domingo, 5 de fevereiro de 2017

Paleta de Versos n. 2

Clevane Pessoa
(Belo Horizonte/MG)

A BELEZA E A MUDEZ

O pássaro belo e próximo, 
grande, 
sugerência de trinado, 
quintessência da Criação, 
influência de contentamento, 
não foge á presença 
de quem ama as aves. 
Poso , sorridente, 
entre a luz da tarde 
e a luminescência da alma. 
Nas crenças egípcias, era a alma-pássaro, 
a que habitava o corpo de penas 
até ao destino final 
ser marcado. 
Não me bica, 
não tatala as asas 
em euforia ou temor. 
O pássaro e eu. 
Ele também foi fotografado 
e faz parte de uma exposição a céu aberto (*). 
Gostaria de ser maga o suficiente 
para inflar-lhe vida, 
vê-lo catar grãos na grama, 
dar pulinhos aqui e alí. 
Ah, se pudesse ouví-lo em seus cantares 
inflamando de notas ardentes os ares 
ou num galho, num canto qualquer 
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* 2009, Parque Municipal Américo renê Gianetti, na capital mineira, , galeria da Árvore, exposição do MUNAP (um olhar sobre o Parque), organizada pela poetisa e fotógrafa Regina Mello, autora dessa foto.
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Luiz Poeta
(Rio de Janeiro/RJ)

QUANDO MEU SORRISO FALA

Se eu te amo e minha boca silencia,
Meu olhar, contrariando o meu receio,
Grita anseios, produzindo a fantasia
Que repousa dentro do meu devaneio.

Tenho o tema, o coração e a vontade,
Mas o grito sufocado não permite
Que eu liberte esse desejo que me invade
E sussurre que te amo... ou que te grite.

No dilema entre a voz e o fitar-te,
Meu olhar transforma a emoção em arte
E uma lágrima sublime que resvala

Pinta a tela dos meus lábios onde o riso
Reproduz o sentimento mais preciso
Dos meus olhos, quando o meu sorriso fala.
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Vivaldo Terres
(Itajaí/SC)

QUE NOITE DORIDA

Não sei como consigo me enganar,
Pensando que vivo sem ao menos viver.
Depois que tudo aconteceu... 
Ela era o sol da minha vida,
A luz para meu caminho escurecido.
Como foi me deixar,
Deixando a alma e o coração desiludido.

Que noite dorida e fatal,
Quando ainda no seu leito disse a chorar:
– Eu vou e sei que vais ficar, mas onde eu estiver...
Jamais deixarei de te amar.

Ela partiu levando suas boas qualidades,
Sua alma e seu coração enquanto viveram...
Eram cheios de bondade.

Nunca deixou de ajudar os desvalidos,
Ou o doente sofredor.
Até porque em sua alma e em seu coração,
Nunca lhe faltou o amor. 
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Francisco José Pessoa
(Fortaleza/CE)

SENTIMENTO

Meu sentimento vaga na poesia,
meu cantar tomou forma do meu pranto
pois chorar, se por ti, fez-se acalanto
saber tudo do nada que eu sabia
é sentir que sentindo não sentia
o prazer, se é prazer tudo que sinto
e o amar, se é amor, amo e não minto
um sei lá!... posto quando a ti me achego
na impossibilidade de um chamego
sonho louco, num louco labirinto...

“sentindo que sentir eu não sentia
o prazer qual prazer não me aprazia”.
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Samuel da Costa
(Itajaí/SC)

EVOCAÇÃO
Para Bel Lopes 

Um breve 
E ebúrneo sorriso teu
Eu de olhos bem fechados
Enlevado 
A sonhar contigo
Negra ninfa do bosque

Eu 
Encerrado e lúgubre
No vergel em chamas

És negra flor 
Musselinosa e enclausurada 
Em uma noctívaga 
Digressão
No verve meu 

Caem as folhas mortas 
No meu coração
Pois é outono
Pois é anunciação 

E uma negra lágrima 
Brotou
No lívio rosto teu
Esvaeceu
Trespassou 
E se perdeu 
Para além do infinito

Não vá
Não me abandone
Não agora 
Nem nunca
Deusa imortal 
Minha negra Valquíria

Abriga-te 
Para todo o sempre
Na minha écloga
No estro meu
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Sílvia Regina Costa Lima
(Vinhedo/SP)

ANTES DA AURORA
(soneto n.121)

Indecisa, eu paro na encruzilhada
até o teu vulto (assustada) divisar,
meio impreciso à luz clara do luar,
caminhando lento na madrugada.

Escuto, embaraçada, a tua risada
que me lembra as ondas do mar
arrastando qualquer coisa lunar,
numa sensação por mim almejada.

Tremo intranquila no sentir primário
que a tua mão me desperta... e aflora
a paixão pelo ser - que me é contrário.

Ah, tu me deitas sob a árvore frondosa
e antes... muito antes da luz da aurora,
fazes-me tua amante... mulher... e rosa!
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Sandra Galante
(Piracicaba/SP)

AUSÊNCIA... 

Não deixarei que a tua ausência me maltrate. 
Me enfeitarei com o brilho das estrelas 
Para que nunca me vejas sofrendo e triste. 
Mas quero ser o perfume das tuas brisas. 

Quero te envolver nos véus da minha lua, 
Exibir-me esplendorosa pra ti toda nua. 
Em teus sonhos renascerei em ti e por ti 
Minh`alma te seguirá e te ti não sairei... 

Te levarei dentro de mim eternamente. 
Viveremos dias felizes em minhas fantasias. 
Eterno será o fugidio encontro em nossas luas 
Do teu amor e paixão, jamais serei descrente.
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Pedro Du Bois
(Balneário Camboriú/SC)

(DES)IMPORTÂNCIA

Na relativa importância
legamos conhecimento

impávidos descendentes
de (im)próprios deuses
cientes em verdades

em relativa (des)importância
insetos voam ao redor 
da luz onde se multiplicam

utilitários ascendentes
transferem aos novos

o necessários para a vida.

H. G. Wells (A Marca do Polegar)

Éramos três estudantes, e tínhamos chegado cedo. Estávamos de pé junto à janela do laboratório, olhando as ruínas da casa do outro lado da rua. Era uma manhã chuvosa e de muito vento; o pavimento molhado reluzia, e o céu por trás das ruínas enegrecidas mostrava algumas faixas azuis por entre as pesadas cortinas de nuvens que passavam. O verde vívido e primaveril das castanheiras e dos lilases diante da casa contrastava estranhamente com os destroços negros que se viam por trás. O fogo destruíra totalmente a construção; a maior parte do teto tinha desabado, e através dos contornos
carbonizados das janelas, que mal retinham um ou outro pedaço de vidro, era possível ver as paredes consumidas pelas chamas e a indescritível desolação que se segue a um incêndio assim. Curiosamente, embora uma parte da parede tivesse desabado sobre o pórtico de entrada, o pequeno quarto de dormir que ficava por cima estava intacto, e podíamos ver, pendurado de encontro ao papel de parede encharcado, a foto emoldurada de um soldado em uniforme.

O aluno recém-chegado, um homem pálido de cabelos negros — acho que seu nome era Chabôt —, estava mais absorvido do que os outros na contemplação das ruínas.

— Ninguém se feriu? — perguntou ele.

— Ninguém, felizmente — disse Wilderspin.

Ele soltou um grunhido.

Nesse momento Porch entrou aos gritos:

— Pessoal, já ouviram isto? Grande atentado anarquista! Londres em pânico! Por que não estão tremendo de pavor? É por causa deste abominável sistema de avaliação. Nenhum de vocês teve tempo para ler um jornal hoje de manhã.

Todos nos viramos para ele.

— Ouçam bem — disse Porch, fazendo pose. — Ontem, essa era a casa do Inspetor Bulstrode, o famoso Inspetor Bulstrode, e nenhum de nós sabia disso. Agora, olhem!

— Como sabem que isto foi obra de um anarquista? — perguntou o novo aluno, e nisto Askin entrou no aposento.

— Eles agora atribuem todos os acidentes aos anarquistas — disse Wilderspin.

— A polícia — disse Porch — tem ótimas razões para acreditar que essa atrocidade foi obra de um anarquista, é o que dizem os jornais. Mas nada transpirou por enquanto. Contudo, é muito simpático da parte dos anarquistas terem escolhido uma casa bem em frente à nossa janela. Vai nos aliviar dos rigores da maratona de serões da semana passada.

— E fez, aliás, com que Smith se atrasasse uma vez — disse Wilderspin, olhando o relógio.

— Eu o vi lá fora — disse Askin —, quando desci a rua.

— Por Júpiter! O que ele estaria fazendo lá? — disse imediatamente o novo aluno.

— Bisbilhotando, acho eu — disse Askin. — Conversava com um dos policiais, e tinha nas mãos uma caixa com alguma coisa escura dentro. Acho que vai nos pedir para analisá-la.

— Lá vem ele — disse Wilderspin.

Todos nos viramos novamente para a janela. O sr. Somerset Smith, nosso estimado professor de química, aparecera numa porta lateral e agora rodeava a casa pelo lado do portão de entrada. Carregava uma caixa com a marca “Sabão Hudson”, e dentro dela um amontoado de destroços enegrecidos, incluindo, entre outras curiosidades, um frasco de vidro partido. Seu curioso rosto largo estava contorcido numa expressão inescrutável. Veio andando mergulhado em seus pensamentos, e ficou momentaneamente oculto de nós ao subir os degraus que conduziam ao nosso pórtico da frente. Ouvimos-o subir até a sala onde fazia os preparativos dos seus materiais, ao lado do laboratório, onde entrou e bateu a porta. Os outros quatro ou cinco alunos que completavam aquela turma foram chegando, de um em um.

Logo estávamos todos mergulhados numa calorosa discussão sobre as atrocidades dos anarquistas. Mason ouvira de alguém que tinha sido justamente Smith a descobrir que o fogo na casa em frente tinha sido obra de um incendiário, e que encontrara os restos queimados de uma placa incendiária. Askin fez uma piada óbvia a respeito. O novo aluno fez uma série de perguntas rápidas, com nervosismo. A excitação parecia estar despertando seus dotes para o diálogo, porque até então ele chamara a atenção por manter uma reserva que muitos entre nós consideravam puro mau humor. Nosso vozerio se interrompeu quando Smith entrou.

Ao contrário de seu comportamento habitual ele não foi direto para o quadro-negro, mas veio por uma das alas até perto da janela. Carregava um peso de papel de mármore negro numa mão, e na outra, certo número de tiras de papel. Estas foram colocadas sobre a mesa de Wilderspin. Ele passeou os olhos pelo nosso grupo, por baixo de suas sobrancelhas espessas.

— Alguém ausente?

— Ninguém, senhor — respondeu alguém.

— Este fogo na casa em frente, cavalheiros, é uma ocorrência muito singular... muito singular. Talvez nenhum dos senhores saiba como foi provocado. Mas precisam saber sem nenhuma demora, creio eu, que uma suspeita muito grave paira por aqui. Uma suspeita, para ser preciso, de que o incendiário, porque nada disto foi acidente, mas um incêndio criminoso, obteve daqui os materiais que usou. Pelo que posso avaliar, a casa foi incendiada por meio de fósforo dissolvido em bissulfeto de carbono.

Houve uma exclamação por toda a classe.

— Como devem saber, cavalheiros, dos estudos elementares que fizemos no outono passado, quando o fósforo dissolvido em bissulfeto de carbono é exposto à evaporação ele se precipita num estado tão fino que entra em combustão. Bem, ao que parece foi retirada a tampa que protege o carvão, foi jogada uma grande quantidade de papel entre a lenha e o carvão miúdo que havia no piso do porão, e depois uma quantidade robusta desta solução — a qual, cavalheiros, deve ter sido preparada aqui, neste edifício — foi derramada sobre tudo. A evaporação começou de imediato, o fósforo acabou pegando fogo e inflamou o papel, e dentro de meia hora um belo incêndio estava subindo as escadas rumo ao andar de cima para acordar o Inspetor e sua família. “Como sou capaz de afirmar isto? Em parte devido ao acaso, e em parte pelas minhas pesquisas. O que houve de acaso foi isto: ontem, às dez horas da noite, tive a ocasião de vir à minha sala de preparativos, e senti ali o cheiro bem característico do vapor de bissulfeto de carbono. Acompanhei esse odor até o depósito logo adiante, e, quando entrei, vi imediatamente que alguém tinha remexido no material. Um frasco de mucilagem de amido tinha sido derrubado, e o líquido escorria pela mesa, gotejando sobre o chão. Outras garrafas tinham sido retiradas mas não substituídas. Examinei tudo em volta, para ver se encontrava outro furto, e a princípio não percebi a ausência de nada a não ser do bissulfeto de carbono, mas depois percebi que o vidro de fósforo estava vazio. A inferência possível era que, ou um estudante estava brincando de químico em casa às minhas custas, ou que algum atentado com fogo estava se preparando. Em qualquer um destes casos eu estava ansioso para descobrir o culpado, e achei que não teria uma ocasião melhor do que aquela, quando o aposento estava exatamente da maneira como ele o deixara. Vocês sabem que nós, cientistas, temos um afeto especial por provas.”

Ele olhou atentamente o nosso grupo. Eu fiz o mesmo. A não ser que fosse um fisionomista muito superior a mim, nada havia ali que pudesse ser detectado. Todos o olhavam com interesse, e todos mais ou menos desconcertados diante daquela acusação. Askin, por exemplo, estava ruborizado; Wilderspin tinha um tique nervoso no canto da boca, que estava se contraindo fortemente; e os lábios do aluno mais novo estavam lívidos.

— Agora, tenho a satisfação de dizer que quando deixei o laboratório eu tinha um palpite, que logo depois se transformou numa prova conclusiva sobre quem tinha levado meu bissulfeto de carbono; uma prova tão sólida quanto uma prova tem que ser.

Uma pausa dramática. De minha parte, eu estava um pouco assustado. Será que o sr. Smith não estaria chegando a alguma conclusão precipitada? Isso poderia ser inconveniente para alguns de nós.

— O cavalheiro, inadvertidamente, deixou uma assinatura em seu furto; deixou uma prova manual de suas ações, literalmente a sua assinatura manual, meus senhores.

Ele nos deu um sorriso esquisito. Esperamos que apontasse o dedo para alguém. Olhou por um momento as tiras de papel na mesa ao seu lado, e hesitou. A esta altura, claro, todos estávamos interessadíssimos.

— O senhor não quer dizer... — disse o aluno novo — não quer dizer que o homem que roubou o bissulfeto de carbono foi tão distraído, tão idiotamente distraído, que escreveu o nome...?

O professor, ainda sorridente, abanou a cabeça negativamente.

— Não foi bem assim — disse. Era visível que ele queria prolongar nossa agonia.

— Quando o fogo teve início no outro lado da rua — continuou ele, normalmente — suspeitei que as duas coisas estivessem relacionadas. Hoje de manhã, bem cedinho, antes mesmo de o sol nascer, fui até lá. Reconstituí o trajeto do fogo, com a ajuda dos bombeiros, até lá embaixo, no porão. Ele tinha sido aceso, como imaginei, através da grade protetora do carvão. Procurei meu frasco de bissulfeto de carbono entre as brasas e as cinzas do porão, assim que ele esfriou o bastante para permitir nossa busca; mas não o encontrei. Minha suspeita quanto à nossa ligação com o incêndio arrefeceu um pouco, mas me mantive fiel a ela. O porão estava extremamente quente, e por isto meu exame foi muito superficial, de modo que decidi repetir a busca numa hora mais avançada. Para passar o tempo, depois do café da manhã e de um banho fui até o jardim da casa, e comecei minha caçada. A primeira coisa que achei foi uma tampa de garrafa que me era familiar, e isto me animou; depois, numa moita de lilases, encontrei a garrafa, quebrada, suponho, pela bota de um bombeiro. O rótulo, como os senhores devem lembrar do nosso depósito de material, é um rótulo largo de papel, que quase dá a volta ao frasco.

Ele se deteve e nos deu um sorriso benevolente.

— Naquele rótulo estavam visíveis as palavras “Bissulfeto de Carbono”, e também ao lado, escritas a lápis por algum cavalheiro, “Fedor terrível”.

— Ora, mas fui eu que escrevi isso, três dias atrás! — disse Askin, agressivamente.

— Imagino que o tenha feito. Eu disse que isto era o que havia visível no rótulo. Mas hão de lembrar, cavalheiros, que nosso amigo havia derrubado um frasco de mucilagem de amido. Bem, permitam que lhes recorde as propriedades da mucilagem de amido. Ela é tão descolorida quanto é possível ser, mas combinada com o iodo fornece um belo colorido azul-púrpura. É um teste para acusar a presença do iodo, mesmo que este esteja na quantidade mais insignificante.

— O azul aparece com apenas uma parte de iodo para 450 mil partes de água, de acordo com Thorpe — disse Wilderspin.

— Muito bem. Estou vendo que está pronto para a prova. Agora, antes de deixar o laboratório eu tinha notado que nosso amigo tinha molhado os dedos naquela substância, porque sobre a maçaneta da porta distinguiu o que me pareceu ser marcas de dedos, e ao testá-las com iodo fiquei alegre ao ver que estava correto. Eram, porém, ainda muito borradas para meu propósito. Mas achei que se eu localizasse o frasco certamente haveria alguma marca dos dedos do nosso amigo sobre o rótulo, pois do modo como ele certamente o segurou não havia como não deixar essas marcas. E, seguindo o mesmo raciocínio, apliquei àquele rótulo uma solução de iodo muito leve; e agora, senhores, estou satisfeito em poder dizer que tenho três marcas azuis de dedos, e uma bela impressão de um polegar.

Ele faz uma pausa para apreciar nosso espanto.

— Devem ter ouvido falar no professor Galton — disse o professor, falando mais rápido e recolhendo as tiras de papel. — Ele fez um estudo especial das linhas que há no polegar humano, e propôs um método para a identificação de criminosos. Recolheu milhares de impressões de polegares humanos molhados com tinta, no Laboratório Antropométrico de South Kensington, e não há dois seres humanos com impressões idênticas. Publicou um livro com esse material, e é um livro muito bom. Bem, como veem, eu tenho aqui um pouco de tinta de impressão misturada com óleo, espalhada sobre este peso de papel, e aqui algumas tiras de papel, e com isto resolveremos o problema em poucos minutos. Se o delinquente estiver entre nós, vamos descobri-lo; se não...

— Cuidado! — gritou Wilderspin.

Virei-me, e vi o novo aluno segurando um frasco em cada mão. O anarquista tinha se desmascarado. Estava pronto para arremessar um dos frascos, de vidro esmerilhado, que provavelmente continha algum ácido. Abaixei-me, instintivamente, e o projétil passou por cima da minha cabeça, atingiu Smith no ombro e ricocheteou com estrépito numa mesa cheia de tubos de ensaio. Sentiu-se no ar um cheiro inconfundível de óxido de nitrogênio. O segundo frasco felizmente passou longe, esbarrou num bico de Bunsen e em duas trípodes, e fez um estrago por entre os frascos pequenos de reagentes sobre a bancada de Wilderspin. Nunca vi um grupo de homens se dispersar com tamanha rapidez. Ainda me virei com a intenção de agarrar o lunático, mas vi-o erguer um frasco de ácido sulfúrico ou vitríolo, o popular ingrediente dos filtros de amor parisienses. Isto foi demais para mim, e me escondi sem demora por trás de uma bancada. Alguns dos meus colegas tinham conseguido deixar a sala e amontoavam-se agora na escada, onde Smith também se refugiara. Vi Wilderspin, com a boca contraindo-se mais do que nunca, por trás de outro banco. Assim que tivemos uma chance, seguimos o exemplo dos outros e corremos para o patamar. Um pequeno frasco de ácido clorídrico atingiu Wilderspin no pescoço, fazendo-o dar um grito, e deixou no seu paletó uma grande mancha vermelha.

Havia algum método na loucura do Anarquista. Ele parou de arremessar coisas assim que se viu no controle do laboratório, e começou a recolher todos os frascos de ácido, sublimado corrosivo, nitrato de prata e assim por diante, colocando-os sobre a bancada mais próxima da janela. Tinha o claro propósito de vender caro sua rendição. Mas Smith era um oponente à altura. Tinha corrido para o depósito, e emergiu de lá como um garrafão do mais insuportável dos gases, o sulfeto de hidrogênio.

— Arranque o tampão e jogue isto lá dentro, rápido! — disse ele, e voltou ao depósito, em busca das pungentes qualidades de amônia.

Seguiram-se, em rápida sucessão, arremessos de um garrafão coberto de vime cheio de ácido clorídrico e outro de sulfeto de amônia, um gás cujo odor repugnante só encontra rival no sulfeto de hidrogênio. O inimigo só percebeu nossas intenções quando os vapores começaram a se espalhar na sua direção, e limitou-se a se esconder por trás de uma bancada. Dentro de trinta segundos, havia dentro do laboratório um conflito tão desagradável de odores químicos como não é difícil imaginar, e o ar estava denso com nuvens brancas do cloreto de amônia. O inimigo percebeu então nosso propósito e tentou fazer uma carga frontal. Quando o garrafão de sulfeto de amônia se espatifou no chão, vi um pequeno frasco vindo na minha direção por entre os vapores, mas ele não acertou a porta, e acabou derrubando o quadro-negro.

— Fora do meu caminho! — gritou o Anarquista, erguendo-se no meio dos vapores e da fedentina, mas nós batemos a porta, trancando-o lá dentro daquela atmosfera. Ele tentou furiosamente girar a maçaneta, e esmurrou a porta como louco. Ouvi-o pedir clemência e cair ao chão tossindo. Achei que o tínhamos derrotado, e por mim teria aberto a porta se Smith, temendo um ataque, não me segurasse. Ouvimos os passos do Anarquista retrocedendo e depois silêncio. Ficamos esperando outra arremetida dele. Uma garrafa se espatifou na porta pelo lado de dentro, e daí a pouco outra. Houve um intervalo de silêncio. Talvez tenham se passado uns três minutos.

Askin estava socorrendo Wilderspin na outra sala, e os outros estávamos agrupados no
patamar.

— Ele deve ter sufocado e caído — disse Porch.

— A janela! — exclamou Smith de repente. — Deve ter fugido pela janela. Não pensei nisso. Alguém ouviu a janela ser quebrada? Vocês três — ele indicou a mim, Porch e Mason — cuidem desta porta.

Os outros desceram precipitadamente as escadas, seguindo Smith. Ouvimos a porta da rua ser aberta e depois as vozes deles, gritando no pátio fronteiro. Então nos arriscamos a abrir de novo a porta do laboratório; vimos a janela do lado oposto escancarada, e as rajadas de vento agitando os vapores. O Anarquista tinha escapado.

Smith tinha sido um pouco intelectual demais na sua abordagem do caso, e pouco vigoroso.

— Depois daquela marca de polegar... — disse ele, quando a classe voltou a se reunir no dia seguinte, por entre os destroços do laboratório. — Depois que a marca foi descoberta ele devia ter se rendido imediatamente. Não havia nenhum argumento que o salvasse. Pela lógica, em todo caso, ele estava irremediavelmente encurralado. Começar a arremessar ácidos em redor, francamente! Uma coisa que não fui capaz de prever. Muito desleal da parte dele. Esse tipo de coisa tira todo o encanto intelectual que há no trabalho de um detetive

Fonte:
WELLS, H. G. O País dos Cegos e outras histórias. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.

Estante de Literatura Universal (Áustria: Robert Musil: “O homem sem qualidades”)

É um romance inacabado, constituído de três partes, do escritor austríaco Robert Musil. A obra foi publicada entre 1930 e 1943. O livro, considerado como um romance filosófico,é ambientado nos últimos dias do Império Austro-Húngaro e mostra, em muitos momentos, dissertações alegóricas sobre diferentes temas e sentimentos humanos. Apesar de o romance ter por volta de mil páginas (conforme a edição) e não focalizar efetivamente nenhum tema específico, dá particular ênfase aos valores da verdade e da opinião, bem como ao modo como a sociedade organiza as ideias. É considerado como uma das principais obras do modernismo e um dos mais importantes da literatura da língua alemã do século XX. Foi incluído na lista "Os 100 livros do século" do jornal Le Monde e na lista dos 100 melhores livros de todos os tempos, segundo The Guardian, sendo a única obra escrita por um austríaco a integrar a lista.

Livro primeiro
Parte I: Uma espécie de introdução

A primeira parte é a apresentação do protagonista, um matemático de 32 anos chamado Ulrich que busca um sentido para a vida e para a realidade, mas que acaba por fracassar no seu intuito. Sua flexibilidade moral e indiferença à vida o transformaram em 'um homem sem qualidades’, que precisa do mundo exterior para formar seu caráter. Uma espécie de sutil passividade analítica é a sua atitude mais comum frente ao mundo.

Musil disse que descrever Ulrich nos seus traços mais gerais não foi uma tarefa difícil. Sobre si próprio, Ulrich só sabe que é estranhamente indiferente a todas as suas qualidades. A falta de qualquer profundidade e a flexibilidade como guia de vida são suas principais características. Ao mesmo tempo, é apresentado um personagem assassino e estuprador, Moosbrugger, que é condenado pelo assassinato de uma prostituta. Dentre os outros personagens estão a amante ninfomaníaca de Ulrich, Bonadea, e a esposa neurótica de seu amigo Walter, Clarisse, cuja recusa em ter uma existência comum acaba por conduzir Walter à insanidade.

Parte II: A mesma coisa acontece

Na segunda parte Ulrich participa dos frenéticos preparativos da celebração dos 70 anos do reinado do imperador austríaco Francisco José I, chamada de Campanha Colateral ou Campanha Paralela. No mesmo ano, 1918, o imperador alemão Guilherme II completa 30 anos no comando de seu país. Essa coincidência de datas entre as duas nações inimigas enfurece os patriotas austríacos, que se propõem então, com todas as suas forças, a demonstrar a supremacia política, cultural e filosófica da Áustria nessa festa, que conquistará a atenção do imperador austríaco e das pessoas de todo o mundo. Por conta disso, muitas ideias e perspectivas visionárias são discutidas (por exemplo, a instituição do Ano da Guerra de 1918 ou do Ano da Paz da Áustria de 1918 ou o Ano da Guerra da Paz da Áustria de 1918).

Algumas personagens do romance entram para a organização do evento, chamando a atenção de Ulrich. Uma delas é Ermelinda Tuzzi, chamada de Diotima - prima de Ulrich e também esposa de um funcionário público -, que tenta tornar-se uma musa da filosofia vienense esforçando-se para inspirar quem quer que passe por seu caminho. Milagrosamente, ela consegue atrair as atenções tanto de Ulrich como do conde Arhneim. O nobre no comando da Campanha, o velho conservador Conde Leinsdofr, é uma figura incapaz de se achar e até mesmo de se perder. O general Stumm von Bordwehr, do Exército Imperial e Real, acaba por ser malvisto pelo povo, graças às suas tentativas de organizar as coisas de modo sistemático em meio a essa atmosfera mística. Já o conde alemão Paul Arhneim (personagem inspirado no político alemão Walther Rathenau) é um admirador da combinação de beleza e espiritualidade em Diotima, apesar de não querer casar-se com ela.

Enquanto a maior parte dos participantes da campanha (principalmente Diotima) tenta associar o reinado de Francisco José I a vagas ideias de humanismo, progresso, tradição e felicidade, os seguidores da Realpolitik veem uma chance para explorar a situação: Stumm von Bordweh deseja aumentar o salário do Exército e Arhnheim planeja comprar jazidas de petróleo em uma província oriental da Áustria. 

A grande ironia e sátira de Musil se encontra no fato de uma celebração planejada para celebrar a paz e a coesão imperial tornar-se um caminho para a guerra, para o colapso imperial e o chauvinismo austríaco. O romance oferece uma análise de todo o processo político e cultural que culminou com a Primeira Guerra Mundial.

Livro segundo
Parte III: “Rumo ao reino dos mil anos (Os criminosos)"

A terceira parte está centrada em Agathe, irmã de Ulrich. Após a morte do pai, os dois irmãos têm um encontro em que, numa atmosfera surreal, transparecem anseios incestuosos. Ambos veem a si mesmos como almas gêmeas ou, como é dito no livro, 'almas siamesas’. 

Na forma em que foi publicado até agora, o romance termina em diversos rascunhos,  notas, falsos começos e excertos escritos por Musil enquanto ele tentava desenvolver um final definitivo para o livro. Na edição alemã há, inclusive, um CD-ROM que contém milhares de páginas de versões alternativas e rascunhos.

História da publicação

Musil trabalhou no romance por quase vinte anos.Começou em 1924 e passou o resto de sua vida trabalhando na obra. Quando morreu, em 1942, de uma súbita hemorragia cerebral, o romance não estava terminado. O primeiro e o segundo livros, que totalizam mais de mil páginas, foram publicados em 1930 e 1933, respectivamente, em Berlim. A segunda parte não conta com os 20 capítulos retirados enquanto Musil revisava as provas de impressão do segundo livro. De 1933 até a data de sua morte, Musil trabalhou no terceiro volume. Em 1943, em Lausanne, a viúva de Musil, Martha, publicou uma coleção de 462 páginas de escritos deixados por seu marido, incluindo os 20 capítulos retirados do segundo volume e os rascunhos dos capítulos finais inacabados, além de notas sobre o desenvolvimento e a direção do romance.

Em Portugal,  os três volumes foram publicados pela editora Livros do Brasil, traduzidos por Mário Braga, entre 1973 e 1977. No Brasil, a obra foi publicada em 1989, pela Nova Fronteira, com tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth. Mais recentemente, uma outra edição, traduzida, prefaciada e anotada por João Barrento, foi publicada em Portugal.

A dedicação de Musil a sua obra, escrevendo quase diariamente, acabou por deixar sua família em dificuldades financeiras. O livro não lhe trouxe nem fama nem fortuna. Este é um dos motivos pelos quais sentiu-se amargurado e injustiçado durante as duas últimas décadas de sua vida. A combinação de pobreza material e profusão de ideias é uma das características mais surpreendentes da biografia de Musil.

O texto é visto, em parte, como autobiográfico, supondo-se que as ideias e as atitudes dos protagonistas expressem as do próprio autor. Grande parte dos aspectos da vida vienense apresentada no romance é baseada na trajetória e nas experiências de Musil. A trama e as personagens (com exceção de uma curta aparição do imperador austríaco Francisco José I) são ficcionais, apesar de alguns serem inspirados em austríacos e alemães famosos e de alguns protagonistas terem como modelo pessoas conhecidas do escritor. Elsa (Berta) von Czuber, a quem Musil conheceu enquanto estudava em Brno, entre 1889 e 1901,inspirou-o a criar Agathe, irmã de Ulrich; Donath e Alice Charlemont, amigos de Musil, foram os modelos para Walter e Clarisse; a socialite vienense Eugenie Schwarzwald, por sua vez, foi o modelo para Diotima; e Arhnheim foi, provavelmente, baseado em Walther Rathenau e Thomas Mann.

O retrato traçado por Musil, de um mundo decadente em fins de século, é semelhante aos quadros apresentados na trilogia Os sonâmbulos, de Hermann Broch, em Os últimos dias da humanidade, de Karl Kraus, e em O mundo de ontem, de Stefan Zweig.

Alguns dos títulos provisórios do romance foram As calhas, Aquiles (o nome originai de Ulrich) e O espião.

Estilo e estrutura

O romance monumental de Musil tem mais de 1.700 páginas (conforme a edição) divididas entre três livros, o último dos quais publicado pela viúva de Musil após sua morte. O romance é famoso pela ironia com que o escritor retrata a sociedade austríaca pouco antes da Primeira Guerra Mundial. A trama se passa em 1913 em Viena, capital do então Império Austro-Húngaro, ao qual Musil se refere jocosamente de “Kakânia” (em tradução literal, kaka poderia ser traduzido 'caca', isto é, fezes, em linguagem infantil ; e -ânia, um sufixo designativo de lugar ou região, como em 'Britânia'). O termo 'Kakânia' é derivado da abreviação alemã K und K (kaiserlich und königlish: 'imperial e real'), usado para indicar a Áustria-Hungria como uma monarquia dupla, demonstrando a sua falta de unidade política, administrativa e sentimental.

No livro, Musil refletiu sobre as contradições do modo de vida kakaniano: "A constituição era liberal, mas o regime era clerical. O regime era clerical, mas se vivia de forma liberal. Todos os cidadãos eram iguais perante a lei, mas nem todos eram cidadãos”. A trama conta com cerca de vinte personagens, incluindo um aristocrata, um oficial do exército, um banqueiro, três esposas burguesas, uma camareira misteriosa, um pajem negro e, por último - mas não menos importante -, um homem que mata uma prostituta.

Produção

Musil buscava chegar, com o protagonista Ulrich e a trama que se desenvolve a seu redor, a uma síntese entre fato científico minucioso e o místico, ao qual ele se refere como “a vida flutuante”. No começo, Musil não queria que a primeira parte do romance fosse publicada até que toda a obra tivesse sido concluída. Mais tarde, quando era tarde demais para fazer alterações no que já havia sido publicado, ele arrependeu-se de ceder às insistências de seu editor, que há muito tempo lhe emprestava dinheiro. Os críticos especulam sobre a viabilidade dessa primeira ideia de Musil, já que alguns acreditam que o tamanho da edição definitiva, caso Musil tivesse terminado o livro, seria duas vezes maior do que a que se tem hoje.

Fonte:

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Olivaldo Junior (Um Livro Aberto)

Eu, por um bom tempo, me dispus a ser um livro, um livro aberto pra ti. Deixaste marcadas minhas páginas, dobrando-as nas pontas, para ver se, mais tarde, quando quisesses um trecho de destaque bem à mão, sequer trabalho tivesses de procurar em mim o que gostaste e irias repetir. 

Repito que fui pra ti um livro aberto, sempre alerta, como se eu fosse a Bíblia, sagrada em seu sacrossanto ofício de estar lá, livro que folheavas meio a esmo, mais do mesmo, sem muita emoção. Não, sequer eras devoto dos versículos que eu te mostrava serem teus. Eu, pra ti, se fui um deus, fui um deus morto, um totem visto lá de longe, de outra praia, foragido de meu dever de clarear a tua fé. Feito ateu, me deste adeus.

Soluço feito um livro de poemas de Florbela Espanca, esnobando o didatismo dos livros técnicos, segurando em mim as sílabas que teimam em voar de minhas linhas. Minha alma, em teu colo descoberta, era um livro aberto, romance que contava as crônicas de uma prosa quase nada poética... Quase me perdia em mim, Aurélio que a edição estava antiga, sem o Acordo Ortográfico, com todos os tremas e todos os hifens que nos cabiam e nos foram tomados, tirados da língua. À míngua, minguante, fechei-me ao toque dos dedos que me feriam o papel. Para! Já tenho orelhas demais e muitas, inúmeras notas de rodapé! Peças para alguém me por em braile. Lembro-me de que tu não tens tato o bastante para me ler nas entrelinhas, tocando-me as fibras, uma a uma; ao contrário, me espancas se me torno a bela flor de teu jardim, a obra-prima de teu sebo, o selo raro em tua pasta. Basta! Aberto, fecho-me a teus olhos, roído de traças me trago e me "voo".

[...] "Fecha o meu livro, se por agora / Não tens motivo nenhum de pranto." [...]. Tô com Bandeira e não abro! Abro a cadabra de mim e me sumo na estante. Nunca me encontrarás. Sob os olhos dos clássicos, caças algo para ler, e eu, que, por um bom tempo, me dispus a ser teu livro, aberto só pra ti, tiro a poeira dos móveis e me cubro com ela. Lambes o dedo a fim de virares mais facilmente as páginas. Não mais as minhas. Bíblico, mítico, místico, transfiguro-me em jornal e tens de mim as últimas notícias da Cidade, do Brasil e do Mundo. Nunca as minhas. Soluço, sim, mas salvo a pátria de meus ais com minhas páginas unidas, seladas pelo efeito da umidade que peguei quando chorei.

Disposto, aberto, marcado, dobrado, visto, revisto e ampliado, fui, assim, um livro que se abria pra a consulta, a qualquer hora. Feito lista, feito alguém que é descoberto especial quando é preciso. Viso outra forma de ser. Rezo para alguém me "conseguir". Velho, a esmo, o mesmo, quase pó.

Fonte:
O Autor

Contos do Oriente (A Pereira Mágica)

Um camponês vendia no mercado peras doces e perfumadas, mas muito caras. Diante da carroça de peras, um monge taoista pedia esmolas. Ele tinha a túnica esfarrapada e o capuz rasgado.

– Quer fazer a gentileza de dar o fora daqui! - gritou o camponês.

O monge recusou-se a ir embora. Com muita raiva, o camponês começou a insultá-lo. Depois de um tempo, o monge disse:

– Você tem uma quantidade enorme de peras, e eu, um velho monge maltrapilho, quero uma só. Por que ficar com tanta raiva, se vai perder muito pouco se me der o que estou pedindo?

As pessoas em volta sugeriram que o vendedor de peras se livrasse do monge dando-lhe uma, não das mais bonitas, claro, para que ele deixasse o lugar, mas o camponês se recusou a aceitar essa ideia.

No fim, um rapazinho de uma birosca ali perto, atordoado com a gritaria, tirou do bolso uns tostões e comprou come uma pera, oferecendo-a ao monge, que prontamente agradeceu gesto tão caridoso. Em seguida, o monge virou-se para a multidão e disse:

– Nós, religiosos, que deixamos nossas famílias, não conseguimos compreender por que existe tanta avareza. Eu, por exemplo, tenho peras excelentes, e gostaria muito de reparti-las com vocês.

- Mas, se tem peras excelentes, por que não come uma delas, em vez de ficar aqui nos aborrecendo? – perguntou um dos homens.

– Porque eu preciso das sementes para plantar – respondeu o monge.

Imediatamente, ele pegou a pera com as duas mãos e começou a comê-la. Pelo jeito, devia estar bem gostosa. Antes de terminar, pôs as sementes na palma da mão, tirou a pequena pá que carregava na cintura, usada para colher plantas medicinais e começou a cavar um buraco. Quando o buraco ficou pronto, jogou dentro deles as sementes, cobrindo-as com terra.

O monge ficou de pé, examinou com cuidado a cova que tinha feito e disse que precisava regá-la com água quente. Um curioso trouxe um pouco, de uma venda ali perto, e o monge despejou-a devagar sobre a terra recém revolvida.

Todo mundo seguiu seus movimentos com atenção. E nesse instante, saiu da terra um broto, que cresceu, e instantes depois se transformou numa árvore com galhos frondosos. Nem bem as pessoas se recuperaram da surpresa, as flores desabrocharam nos galhos, que se inclinaram, carregados de peras doces e perfumadas.

O monge taoista subiu na pereira e começou a colher as peras dos galhos mais altos, oferecendo-as a quem quisesse. Num piscar de olhos, tudo foi distribuído. O monge pegou então a pá e bateu com ela no tronco da pereira, quebrando-o em pouco tempo. Pôs o tronco nos ombros, com a folhagem, e seguiu tranquilamente pela rua.

O camponês, que tinha entrado no meio da multidão logo no início, quando o monge tinha começado a plantar as sementes, estava tão fascinado que nem se lembrava mais da carroça. E quando o monge afastou-se, voltou correndo para as suas peras e teve uma surpresa maior ainda: a carroça estava vazia.

Por fim ele compreendeu o que tinha acontecido. Eram suas as peras que o monge havia distribuído de maneira tão generosa. Ele percebeu também que a carroça estava sem um dos varais, certamente serrado há bem pouco tempo. Indignado, foi atrás do monge. No canto do muro, estava o varapau que faltava. Era ele, então, o tronco da árvore! Quanto ao taoista, nunca soube em que direção tinha seguido. 

Fonte: 

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte X, final

Representada como canal linguístico da emoção, como se verifica em Amado e Hatoum, a língua árabe, além de mediar o convívio amoroso entre os personagens, também desempenha o papel desencadeador das lembranças de si, o que Hall denomina de núcleo ou essência interior, embora em contínua formação e modificação com os mundos culturais “exteriores” (HALL, 2001, p. 11), como se vê sugerido nas narrativas:

E, por mais espantoso que pareça, naqueles dias vibrantes do comício, no maior deles, quando dr. Ezequiel bateu todos os seus recordes anteriores de cachaça e inspiração, Nacib pronunciou um discurso. Deu-lhe uma coisa por dentro, depois de ouvir Ezequiel. Não aguentou, pediu a palavra. Foi um sucesso sem precedentes, sobretudo porque, tendo começado em português e faltando-lhe as palavras bonitas, pescadas dificilmente na memória, ele terminou em árabe, num rolar de vocábulos sucedendo-se em impressionante rapidez. Os aplausos não findavam. – Foi o discurso mais sincero e mais inspirado de toda a campanha – classificou João Fulgêncio. (AMADO, 1979 1, p. 327)

Às vezes ele se esquecia e falava em árabe. Eu sorria, fazendo-lhe um gesto de incompreensão: “É bonito, mas não sei o que o senhor está dizendo”. Ele dava um tapinha na testa, murmurava: “É a velhice, a gente não escolhe a

língua na velhice. Mas tu podes aprender umas palavrinhas querido [...] Numa noite, o tal de Zunuri reapareceu, intruso e dissimulado. Ela o enxotou com o abanador do fogareiro, insultou-o nas duas línguas que falava. O gatuno alesado, o ladrão, harami! [...] Zana deu um passo na direção dele, perguntou por que dormira no sofá. Depois, menos trêmula, conseguiu iluminar seu corpo e ainda teve coragem de fazer mais uma pergunta: por que tinha chegado tão tarde? Então com o sotaque árabe, ajoelhada gritou o nome dele, já lhe tocando o rosto com as duas mãos. Halim não respondeu. Estava quieto como nunca. Calado, para sempre. (HATOUM, 2000, p. 51; 146; 213)

Em suas construções identitárias, os discursos de Jorge Amado e de Milton Hatoum, num sinestésico apelo aos sentidos, exalam cheiros, sugerem sabores, se apresentando como um mosaico alimentar, duplamente dirigido para o paladar de origem e para o paladar da terra adotada, num saboroso jogo de retorno e de permanência. Desse jogo, deriva mais uma afinidade entre os árabes Nacib e Halim:

A viagem de Filomena [...] impedia-o de voltar-se por inteiro para as múltiplas novidades, tanta coisa a comentar quando os amigos chegassem. Novidades a granel e na opinião de Nacib, nada mais gostoso – só mesmo comida e mulher [...] Ele gostava mesmo era de comer bem, bons pratos apimentados, beber sua cerveja geladinha, jogar uma apurada partida de gamão. (AMADO, 1979 1, p. 77; 116)

Mas ele foi aprendendo, soletrando, cantando as palavras, até que os sons dos nossos peixes, plantas e frutas, todo aquele tupi esquecido, não embolava mais na sua boca [...] Ele era assim: não tinha pressa para nada, nem para falar [...] esbanjava na comida, nos presentes para Zana, nas vontades dos filhos. Convidava os amigos para partidas de gamão, o taule, e era uma festa, noitadas de grande demora, cheias de comilança [...] Ele preparou e serviu o último almoço [...] Ele festejava a volta cozinhando acepipes amazônicos: o piracu seco com farofa, tortas de castanhas, coisas que levava do Amazonas [...] (HATOUM, 2000, p. 51-56)

Avizinhando-se da obra de Jorge Amado, tangenciando Gabriela, cravo e canela, curiosamente, o romance de Hatoum se achegaria a essa personagem, quando se debruça sobre o destino/sina do imigrante. Nessa ponderação, verbalizada por Halim, encontramos a mesma condição vivida pela imigrante do sertão:

Estava envelhecendo, o Halim: uns setenta e tantos, quase oitenta, nem ele sabia o dia e o ano do nascimento. Dizia: Nasci no fim do século passado, em algum dia de janeiro... “A vantagem é que vou envelhecendo sem saber minha idade: sina de imigrante”. (HATOUM, 2000, p. 151)

Eu me lembro que, quando você me anunciou o casamento, contou que ela não sabia o nome da família, nem data do nascimento... – Nada. Não sabia nada... – E Tonico se ofereceu para arranjar os papéis necessários. – Fabricou tudo no cartório dele. – E então? (AMADO, 1979 1, p. 311)

Em sua representação árabe no Brasil, observa-se que o romance Dois irmãos não apenas estabelece um diálogo com Gabriela, cravo e canela, como, também, adota soluções já utilizadas, em outras obras amadianas. Ao assinalar a fé árabe no sistema sagrado dos caboclos amazônicos, Hatoum o aproximaria de uma das recorrências das narrativas de Amado, a da fé e do respeito árabe, ao código religioso popular, especialmente de matizes originadas das etnias não-europeias, como se afere da passagem textual da narrativa, Suor, escrita em 1934, um dos primeiros romances de Jorge Amado:

A negra ficou sentada no degrau. O medo abriu-lhe os olhos. Seria pra ela? Não tinha inimigos, não roubara o marido de ninguém, estava velha demais para ser cobiçada. De qualquer maneiram não passaria sobre o despacho. [...] Toufik juntou-se à negra: – Bom dia, sinhá Maria. – Bom dia, meu branco. – Não vai descer? Ela esticou o dedo apontando o embrulho de papel de jornal. Toufik assobiou. – Um feitiço, puxa! Pra quem será? O árabe também acreditava. (AMADO, 1980, p. 68-69)

Halim nunca me falou da morte, senão uma única vez, com disfarce, triscando as beiradas do assunto. Falou quando já se sentia perto do fim, uns anos depois da história do filho com a Pau-Mulato. Ele não viu o pior, o descalabro. Não viu, mas era dado a apreciar presságios: as tantas antevisões que escutara dos caboclos companheiros dele, filhos da mata e da solidão. Tinha tendência a crer piamente nessas histórias, e se deixava embalar pela trama, pela magia das palavras. (HATOUM, 2000, p. 148)

Também não se pode esquecer do tom incestuoso que perpassa a relação entre mãe e filho árabe, no caso Zana e Omar, largamente insinuado na narrativa de Hatoum. Embora mais abrandado, leve indício do desejo filial, esse tom se faria presente, originalmente, na obra de Jorge Amado, mais precisamente em Suor:

Ficaram juntos, os braços dela enroscados no pescoço do Caçula, ambos entregues a uma cumplicidade que provocou ciúmes em Yaqub e inquietação em Halim [...] Ao contrário de Zana, ela conseguia disfarçar o ciúme que sentia do Caçula e ambas faziam tudo para reinar nas noites de festa [...] Beijou-a com ardor, e nesse momento Zana lagrimou, em parte por emoção, em parte porque o Caçula, depois do beijo, apresentava-lhe a namorada. Dessa vez ela não quis disfarçar: encarou com um sorriso dócil e um olhar de desprezo a mulher que jamais seria a esposa de seu filho, a rival derrotada de antemão. (HATOUM, 2000, p. 26; 98-98)

O calor da noite não o deixava dormir, excitava-o. Levantou-se e molhou a cabeça na pia de água do sótão. Cuspiu e voltou. Notou que a mãe estava com as coxas descobertas. Primeiro, horrorizou-se. Depois não pensou mais naquilo e se deitou junto da velha. Encostou-se nas pernas descobertas, como fazia diariamente, mas nessa noite quase não dormiu, roçando-se na mãe que roncava. (AMADO, 1980, p. 57)

Como se pode verificar, a importância da obra de Jorge Amado não se constitui apenas pelo recorte espacial do seu discurso romanesco, à produção de “postais da Bahia, como ainda a reduz, variadas visões críticas. Dento da concepção estética que escolheu, Jorge Amado se faz pioneiro de um modo de olhar o imigrante árabe que não cessa de se reatualizar, em nosso corpus literário. Parafraseando Lúcia Lippi Oliveira, acreditamos que o escritor nordestino, ultrapassando a perspectiva puramente regionalista, pode ser considerado como romancista e como intelectual que soube ler, literariamente, o seu país e o seu tempo, nos legando uma obra que ainda espera ser reconhecida.

CONCLUSÃO

JORGE AMADO E MILTON HATOUM: SIMETRIAS E ASSIMETRIAS

O pintor de costumes que não se ocupe da América não é incompleto, por enquanto. Mas daqui a cem anos – talvez cinquenta – ele certamente o será.
Henry James

Acostumados à visão de Antonio Cândido de que a nossa literatura se constitui como um sistema, abrigando em seu interior determinados comportamentos e soluções estéticas que se repetem ao longo de nosso fazer literário, nos voltamos para a representação árabe em nossa literatura, tentando apreender as formas com as quais os nossos literatos representam esse universo. Utilizando-nos da perspectiva histórica e comparada, dividimos este trabalho em três momentos.

No primeiro, buscamos, essencialmente, verificar a presença árabe em nossa literatura, através dos mais variados momentos literários, alcançando, inclusive, o contexto literário do mundo colonial. Para, então, chegarmos à conclusão de que a presença árabe se constitui num topoi, grandemente utilizado em nossa produção poética e narrativa. Verificamos, ainda, que à exceção do satírico Gregório de Matos, que representa o universo árabe em estreita ligação com o mundo indígena, os nossos poetas e romancistas representam o elemento árabe em pleno olhar de proximidade, auto-reconhecimento, como Manuel Bandeira, e solidariedade, como Machado de Assis.

Num segundo momento, procuramos observar a representação árabe na literatura brasileira, através de um enfoque mais restrito, o da temática identitária. Levando em consideração a ostensiva presença árabe na obra de Jorge Amado em meio às suas elaborações da identidade nacional, nos voltamos para a narrativa, Gabriela, cravo e canela, primeira obra romanesca brasileira a elevar o elemento árabe à personagem-protagonista. Nessa leitura, verificamos, com surpresa que, não obstante a crítica desfavorável que padece a obra amadiana em nosso meio, principalmente a obra analisada, Jorge Amado, em sua perspectiva naturalista, revisitaria alguns grandes autores do Brasil, de perspectiva diferenciada da sua, como o discurso dos romancistas românticos e o de Machado de Assis.

Por outro lado, observamos, ainda, que os procedimentos utilizados por Jorge Amado, em sua aproximação identitária árabe-brasileira, seriam, em larga medida, retomados por muitos dos nossos escritores, a exemplo de Milton Hatoum, cuja obra tangencia o romance amadiano, apesar do vácuo, de quase cinqüenta anos que as separa, da concepção artística e da visão memorialista que norteiam Milton Hatoum.

Terceiro momento de nosso trabalho, a leitura da obra Dois irmãos, de Milton Hatoum se daria em estreita comparação com o discurso amadiano, respeitando a precedência histórica e literária do escritor nordestino. Nessa leitura mais uma surpresa. Apesar das diferenças assinaladas entre os dois romancistas, do sucesso da obra de Hatoum em nosso meio acadêmico, a obra do escritor amazonense se aproximaria da de Jorge Amado pela recorrência às maneiras pelas quais o escritor grapiúna constrói a identidade brasileira em intercurso com as feições árabes. Nessa compreensão, Jorge Amado pode e deve ser visto como pioneiro dessas construções identitárias.

Nesse percurso, organizamos esse trabalho, esperando contribuir para os estudos literário-identitários entre nós, mais especialmente das representações árabes e brasileiras, em nosso sistema literário.

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008