quarta-feira, 4 de junho de 2025

Asas da Poesia * 32 *

 

Poema de
CRIS ANVAGO
Lisboa/ Portugal

Olhas
Inventas perfeições
Sonhos e fantasias
Moldas o rosto e o coração
Sonhas com as noites e os dias
Caminhas numa estrada repleta de flores
Desenhas amores e paixões
Juntas dois corações
Cantas a mesma melodia
Moldas com a imaginação
A pessoa ideal
Leal nas tuas convicções
Não pensas em mais nada
É claro, límpido como a água
Daquele rio com que sonhas
A mão na mão amada
Perfeição
Na imaginação
De um ser que inventas
A descoberta das imperfeições
acabam com o sonho perfeito 
da realidade outrora idealizada!
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Aldravia de
IRANILDA DIVINA RESENDE PAES
Pires do Rio/GO

chuva
fina
no
milharal
saudade
desaguando! 
= = = = = = 

Poema de
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/ Portugal

Quatro estações

No meu corpo nascem flores,
sou a primavera a renascer.
Num jardim sou as cores
nas quais acabas por te prender.

Sou o verão em que mergulhas,
todas os dias, ao amanhecer.
Sou o mar que te beija
e do teu corpo quer beber.

Sou o outono em cada árvore,
cujas folhas acabam por cair.
Sou estrela que te entrega
o seu modo de ser, o seu sorrir.

Ao fim do dia sou o inverno
e o frio percorre-me a alma.
O ar gélido que respiro
recebe o teu calor, doce calma.

Sou amiga do Sol e da Lua,
ambos me fazem companhia.
Acordo na mesma rua
em que mora a alegria.

Em cada estação sou eu mesma,
sou um pouco de tudo e de nada.
Sou menina, sou mulher,
sou a vida, eterna apaixonada.
= = = = = = 

Trova de
DINAIR LEITE
Paranavaí/PR

A trova quando é sentida
viaja em nossa emoção
Nos faz fiéis toda a vida,
une os povos, faz irmãos. 
= = = = = = 

Poema de
CARLOS FERNANDO BONDOSO
Alcochete/Portugal

Ser

quero ser o não ser
para ter olhos e me ver morrer
tenho o encanto da vida
quero ter o poder da poesia
ouvir as ondas e o som da maresia
inundar a minha alma que se esvazia

é no mar que encontro a libertação
e vejo o equilíbrio do pensamento
tenho força nos meus silêncios
quando escrevo em solidão
a morte pode acontecer num momento de prazer

ainda hoje não sei como começar
talvez eu saiba acabar
vou em direção do Norte não tenho transporte
quero abrir a porta dos ventos para me libertar
de mistérios e seus enigmas 
e ter esperança na visão dos meus caminhos

não tenho medo das chuvas dos temporais
nem de ventos tornados e furacões
a noite cai as estrelas dão luz à escuridão
tenho a força da tempestade dentro de mim
quero escrever sempre com os dedos da mão
e viver até ter alma para dizer que não
= = = = = = = = = 

Trova do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/ RN

Busquei no universo um dia,
uma resposta eficaz;
que transformasse a poesia
num hino de amor e paz!!!
= = = = = = 

Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/ Portugal

Silêncio na voz 

Há palavras com silêncio na voz
usadas e abusadas no gênero
como um qualquer artigo indefinido
mascaradas de transparência
fingem no seu ato de subserviência

Há palavras que carregam no ventre
o malfadado segredo do seu fado
desditosas, rebaixadas
logo irão nascer amordaçadas
que inventam esperança
em nome de um amor que tudo alcança

Há palavras órfãs, amarguradas
esperando ver luz na madrugada
irmãs da tristeza em laços de solidão
lágrimas reprimidas no silêncio da ilusão

Há palavras com silêncio na voz
necessitando abraçar forte a coragem
para gravar as passadas de uma nova viagem.
Há palavras com fome de dizer basta!
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

A Lua, que a noite ronda
com o seu lindo clarão,
é a lamparina redonda
que ilumina o meu sertão!
= = = = = = 

Soneto de 
ALFREDO SANTOS MENDES
Lisboa/Portugal

Máscara

Por que se escondem vós, forças do mal?
Abandonai de vez vosso covil!
Por que escondeis o vosso rosto vil,
atrás de um rosto puro, angelical?

Já chega de prosápia assaz banal,
de tanto fingimento, vão, servil!
Há muito conhecemos vosso ardil,
pra  tudo conseguirem no final!

Pois mal se apanham donos do poder…
Só querem seus discursos esquecer,
e não cumprir promessas propaladas!

E enquanto o Zé povinho vai sofrendo,
vós, tubarões, os bolsos vão enchendo,
sem nenhum preconceito, às descaradas!
= = = = = = 

Trova Humorística de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/ RS, 1932 – 2013, São Paulo/ SP

Ao ser preso, o vigarista,
explica, muito matreiro:
- Sou apenas cientista,
faço "clones" de... dinheiro!
= = = = = = 

Hino de
FLOR DA SERRA DO SUL/ PR

No encontro de três povos, um novo rumo foi buscado,
Gaúchos e catarinenses com paranaenses irmanados,
Foi com lutas e sacrifícios, palmo a palmo conquistado.
O solo fértil, num planalto cercado com pinheirais,
Com trabalho e justiça expandiu-se mais e mais

Flor da Serra, Flor da Serra, onde o céu é mais azul,
Flor da Serra no passado, hoje Flor da Serra do Sul.

E passados muitos anos, um brado forte ecoou,
Ser distrito era pouco e um plebiscito se criou,
Em dezoito de Junho de noventa, a assembleia aprovou,
Com anseio, com justiça, Flor da Serra emancipou,
Em vinte e dois de Dezembro, a bandeira levantou.

Nos braços do sudoeste, no querido Paraná,
Na rota do Mercosul, és a estrela a brilhar,
A ecologia, nossas culturas, belas fontes a brotar,
É celeiro de fartura, resplandece encantos mil,
Povo gentil e hospitaleiro que engrandece o Brasil.
= = = = = = 

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/ SP

Os meus desejos de agora,
juntei-os, pus no correio:
(destino, Natais de outrora),
mas a resposta não veio
= = = = = = 

Soneto de 
LUIS VAZ DE CAMÕES
Coimbra/Portugal, 1524 – 1580, Lisboa/Portugal

Soneto 125

Este amor que vos tenho, limpo e puro,
de pensamento vil nunca tocado,
em minha tenra idade começado,
tê-lo dentro nesta alma só procuro.

De haver nele mudança estou seguro,
sem temer nenhum caso ou duro Fado,
nem o supremo bem ou baixo estado,
nem o tempo presente nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa;
tudo por terra o Inverno e Estio
deita, só para meu amor é sempre Maio.

Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
e que essa ingratidão tudo me enjeita,
traz este meu amor sempre em desmaio.
= = = = = = = = =  

Trova Humorística de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Esta é uma antiga lorota, 
que jamais se esclareceu: 
– Se Judas nem tinha bota, 
como foi que ele a perdeu?...
= = = = = = = = = 

Poema do Folclore Brasileiro de
CHICO RIBEIRO

Negrinho do Pastoreio

A mão da noite fechara
a porta grande do dia,
era noite e dentro dela
a tempestade rugia...

O vento! Como ventava!
A chuva! Como chovia!
O trovão de boca aberta!
O raio, de quando em quando,
Soltando-se do trovão,
corria dentro da noite,
cortando em riscos de fogo
o seio da escuridão!

Ia fundo a tempestade:
O vento ventando mais,
a chuva chovendo mais.
E o Negrinho, como a ronda,
dentro da noite perdido!...

A tempestade crescendo,
cada vez roncando mais!...

E o Negrinho acocorado
entre as macegas, ouvindo,
ouvindo, vendo e sentindo,
o bate-bate da chuva,
o martelar do trovão.
E o raio...com que violência
cortava o raio a amplidão!...

E o Negrinho ouvindo tudo!
Tudo lhe vem aos ouvidos,
enche-lhe a vista, os sentidos,
menos o passo da ronda,
que lhe confiara o -Sinhô-,
a ronda que a tempestade
de vento e chuva espalhou...

A tempestade crescendo,
cada vez roncando mais!...

Depois, depois ... oh! Senhor!
Depois que tudo acabou,
que a chuva não mais choveu,
que o vento não mais ventou
e o raio se terminou
porque o trovão se calou.

E o Negrinho também!
A não ser pelos milagres,
pelo bem que ele nos presta
quando se perde um tareco,
ninguém mais dentro do mundo
no vão dos dias, das noites,
acompanhado ou sozinho,
conseguiu botar os olhos,
PODE ENCONTRAR O NEGRINHO!
= = = = = = = = =

Trova de
ARTHUR THOMAZ 
Campinas/ SP

Nessa vida, hoje, eu vou indo
buscando um rumo na sorte.
pois sinto que estou seguindo
uma bússola sem norte.
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Soneto de
MARIA HELENA OLIVEIRA COSTA 
Ponta Grossa/ PR

Uma aurora chamada saudade

Telhado tosco, chaminé de barro
e um céu de aurora em tons de carmesim...
Esse é o cenário em que, tristonho, esbarro
quando a saudade vem tanger em mim!

Sobre a mesinha um maltratado jarro
guardava aromas vindos do jardim.
Ao pé do rancho, bois em frente ao carro
cujo destino era seguir sem fim...

E nessa aurora, no fervor da prece,
um nobre vulto agradecia a messe,
certo que Deus estava em cada grão...

Ah... Quem me dera ver mais uma vez,
de mãos calosas e morena tez,
meu velho pai... curvado em oração!
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Soneto de
PLÁCIDO FERREIRA DO AMARAL JÚNIOR 
Caicó/ RN

Seu nome

Sua chegada foi na minha vida
A luz da aurora no nascer do dia,
Iluminando o lar, e ao ser um guia,
Sanar de vez, a minha dor sofrida.

Pôs no meu ser a sua fé contida
E do seu nome fez também poesia
Ao me dizer o mesmo com magia,
Fazendo eu crer em ter a paz florida.

É minha sorte tê-la aqui comigo
Em todo instante em que pra mim, se vem,
E ao confirmar seu nome em toda hora.

Pois no seu nome eu tenho o meu abrigo
E nele vejo a cor que a mim convém
Por ter alguém que tem o nome. Aurora...
= = = = = = 

Trova de
OLIVALDO JÚNIOR
Mogi-Guaçú/ SP

Coração de agricultor 
tem mil ramas de beleza: 
cada uma tem valor 
porque preza a natureza.
= = = = = = 

Soneto de
EDY SOARES 
Vila Velha/ ES

Alvorada

As maritacas abrem cantoria
nos manacás e pés de tangerina,
até que em rebeldia a sururina
avisa que o arrebol já se anuncia.

O monte... O pico envolto na neblina,
a aurora ganha um tom de nostalgia...
De pronto surge em meio à névoa fria,
o sol, como quem rasga uma cortina.

Raios de luz nas frestas da paineira,
chegam lambendo as folhas da roseira
e, aos poucos, seca o orvalho dos canteiros.

O céu abraça o sol que vem surgindo
e ao fim desse espetáculo tão lindo
o dia chega em passos sorrateiros.
= = = = = = = = =

Soneto de
MARIA MADALENA FERREIRA 
Magé / RJ

A acendedora da luz

O sol se foi:... A lua vem chegando:
Cada qual volta à sua moradia
- enquanto um sino - ao longe - vai lembrando
que é hora de rezar a "Ave-Maria":

As luzes vão - aos poucos - se apagando,
e um sono repousante se inicia
- o que nos faz sonhar - de vez em quando... -
que a vida é toda feita de harmonia:

E mal a impaciente passarada
anuncia o final da madrugada,
em sua costumeira algaravia,

um leve tom rodado - no horizonte -
vem revelar - antes que o sol desponte -
que... a AURORA anda a acender a luz do dia!!!
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

A lua, de vez em quando
fica um pouco sem brilhar,
para ficar “espiando”
dois pombinhos namorar!
= = = = = = 

Soneto de 
FRANCISCO GABRIEL
Natal/ RN

Altar do amanhecer

Quando a noite abandona o firmamento,
nossa Lua da luz se divorcia;
é que a vida precisa de alimento
para fecundação de um novo dia.

No horizonte respira novo vento,
é que a Terra, entonando maestria,
engravida de Deus por um momento,
procriando uma nova poesia.

Surge a aurora pintando mil cantares,
irmanando universo, terra e mares,
na cantata de luz sobre o nascer.

Quando o Sol brilha em todos os lugares,
os cenários da Terra são altares,
aplaudindo outro novo amanhecer.
= = = = = =

Soneto de
MESSIAS DA ROCHA 
Juiz de Fora/ MG

Gênesis

Eu sei, amor, que, às vezes, me conduzes
em trevas densas por detrás dos muros,
onde as sombras se vestem com capuzes
e onde os frutos jamais ficam maduros.

Nas tuas mãos percebo, sempre, luzes
mas os dias se tornam mais escuros
e no calvário, em meio a tantas cruzes,
agonizam meus sonhos mais impuros.

Então, concebo um novo firmamento
e, na cruel solidão do pensamento,
forjo auroras nas noites tão vazias

e, por querer da escuridão o inverso,
lanço sonhos nas sombras do universo
e consigo dar vida a novos dias.
= = = = = = = = =  

Glosa de
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/ PR

MOTE:
Da vida não quero a glória
que tanto engana e seduz.
Prefiro não ter história
a renunciar minha cruz.
Filemon Martins
São Paulo/SP

GLOSA:
Da vida não quero a glória,
prefiro a paz do meu ser,
que brilha em singela história,
sem necessidade de ter.

Que tanto engana e seduz,
mas deixa um vazio imenso,
no brilho que a alma reluz,
encontrando um novo senso.

Prefiro não ter história,
se a verdade não é pura,
um caminho em sua trajetória,
que traz firmeza e ternura.

A renunciar minha cruz,
aceito o peso da vida,
pois nela, mesmo em sua luz,
encontro a força querida.
= = = = = = = = =  

Soneto de
FILEMON MARTINS
São Paulo/SP

Revisitando a infância

Refaço, de memória, a longa estrada, 
caminhos que trilhei desde menino. 
De manhã cedo, ainda na alvorada, 
eu preparava a terra, meu destino. 

Tempos depois, aposentei a enxada, 
para estudar, no chão diamantino. 
A vida era feliz lá na Chapada, 
quando brilhava a luz do sol, a pino... 

Tudo passou, bem sei, tão de repente, 
meu coração, parece, anda descrente 
e o sentimento, quantas vezes, trunca... 

Hoje, guardo no peito, com cuidado, 
lembranças que marcaram meu passado 
e uma saudade que não passa nunca…
= = = = = = = = = 

Vladmir Odoevsky (Conto indiano dos quatro surdos)


Não muito longe da aldeia, um pastor pastoreava as suas ovelhas. Já passava do meio-dia e o pobre pastor estava com muita fome. É verdade que, ao sair de casa, ele pediu à esposa que lhe levasse o café da manhã, mas a mulher, como se de propósito, não o fez.

O pobre pastor atirou-se aos pensamentos. Sabia que não poderia voltar para casa, já que não poderia deixar o rebanho à própria sorte, sujeito aos ladrões. E nem lhe parecia uma alternativa plausível — decerto pior — permanecer onde estava, já que a mordida fome lhe seria um tormento.

Olhando para um lado e para o outro, finalmente viu o vigia da aldeia, que ceifava a relva para alimentar a sua vaquinha.

Aproximando-se, disse-lhe o pastor:

— Por favor, querido amigo, cuide para que meu rebanho não se disperse. Irei para casa tomar o desjejum e depois voltarei imediatamente para cá. Se me ajudares, recompensar-te-ei generosamente pelo teu favor.

Parece que agora o pastor agiu com muita prudência; e, realmente, ele era um homem deveras inteligente e cauteloso. Mas era surdo. Tão surdo que um tiro de canhão, próximo aos seus ouvidos, não o faria olhar para trás; e, pior ainda, falava com um outro surdo. 

Com efeito, o vigia não ouvia melhor do que o pastor e, por isso, não era de admirar que não entendesse uma palavra sequer do que lhe falara o pastor. Pareceu-lhe que, pelo contrário, o pastor queria tomar-lhe a relva cortada. Então, esbravejou:

— Que queres tu com a minha grama? Não foste tu que a cortaste, fui eu. Por acaso a minha vaquinha haverá de morrer de fome para que o teu rebanho seja alimentado? Diga o que disser, não vou abrir mão desistir da minha grama.

Tendo dito isto, o vigia abanou a mão com raiva. Mas o pastor pensou que ele lhe havia prometido e foi para casa, tranquilo, com a intenção de dar uma boa sova à mulher, para que ela jamais deixasse de lhe levar o desjejum.

Quando chegou em casa, o pastou viu que a sua mulher, estirada no limiar da porta, chorava queixosamente. O bom pastor esforçou-se por ampará-la. Deitou-a na cama, deu-lhe remédio e fê-la sentir-se melhor. Não se esqueceu, todavia, de seu desjejum. Todo esse contratempo estendera-se bastante e o pastor sentiu-se inquieto.

— Como estará o meu rebanho? Sinto que uma desgraça virá prontamente — pensou o pastor.

Então, apressou-se em voltar ao campo. Para a sua grande alegria, viu que o seu rebanho continuava a pastar, com tranquilidade, onde o havia deixado.

Todavia, como um homem prudente que era, contou todas as suas ovelhas. Concluindo que o número de cabeças continuava o mesmo, disse a si mesmo:

— Homem honesto, o vigia!

Em seu rebanho, havia uma jovem ovelha. Era coxa, mas estava perfeitamente cevada. O pastor colocou-a aos ombros, dirigiu-se ao vigia e disse-lhe:

—Obrigado, amigo, por cuidar do meu rebanho! Eis aqui uma ovelha, em retribuição ao teu serviço.

É evidente que o vigia nada entendeu do que lhe fora dito. Todavia, quando viu a ovelha manca, gritou energicamente:

— Pouco me importa que a tua ovelha esteja coxa! Como posso saber quem a estropiou? Nunca me aproximei de teu rebanho!

— É verdade que ela é coxa — continuou o pastor, que não ouvira o que lhe fora dito. — Mas é uma bela ovelha, jovem e gorda. Leva-a, assa-a e come-a com os teus amigos.

— Pelo amor de Deus! — gritou o vigia, furioso. — Repito-te que não quebrei as patas de tua ovelha e que, nem mesmo, eu me acerquei de teu rebanho. Sequer olhei para ele!

Mas como o pastor, sem compreender o que lhe era dito, continuava a segurar a ovelha coxa diante de si, elogiando-a de todas as formas.

Já sem estribeiras, o vigia bateu com um punho no pastor. Este, por sua vez, enfurecido, preparou-se a defender-se e, provavelmente, teriam lutado, se não tivessem sido impedidos por um homem que passava a cavalo.

Devo dizer-vos que é costume dos indianos, quando discutem sobre qualquer assunto, pedir à primeira pessoa que encontram que proceda a um julgamento. Assim, o pastor e o vigia agarraram, cada um do seu lado, o freio do cavalo para o cavaleiro.

— Faz-me um favor — disse o pastor ao cavaleiro. — Para por um momento e julga. Verifica quem está ou não certo. Eu dei a este homem uma ovelha do meu rebanho como agradecimento pelos seus serviços; mas ele, como agradecimento pelo meu presente, quase me mata.

—Faz-me um favor — disse o outro. — Para um momento e julga. Diz-nos quem tem razão e quem é o culpado. Este pastor malvado me acusa de ter aleijado a sua ovelha, quando eu não me aproximei, sequer, de seu rebanho.

Infelizmente, o juiz que eles escolheram também era surdo, e ainda mais, dizem, do que os dois outros juntos.

Fez um sinal com a mão para que se calassem e disse-lhes:

— Devo confessar-vos que este cavalo não é meu. Eu o encontrei na estrada e, como tenho muita pressa em chegar à cidade por causa de um assunto importante, decidi montá-lo e, assim, chegar prontamente. Se ele é vosso, levai-o; se não, deixai-me ir a toda pressa, eis que não tenho tempo a perder.

O pastor e o vigia não ouviram nada do que lhes fora dito, mas supuseram que o cavaleiro não decidira em seu favor. Começaram ambos a gritar e a praguejar ainda mais alto, censurando a injustiça do mediador que tinham escolhido.

Nesse ínterim, surgiu na estrada um velho brâmane. Os três litigantes correram para ele e começaram a contar-lhe o seu caso. Mas o brâmane era tão surdo quanto eles.

— Compreendo! Compreendo! — respondeu-lhes. — Ela vos enviou para me pedirem que eu volte para casa (o brâmane falava da sua esposa). Mas não ireis conseguir, pois não há ninguém no mundo mais rabugento do que aquela mulher. Desde que me casei com ela, fez-me cometer tantos pecados que não os consigo lavar nem nas águas sagradas do rio Ganges. Prefiro, pois, alimentar-me de esmolas e passar o resto dos meus dias numa terra estrangeira a estar com ela. Já me decidi com firmeza. As vossas inúmeras súplicas me farão mudar de ideia e aceitar viver de novo na mesma casa com uma mulher tão má.

O barulho era maior do que antes; todos gritavam com todas as suas forças, sem se entenderem uns aos outros.

Entretanto, o que se tinha apossado do cavalo, quando viu que pessoas vinham de longe, a correr, tomou-as pelos donos do cavalo roubado; então, saltou do cavalo e fugiu.

O pastor, apercebendo-se que já se fazia tarde e que o seu rebanho estava completamente disperso, apressou-se em reunir as suas ovelhas e as levou para a aldeia, queixando-se amargamente de que não havia justiça na terra e atribuindo todos os problemas do dia a uma cobra que vira, ao sair de casa, rastejando na estrada.

O vigia voltou ao seu pasto e, ao encontrar a ovelha gorda — causa inocente daquela disputa — tomou-a e a levou nos ombros para casa, pensando que assim aplicava um castigo ao pastor por todas as suas ofensas.

O brâmane chegou à aldeia mais próxima, onde parou para passar a noite. A fome e a fadiga haviam-no deixado um tanto cansado. A fome e o cansaço apaziguaram um pouco o seu aborrecimento. Mas, no dia seguinte, os seus amigos e parentes vieram e convenceram o pobre brâmane a voltar para casa, prometendo persuadir a sua mulher rabugenta e fazer-se mais torná-la mais obediente e humilde.

Sabem, amigos, o que vos pode vir à mente quando lerem esta história?

É o seguinte: no mundo, há pessoas — grandes e pequenas — que não são surdas, mas que são piores que os surdos: o que lhe é dito, não escutam; o que lhes é assegurado, não entendo; quando se juntam, discutem, sem saber por que motivo. Discutem sem razão, ofendem-se sem ofensa e queixam-se das pessoas e do destino, ou atribuem o seu infortúnio a presságios ridículos, como o sal derramado ou um espelho partido.... Tenho por exemplo um amigo que nunca ouvia o que o professor lhe dizia na sala de aula e sentava-se no banco como se fosse surdo. E o que se deu? Cresceu como um parvo: jamais consegue realizar coisa nenhuma. Os espertos têm pena dele e os astutos enganam-no; mas ele, como se vê, queixa-se do destino, dizendo que nasceu azarado.

Fazei-me um favor, amigos, não sejais surdos! Os nossos ouvidos foram-nos dados para ouvir. Um homem inteligente disse que temos dois ouvidos e uma língua, e que, por isso, devemos ouvir mais do que falar.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Vladimir Fyodorovich Odoievsky (Moscou/Rússia, 1803 – 1869) foi um filósofo, escritor, crítico musical, filantropo e pedagogo russo. Chegou a ser conhecido como o Hoffmann russo devido ao seu enorme interesse por contos fantásticos e pelo jornalismo crítico. Odoievsky publicou uma série de contos para crianças (por exemplo, A Vila da Caixinha de Surpresas), e historias fantásticas para adultos (por exemplo, Cosmorama e Salamandra). Inspirou-se no conto de Alexander Pushkin, A Dama de Espadas, para escrever uma série de historias semelhantes, sobre a dissoluta vida da aristocracia da Rússia (por exemplo, A Princesa Mimi e A Princesa Zizi). A sua obra-prima foi uma coleção de ensaios e novelas intitulada As Noites Russas (1844), para a qual se inspirou na obra As Noites Áticas de Aulo Gélio. Como crítico musical, Odoievsky propagou o estilo nacional de Mikhail Glinka e seus seguidores. Escreveu muitos artigos sobre temas musicais, e um tratado sobre antigos cantos na Igreja Russa. Johann Sebastian Bach e Beethoven aparecem como personagens em algumas das suas novelas. Odoievsky promoveu a fundação da Sociedade Musical Russa, do Conservatório de Moscovo e do Conservatório de São Petersburgo. (fonte: wikipedia)

Fontes:
Conto publicado originalmente em 1835.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

José Feldman (O Medo de Realizar os Sonhos)


Quantas vezes nos encontramos sonhando com algo que desejamos profundamente, mas nos sentimos paralisados pelo medo de realizar esse sonho? É como se o medo de sair da zona de conforto e enfrentar os desafios que vêm com a realização do sonho fosse maior do que o desejo em si.

Muitas vezes, nos contentamos em apenas sonhar, sem tomar as medidas necessárias para tornar esse sonho uma realidade. E é aí que reside o problema. Sonhar é importante, mas não é suficiente. É preciso ter coragem e determinação para sair em busca do que se deseja.

Os seres humanos são do tamanho de suas realizações. É através das nossas conquistas e superações que nos tornamos quem somos. E é justamente esse medo de realizar os sonhos que nos impede de alcançar nosso pleno potencial.

O medo pode se manifestar de muitas formas: medo do fracasso, medo do desconhecido, medo de não ser bom o suficiente. Mas, na verdade, o maior medo é o medo de não tentar. De não saber o que poderia ter sido se tivéssemos tido a coragem de ir em frente.

É preciso lembrar que a vida é feita de escolhas e que cada escolha tem suas consequências. Se escolhermos não tentar, podemos nos arrepender pelo resto da vida. Mas se escolhermos ir em frente, podemos descobrir que somos capazes de muito mais do que imaginávamos.

A realização dos sonhos não é fácil, mas é possível. É preciso ter perseverança, determinação e coragem. É preciso estar disposto a aprender com os erros e a se adaptar às mudanças.

Então, o que nos impede de realizar nossos sonhos? É o medo de sair da zona de conforto? É o medo de fracassar? Ou é simplesmente a falta de coragem para tentar?

A resposta é nossa. É hora de parar de sonhar apenas e começar a agir. É hora de sair da zona de conforto e enfrentar os desafios que vêm com a realização dos sonhos. É hora de descobrir o que somos capazes de fazer e de alcançar nosso pleno potencial.

Os seres humanos são do tamanho de suas realizações. Vamos fazer com que nossas realizações sejam grandes o suficiente para que possamos nos orgulhar de quem somos e do que fizemos. Vamos sonhar e agir. Vamos sonhar e realizar. Vamos ser grandes.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Poeta, trovador, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e professora da UEM, Alba Krishna, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, e depois em Maringá/PR desde 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul e Gralha Azul Trovadoresca. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou de sua autoria 4 ebooks.. Dezenas de premiações em poesias e trovas no Brasil e exterior.
Fontes: 
José Feldman. Gangorra do tempo. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Juan Barnav (Como escrever um livro) – 3. Tenha seu próprio espaço para escrever e todos os implementos necessários

(tradução do espanhol por José Feldman)

É importante ter um espaço para desenvolver o trabalho criativo que confiamos a nós mesmos, evitando distrações que interrompem nosso trabalho e nos fazem perder o foco constantemente. Isso pode fazer com que a inspiração e a vontade de trabalhar se percam devido aos constantes contratempos que nos impedem de prosseguir com o nosso projeto.

Portanto, é uma boa ideia ter um lugar em sua casa que se torne seu santuário; um lugar onde somente você terá acesso às suas coisas. Em última análise, isso é uma questão de expressão pessoal. Quando você considerar apropriado, você deixará os outros saberem o que está fazendo.

Não se trata de ter um lugar inacessível a outras pessoas durante suas ausências, mas sim um lugar onde você pode relaxar, evitar interrupções constantes e trabalhar confortavelmente. Aqui, você terá a oportunidade de se concentrar e deixar sua imaginação fluir, se inspirar e escrever livremente. Em suma, é um lugar onde você pode ter privacidade suficiente para desenvolver suas ideias e, assim, escrevê-las de uma só vez.

Muitas vezes, descobrimos que o espaço é a principal limitação quando se trata de ter um lugar para escrever. Tenha você um estúdio para trabalho isolado ou alguém que more em um apartamento simples, você pode criar um espaço em um canto do cômodo.

O que realmente importa é que você consiga escrever confortavelmente; você deve ter uma série de ferramentas de apoio para desenvolver melhor sua escrita.

É sempre uma boa ideia ter outros recursos para aprimorar sua escrita; por exemplo, você pode obter um bom dicionário, de preferência um etimológico, já que você deve se acostumar a consultá-lo com frequência. Um dicionário de sinônimos também é aconselhável, pois nos ajuda a expressar nossas ideias de diversas maneiras e evita a monotonia de usar as mesmas palavras repetidamente.

Sua área de trabalho deve ser bem ventilada e iluminada. Recomenda-se ter um local perto de uma janela que permita livre circulação de ar, com luz vinda de trás e do lado esquerdo. Dessa forma, você não projeta sombra na mão nem sofre ofuscamento se a luz incidir diretamente sobre você, além de reduzir o cansaço visual.

Muitas pessoas acham mais relaxante escrever à noite. Há mais silêncio e tranquilidade, e a mente está mais disposta à criação. Portanto, recomenda-se que a luz artificial venha de uma fonte brilhante, do lado superior esquerdo, acima do ombro, para facilitar a escrita e a leitura.

A música é um bom acompanhamento para muitas pessoas. Quando se trata de colocar ideias em prática, também pode ser útil ter um sistema de som, como rádio, toca cds ou mp3, mas em volume baixo para evitar distrações. Recomenda-se também selecionar músicas relaxantes, de preferência clássicas, sem melodias altas ou conhecidas, justamente para não atrapalhar a concentração do escritor.

Exercício:
Quando tiver o tempo que deseja escrever em uma única sessão, divida-o pela metade;

Após concluir a primeira etapa, sente-se ao lado de sua mesa, onde você terá sua máquina de escrever ou computador, papel e outros utensílios para seu trabalho criativo diário. Faça cinco minutos de exercício para aliviar a rigidez, movimentando pernas, braços e cintura sem se cansar. Sente-se novamente e escreva.
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continua… 4. Os personagens de sua obra

Fontes:
http://www.mailxmail.com/curso-como-escribir-libro/
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Monteiro Lobato (A história dos macacos)


Antigamente, lá no começo do mundo, os macacos moravam com os homens nas cidades. Falavam como eles, mas não trabalhavam. 

Certa vez houve uma grande festa. Durante um dia e uma noite o tantã não parou de soar. Todos dançavam e bebiam um vinho feito de caldo de palmeira, porque ainda não era conhecida a uva. O velho chefe da tribo saiu dali cambaleando e foi parar no bairro dos macacos. 

Antes não fosse! Os macacos judiaram dele. Uns puxavam-lhe a tanga, outros punham-lhe a língua, outros beliscavam-lhe a pele. Tamanha foi a falta de respeito que o velho chefe enfureceu-se a ponto de queixar-se a Nzame, a divindade da tribo. 

Nzame mandou chamar o chefe dos macacos. Passou-lhe uma grande descompostura e disse: 

— De hoje em diante, como castigo, os macacos têm que trabalhar para os homens. 

Mas os macacos revoltaram-se contra a ordem do deus. Juraram não trabalhar. Quando iam para a roça, penduravam-se nas árvores do caminho, davam pulos pra aqui, pra ali, fugiam. Não houve meio de conseguir deles nenhum trabalho. O chefe da tribo se enfureceu. 

— Preciso dar uma lição nesta macacada. 

Depois de refletir algum tempo deu ordens, para uma grande festança, onde houvesse muito vinho. Mas dividiu as cabaças de vinho em dois lotes — um de vinho puro e outro de vinho misturado com uma erva dormideira. 

"Este é para os macacos" disse ele. 

Quando os macacos souberam da grande festa e da grande vinhaça, aproximaram-se todos muito xeretas. Dançaram, pularam e beberam até não poder mais. Meia hora depois dormiam sono profundo. 

O chefe, então, mandou que os seus homens metessem o chicote nos macacos até deixá-los peladinhos — e no dia seguinte botou-os no serviço. 

Mas quem pode com macaco? 

O berreiro que fizeram foi tamanho que o chefe, completamente zonzo, deu ordem para que lhes cortassem a língua. 

"É o único meio de acabar com esta gritaria." 

Ficaram os macacos sem línguas — mas dois dias depois sumiram-se da aldeia, afundando no mato. Nunca mais quiseram saber dos homens — e também nunca mais falaram. Quem tem língua cortada não fala.
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Monteiro Lobato (José Bento Renato Monteiro Lobato) nasceu em 1882, em Taubaté/SP, e faleceu em 1948, em São Paulo. Foi promotor, fazendeiro, editor e empresário. Apesar de também escrever para adultos, ficou mais conhecido por causa dos seus livros infantis. Faz parte do pré-modernismo e escreveu obras marcadas pelo realismo social, nacionalismo e crítica sociopolítica. Já seus livros infantis da série Sítio do Picapau Amarelo possuem traços da literatura fantástica, além de apresentarem elementos folclóricos, históricos e científicos.Em 1900, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1903, se tornou um dos redatores do jornal acadêmico O Onze de Agosto. Escreveu também para periódicos como Minarete, O Povo e O Combatente. Se formou em Direito no final do ano de 1904. Em 1908, se casou com Maria da Pureza. Com a morte do avô, em 1911, o escritor recebeu como herança algumas terras. Assim, decidiu morar na fazenda do Buquira. Ele passou a ser conhecido quando, em 1914, sua carta “Uma velha praga” foi publicada n’O Estado de S. Paulo. Em seguida, o autor criou o personagem Jeca Tatu. Três anos depois, desistiu da vida de fazendeiro e se mudou para São Paulo. Nesse ano, publicou o polêmico artigo Paranoia ou mistificação?, que critica as tendências modernistas. No ano seguinte, comprou a Revista do Brasil. Em 1920, fundou a editora Monteiro Lobato & Cia. Cinco anos depois, vendeu a Revista do Brasil para Assis Chateaubriand (1892–1968) e decretou a falência da editora Lobato & Companhia, que, a essa altura, já se chamava Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato. Ele se tornou sócio da Companhia Editora Nacional. Se mudou para o Rio de Janeiro, em 1925. Dois anos depois, foi para Nova York, onde assumiu o cargo de adido comercial. Em 1929, devido à crise econômica, vendeu suas ações da Companhia Editora Nacional. No final de 1930, quando Getúlio Vargas (1882–1954) subiu ao poder, o escritor perdeu seu cargo de adido comercial. Retornou ao Brasil no ano seguinte. Em 1932, foi um dos fundadores da Companhia Petróleo Nacional. Anos depois, em 1941, o autor ficou preso, durante três meses, por fazer críticas ao regime ditatorial de Getúlio Vargas. Se tornou sócio da Editora Brasiliense, em 1946, ano em que decidiu morar na Argentina, onde foi um dos fundadores da Editorial Acteón. Voltou ao Brasil em 1947 e fez críticas ao governo de Eurico Gaspar Dutra (1883–1974). Em 1922, decidiu concorrer à cadeira número 11 da Academia Brasileira de Letras. Porém, desistiu da candidatura por não querer “implorar votos”. Já em 1926, voltou atrás e, novamente, concorreu a uma vaga na ABL, mas não foi eleito. Por fim, em 1944, recusou indicação para a Academia, em protesto por Getúlio Vargas ter sido eleito à Academia Brasileira de Letras em 1941

Fontes:
Monteiro Lobato. Fábulas. Publicado originalmente em 1937.
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Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Virar a casaca”


No nosso português de cada dia, usamos a expressão "VIRAR A CASACA" para designar pessoas oportunistas e aproveitadoras, que se valem das chances que lhes parecem favoráveis para, sem qualquer vergonha, pudor ou escrúpulo, trocarem de lado exclusivamente em busca de vantagens pessoais. 

Trata-se de desvio de conduta de gente rasa, sem ética ou princípios, de moral opaca, sem apreço pela palavra empenhada ou por compromissos antes assumidos, desde que obtenham com a troca qualquer ganho. Há sempre um componente de traição no que fazem, pois são capazes de “vender a mãe”, para a satisfação de suas particulares ambições ou alcance de benefícios, sejam eles materiais, sociais ou emocionais, ainda que modestos. 

A origem dessa expressão remonta ao rei da Sardenha no Século XVIII, Carlos Emanuel III de Sabóia (1701 – 1773), que para proteger seu ameaçado patrimônio territorial das pressões da França e da Espanha, aliava-se a uma ou à outra ao sabor de suas conveniências - e para evidenciar isso mudava as cores da sua casaca, de acordo com as cores da bandeira do país com quem naquele momento se alinhava. 

Essa troca constante das casacas por ele usada, passou a ser sinônimo de oportunismo, consagrando a expressão "Virar a casaca", lembrada sempre que presenciamos, mesmo quatro séculos depois, essa famigerada atitude interesseira em alguém que só demonstra interesse quando acredita que terá alguma coisa a receber em contrapartida. 

Mas não foi somente a realeza que contribuiu para consolidar no Brasil essa expressão, sempre utilizada com escárnio em relação a quem troca de lado com a mesma rapidez com que a maioria troca de roupa. Para essa expressão idiomática, o futebol e a política também deram o seu contributo. 

O valor cultural do futebol no Brasil é imenso e vai além da simples prática esportiva. Trata-se de uma paixão nacional que permeia a cultura, a identidade e a história do país, influenciando diversos aspectos da sociedade. É uma manifestação cultural que une pessoas de diferentes origens, criando um involuntário senso de irmandade, parte integrante da vida brasileira que influencia a moda, a música, a arte e especialmente a linguagem. 

O futebol, que nos legou a expressão “Onde a coruja dorme” (já abordada nesta série de crônicas divulgadas), costuma taxar um torcedor que passa a simpatizar e até torcer pelo time rival como “vira casaca” - e esse é o preço que ele paga por essa prática rasteira.

O genial Chico Buarque, ao contrapor uma velha amizade à rivalidade clubística, deu uma força ao tema. O quilométrico título da música “Ilmo Sr. Ciro Monteiro ou Receita pra virar casaca de neném”, é uma carta ao famoso cantor e compositor Ciro Monteiro, abordando a disputa de preferência entre dois famosos times de futebol, mas o compositor o faz de maneira bem-humorada, destacando a amizade e o respeito mútuo entre os dois amigos, situada acima e além de suas diferenças pessoais.  

Chico é tricolor da gema e agradece a Ciro Monteiro, flamenguista doente, por um presente dele recebido: uma camisa rubro-negra. No entanto, ele brinca que o presente é “de grego”, uma expressão que tipifica uma dádiva que traz mais problemas do que benefícios. A música revela como Chico habilmente transformou a camisa rubro-negra (do Flamengo) em uma tricolor (do Fluminense), mostrando criatividade e lealdade ao seu time, para não incorrer na odiosa viração de casaca: 

Amigo Ciro
Muito te admiro
O meu chapéu te tiro
Muito humildemente
Minha petiz
Agradece a camisa
Que lhe deste à guisa
De gentil presente
Mas caro nego
Um pano rubro-negro
É presente de grego
Não de um bom irmão
Nós separados
Nas arquibancadas
Temos sido tão chegados
Na desolação

Amigo velho
Amei o teu conselho
Amei o teu vermelho
Que é de tanto ardor
Mas quis o verde
Que te quero verde
É bom pra quem vai ter
De ser bom sofredor
Pintei de branco o teu preto
Ficando completo
O jogo de cor
Virei-lhe o listrado do peito
E nasceu desse jeito
Uma outra tricolor

Por exemplo, a política disciplinou a prática da mudança de lado, ao regulamentar as regras para que parlamentares insatisfeitos com seus partidos políticos, se bandeassem para o aconchego dos que ontem eram adversários, instituindo as “janelas partidárias” a cada ano eleitoral e desde que ultimada a mudança seis meses antes do dia do pleito, dentro do prazo de 30 dias para o trânsfugo pular fora do barco, sem risco de perder o mandato. 

Tal regra veio no bojo da reforma eleitoral de 2015 e se consolidou como uma medida segura para a troca de legenda, depois do TSE assentar que o mandato pertence ao partido e não ao candidato eleito. Estabeleceu também a chamada “fidelidade partidária” para cargos nas eleições proporcionais (deputados estaduais, federais e vereadores). E como toda regra tem exceção, foi permitido também que fora da “janela partidária”, o político pode “virar a casaca” nas hipóteses de justa causa, entendida esta como a discriminação pessoal ou o desvio do programa partidário, sob pena de perda do mandato. 

Na vida real não há janelas partidárias e salvo raríssimas exceções, a fidelidade pode e deve ser esperada e casos específicos, mas não é exigível de quem quer que seja, pois vai do caráter de cada um manter-se firme em seus compromissos, procedimentos, condutas e ideologias. Somos às vezes surpreendidos por infidelidades, até de pessoas aparentemente respeitáveis e insuspeitas, que sem justificativas plausíveis decidem “virar a casaca”, buscando avidamente alcançar suas metas individuais a qualquer custo, mesmo incorrendo na conduta desonrosa e rasteira da falsidade e da traição.
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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