sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Fernando Sabino (Fumar sem ser Fumante)


O MÉDICO proibiu Mário de Andrade de fumar:

— Se você largar o cigarro, ainda poderá ter uns vinte anos de vida.

E Mário, desencantado:

— De que me adianta viver mais vinte anos sem fumar?

A partir de então, trancava-se no banheiro para acender um cigarrinho, escondendo-se de si mesmo.

E o conhecido médico que um dia fez a solene promessa ao filho:

— Meu filho: dou-lhe a minha palavra de honra que você nunca mais me verá com um cigarro na boca.

Homem de palavra: o filho nunca mais o viu fumando. Tempos depois, ao entrar no escritório do pai, dá com uma fumacinha no ar, e eis o velho atirando rápido alguma coisa pela janela, depois se voltando com ar sonso:

— Que foi, meu filho? Por que está me olhando?

O rapaz se pôs a rir:

— Mas que flagra, hein? Você não tinha dado a sua palavra de honra que nunca mais havia de fumar?

O velho pigarreou, compenetrando-se:

— Meu filho, eu vou lhe dizer uma coisa, saiba de uma vez por todas: cheguei à conclusão definitiva de que honra e cigarro são duas coisas absolutamente incompatíveis.

Deixar de fumar. Conheço um que deixou durante três anos. Um dia viu Charles Boyer segurar delicadamente um cigarro na ponta dos dedos, levá-lo à boca, tirar uma daquelas tragadas francesas de encher o peito, e depois dizer para Michele Morgan “je t’aime”, soltando fumaça. Saiu do cinema, comprou um maço de Hollywood e fumou-o inteiro, um cigarro atrás do outro.

Estou proibido de citar a velha frase atribuída a Mark Twain, a Bernard Shaw, a Churchill: nada mais fácil — já deixaram umas vinte vezes. Pois aqui está o homem que deixou o cigarro. Mais um dia sem fumar! — diz ele, satisfeito, se olhando ao espelho antes de ir dormir. Sabe a data precisa: desde o dia onze de outubro de mil novecentos e setenta e dois (às três e trinta e cinco da manhã). Com isso exatamente nove meses. Está para nascer, de um momento para outro. Está para nascer o homem novo, sem sarro nos dentes ou nos dedos, e sem úlcera de estômago, distúrbio das coronárias, enfisema pulmonar. Vai até a janela e respira fundo o ar puro da noite, batendo com as mãos espalmadas no peito. Vem-lhe a lembrança dos tempos em que a essa hora fumava ali na janela o último cigarrinho antes de se meter na cama — lembrança que ele afasta como fumaça, sacudindo a mão no ar. No fundo sabe que nunca mais será o mesmo, sente-se vagamente viúvo. Há nele qualquer coisa de ex-presidiário ou de défroqué (fora de moda): o cigarro o estigmatizou para sempre. “Mas pelo menos não morrerei de câncer” — conclui ele.

“Fumar é morrer um pouco” — diz um artigo que tenho diante dos olhos: “os fumantes têm uma probabilidade duas vezes maior de morrer na meia-idade do que os que não fumam”.

Sou um homem de meia-idade; e, como deixei de fumar há coisa de meia hora atrás, a minha probabilidade de morrer neste instante ficou reduzida à metade. Resta a outra metade, ou seja, a morte em decorrência de outras causas. Quanto a estas, não creio que haja nada a fazer. Não há outros vícios que eu posso abandonar, a não ser o de viver.

Viver faz tanto mal à saúde quanto fumar. Viver também é morrer um pouco. Faz cair os cabelos e os dentes. Provoca rugas na pele, flacidez nos músculos e artrite nos ossos. Enfraquece a cabeça, combale o organismo e ataca o coração. É o próprio suicídio preconizado pelos que não têm pressa.

E o pior é que os fumantes nem ao menos têm o consolo de saber que estão afugentando a morte quando abandonam o fumo, pois diz aqui o tal artigo: “somente ao fim de dez anos de abstinência tabágica as possibilidades de falecer em consequência do hábito são iguais às das pessoas que não fumam”.

Dez anos? Sei de um que não fuma há nove — portanto durante um ano estará sujeito a morrer por ter fumado. E até hoje ainda sonha que está fumando, acorda engasgado com a fumaça.

Na adolescência cheguei uma ou outra vez a dependurar um cigarro na boca, mas só para parecer que já era homem e não ser barrado no cabaré. Comecei a fumar de verdade aos 20 anos, corrompido por meu amigo Hélio Pellegrino (que hoje não fuma).

Desde então me entreguei alegremente ao vício abominável. Fazer boca para o cigarro era um eufemismo que transcendia o simples cafezinho, para estender-se à própria vida até seu último instante. Pouco importava que fosse reduzida à metade, e daí? Fumar até o momento final, como um condenado — dar a última tragada e enfrentar impávido o pelotão de fuzilamento.

Como um condenado, me vi um dia sem um só cigarro em casa — era de madrugada e chovia. Ainda assim saí à rua para comprar, não poderia dormir sem fumar. Andei como uma alma penada pelas ruas escuras e molhadas de meu bairro, nem um botequim aberto. Já me dispunha a tomar um táxi e mandar seguir para o quinto dos infernos, onde quer que houvesse cigarros à venda. De súbito percebi a escravidão que aquilo significava. Chovia cada vez mais, relâmpagos cortavam a noite.

Nunca mais hei de fumar! — bradei para as potestades dos céus. No dia seguinte me agarrei com ferocidade à surpreendente decisão, fumando a todo momento um cigarro imaginário. Ao segundo dia meu propósito se robusteceu — eu tinha vencido: em breve estaria respirando melhor, sem corizas e pigarros. E ao terceiro dia enlouqueci.

Não sei como não me internaram. Passei a ter ímpetos homicidas dentro de casa, crianças fugindo espavoridas como galinhas. Agarrava-me com todas as forças ao novo vício: o de não fumar. Só falava nisso, só vivia para isso. Depois do primeiro mês a coisa se tornou mais fácil, mas eu vivia triste como se tivesse perdido algum parente próximo e querido. As pessoas me olhavam como quem diz: esse homem esquisito que não sabe onde põe as mãos positivamente já não é o mesmo. E sentado num sofá, vendo os outros fumarem, eu me sentia sem braços como um cavalo.

Com o correr do tempo me acostumei. E para provar que eu deixara mesmo de ser fumante, aceitei com naturalidade o cigarro que me ofereciam, depois de um jantar. Foi então que descobri a verdadeira e única fórmula de vencer o vício do fumo: deixar de fumar sem abandonar o cigarro. Um cigarro como complemento das refeições não faz mal a ninguém. Ou depois de um bom cafezinho — sejam quantas forem as xícaras tomadas diariamente. Um cigarrinho aqui, outro ali — podem mesmo ser tantos quantos os de antigamente, mas com uma diferença: na boca de alguém que, por convicção, deixou de ser fumante. Tudo nesta vida é pura questão de convicção.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Cecília Meireles (Poesias para Crianças) 3


A BAILARINA

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.

Não conhece nem mi nem fá
mas inclina o corpo para cá e para lá.

Não conhece nem lá nem si,
mas fecha os olhos e sorri.

Roda, roda, roda com os bracinhos no ar
e não fica tonta bem sai do lugar.

Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Mas depois esquece todas as danças,
e também quer dormir como as outras crianças.
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O MENINO AZUL

O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.

O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
- de tudo o que aparecer.

O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.

E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.

(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)
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OS CARNEIRINHOS

Todos querem ser pastores,
quando encontram, de manhã,
os carneirinhos,
enroladinhos
como carretéis de lã.

Todos querem ser pastores
e ter coroas de flores
e um cajadinho na mão
e tocar uma flautinha
e soprar numa palhinha
qualquer canção.

Todos querem ser cantores
quando a Estrela da Manhã
brilha só, no céu sombrio,
e, pela margem do rio,
vão descendo os carneirinhos
como carretéis de lã…
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RIO NA SOMBRA

Som
frio.

Rio
sombrio.

O longo som
do rio
frio.

O frio
bom
do longo rio.
Tão longe,
tão bom,
tão frio
o claro som
do rio
sombrio!
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SONHOS DA MENINA

A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?

Sonho
risonho:

O vento sozinho
no seu carrinho.

De que tamanho
seria o rebanho?

A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha ...

Na lua há um ninho
de passarinho.

A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?

Fonte:
Cecília Meireles. Ou isto ou aquilo. Publicado em 1964.

Nelson Rodrigues (O Pastelzinho)


Uma noite, duas semanas antes do casamento, conversava com alguns amigos no café. Súbito, um deles baixa a voz e faz-lhe a pergunta:

— Sabe onde é que se decide um casamento?

— Não.

E o outro:

— Na primeira noite. A primeira noite é tudo e o resto não tem importância.

Sérgio ouviu, sem fazer comentário. O outro era casado, bem casado, e tinha a autoridade de quem conhecia o problema. Continuou e mudaram de assunto. Mas quando, uma hora depois, desfez-se o grupo, o amigo o levou até a esquina. E, lá, repete:

— Não te esqueças: — é preciso caprichar na primeira noite. Bye, bye.

O impressionado Sérgio balbuciou:

— Bye, bye.

EMOÇÃO

Morava na rua Adriano, no Méier. A caminho de casa, no lotação, ia pensando na advertência do amigo, que passava por ser uma enciclopédia amorosa. E Sérgio, que era por natureza um emotivo, sujeito a angústias inenarráveis, começou a entrever possibilidades nupciais as mais desagradáveis. Durante a noite sonhou repetidas vezes com o amigo, que lhe repetia sinistramente: — “Olha a primeira noite. Capricha, capricha!”. Acordou banhado em suor. Mais tarde, no trabalho, permanecia o mal-estar. E a situação parecia-lhe grotesca, hedionda: faltavam duas semanas para o casamento e já estava nervoso. Durante uma semana não pensou noutra coisa. Acabou indo a um médico. Chega lá e abre o coração:

— Doutor, o que há é o seguinte: — vou me casar daqui a uma semana. Tenho medo, justamente, do meu sistema nervoso, das minhas inibições.

O médico insinua:

— Quer um calmantezinho?

E ele, de olho aceso:

— Talvez fosse negócio, não, doutor?

Mas o outro volta atrás:

— Não precisa. Pra quê? A solução é ter confiança em si mesmo, procurar distrair as ideias.

Agoniado, quer saber: — “E não vou tomar nada?”. O médico, cheio de otimismo, deu-lhe o conselho:

— Faz o seguinte: — no dia do casamento, evita salgadinhos e doces. O ideal seria um bife, um bom bife. Carne assada, sangrenta. Nada de pastéis, de empadinhas, de coisas apimentadas.

Ao lado, o noivo escutava:

— Compreendo, compreendo.

Saiu crente do consultório que a chave da lua-de-mel era o aparelho digestivo. Ao descer do médico, dá de cara, por uma dessas fatalidades cômicas, com o tal amigo. Este diz-lhe, em tom cavo e voz profunda:

— A primeira noite é tudo!

NÚPCIAS

Eis a verdade: — a conversa com o médico dera-lhe ânimo novo. Passou a pisar mais firme, a olhar os outros de cima para baixo e, no telefone, ao despedir-se da pequena, encostava a boca no fone:

— Um beijinho bem molhado nessa boquinha!

Entre parênteses, a garota, com dezoito anos, jeitosa de corpo e de rosto, era, como dizia o próprio Sérgio, um “doce-de-côco”, um “arroz doce”. Educadíssima ou, segundo se comentava, “muito espiritual”, era incapaz de usar expressões de gíria, de dar uma gargalhada ou, simplesmente, cruzar as pernas. Fisicamente era um tipo fino, de poucas cadeiras, uma linha muito aristocrática. Ele dizia: — “Nunca espirrou na minha frente. E outra coisa: — não transpira! Te juro que nunca vi a Dalva suada”.

De fato, nenhuma pele mais isenta de espinhas, de manchas, mais fresca, mais cheirosa e mais suave. Custava crer que essa imagem de graça intensa, essa flor de espiritualidade tivesse nascido e, pior do que isso: — ainda morasse na Saúde. Muito carioca, estabanado, Sérgio mudava diante da noiva assim doce e assim macia. Sem querer, ele a tratava com relativa e involuntária cerimônia. O chamado “beijo bem molhado” era a máxima liberdade verbal que se permitia. Mas, na véspera do casamento, ela o chamou de lado. No seu jeito manso, começou:

— Vou lhe pedir um favor, meu filho.

Abriu-se:

— Pois não!

E ela:

— Eu não queria que você falasse mais em “beijo molhado”. Acho tão sem poesia!

Pela primeira vez, Sérgio quis resistir:

— Mas, meu bem, escuta cá: — por quê?

Explicou:

— É o seguinte: — quando você fala assim eu penso logo em saliva.

O outro animou-se:

— Mas por isso mesmo! A graça do beijo está, justamente, na saliva, meu anjo. — E insistia, já inspirado: — Na mistura de saliva.

Dalva encerrou a discussão com a sua doçura irredutível:

— Eu não penso assim.

Sérgio transigiu, imediatamente:

— Está bem, coração. Todo o meu interesse é de te agradar.

A TRAGÉDIA

No dia, houve o casamento, no civil e no religioso. Na igreja, de joelhos diante do altar, ele julgava ouvir, alternadamente, a voz do amigo e a do médico. Uma dizendo: — “A primeira noite é tudo”. E a outra: — “Nada de salgadinhos! Nada de doces!”. De fato, desde as primeiras horas do dia que observava um extremo rigor de alimentação. Renunciara ao leite, que podia fazer mal ao fígado; alimentara-se, sobretudo, de frutas acima de qualquer suspeita: — bananas e mamão. Não almoçara, porque a hora do almoço coincidira com a do civil. Ao sair da igreja, sentia fome. Chegara de volta à casa dos sogros com fome. Viu os salgadinhos, os doces e, a despeito de uma tentação violenta, manteve-se irredutível. De vez em quando, pessoas da casa passavam com pratos de sanduíches, de pastéis, de doces. Perguntavam:

— Aceita um?

Respondia, heroico:

— Não, obrigado.

Ficou, assim, inexpugnável, até o fim. A noiva que, por natureza, tinha um apetite de passarinho, não tocou em nada. Minto: — aceitou um pastelzinho. Ele ainda teve vontade de sugerir-lhe: — “Não faça isso!”.

Calou-se, porém. Por fim saíram, de táxi alugado, para um hotel no centro, onde tinha alugado um apartamento no décimo segundo andar para a lua-de-mel. Ao entrar no carro, Dalva balbucia:

— “Não sei, mas não estou me sentindo bem”.

Sem dizer nada, guardou para si a intuição:

— “Foi o pastelzinho”.

No meio do caminho, novo lamento:

— “Estou me sentindo tão mal!”.

Falara de dentes trincados. Disse ainda:

— “Tomara que a gente chegue logo, tomara!”.

Sentindo a angústia do ser amado, comandou o chofer.

— “Quer andar mais depressa?”.

Ao lado, Dalva crispava-se toda, gelada de dor. Sérgio baixa a voz:

— Queres que eu compre elixir paregórico?

— Não diz isso: Não diz nada. Só quero é chegar, meu Deus!

Ia balbuciando: — “Não sei se aguento! Não sei se aguento!”.

Ele finalmente diz: — “Foi aquele pastelzinho, não foi?”.

Ela arquejava, chamando a atenção das pessoas. Sobe o elevador com o marido, que apanhara a chave. Lá em cima, exigiu: — “Não entra, fica no corredor!”.

Ele espera uns vinte minutos. Nada. Empurra e vem, então, lá de dentro, o berro: “Não!”. Da porta, pergunta: — “Queres elixir paregórico?”.

Outro “não” violento.

Mais meia hora e quer forçar a situação. Entra. Mas quando Dalva percebe que o marido está ali, alucina-se. Ele a viu correr em direção da janela, trepar no parapeito e atirar-se lá de cima, do décimo segundo andar, deixando no ar o seu grito em flor.

Meia hora depois, chegam parentes, amigos, simples conhecidos. Diante da morte de uma noiva, em sua primeira noite, insinuou-se, em todos os espíritos, a ideia de um tenebroso crime sexual. O sogro de Sérgio agarrou-o pela gola e o sacudiu, aos berros:

— Ela matou-se por que?

Respondeu, num soluço imenso:

— Uma cólica a matou! Foi o pastelzinho!

Fonte:
Nelson Rodrigues. A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é...; seleção de Ruy Castro. SP: Cia das Letras, 1993.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 367

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) A Mostra do More


Quem foi o diretor de “Casablanca”? Quem foi a protagonista de “E o vento levou”? Qual foi o primeiro filme de Orson Welles?... Hoje você vai ao Google e fica sabendo na hora. Mas até o final do século passado, pelo menos aqui em Maringá, se você quisesse saber algo sobre cinema, o modo mais fácil de obter respostas rápidas e precisas seria perguntar ao More.

Recentemente, mexendo numa velha pasta, encontrei o recorte de uma crônica que publiquei no “O Diário do Norte do Paraná” no dia 9 de junho de 1979. Falava dele: Morimassa Miyazato – o nosso pequeno grande More. Naquela data ele finalmente estava abrindo, no saguão da prefeitura, sua teimosamente sonhada “I Mostra de Cinema de Maringá”.

Mais de um ano antes ele começara a peleja, andando pra lá e pra cá, viajando de ônibus, de carona, visitando produtores, diretores e atores de cinema, pedindo a colaboração de jornalistas, cavando apoio do poder público, de empresas particulares e de amigos.

Botara na cabeça a ideia da Mostra e nada o faria desanimar. Bravo! Conseguiu.

Na abertura do evento reuniu uma pequena multidão, além de autoridades locais e celebridades do cinema que aqui vieram para ver de perto a Mostra do More. Palestras, debates, exibição de filmes. E uma bela exposição de fotografias, trilhas sonoras, folhetos, revistas, cartazes, autógrafos e antigos equipamentos cinematográficos.

Repito alguns trechos da crônica escrita há 41 anos:

“More realmente me faz acreditar que a esperança é a última que morre. Antes que morresse, aconteceu o sonho esperado. E só não morreu porque ele não deixou. O querido moço nissei venceu, e sua vitória é o item mais bonito dessa Mostra”.

”Nunca vi ninguém gostar tanto de uma coisa quanto o More gosta de cinema. Ele pesquisa, ele discute, ele coleciona, ele é um doutor nessa tal de sétima arte”.

“Você pode fazer perguntas sobre qualquer filme, antigo ou novo, nacional ou estrangeiro, ele sabe tudo. Diz e prova. Seus arquivos lhe dão segurança para falar do assunto sem risco de erro. Se eu fosse um desses homens grandes do cinema brasileiro que estão hoje em Maringá, levaria o More para o Rio ou São Paulo e aproveitaria ao máximo o seu gênio”.

“Gênio é justamente aquela pessoa que gosta malucamente de uma coisa e estuda essa coisa até a raiz. More é assim com o cinema. Sem recursos, enfrentando mil quebra-molas em seu caminho, ele decidiu que Maringá haveria de ter sua “I Mostra de Cinema”. A cidade acabou gostando da ideia e ajudou. Ajuda modesta, porém deu para transformar o sonho em realidade. Aliás, a Mostra nem precisaria ter sido um sucesso tão notável. Bastaria a gente saber que foi fruto do trabalho e do idealismo de um jovem maringaense fora de série”.

More continua em Maringá. Discreto como sempre, mas ainda intrinsecamente apaixonado por cinema.

Daqui lhe mando um abraço. Lá de dentrinho do coração .
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 13-8-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Carime Pires Mansur (Poemas Escolhidos)


CREPÚSCULO DO MEU BRASIL

Contemplando a beleza infinita do céu
e sentindo a atração sedutora do mar,
nesse enlevo e carinho com que estende em véu
de espumas, pela praia, a rolar... a rolar...

Vendo o sol descambar, soberbo, no horizonte,
num fundo misto de ouro, púrpura e de anil,
a encher de luz as terras, as planícies, o monte,
cada vez eu me orgulho mais do meu Brasil!

E o vento — alma, talvez, de um Gênio, a soluçar
beija e embala, do mar, as ondas, docemente!
E, revoltado, agora, agitando-se, o mar,
bebe o sangue do sol, vermelho, vivo, quente!

Sucedendo ao esplendor do Rei, surge a Rainha
da Noite, a Lua, numa bacanal de luz!
Feliz, eu me ajoelho e rezo aos pés da minha
Catedral, meu Brasil! TERRA DE SANTA CRUZ!
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CRISÁLIDA

No lirismo da noite suave e calma —
um sol de prata a explodir em luz! —
a brisa ao perpassar, canta à minha alma,
em murmúrios, o amor que me seduz!

O meu corpo se esvai, como fumaça,
volatiliza-se, em flutuações...
A minha aura cintila, na argamassa
da matéria, que vibra, em pulsações!

E nesta integração com a natureza,
sou fragmento do azul, sou luz, leveza,
sob a orquestra silvestre, a bailar, nua!

Sou — em véus diáfanos e brilhantes,
enluarada, em cores cambiantes —
crisálida... a espocar... à luz da lua!
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EGO

Eu, caprichosa como a natureza,
calma e sutil, ardente e impetuosa,
adoro a poesia, amo a beleza,
sou dedicada, meiga e carinhosa.

Às vezes, brisa leve e inesquecível
que acaricia a face, docemente!
Outras, tufão, que no furor terrível
tudo destrói, alucinadamente!

Triste, qual rola, que dolentemente
geme e soluça, aconchegada ao ninho,
vibro na dor e na alegria, ardente!

Um enigma vivo, mas que quer?
Tudo que sou, amor, ódio, carinho,
define-se na frase: Sou MULHER!
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INCÓGNITA

No mundo limitado que hoje vivo,
do homem hodierno e primitivo,
me debato em dor, conflito e medos,
a me esconder, em rápidos degredos!

E neste mundo, em que me sinto estranha,
aturdida e envolvida na artimanha
das trocas... Conformismo social!
Falo outra língua (pouca gente entende!)
Vivo outra vida, interiorizada.
Cultuo um ideal, que não se vende.
Vou mourejando a cruz pela escalada!

E entre erros e acertos, tropeçando,
sigo, a pagar pecados de outras vidas,
como água de cascata, depurando!
E então fico a indagar, com transcendência,
do ignoto passado e estranhas lidas,
que me trouxeram ao imo esta essência!

— Ó Deus meu, de que páramos eu vim,
de que caos, de que esfera?!... Que existência
anterior me fez tão cega assim?!
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MINHA CASA

Naquela rua — onde feliz, um dia,
me sentia rainha ao me apossar
do meu castelo de sonho e fantasia:
a casa que acabava de comprar! —

Entre fruteiras copadas e roseiras,
lá estava o antigo casarão.
E no imenso quintal, entre as mangueiras,
uma piscina ao sol, todo verão!

Hoje, porém, ao passar pela rua,
vejo a casa sombria, abandonada,
em ruínas, sem flores, frutos... Nua!

Fico tão triste ao ver a sua sina!
Pois eu que a amo... estou dela afastada!
Quem a possui... a maltrata e chacina!
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UMA ROSA SÓ

Em meio às flores
surgiste-lhe um dia
ofertando-lhe rosas
num sorriso gentil.
Entre mil amores
ela talvez seria
uma conquista a mais...
Mas no encontro de olhos,
encontraram-se almas!
E a verdade surgiu!
A verdade da vida.
A carne que atrai…
A mente que foge...
Volúpia... desejo...
ardor da paixão
que se acende num beijo!
A rosa na mão. ..
Cuidado com os dedos!
Segura, porém, com muita cautela,
que as pétalas no chão
não vão perfumar.
Precisa carinho...
amor... e ternura...
que a rosa que é pura
em troca terá
muito e muito pra dar.

Põe-na junto ao peito
e o teu coração
batendo... batendo...
a irá embalar!

E a rosa tão branca
de auréola dourada
de emocionada
vai se matizar.

E surgirá então,
por entre seus dedos,
um milagre de amor!
E uma rosa só
se transformará
de branca à rosa,
de vermelho à grená.
E, de uma apenas,
poderás, se quiser,
encontrar mil mulheres
numa única mulher!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 366

 


Ronnaldo de Andrade (Antologia Poética Spina) 1


À PROCURA DE VOCÊ

Estrela cadente alumia
minhas noites escuras,
meus vastos caminhos.

Traga-me sorte, guie-me os passos
em direção à nova existencialidade,
onde irei encontrar menos espinhos.
Desenhe nesse céu grandioso, claro,
aquela que receberá meus carinhos!
****************************************

CARREGO UMA GRANDE DOR
ENCRAVADA EM MEU ÂMAGO

Divido minha cama
com uma angústia
que alguém deixou

oponente à vontade. Amigo inseparável,
meu coração perdeu força, deprimiu-se;
sentimental como sempre, quase parou.
Passaram-se décadas após tal episódio,
infelizmente, minha tristeza não passou!
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ENQUANTO PROCRASTINAVA
UM ADEUS SE FEZ PRESENTE

Rascunho de versos
escritos com paixão
carrego na memória.

Versos que nunca foram entregues;
– não houve tempo suficiente para
lhe entregar! Partiu... – Sou escória,
indivíduo que procrastina a própria
felicidade, frauda toda sua história!
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NA ABSÊNCIA DO SEU CORPO
ENTREGO-ME ÀS FANTASIAS

Pensando em você
sigo na madrugada
a numerar estrelas.

Ausculto cânticos alegres de corujas,
o vento pronunciando-me seu nome
causar sensações... Não sei dizê-las!
Reputo as pardas paisagens noturnas
sem eu nem sequer compreendê-las!
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NAS ASAS DO DESEJO ARDENTE,
VEJO-NOS CAÇADORES X CAÇAS

Decante um vinho,
se possível merlot,
pegue duas taças.

Preparo nosso jantar; o ambiente
deixo perfeito. Sente-se, eu puxo
a cadeira; servir-lhe-ei as massas.
O seu batom estimula-me, inebria;
hoje nós somos caçadores, caças!
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NOS ESCOMBROS DO MEU PEITO
O AMOR PERMANECE INTACTO

Tatuei sua imagem,
seu jeito encantador,
em minha memória.

Carrego no alforge da saudade
doces recordações de nós dois;
boas partes da nossa trajetória,
bilhetes que o tempo descoloriu
sem apagar essa nossa história!
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O NOSSO AMOR NUNCA PARTIU
MESMO SE ENCONTRANDO LIVRE

"Lágrimas de saudade"
invadem a fisionomia,
inundam meu coração.

Nesse casulo nosso amor parou,
depois se tornou uma borboleta
que, "mesmo podendo voar", não
hesitou em permanecer no lugar
contemplando a sua real situação.
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SINGELA HOMENAGEM AOS MEUS AMIGOS

Estendo os braços
com muita ternura;
ofereço meu peito,

de modo verdadeiro, aos amigos.
Entusiasmado, eu acolho a todos,
fico-me à disposição. Os respeito,
amo-os como são, sem modéstia,
porque também não sou perfeito!

Fonte:
Facebook do poeta.

Arthur de Azevedo (Questão de Honra)


Eram sete horas da manhã. Braga Lopes, sentado numa deliciosa chaise longue, brunia as unhas e contemplava, pela janela do gabinete, o Pão de Açúcar, que por um belo efeito de luz parecia de madrepérola. Angélica entrou no gabinete, e bateu de leve no ombro do marido.

— Preciso de quinhentos mil réis.

— Já?

— Já.

Por única resposta, Braga Lopes apontou para uma carta aberta sobre a secretária de pau-rosa. Angélica leu: o senhorio reclamava em termos violentos, não sei quantos meses atrasados do aluguel do prédio nobre. A moça encolheu os ombros, saiu arrebatadamente e mandou atrelar. Fez ligeira, mas elegante toilette de passeio, e, calçando as luvas de pele da Suécia, recomendou ao engravatado copeiro que não a esperasse para almoçar.

O marido ouviu rodar o coupé e chegou à janela. Acompanhou com a vista o trajeto do carro em quase toda a curva da praia de Botafogo, até que o viu desaparecer na rua Marques de Abrantes.

— Aonde irá ela arranjar quinhentos mil réis a esta hora? pensou, e, sentando-se e novo, recomeçou a sua ocupação predileta - brunir as unhas.

Ao entrar no coupé, Angélica dissera ao boleeiro: — Vamos à baronesa.

A baronesa ainda estava no leito. Angélica foi introduzida no dormitório.

— Preciso e quinhentos mil réis.

— Já?

— Já.

— Impossível, minha amiga; o barão está em Petrópolis.

— Petrópolis em junho!

— Foi a negócio e não a passeio. O dinheiro está com ele, bem sabes. Sinto não te poder servir nesse momento, como noutras ocasiões o tenho feito. Não é a primeira vez que tu…

— Bem... desculpe... adeus, baronesa.

Angélica a sair e o barão a entrar.

— Oh! madame Braga Lopes! a que feliz acaso devemos tão matinal visita?

— Não tinha ido para Petrópolis, barão?

— Petrópolis em junho! Jamais de la vie! Seria ridículo! Saí muito cedo por necessidade e só contava estar de volta ao meio dia. Esteve com a baronesa?

— Sim, senhor barão; passe bem.

E Angélica, mordendo os beiços de raiva, entrou rapidamente no coupé, cuja portinhola o barão abriu pressuroso com a mão esquerda, enquanto a direita fazia o chapéu descrever uma pequena reta, muito graciosa, à inglesa. O boleeiro voltou-se para receber as ordens da patroa.

— Vamos às Guedes.

O barão fechou a portinhola, e o carro pôs-se em movimento. As Guedes eram três irmãs solteironas. Moravam na rua do Conde, perto do Catumbi. Angélica esperou por elas durante quarenta minutos. Empregou todo esse tempo a passear de um lado para o outro, muito contrariada por se ver ali, numa rua tão burguesa, naquela velha sala sem tapeçarias, nem reposteiros, nem bibelôs, fastidiosa com sua esmagadora mobília de jacarandá e os seus venerandos castiçais de prata, resguardados em monstruosas mangas de vidro. Numa velhíssima tela, o pai das Guedes, pintado a óleo, muito sério, inteiramente barbeado, de óculos, o pescoço escondido numa abundante gravata de cinco voltar, as mangas da casaca muito apertadas, as mãos a emergirem das rendas dos manguitos, olhava fixamente para Angélica, e parecia dizer-lhe:

— Que vens aqui fazer? Não arranjas nada!

Afinal apareceram as Guedes. Entraram as três ao mesmo tempo, com pequeninos gritos de surpresa alegre, fazendo um gasto enorme de beijos, abraços, pancadinhas de amor e frases candongueiras: Mas que milagre é este? Por isso é que o dia está tão bonito! Vou mandar repicar os sinos!

— Sente-se, dona Angélica.

— Não; a demora é pequena. Vinha pedir-lhe um grande obséquio. Preciso de quinhentos mil réis.

As Guedes entreolharam-se estupefatas. A recusa foi categórica e formal. Não podiam naquela ocasião dispor nem de quinhentos réis, quanto mais de quinhentos mil réis. A “pouca vergonha” de 13 de Maio deixara-as quase na miséria. Se não possuíssem aquela “humilde choupana” e mais dois sobrados na rua dos Pescadores, estariam reduzidas à miséria. Angélica saiu despeitadíssima; entretanto, não desanimou. O passivo e solícito cocheiro levou-a ainda à presença de seis amigas ricas, e todas lhe disseram não!

Em toda parte a mísera encontrava esse monossílabo terrível! Ao meio-dia, humilhada, indisposta, em jejum, com os nervos excitados por aquela violenta caçada, por aquele perseguir uma quantia miserável, que lhe fugia das mãos obstinadamente, a pobre Angélica teve um gesto expressivo e supremo de resolução e coragem. Alguns minutos depois, o coupé deixava-a no largo de S. Francisco. Ela tomou a pé a rua do Rosário, atravessou a da Quitanda, dobrou a da Alfândega, e, sobressaltada, palpitante, com muito medo de que a vissem, entrou precipitadamente num casarão de dois andares. No corredor hesitou alguns segundos antes de subir; mas enchendo-se de ânimo, galgou ligeiramente as escadas até o segundo andar. Abriram-lhe logo a porta, e ela, trêmula, ofegante, com as mãos muito frias, sem poder proferir uma palavra, caiu nos braços de um homem, que a recebeu com um beijo, e lhe disse:

— Estava escrito que mais dia menos dia a senhora se compadeceria dos meus tormentos…

— O que me traz à sua casa é um questão de honra; conto com sua discrição e seu cavalheirismo. Preciso de…

Angélica envergonhou-se de se vender por tão pouco, e quadruplicou a quantia:

— Preciso de dois contos de réis.

— Já?

— Já.

O relógio da Candelária batia duas horas quando madame Braga Lopes, perfeitamente almoçada, desceu as escadas da casa da rua da Alfândega. Pode ser que o arrependimento aparecesse mais tarde; naquele momento ela era toda satisfação e triunfo. A gentil pecadora entrou radiante na rua do Ouvidor, e foi ter ao Palais-Royal.

— Ainda aí está? perguntou a um dos caixeiros da loja com receio de que mais uma vez lhe dissessem não.

— Ainda, e às suas ordens.

— Bom, acrescentou ela, depois de um prolongado suspiro; aqui estão os quinhentos mil réis. Mande-lo à casa.

— Com efeito! exclamou Braga Lopes quando Angélica lhe apareceu às três horas. Com efeito! passaste o dia inteiro na rua!…

— Sim, vê lá se achas que uma mulher, que só tem brilhantes falsos e joias de pechisbeque, possa facilmente arranjar quinhentos mil réis…

— Mas para que precisavas tu desse dinheiro? perguntou indiferentemente o extraordinário marido.

— Uma questão de honra, meu amigo. Imagina que me apaixonei por um vestido que vi ontem na vitrine do Palais-Royal; imagina que a Laurita Lobo queria por força ficar com ele; imagina que o dono da loja declarou que o entregaria à primeira das duas que lhe levasse quinhentos mil réis!…

— Ah! bom! assim, sim, obtemperou Braga Lopes, que recomeçou fleumaticamente a sua ocupação predileta — brunir unhas.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos fora da moda. Belém/PA: Unama.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 365

 


Dorothy Jansson Moretti (Natal do Meu Tempo)


Quando eu tinha seis anos, o Natal era realmente o maior acontecimento.

Duas semanas antes, em casa era uma reviravolta. Fazia-se uma faxina especial, em que além da limpeza ordinária, engomavam-se toalhinhas e cortinas, poliam-se objetos de enfeite, e estendia-se na mesa uma bonita toalha bordada com motivos de Natal.

Nosso jardim era grande e fornecia as flores para embelezar nossa casa e até as de alguns vizinhos.

Na cozinha preparavam-se os doces. Lembro-me da grande tábua de estender massas e de minha irmã Sílvia cortando nela gostosas bolachinhas de formatos variados: bichinhos, estrelinhas, cometas, Papai Noel...

Mamãe, com um lenço amarrado nos cabelos, temperava as massas dos cuques e bolos de chocolate e nozes. Fazia também docinhos de leite cortados em losangos, e deliciosas balas de leite e mel que eu e meus irmãos Gustavo e Linéa, ajudávamos a embrulhar.

Tudo pronto, guardava-se em grandes latas quadradas com tampo de dobradiças (Biscoitos Aymoré).

Chegava o grande dia. Ganhávamos vestidinhos novos e brinquedos. Que festa! Lavávamos o gato para ele também ficar limpo e bonito para o Natal.

Durante o dia todo, que movimento! Todo mundo queria aproveitar a roupa nova para tirar fotografia. Vendiam-se filmes o dia inteiro.

À tarde vinham visitas e as gulodices eram oferecidas acompanhadas de um licorzinho ou café.

À noite havia festa na Igreja Presbiteriana. Dona Dirce e Domitila nos ensaiavam durante um mês para as apresentações. Cantávamos "Deitado em mangedoura", "Nasce Jesus", "Meu presente de Natal", "Na gruta da Belém"...

Havia também muitas declamações, e ao final distribuíam-se às crianças docinhos acondicionados em vistosos saquinhos coloridos de papel-crepom.

Não havia televisão...

E no meu tempo de mocinha, também não havia televisão. A festa era a mesma, com poucas alterações. O vestido novo, a casa enfeitada e os doces continuavam mantendo as posições, mas à noite, além da Igreja, a gente ia também ao jardim e à Rua Quinze, encontrar as amigas e os amigos para fazer o footing tradicional,

Tra-di-ci-o-nal... Que palavra remota! Algum dicionário ainda a define? Ou os modismos do tempo a absorveram, como absorveram o meu Natal de antigamente, tão doce, tão ingênuo, mas tão... tão... tão Natal!...
- - - - - -

(Tribuna de Itararé 24/12/1992)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Edy Soares (Cristais Poéticos) III


ABENÇOAI AS MARIAS

Abençoai, Deus, todas as Marias!
Que seus filhos concebem
E logo percebem
Que o mundo os condena.

A brigar pelo pão,
Por pedaço de chão,
Pois a chance é pequena.

Abençoai todas as Marias
Que veem seus filhos perdidos,
Às vezes, vendidos
Por menos de trinta moedas.

Com cruzes pesadas,
Com mãos calejadas,
E as cicatrizes das quedas.

Abençoai todas as Marias
Que veem seus filhos condenados,
Muitas vezes trocados
Pelos "barrabazes" da vida.

Se entregando ao sacrifício,
Ao carrasco e ao suplício,
Por não terem saída.

Abençoai as Marias,
Marias que imploram,
Marias que choram
Pelos filhos das favelas.

Tenha pena dessas Marias
Não pense, nem por um dia,
Que seus filhos são sempre
Melhores que os delas.
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ALÉM DA ÚLTIMA ESTAÇÃO

Acho que lá vem
O último trem
Rompendo o silêncio,
Iluminando os trilhos,
Apitando de estação em estação.

Acho que essa é
A última estação
E esse,
Ah... esse é o último trem.

E lá vou eu,
O último passageiro
Da última estação,
No último trem.

Pra onde vou, não sei!
Mas ficou pra trás
A estação vazia e fria
Que me viu tantos dias
Esperando o trem passar,

E nunca diria que eu, um dia,
Sem querer seria,
Desse vagão derradeiro,
O último passageiro…
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EDIÇÃO

Se é falso o que é falado,
Se o que ouço e vejo é editado,
Tiram-me direito de autenticidade,
Ocultam-me o que é a verdade.

Se manipulam o que me é mostrado,
Se censuram o que me é contado,
Falseiam a realidade
E destroem a moralidade.

O improviso nunca é o feio;
É o novo sem ter rodeios;
É falar sem o texto montado;
É a fala de quem tem coragem;
É a verdade sem camuflagens;
É o brado de quem não aceita calado.
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MULAMBA

O olhar sorridente, criança,
Na dança de carros no farol,
Sem temer a resposta se lança
Por um trocado, em busca do pão.

Pedinte, sem sorte, mulamba,
E samba ao olhar de quem passa,
Quem nega, o faz por desculpa
De que doar incentiva a desgraça,

Filhos da pátria que esbanja,
Se arranja com o pouco que sobra,
Ninguém quer saber onde dorme,
Tampouco importa se acorda.

Salve! Salve! Pequenas crianças,
Esperança do futuro do mundo,
Sobra ouro nos cofres do rei,
Mas pra vocês, falta amor falta tudo.
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TREM SEM RUMO

Desgovernado nas mãos
De um maquinista louco,
Em disparada,
Rasgando trilhos,
Rompendo dormentes,
Atropelando impiedosamente
O que houver pela frente.
Trem desgovernado
Sem rumo certo,
Sem saber ao certo
Onde se vai dar,
Nem como parar.
Máquina mortífera!
Tal qual máquina forte;
Não tem um norte
E nem direção.
Segue em disparada
E a próxima parada
Pode ser em qualquer estação.

Fonte:
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.
Livro enviado pelo poeta.

Murilo Rubião (A Flor de Vidro)


"E haverá um dia conhecido do Senhor que não será dia nem noite, e na tarde desse dia aparecerá a luz."
(Zacarias, XIV, 7)

Da flor de vidro restava somente uma reminiscência amarga. Mas havia a saudade de Marialice, cujos movimentos se insinuavam pelos campos - às vezes verdes, também cinzentos. O sorriso dela brincava na face tosca das mulheres dos colonos, escorria pelo verniz dos móveis, desprendia-se das paredes alvas do casarão. Acompanhava o trem de ferro que ele via passar, todas as tardes, da sede da fazenda. A máquina soltava fagulhas e o apito gritava: Marialice, Marialice, Marialice. A última nota era angustiante.

- Marialice!

Foi a velha empregada que gritou e Eronides ficou sem saber se o nome brotara da garganta de Rosária ou do seu pensamento.

- Sim, ela vai chegar. Ela vai chegar!

Uma realidade inesperada sacudiu-lhe o corpo com violência. Afobado, colocou uma venda negra na vista inutilizada e passou a navalha no resto do cabelo que lhe rodeava a cabeça.

Lançou-se pela escadaria abaixo, empurrado por uma alegria desvairada. Correu entre aleias de eucaliptos, atingindo a várzea. Marialice saltou rápida do vagão e abraçou-o demoradamente:

- Oh, meu general russo! Como está lindo!

Não envelhecera tanto como ele. Os seus trinta anos, ágeis e lépidos, davam a impressão de vinte e dois - sem vaidade, sem ânsia de juventude. Antes que chegassem a casa, apertou-a nos braços, beijando-a por longo tempo. Ela não opôs resistência e Eronides compreendeu que Marialice viera para sempre.

Horas depois (as paredes conservavam a umidade dos beijos deles), indagou o que fizera na sua ausência. Preferiu responder à sua maneira:

- Ontem pensei muito em você.

A noite surpreendeu-os sorrindo. Os corpos unidos, quis falar em Dagô, mas se convenceu de que não houvera outros homens. Nem antes nem depois. As moscas de todas as noites, que sempre velaram a sua insônia, não vieram. Acordou cedo, vagando ainda nos limites do sonho. Olhou para o lado e, não vendo Marialice, tentou reencetar o sono interrompido. Pelo seu corpo, porém, perpassava uma seiva nova. Jogou-se fora da cama e encontrou, no espelho, os cabelos antigos. Brilhavam-lhe os olhos e a venda negra desaparecera.

Ao abrir a porta, deu com Marialice:

- Seu preguiçoso, esqueceu-se do nosso passeio? Contemplou-a  maravilhado,  vendo-a jovem  e   fresca.

Dezoito anos rondavam-lhe o corpo esbelto. Agarrou-a com sofreguidão, desejando lembrar-lhe a noite anterior. Silenciou-o a convicção de que doze anos tinham-se esvanecido. O roteiro era antigo, mas algo de novo irrompia pelas suas faces. A manhã mal despontara e o orvalho passava do capim para os seus pés. Os braços dele rodeavam os ombros da namorada e, amiúde, interrompia a caminhada para beijar-lhe os cabelos. Ao se aproximarem da mata - termo de todos os seus passeios - o sol brilhava intenso. Largou-a na orla do cerrado e penetrou no bosque. Exasperada, ela acompanhava-o com dificuldade:

- Bruto! Ó bruto! Me espera!

Rindo, sem voltar-se, os ramos arranhando o seu rosto, Eronides desapareceu por entre as árvores. Ouvia, a espaços, os gritos dela:

- Tomara que um galho lhe fure os olhos, diabo!
 
De lá, trouxe-lhe uma flor azul.

Marialice chorava. Aos poucos acalmou-se, aceitou a flor e lhe deu um beijo rápido. Eronides avançou para abraçá-la, mas ela escapuliu, correndo pelo campo afora. Mais adiante tropeçou e caiu. Ele segurou-a no chão, enquanto Marialice resistia, puxando-lhe os cabelos.

A paz não tardou a retornar, porque neles o amor se nutria da luta e do desespero. Os passeios sucediam-se. Mudavam o horário e acabavam na mata. Às vezes, pensando ter divisado a flor de vidro no alto de uma árvore, comprimia Marialice nos braços. Ela assustava-se, olhava-o silenciosa, à espera de uma explicação. Contudo, ele guardava para si as razões do seu terror.

O final das férias coincidiu com as últimas chuvas. Debaixo de tremendo aguaceiro, Eronides levou-a à estação. Quando o trem se pôs em movimento, a presença da flor de vidro revelou-se imediatamente. Os seus olhos se turvaram e um apelo rouco desprendeu-se dos seus lábios. O lenço branco, sacudido da janela, foi a única resposta. Porém os trilhos, paralelos, sumindo-se ao longe, condenavam-no a irreparável solidão.

Na volta, um galho cegou-lhe a vista.

Fonte:
Murilo Rubião. Contos Reunidos. Editora Ática. 1999.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 364

 


Malba Tahan (Treze, Sexta-Feira)



Tu és formosa, amiga minha! Em ti não há mácula.
Salomão, Cantares, 4, 7.

Encontrei-a, casualmente, durante uma reunião de pintores e jornalistas no velho castelo do conde Sichler. Era alta, morena, cabelos castanhos e olhos babilônicos. O tom de sua voz maviosa, sem artifícios, era tão doce que dava a impressão de veludo azul na capa de um Alcorão. Não sei a que propósito repontou, no meio de nossa palestra, tão simples e despretensiosa, a palavra mágica: superstição.

— E, por falar em superstição — atalhou Lenora (o seu nome, esquecia-me de dizer, era Lenora) —, quero felicitar-te pelo teu conto “Treze, sexta-feira”. Aponto-o como um dos mais originais do gênero folclórico.

Treze, sexta-feira? Minha talentosa e encantadora amiga estava, com certeza, nas malhas perigosas de um equívoco. Não me recordava, em absoluto, de ter escrito aquele conto que ela (pintora modernista de mérito incontestável) sublinhava com as tintas elogiosas de sua enaltecedora apreciação. Ocorrem, muitas vezes, com as pessoas que leem e estudam ao mesmo tempo 1.020 assuntos diversos (era esse, precisamente, o caso de Lenora), certas confusões literárias, e elas acabam por atribuir ao poeta X uma novela policial arquitetada pelo romancista Y. O fato, em resumo, era o seguinte: o tal conto folclórico, “Treze, sexta-feira”, podia ser de X, de Y ou de Z. Meu, afinal, é que não era.

— Ora, deixemos de fantasias — insistiu Lenora com delicioso encantamento. — Não há confusão alguma de minha parte. O conto por mim citado é teu, meu caro xeique. Não poderás negar. É teu pela forma, é teu, ainda, pelo enredo, é teu, finalmente, pelo cenário, pelos conceitos e pelas conclusões. É teu nas cinco dimensões do espaço literário. Encontrei-o, casualmente, há dois ou três meses, em Para Ti, a fulgurante revista argentina. Acompanhava-o uma ilustração estranha, na qual aparecia um negro gigantesco, de tanga vermelha, com um turbante escandaloso, tocando tambor. Se pretendes repudiar a tua obra, não contes com a minha cumplicidade.

E, dizendo isso, olhava muito fita para mim. Com uma serenidade que a mim mesmo surpreendia, fiz ver à minha gentil interlocutora que não pretendia negar a autoria de uma página tão curiosa de ficção em torno do número fatídico — o célebre dez mais três das incríveis numerologias. Seria loucura retalhar com o alfange do repúdio interessante conto que despertara a atenção de uma jovem tão cintilante, com o espírito crítico afiado por inteligência viva e por sólida cultura literária e artística. Repudiar uma obra literária equivale a abandonar um filho pequeno em meio de floresta escura. É fazer o que fez (segundo a lenda) o pobre lenhador, pai do Pequeno Polegar. Não, minha amiga, nunca! Não há clima em meu espírito para torpezas desse gênero. Os Pequenos Polegares, filhos da minha imaginação, eu os conservo sob meu teto, teto humilde de lenhador do pensamento, tratando-os com bondade e acalentando-os com simpatia.

Lenora sorriu com finura:

— Estás com a tua memória em curto-circuito, meu caro xeique. É impossível que esqueças um conto com a mesma facilidade com que esquecemos o aniversário da sogra ou o endereço de antigo calista. Quem sabe se ouvindo novamente o conto poderás reconhecê-lo como teu filho legítimo?

Encantou-me aquela ideia. Era um pretexto magnífico para prendê-la junto a mim durante mais alguns minutos. Disse-lhe, pois, em tom quase suplicante:

— Conta-me, bondosa Lenora! Conta-me essa singular fantasia, “Treze, sexta-feira”, lenda ou novela que o tempo arrancou de minhas recordações. Quero ver até que ponto estou espezinhado e traído pela minha memória incerta e claudicante.

A formosa pintora surrealista não se fez de rogada. E, com uma voz mais suave do que um regato marulhante a correr, assim começou:

— O caso passou-se em Timbuctu, a Misteriosa. Sabes onde fica esse longínquo caravançará humano que a geografia denominou Timbuctu?

— Creio que sim. É uma cidade do Sudão, refúgio de tuaregues, caçadores negros, mercadores de sal e árabes aventureiros. Fica nas margens do rio Níger, em plena África ocidental francesa.

— Muito bem. É isso mesmo. Pois segundo o teu conto, que vou tentar reproduzir tintim por tintim. “Viveu outrora em Timbuctu um rei chamado Nezigã, o Calmo. Do retrato de Nezigã concluímos que esse monarca era cordato, justo e muito ingênuo. Um simplório, enfim, mas de bom íntimo. Esse rei ouvira dizer que a decadência dos suqués (tribo que habitava Timbuctu) decorria das superstições grosseiras que envenenavam a alma daquela pobre gente. Os suqués eram pobres, indolentes, atrasados e incapazes porque se deixaram dominar por crendices absurdas e sórdidas.

“Aceitavam como verdade as abusões mais torpes e ridículas. Acreditavam nos amuletos, nas benzeduras e nos feitiços. Admitiam que a ferradura dava sorte, que o canto da coruja era de mau agouro, que o lobisomem aparecia, galopando por sete estradas, em noite de temporal e que havia pessoas de mau-olhado. Cultivavam as bruxarias e esconjuros mais inverossímeis inventados pelos mágicos e mandingueiros. Horrorizou-se o rei Nezigã ao ouvir tão graves denúncias. Em seu povo, a superstição grosseira entrava pela alma como o ar entra pelos pulmões de um rinoceronte. Os peixes que cruzam o Níger, na época das chuvas, eram menos numerosos que as crendices cultivadas com fanatismo pelos suqués. Um habitante de Timbuctu seria incapaz de entrar num barco, atravessar a soleira de uma casa ou subir numa árvore com o pé esquerdo. Nunca. Todos os passos sérios na vida de um bom suqué deviam ser iniciados com o pé direito. Sempre com o pé direito, pelo lado direito. A superstição máxima do povo era relativa ao número treze. “Que treze?”, estranhou o rei Nezigã. “Que tem esse número com a vida de meus súditos?” Um ministro bajulador e loquaz informou, logo, ao crédulo monarca: “A gente inculta desta boa terra acredita na ação maléfica do número treze. Esse número é apontado como a conta mais funesta entre todas as contas. Treze é sinônimo de desgraça, de doenças graves, de morte. Reunião de treze pessoas acaba em luto e desesperação. Escada com treze degraus é queda inevitável. Casa com treze janelas, roupa com treze botões, caravana com treze camelos, carta com treze linhas, frases com treze palavras, horta com treze melancias, tudo, enfim, que some treze deve ser evitado. O treze é sinal de luto; é número azarento, calamitoso!”

“Nesse ponto, o rei Nezigã interrompeu o seu vizir informante e indagou: “E o dia treze? Entra esse dia na contagem funesta do meu povo?” Esboçando nos lábios o veneno de um sorriso irônico, o vizir bajulador respondeu:

“Cumpre-me dizer, ó rei, que é essa a superstição mais séria dos suqués. Quando acontece de o dia treze cair numa sexta-feira, dupla crendice, o povo fica alarmado. Dia treze, sexta-feira, em Timbuctu, é dia de luto nacional. Cessa toda a atividade. Os pescadores recolhem seus barcos; os caravaneiros fecham-se em suas tendas; os carregadores de sal deixam-se ficar, como dervixes mendicantes, debaixo das árvores, olhando assustados para as nuvens cinzentas debruadas de ouro que rolam pelo céu. É um dia perdido para a vida da cidade.”

“Aquela crendice relativa ao dia treze irritou o soberano sudanês. Era um absurdo, um exagero. “Acabemos com tais superstições”, arrematou o monarca com voz surda. “É preciso convencer o povo de que o dia treze, seja sexta-feira, sábado ou domingo, é um dia como outro qualquer do calendário.”

‘Decorridas poucas semanas, verificou-se a coincidência: as folhinhas assinalavam TREZE, sexta-feira! Nesse dia, pela manhã, o rei Nezigã reuniu seus vizires e declarou enfaticamente que ia festejar, com incomparável pompa, o dia treze. Majestoso cortejo — no qual figuraram treze elefantes ricamente ajaezados e treze carros adereçados com flores e bandeiras — desfilou pelas ruas. Os elefantes conduziam o rei Nezigã e sua corte: ministros, oficiais doutores, juízes e embaixadores; nos carros iam músicos, palhaços, faquires e encantadores de serpentes. Por determinação de Sua Majestade, as casas deviam ficar abertas e o povo era convidado a assistir ao aparatoso desfile. Logo, em meio da marcha festiva, o rei Nezigã, do alto de seu pesadíssimo elefante, observou que havia, na praça principal, uma casa inteiramente fechada.

“Quem mora ali?”, inquiriu o rei, dirigindo-se a seu ajudante de ordens. O interrogado prontamente informou: “Reside naquela casa um sujeito chamado Talig Mospel, rico negociante de sal. Recusou-se a tomar parte na festa por ser hoje dia treze e sexta-feira. Alegou que tem medo de azar e que prefere ficar fechado em casa, numa sala escura, rezando.”

“Enfureceu-se o rei ao ouvir aquela informação: “Esse mercador de sal não passa de um ignorante. Faremos obra altamente meritória arrancando do espírito desse homem essas crendices idiotas. Determino que ele seja trazido à minha presença.”

“A ordem foi logo transmitida ao corpo da Guarda Roxa — uma espécie de polícia especial de Timbuctu. Que fizeram os homens da Guarda Roxa? O rei pediu dois e eles completaram duzentos. Arrombaram as portas do prédio em que morava o honrado mercador, arrebentaram as janelas, partiram os móveis, agrediram os moradores e prenderam o dono da casa, que, afinal, já ferido, meio aparvalhado, com as vestes em frangalhos, foi levado à presença do rei.

“Desceu o monarca de seu elefante e veio ao encontro do preso. “Meu amigo Talig Mospel”, disse-lhe com vaidosa entonação, “queria apenas aconselhá-lo a deixar essas superstições grosseiras que denotam ignorância e atraso. O dia treze — convença-se da verdade — é um dia como outro qualquer.”

“O pobre homem ajoelhou-se diante do rei e, depois de beijar a terra entre as mãos, assim falou, com voz desolada e um pasmo idiota na face: “Como poderei, ó rei, convencer-me de uma coisa que os próprios fatos desmentem? Como negar a evidência sob a luz da verdade? Logo hoje, precisamente hoje, por ser treze, sexta-feira, o negro azar foi cair sobre mim. Minha casa foi assaltada, meus filhos espancados e eu, ferido e injuriado, sou arrastado pela rua como se fosse um criminoso da pior espécie. E isto tudo por quê? Por ser aziago e funesto o dia treze, sexta-feira!”

“Não encontrou o  rei Nezigã, o Calmo, palavras que pudessem justificar as violências praticadas contra o honrado mercador de sal. Arrependeu-se de ter promovido aquela passeata ridícula com faquires e encantadores de serpentes. Mandou dissolver o cortejo e, abatido pelo fracasso de sua infeliz iniciativa, voltou para o palácio. Figurava, porém, entre os vizires do rei, um certo Kahn Tazuk, homem judicioso e sábio.

“Ao notar a tristeza e o desânimo do monarca, o ministro Tazuk, sempre transigente e benévolo, achou que seria de bom aviso consolar o pávido monarca. Acercou-se, pois, do chefe africano e, arqueando-se em solene cortesia, assim falou: “Permiti, ó rei do universo, que eu manifeste a minha obscura e desvaliosa opinião sobre o caso. Seculares superstições, enraizadas na alma do povo, não podem ser eliminadas com cortejos de músicos e palhaços. Só há um meio de combater as crendices que entravam o progresso e estiolam as energias — é por meio da educação e da instrução. É preciso instruir e educar os homens para livrá-los dos fantasmas, libertá-los dos duendes e desembaraçá-los das abusões. Proporcionando ao povo instrução sadia e bem orientada — tendo essa instrução caráter nitidamente educativo —, as superstições nocivas, ridículas ou perniciosas vão pouco a pouco desaparecendo.

“As crendices, na Antiguidade, eram muito mais numerosas do que são hoje. Quem, nos dias que correm, vê no rebrilhar do raio ou no ribombar do trovão uma advertência de Júpiter? Ninguém. Há superstições que desaparecem; outras há que surgem, transfiguram-se com o passar dos séculos e vão reaparecer, irreconhecíveis, em clima bem diverso. E, muitas vezes, o fato hoje proclamado como verdade científica não passa, amanhã, de ridícula crendice. Hoje, ciência; amanhã, superstição! Levemos, pois, a luz da instrução ao povo; eduquemos os homens e veremos como eles se libertam desses ridículos sortilégios e acabam com as feitiçarias.”

“Concordou o rei Calmo com as sábias palavras de seu preclaro ministro e comentou muito sério, olhando-o de esguelha: “Você tem toda razão, meu caro Tazuk! Hoje não era, realmente, um dia indicado para iniciar a nobre campanha contra a superstição. Desci da cama, sem querer, com o pé esquerdo; ao atravessar o salão, pela manhã, avistei aquele servente magro, meio calvo, que tem mau olhado; quando cheguei à janela, vi um gato preto no jardim e ouvi um pescador, na rua, cantando: ‘Xô, xô, peixe fino, xô, xô!’ Essa música me dá um azar incrível para a semana inteira. Precisamos consultar um oráculo benzedor e escolher um dia auspicioso em que os astros estejam em boa posição.” Ao ouvir aquelas palavras do rei Nezigã, o douto ministro Tazuk franziu a testa, retorceu a boca e arregalou os olhos.

O monarca sudanês era mais supersticioso do que um pobre e desprezível cameleiro do deserto africano.”

Neste ponto da narrativa, depois de ligeira pausa, Lenora acrescentou, ajeitando com graça os cabelos ondeados:

— Não me lembro mais do final de teu conto. Confesso que não me
lembro. Sei apenas que o tal ministro Kahn Tazuk citava, a respeito do caso um provérbio árabe que ia servir como chave de ouro para a triste aventura  do supersticioso rei de Timbuctu.

— Pois minha encantadora amiga — repliquei, sincera e admirativamente emocionado. — Essa aventura do rei Nezigã, o Calmo, parece-me interessante e apresenta alguns traços de originalidade. Encerra ensinamentos notáveis; envolve vários temas folclóricos; leva o leitor para um país exótico (o Sudão) e apresenta-o aos suqués, povo mais exótico ainda. Sinto-me, entretanto, forçado a confessar a verdade. Esse conto que acabo de ouvir, enlevado, não é meu. Acredite, minha incomparável Scherazade do século XX! Acredite. Jamais escrevi essa aventura intitulada “Treze, sexta-feira”.

Fitou-me Lenora, muito séria, e, num tom mavioso, misto de zanga, gentileza e sedução, declarou numa doce intimativa:

— Pois se não era teu, meu caro xeique, se não era teu, fica sendo! Em submissa admiração, agradeci comovido. E tive ímpetos de repetir, bem alto, em árabe bem puro, os versos deliciosos que ouvi uma tarde, em Damasco, de um velho beduíno:

“Louvado seja Alá, que fez a Mulher com toda a sua Bondade, com toda a sua Beleza e com toda a sua Alma generosa e simples!”

Alá seja louvado!

Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais. RJ: Record, 2013.