parecia uma relação estabelecida estava agora ameaçada. Nada pior do que uma suspeita. Ela pode se materializar com mais intensidade do que o fato que a origina. É como ser dominado por um monstro invisível e aterrorizante.   

 “De qualquer forma, fique de olho, nunca se sabe do que um homem é capaz”, aconselhou a amiga com um toque de humor na voz, mas suas palavras pouco efeito tiveram sobre Ana, já suficientemente assustada para dar ouvidos a qualquer outro assunto. Mas de uma coisa ela estava certa, dali em diante ficaria atenta às reações do marido.

Subitamente era como se um pequeno manto escuro tivesse se interposto entre ela e as coisas. No fundo ela estava um pouco deprimida, o que não era de estranhar em tal situação. O marido comentou que ela andava um tanto distante e calada ultimamente, mas ele era do tipo que deixava que as coisas seguissem seu curso, e não quis incomodar Ana com explicações. Sabia que a mulher, às vezes, era dada a mudanças de humor. Talvez fosse a proximidade da menopausa, foi o que pensou.

Ana guardou o maldito pelo numa caixa e a escondeu em lugar seguro numa cômoda do apartamento. Fora atingida de uma forma tão violenta que o teria guardado num cofre de banco, se fosse preciso. O pelo da discórdia, eis o que aquele fiapo de cabelo representava. Nem por um instante ela alimentou a ideia, plausível, de que tudo não passava de um engano. Afinal, um pelo não é uma digital. Ninguém tem um conhecimento pleno do que ocorre com seu próprio corpo. Outro dia ela mesma não havia percebido os primeiros pelos brancos surgirem em alguns pontos? Foi um choque, claro, uma descoberta que fez com que ela dobrasse a frequência à academia por duas semanas. E reforçasse seu estoque de cremes e unguentos miraculosos e rejuvenescedores.  

Talvez ela precisasse tirar a prova dos nove, a começar por ela mesma, com seu próprio corpo. Assim, aproveitou um instante de calma e privacidade e entregou-se a um ritual de reconhecimento do seu próprio território, examinando com vagar a topografia dos seus pelos pubianos. Estava convencida de que não possuía pelos tão longos, sempre fora loura, e seus pelos pareciam brigar entre si, de tão revoltos. Mas insistiu na exploração mesmo assim. Olhando-se refletida no pequeno espelho, se deu conta de que era ainda uma mulher bonita e desejável mesmo tendo passado dos 40. Poderia, se quisesse, arranjar um homem mais jovem, embora tais pensamentos a entristecessem, pois podiam significar que alguma coisa estava fora de controle. E tudo por causa de um pelo, de um maldito pelo.

Ela chegou à conclusão de aquele pelo não era dela. Definitivamente, não lhe pertencia. Se não era dela, só podia ser de outra, e a simples ideia de ser traída e deixada para trás a fez se sentir velha e inútil. Tinha agora de sondar o território dele, com cuidado, sem despertar suspeita.

Para aumentar ainda mais seu desespero, o marido chegou com a notícia de que iria ter de fazer uma viagem a trabalho. “Mas só por dois dias”, ele falou com um sorriso, para deixar claro que estava tudo bem entre eles. Ela não precisava se preocupar.

Foram dois dias infernais. Enquanto o marido estava fora, a Associação pediu que ela recebesse mais uma das vítimas de traumas psicológicos para um almoço ou um jantar. Dessa vez, a visita era uma jovem mulher que fora abandonada pelo marido enquanto ela estava no meio de uma gravidez. Nada assim fora dos registros. Quantos casamentos terminam exatamente no início, antes que os vícios se estabeleçam e a mesmice acabe decretando o fim da relação? Aquela mulher, porém, desenvolvera um medo pânico de novos relacionamentos, uma espécie de fobia, a tal ponto que tinha dificuldade até para sair de casa. O contato com a Associação tinha lhe proporcionado uma melhora, mas não a ponto de fazê-la crer outra vez no amor. Ana ouvia a mulher e se dava conta de como seu trauma soava absurdo, mas curiosamente não era capaz de ver como absurda sua própria desconfiança em relação a um pelo.

O marido voltou da viagem, e tudo parecia bem, como se nada tivesse acontecido, mas a verdade é que Ana desenvolvera uma série de manias em relação a ele, um ritual de desconfiança que implicava perscrutar suas roupas, especialmente as cuecas, com a precisão de um cirurgião. Era um ritual sadomasoquista, no qual ela desejava ardentemente encontrar um novo pelo que pudesse confirmar suas desconfianças, mas, por outro lado, sentia um grande medo de que pudesse estar certa.

Na prática, não se notou alterações no comportamento do marido, que demonstrava a mesma dedicação à mulher, o mesmo fervor na hora de fazer sexo, mesmo depois de tanto tempo de casamento, a mesma paciência com suas idiossincrasias. Mas Ana estava transtornada, um pequeno diabo se apossara de sua mente e lhe dizia constantemente para duvidar, para não esquecer o tal pelo.

Em pouco tempo Ana perdera muitos quilos, e o sucesso em conseguir um corpo mais magro e mais saudável era atribuído por todos à disciplina que ela dedicava aos exercícios, à academia e aos cuidados com a alimentação. Mas no fundo era um diabrete que não a deixava sossegar, que a atormentava dia e noite, tudo por causa de um pelo sem origem definida.        

Aos poucos Ana começou a mostrar algumas atitudes que, a princípio, pareceram que ela queria surpreender o marido com algum tipo de jogo erótico. Primeiro, ela pediu para cortar os pelos dele, e ele, convencido de que era mesmo um jogo, disse sim. Ele demorou um pouco a se acostumar com a ausência dos pelos, mas isso “logo cresce de novo”, foi o que Ana afirmou entre risadas. Depois foi a vez de ela mesma zerar os próprios pelos, mas a consequência dessa ação não foi uma “aquecida” no ato amoroso, e sim um estranho esfriamento, mais estranho pelo fato de que eles jamais deixaram de manter o interesse um pelo outro, mesmo depois de tantos anos de casamento.

O marido se deu conta de que algo estava errado quando, um dia, ao chegar em casa, encontrou o filhos assustados e preocupados com a mãe. “Pai, você acaba de ganhar uma nova mulher, talvez uma Sinead O’Connor”. O pai sorriu sem entender direito e quase tombou de susto quando Ana entrou na sala completamente careca. Ela tinha um olhar esquisito e repetia pelo menos três vezes a mesma frase, como se tivesse receio de esquecê-la. “Agora, querido, os pelos não serão mais problema”. E dizendo assim envolveu o marido num abraço tão apaixonado que acabou arrancando aplausos dos filhos.

Fontes:
Imagem criada por JFeldman com Microsoft Bing

Carol Canabarro (Dicas para o lançamento do seu livro)


Depois de passar os últimos meses colado na tela do computador escrevendo, revisando e editando seu livro, o tão esperado momento de soltá-lo no mundo se aproxima. Nessa hora, você se pergunta: qual o melhor lugar e como fazer o lançamento do livro?

Apesar de ser uma decisão pessoal e intransferível, aqui vão algumas dicas para transformar o dia do lançamento em algo mágico para você e para os seus leitores.

1. "Conhece-te a ti mesmo"

Escolha um ambiente onde você se sinta confortável. Desde o tipo de música (se é que vai haver alguma), até a cadeira da mesa de autógrafos devem ser "a sua cara". O restaurante do seu primo pode ser uma opção em conta, não fosse uma churrascaria e o fato de você ser vegano. Tenha como base as suas preferências.

2. "Não basta acertar o alvo, tem que atingir o objetivo"

Da mesma forma que você, seus leitores também querem ser acolhidos nesse dia especial. Escolha um ambiente que gere afinidade com o público-alvo. Se as potenciais compradoras são mulheres vanguardistas, lançar no salão da igreja pode não ser uma boa. Ou não! Vai que o objetivo é divulgar o livro dentro dessa comunidade? O essencial é saber exatamente quais os efeitos que você quer causar no seu público.

3. "Filho cria asas e quer voar"

Uma vez publicado, o livro passa a pertencer também aos leitores. Crie uma experiência em que isso fique marcado no seu público. Se a história do livro se passa nos anos 70, que tal decorar o espaço com objetos que remetam a essa época? Lembre-se que o livro é a personagem principal do dia, é ele quem deve ficar em evidência.

4. "Mostre, não diga"

Aproveite o lançamento para brincar com seu público. Use uma roupa que remeta a um momento especial da história, enfeite a mesa de autógrafos com a flor preferida da personagem, seja criativo. Além de divertida, essa interação sutil criará vínculos entre você, o livro e os leitores.

5. "A memória é mais indelével do que a tinta"

Tenha alguém para tirar fotos no dia. Pode ser uma fotógrafa profissional ou um amigo sagaz. O que importa é registrar o momento. Faça com que o dia do lançamento ecoe em publicações posteriores. Para tanto, projete um lugar para as fotos: pense no plano de fundo, na luminosidade e na sua postura. Tudo é importante e você vai adorar reviver esse dia.

6. "Se jogue na sua rede de apoio"

No dia do lançamento, seu foco está em interagir com os leitores, tudo o mais que puder ser delegado, delegue. Tenha alguém para recepcionar e acomodar os convidados, outra pessoa para realizar a venda dos livros e, se possível, uma boa alma para te lembrar de tomar água ou apagar qualquer foco de incêndio que possa atrapalhar seu dia. Estabeleça sua rede de apoio, assim você se sentirá mais seguro e poderá curtir como merece esse momento.

Mas é claro, pode acontecer de você não ter tempo ou disposição para organizar a própria "festa". Tudo bem, existem outras opções de lançamento como feiras literárias, eventos coletivos com outros autores ou um singelo lançamento virtual. De novo, faça o mais parecido com você, algo que transforme esse dia em um momento tão especial a ponto de querer repeti-lo mais vezes.
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Carol Canabarro, é de Porto Alegre/RS, apaixonada por literatura e animais. Foi atleta, garçonete, especuladora financeira e professora. pós-graduanda em Literatura, Arte e Filosofia da PUC-RS. Escritora, formada no curso de Escrita Criativa da Metamorfose, autora de "Mirando o gol, acertando as estrelas".

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing