segunda-feira, 14 de abril de 2025

Asas da Poesia * 4 *


 Poema de
MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, — restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
= = = = = = = = =  

Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba / PR

As imagens do tempo
Ficaram encalacradas
No velho espelho 
E o sorriso sem jeito
Ficou imperfeito pela mancha no aço
No corredor semi-escuro
Com ladrilhos em mosaico
Desfilam lembranças 
Com chinelos de veludo
E o espelho
Com olhar cansado 
Já não guarda mais segredo 
Com silêncio centenário 
O relógio de parede
Assiste a tudo
Pois já os seu ponteiros 
Parados
Marcam um tempo indefinido.
= = = = = = = = =  

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

À janela do meu quarto de alfazema
(Augusto Nunes in "Os Espelhos da Água", p. 16)

À janela do meu quarto de alfazema
Vem a lua, de leve e a sorrir
Indagar se eu estou mesmo a dormir
Ou se namoro ainda o meu poema.

E vendo que eu hesito no fonema
Que a voz do coração há de exprimir
Um raio de luar vem redigir
A frase que me solta do dilema.

De miradouro faz esta janela
E em muitas noites saio através dela
Levado por estrelas e miragens.

E quando me levanto, de manhã
Sinto que a alma está mais pura e sã
Depois de eu regressar dessas viagens.
= = = = = = = = = 

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Dizem que amas de mentira,
mas gosto de acreditar,
e até que um dia eu confira,
vou-me deixando enganar.
= = = = = = 

Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Última página

Primavera. Um sorriso aberto em tudo. Os ramos
Numa palpitação de flores e de ninhos.
Dourava o sol de outubro a areia dos caminhos
(Lembras-te, Rosa?) e ao sol de outubro nos amamos.

Verão. (Lembras-te, Dulce?) À beira-mar, sozinhos,
Tentou-nos o pecado: olhaste-me... e pecamos;
E o outono desfolhava os roseirais vizinhos,
Ó Laura, a vez primeira em que nos abraçamos...

Veio o inverno. Porém, sentada em meus joelhos,
Nua, presos aos meus os teus lábios vermelhos,
(Lembras-te, Branca?) ardia a tua carne em flor...

Carne, que queres mais? Coração, que mais queres?
Passam as estações e passam as mulheres...
E eu tenho amado tanto! e não conheço o Amor!
= = = = = = 

Trova de 
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

A saudade não me poupa,
desenhando, fio a fio,
o perfil da tua roupa
no guarda-roupa vazio...
= = = = = = 

Soneto de
AUTA DE SOUZA
Macaíba/RN, 1876 – 1901, Natal/RN

A minha avó

Minh' alma vai cantar, alma sagrada!
Raio de sol dos meus primeiros dias...
Gota de luz nas regiões sombrias
De minha vida triste e amargurada.

Minh 'alma vai cantar, velhinha amada!
Rio onde correm minhas alegrias...
Anjo bendito que me refugias
Nas tuas asas contra a sina irada!

Minh 'alma vai cantar... Transforma o seio
N'um cofre santo de carícias cheio,
Para este livro todo o meu tesouro...

Eu quero vê-lo, em desejada calma,
No rico santuário de tu' alma...
— Hóstia guardada num cibório de ouro!
= = = = = = = = =  

Haicai de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Os Ipês de Maringá

O show dos ipês.
Turistas gravam imagens
para o facebook.
= = = = = = 

Glosa de
ZÉ SALVADOR
São Gonçalo/ RJ

Mote:
O QUE SE FAZ COM AMOR
TEM UM SABOR DIFERENTE. 
ADEILZA PEREIRA
Serra Talhada/ PE
.
Eu faço arte popular,
na que faço, sou fiel,
sou amante do cordel
e jamais quis me casar.
Eu preferi me amigar,
decisão inteligente, 
foi conceituadamente
meu consenso sem impor 
o que se faz com amor
tem um sabor diferente. 
.
Planto uva vou colher uva,
fava planto e colho fava,
por isto aqui eu pensava:
cai água do céu é chuva
e a cortadeira é saúva
não é gente como a gente,
mas, ô “bichim” resistente 
e muito trabalhador,
o que se faz com amor
tem um sabor diferente!
.
A formiga cortadeira
na prevenção da invernada,
tem a labuta pesada
trabalha sem brincadeira,
mas a cigarra faceira
se diverte no presente,
canta no sol inclemente  
seja o futuro qual for,
o que se faz com amor
tem um sabor diferente.
.
A aranha tem seu emprego, 
ela é boa fiandeira, 
fia o fio a noite inteira
tem a roca no sossego,
isto não é subemprego
é um prazer referente,
não estardalha mas sente
a sua leveza ao expor
o que se faz com amor
tem um sabor diferente.
= = = = = = 

Hino de 
RIACHO DA CRUZ/ RN

Refrão
Riacho da Cruz, Brasil!
Nós te saudamos e te valorizamos – BIS

Parte I
Apesar de pequenina
Há fascínio e encantos mil
És retrato de formosura
Dentro dos encantos do Brasil.

Refrão
Riacho da Cruz, Brasil!
Nós te saudamos e te valorizamos – BIS

Parte II
A tua gente simples
Mais calorosa e gentil
Te saúda com orgulho
Este bom pedaço do Brasil.

Refrão
Riacho da Cruz, Brasil!
Nós te saudamos e te valorizamos – BIS

Parte III
Riacho, teu nome
É Riacho da Cruz
E o teu povo forte
Faz do Rio Grande do Norte
Sua terra mãe, de luz! Riacho da Cruz.

Refrão
Riacho da Cruz, Brasil!
Nós te saudamos e te valorizamos – BIS

Parte IV
Riacho, teu nome
É Riacho da Cruz
E o teu povo forte
Faz do Rio Grande do Norte
Sua terra mãe, de luz! Riacho da Cruz

Riacho da Cruz, BRASILLLLLLLLLL!
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Esta noite

Nesta noite tão bela quero ter-te
Ao meu lado sorrindo e bem contente.
Aceitando o convite com meu flerte
Para jantarmos logo mais...  Consente!

Nós dois naquele barco, ao convés,
Não venha com recusa,  por favor!
Traga aqueles teus olhos cuja cor
Transmite essa beleza do que és.

Agora temos logo de tratar
Do que precisaremos nesta noite
Talvez alguma coisa pra levar.

Uma noite só nossa é o que prometo
Mesmo com tanto medo do pernoite
No  barco em alto-mar, mesmo em soneto.
= = = = = = = = =  = = = = 

Uma Lengalenga de Portugal
LENGALENGAS PARA TIRAR A SORTE
 
Um-dó-li-tá
Cara de amendoá
Um segredo colorido
Quem está livre
Livre está
***

Um, dois, três, quatro
A galinha mais o pato
Fugiram da capoeira
Foi atrás a cozinheira
Que lhes deu com um sapato
Um, dois, três, quatro…
***

 Nove vezes nove
Oitenta e um,
Sete macacos e tu és um
Fora eu que não sou nenhum!
***

A saquinha das surpresas
Ninguém sabe o que lá vem
Tão calada, tão quietinha
Vamos ver o que lá vem!
***

 Pim, pam, pum
Cada bola mata um
Da galinha pro peru
Quem se livra és tu!
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Se esta rua fosse minha
eu mandava ladrilhar,
com pedrinhas de brilhante, 
para meu amor passar.
= = = = = = = = =  

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Vida em verdes versos

Na imobilidade dos seus gestos
O Olhar intenso, atento.
Em total cumplicidade com a folha
Torna-se parte delas
Num mágico entrelaçar de vidas:
Louva-a- deus e folha
Ele, na solidão e expectativa de seus breves dias,
Uma vida plena...
Ela, a folha observa e o admira.
O mágico dos disfarces
Imita as cores à sua volta,
E, assim inspira poemas:
Vida em verdes versos...
= = = = = =

Monteiro Lobato (A raposinha)

Era uma vez um príncipe que saiu a correr mundo, em procura dum remédio para o rei, seu pai, que estava cego. Depois de muito andar, passou por uma aldeia, onde viu vários homens dando uma surra num defunto.

— Que é isso? — perguntou o príncipe.

— É que este homem nos devia dinheiro e morreu sem pagar. O costume da aldeia manda meter a lenha no cadáver.

O príncipe revoltou-se contra a brutalidade, e pagando a dívida do morto deu ordem para que o enterrassem.

Seguiu caminho. Adiante encontrou uma raposa que lhe perguntou para onde ia. O príncipe contou que andava atrás dum remédio para a cegueira do rei, seu pai.

— Pois sei de um remédio — disse a raposinha. — Basta esfregar nos olhos do rei um pouco de "unguento de papagaio", mas de um certo papagaio lá do reino dos Papagaios. Vá lá, meu príncipe, entre à meia-noite no lugar onde estão esses pássaros e não olhe para os bonitos, os que moram em gaiolas douradas. Pegue o mais velho de todos, o mais depenado e sujo, que está a um canto, num poleiro imundo. Esse é o bom.

O príncipe foi. Quando entrou no reino dos Papagaios, ficou de boca aberta com tantas aves lindas que viu, em gaiolas de prata e ouro, e até cravejadas de diamantes. Esquecido da recomendação da raposinha, pegou a gaiola do mais bonito e foi saindo. Mas o papagaio deu um berro. Os guardas acordaram e prenderam o príncipe.

— Que queres com este papagaio? — disseram. — Vais morrer, gatuno!

O príncipe, com muito medo, explicou do que se tratava. Os guardas então lhe disseram:

— Pois muito bem: damos-te o papagaio se fores ao reino das Espadas e nos trouxeres uma delas — e soltaram-no.

O príncipe saiu muito triste porque não sabia onde era o tal reino. A raposinha apareceu-lhe de novo.

— Então, meu príncipe, que tristeza é essa? — e depois de saber do acontecido falou assim: — Eu bem recomendei que pegasse o papagaio mais velho e feio. Agora o que tem a fazer é o seguinte: vá ao reino das Espadas (e contou onde era) e entre lá à meia-noite. Encontrará espadas de todos os jeitos, de ouro e prata, muitas cravejadas de pedras preciosas — mas não pegue nenhuma dessas. Pegue uma velhinha e enferrujada, que está num canto. Essa é a boa.

O príncipe foi, e lá no reino das Espadas ficou de boca aberta diante de tantas maravilhas que viu. Mas não teve coragem de pegar na espada mais velha e enferrujada; escolheu, ao contrário, a mais rica de todas. Quando ia saindo, fez barulho sem querer, os guardas acordaram e o prenderam. Iam levá-lo ao rei de Espadas.

O príncipe, porém, contou sua triste história de modo a comover os guardas, os quais disseram: "Bem. Perdoaremos o seu crime, se for ao reino dos Cavalos e nos trouxer um."

O príncipe saiu em procura do reino dos Cavalos. Logo adiante encontrou a raposinha. "Para onde vai tão triste o senhor príncipe?" — perguntou ela.

O príncipe contou tudo.

— Bem feito — disse a raposinha. — Por que não fez como eu disse? O remédio agora é um só — ir ao reino dos Cavalos (e contou onde era) e lá entrar à meia-noite. Encontrará muitíssimos cavalos de todas as cores e raças, cada qual mais lindo. Mas não pegue nenhum desses. Escolha o mais velho e feio. Esse é o bom.

O príncipe foi, mas tão lindos animais viu no reino dos Cavalos que não teve ânimo de pegar no mais velho e feio. Escolheu, ao contrário, o mais lindo de todos. Ao sair, o cavalo relinchou, acordando os guardas, que o prenderam.

Houve explicação e por fim os guardas disseram:

— Pois bem, nós o perdoaremos se você furtar a filha do rei.

O príncipe prometeu e saiu. Logo adiante encontrou a raposinha que lhe disse:

— Príncipe, saiba que sou a alma daquele defunto que levou a surra por causa das dívidas. Ando a protegê-lo por todos os modos, mas nada tem adiantado. Você nunca faz o que eu digo. Vamos ver se agora me atende. Arranje um cavalo e vá à meia-noite ao palácio do rei; entre, agarre a moça, ponha-a na garupa e dispare no galope. Passe pelo reino dos Cavalos e pegue o que eu disse. Depois passe pelo reino das Espadas e pegue a que eu disse. Depois passe pelo reino dos Papagaios e pegue o que eu disse. E dispare a toda velocidade para a casa de seu pai, porque o velho está morre, não morre. Mas nunca entre por veredas, nem dê atenção a coisa nenhuma antes de chegar em casa. E adeus!

O príncipe lá se foi. Chegando ao palácio do rei, furtou a moça; chegando ao reino dos Cavalos, pegou o mais velho e feio; chegando ao reino das Espadas, levou a mais velha; chegando ao reino dos Papagaios, pegou o mais feio — e seguiu a galope na direção de sua casa.

Pelo caminho, porém, encontrou seus irmãos que tinham saído à procura dele, mas que ao verem aqueles objetos ficaram com inveja e resolveram matá-lo para roubar. Para isso convenceram-no de que devia deixar a estrada e seguir por um atalho, porque indo pelo atalho estaria livre de ser assaltado por ladrões.

O moço caiu na esparrela; seguiu pelo atalho. Logo adiante os maus irmãos assaltaram-no, roubaram-no e jogaram-no num buraco, certos de que estava morto. E voltaram para casa com os despojos. 

Aconteceu, porém, uma porção de coisas. A moça não queria comer nem falar; o papagaio enfiou a cabeça sob a asa e não disse uma só palavra; a espada ficou mais enferrujada ainda e o cavalo pendeu a cabeça como se fosse morrer.

Quando o moço, lá no buraco, acordou do longo desmaio, viu diante de si a raposa, a qual o tirou dali e o botou no caminho. Ele seguiu para casa manquitolando. Assim que chegou, a espada perdeu a ferrugem, ficando novinha em folha; o papagaio criou penas novas e foi sentar-se em seu ombro; a moça deu uma gargalhada gostosa e falou pelos cotovelos; o cavalo ergueu a cabeça e engordou num instante.

O príncipe, então, dirigiu-se ao quarto do pai cego e esfregou-lhe nos olhos um pouco de "unguento de papagaio" — e o rei imediatamente recobrou a visão e a saúde.

Foi uma grande alegria na corte. O bom príncipe casou-se com a moça e os maus irmãos foram expulsos do reino. E acabou-se a história.

Fontes:
Monteiro Lobato. Histórias de Tia Nastácia. Publicado originalmente em 1937. Disponível em Domínio Público.  
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing

Aparecido Raimundo de Souza (Trajetória de planeio)

O TEMPO é um tecelão habilidoso, entrelaçando os fios da vida com a destreza de um mestre. Ele tece memórias, sonhos e desejos em um padrão único e nós, meros observadores, assistimos enquanto o pano de fundo se forma majestoso. Corre uma tarde bonita e calma, dessas em que o sol se esconde tímido atrás das folhas douradas. Na praça principal, aliás, a única aqui deste lugarejo, bancos de cimento acalentam histórias de amor. Lembram risos e choros. Festejam os idos de casais namorando. Os pombos esfomeados não são os mesmos, tampouco os passarinhos. Nem os bebês em seus carrinhos e babás. Eu estou sentado em um desses bancos sujos, olhando o tempo passar. 

Uma senhora de idade, ossos e células longínquas, as vestes estropiadas, os cabelos em desalinho, se aproxima. Endereça-me uma boa tarde e pergunta se pode se sentar a meu lado. Respondo com um sorriso largo no rosto fechado. Seus olhos carregam a sabedoria de quem viu muitas outras e não aproveitou nenhuma. Ela se acomoda, olha para o céu e diz: 

— O tempo se esvai, meu jovem. Por vezes, rápido demais. Em outras, devagar, quase parando, como um rio, de passos cansados, trazendo águas de muito longe... de repente, seu leito se queda preguiçoso dormitando exausto ao sabor de uma das margens.

Ela me conta, após esta introdução criativa, sobre a sua juventude. Fala dos amores perdidos. Descreve os sonhos realizados e os que ficaram pelo meio do caminho, como cachorros que por algum motivo caíram dos caminhões de mudanças e jamais foram encontrados: 

— Tudo passa – repete três vezes tais palavras, como se recitasse um mantra. As estações, como as de um trem, mudam. As pessoas embarcam ou desembarcam, se transformam.… Todavia, o que cria raízes, são as memórias póstumas. Automaticamente elas também se decompõem.  Vem e vão. As horas correm. Na verdade, voam. Perceba que os ponteiros são “incansáveis”. O que vemos estático, são as lembranças. 

Eu olho discretamente para o relógio da torre da igreja do outro lado junto ao coreto. Os ponteiros dançam marcando o compasso da vida. O vento sussurra segredos em meus ouvidos. E a senhorinha ali, falando pelos cotovelos:

— Tudo se esvai, meu prezado. As dores, as alegrias, os momentos de solidão, os abraços apertados dos que nos sãos caros. Os choros dos recém-nascidos, a voz da nossa mãe chamando para o café, o pai saindo para o trabalho... as crianças afoitas em direção a escola, em suntuosas algazarras...

De repente, do nada, ela se levanta. Sem se despedir, vira as costas e vai embora. Se afasta numa lentidão carente, como se o peso da sua idade fosse o principal motivo dos seus pés descalços se fazerem demasiadamente lentos e sem um destino pré-estabelecido. 

Naquela tarde, ao voltar para minha casa, prometi a mim que viveria cada instante com mais intensidade. Que não deixaria o tempo escorrer por entre meus dedos como a areia fina. Que abraçaria o efêmero sabendo que no fim, o que importava, o que realmente fazia a diferença não é outra coisa senão as histórias que vivemos e as almas que tocamos ou que nos abordaram. 

Na praça silenciosa, sei que o tempo continuará o seu trabalho. As folhas cairão, o vento soprará e as memórias se entrelaçarão num amplexo indescritível. Após ela ter se levantado, eu fui também. Bati a poeira da sujeira do banco. E segui. Os demais que encontrei durante o trajeto até chegar ao meu destino, eram pessoas que iam ou vinham de algum lugar. Engraçado: umas ao cruzarem comigo, educadas e gentis, resmungam um “boa noite”; outros somente um “olá” insosso. Como os passantes avulsos, segui meu trilhar. No rosto, lágrimas insistentes turvam a visão da vida que me contempla silenciosa. Sem parar, passo pela birosca do Alfredo. Sempre cheia! 

Lá dentro, uma chusma de frequentadores em pé, ou encostada às paredes, bebe com força e manda para dentro, (com sorrisos mostrando dentes cariados), uns tira-gostos acondicionados numa vitrine enorme de vidros sujos sobre o balcão repleto de garrafas, latinhas e copos vazios. Cruzo pelo salão da barbearia do Edgar, àquela hora, vazio. Ele cochila sentado na cadeira à espera de um freguês retardatário. Logo adiante, na padaria de dona Nicete, as moscas ensandecidas disputam espaços em mesas ociosas. 

Apenas a lindíssima e encantadora dra. Simária, a dentista (a única da cidade), se farta bebendo um refrigerante e comendo um sanduiche de pão dormido com mortadela. Em contíguo , o salão da Lisandra, cabelereira, se vê fechado. O mercado do Aristides Abreu (onde se vende de tudo) as três moças dos caixas esperam bater as vinte horas. Enquanto isso, fofocam em gritos pictóricos, um amontoado de estridências obscenas vividas com seus namorados em finais de noite alta na plataforma da estação de trem. Neste curso, ora riem, fazem gestos, ora tiram fotos e exibem nos celulares as filmagens, disputando competitivamente quem havia aprontado mais na noite anterior. 

Na verdade, cada uma delas, em particular, granjeia chamar a atenção para si mesma, demonstrando, na maioria, fatos que não iam além de quimeras envoltas em invenções mentirosas. Em suma, apenas o gosto saboroso de chamar a atenção. Pois bem! Antes de chegar ao portão da minha residência, prometo a mim mesmo (os dedinhos cruzados), asseverando que daquele dia em diante, sempre que saísse do meu universo particular, viveria em cada esquina, em cada pedra que topasse, em cada rosto que me endereçasse um olhar mais delongado, enfim, em cada instante que me fosse permitido, com a intensidade que recebo do Pai Maior, agradecer por estar literalmente vivo. 

Do mesmo modo, desfrutaria, saborearia, apeteceria a sucessão das graças recebidas e viveria. Viveria, viveria, viveria. Deixaria de ser um estabanado átomo fugidio, um desgostoso fantasma insone, tipo um sujeito encolhido atrás de uma muralha, negando a visão da própria realidade. Tomo consciência que preciso, sem mais delongas, me desavergonhar da sucessão dos meus janeiros vividos. Desvencilhar-me do cara quadrado, imbecil e atoleimado que eu sou agora. Desgarrar-me de uma vez por todas da consciência pesada que me subjuga, que me agrilhoa, e que me oprime aflitivamente, com uma avidez tresloucada e enlouquecedora. 

Levanto a cabeça. Sempre faço isso, quando retorno. Espio demoradamente para o infinito. Sorrio. Em seguida, faço o sinal da cruz, e entro. Ai então, não paro mais. Desembesto, afoito, direto e sem me deter em direção ao meu cantinho. No portal que acessa a minha varanda, a mãe colocou um retrato meu. Uma foto esmaecida pelo tempo. Um mimo, a bem da verdade. Ao lado dele, um enorme vaso com rosas vermelhas que ela sempre mantém colhidas do jardim do seu olhar. Eu moro, faz dez anos aqui. Meu endereço? Anota, por favor. Avenida dos Ipês, quadra dezenove, jazigo perpétuo, sepultura de número mil novecentos e cinquenta e três.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Contos e Lendas do Mundo (Coréia) O cão em sua busca pela luz

Era uma vez, num mundo bem distante, havia um planeta chamado Terra da Escuridão. Como o nome mesmo diz, não havia luz alguma ali, e a noite era perpétua. As pessoas dali eram acostumadas à escuridão e tinham os sentidos da audição e do olfato muito desenvolvidos, também sua percepção espacial era muito aguçada. Mas a verdade era que apesar de conseguirem viver suas vidas sem luz, as pessoas eram muito infelizes e deprimidas. Estavam cansadas daquela escuridão infindável. E eles diziam:


– Como eu gostaria que houvesse luz!

– Ah, se tivéssemos dia e noite, e não só noite!

– A vida seria muito melhor se tivéssemos um pouco de luz!

É claro que o Rei da Terra da Escuridão também desejava a luz e começou a observar a Terra, que tinha seu sol e sua lua, portanto tinha luz de dia e à noite. Pensou que por termos duas fontes de luz, levar uma delas para o seu mundo não nos faria tanta falta assim.

Acontece que na Terra da Escuridão havia uma imensa população de cães. Todos tinham um cão em casa, mas entre todos aqueles cães, havia um que era excepcional. Esse cão era grande, forte, de pelos espessos e de uma inteligência fora do comum. Além de todas essas qualidades, ele também possuía um focinho gigantesco. E seu focinho não só era gigante, como também suportava o contato com extremo frio e extremo calor. 

Aquele cão carregava em seu focinho até mesmo bolas de fogo, e por isso, seu nome era Bola de Fogo. O Bola de Fogo também era dotado das quatro patas mais ágeis de todo o planeta, e corria milhares de milhas num piscar de olhos.

Um certo dia, o Rei teve uma ideia, “Vou mandar o Bola de Fogo à Terra dos Homens para trazer aquele sol para o nosso mundo”. E assim o fez.

O povo já festejava a vitória do Bola de Fogo antes mesmo de ele partir em sua jornada. E assim que os preparativos foram feitos, Bola de Fogo partiu. A jornada era longa e o cão não parou sequer para descansar, e em pouco mais de dois anos, chegou ao sol.

Bola de Fogo abriu seu enorme focinho e cravou seus dentes no sol, tentando arrancá-lo do nosso céu. Mas ele simplesmente não conseguiu suportar tal calor por muito tempo. Humilhado, retornou ao seu mundo.

O Rei pensou, “Se o sol é quente demais para o Bola de Fogo, talvez a lua seja possível. E mandou Bola de Fogo buscar a lua. E Bola de Fogo voltou, confiante de que a lua ele conseguiria trazer, feliz em poder ajudar o povo de seu mundo.

Quando chegou à lua, cravou seus dentes e tentou arrancá-la de nosso céu, mas a lua era fria demais e seu corpo não suportava tamanho frio. Então cuspiu a lua de volta e voltou ao seu mundo, mais uma vez, derrotado.

Quando o Rei viu que ele havia falhado mais uma vez, ficou muito desapontado, mas não desistiu da ideia de que Bola de Fogo seria o único capaz de atingir seu objetivo.

E Bola de Fogo continuou, vez após vez, a voltar ao sol e depois à lua, tentando levá-los ao seu mundo para alegrar seu povo e agradar ao seu Rei, mas todas as tentativas foram em vão. Aliás, até hoje, Bola de Fogo continua viajando os céus e abocanhando a lua e o sol. 

Hoje, ele está velho, já não é tão forte ou veloz como um dia foi, mas ele não desiste. E cada vez que Bola de Fogo crava seus dentes com seu enorme focinho no sol ou na lua, um eclipse acontece. Por poucos instantes, ele sente que sua lealdade será recompensada, mas a dor é tamanha que a preservação de sua própria vida entra em jogo. E ele sabe que sua vida é importante e a preza por saber que um dia ele conseguirá honrar o pedido de seu Rei e levar a luz ao seu tão amado povo – Bola de Fogo é um verdadeiro herói.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

sábado, 12 de abril de 2025

Asas da Poesia * 3 *

 

Poema de
OLIVALDO JÚNIOR
Mogi-Guaçú/SP

Envelhecidos

Chega uma fase em que, envelhecidos,
os sonhos já não falam mais 
de quem os teve, e calam-se os ouvidos
ante os outros, nunca em paz.

E a gente anda assim, meio curvada,
como se, no chão, tivesse ficado
um pedaço da alma que, dilacerada,
pensou que o espelho estivesse
fora do prumo, até mesmo quebrado.

Chega uma fase em que tentamos
acreditar num amanhã melhor,
sorrimos muito e até gargalhamos,
mas o mundo jamais é maior.

Chega uma fase em que, pequenos,
sentamo-nos conosco mesmo
e, mesmo tendo os olhos serenos,
sentimos que vamos a esmo.

E a gente, como se fosse contente,
faz de conta que não sabe
que nunca será a mesma e, ausente,
nesses sonhos, já não cabe.
= = = = = = = = =  

Poema de
ELISA ALDERANI
Ribeirão Preto/SP

Orações

Frente a minha morada, o poste é sentinela alerta.
A janela está aberta.
Pingos de chuva luzentes riscam o ar.
Cheiro de terra molhada
Penetra minha alma enclausurada.
Quero sair correr, me perder no tempo,
Mas fico sozinha pingando saudade.
Chora o céu escuro,
Lembranças atravessam o muro.
Oh poeta triste!  Escuta o silêncio,
Entre cadeiras vazias, livros espalhados na mesa,
Ideias azuladas, sufocadas,
Veladas de mistério.
Sonha poeta; preenche linhas vazias,
Noite de melancolia inútil, profanada.
Procura as palavras espelhadas no vidro.
Suspiros embaçados, devaneios…
E, se esvai o dia, o agora.
Uma chuva de orações molha
Minha alma nua.
= = = = = = = = =  

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Roda de fiar

As lembranças tecidas em lãs,
Algodão e linho aquietam-se
E observam a antiga roda de fiar,
Transformando a palha em ouro -
"Rumpelstíltskin"...
A roca
Lembra? leme de um barco
Roda da Vida, num contínuo movimento
De fibras em fios,
As mãos invisíveis do Tempo
Ainda permanecem
A mover a roda de fiar - tecer destinos
Delicados fios entrelaçando
Sonhos e vida -
Enquanto,
Uma, curiosa, gota de sangue
Desliza no fuso...
= = = = = = 

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

A brisa afasta a cortina,
e uma nesga de luar,
fugindo à fria neblina,
vem aos meus pés se abrigar.
= = = = = = 

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Pregados aos silêncios das paredes
(Mário Sousa Ribeiro, in “Textos de amor”, p.118)

Pregados aos silêncios das paredes
Há chapéus em retratos esquecidos
Bengalas e bigodes retorcidos
Luvas sobre anéis ricos que não vedes.

Pestanas por detrás de finas redes
Complementos das rendas dos vestidos
De enlaces e noivados prometidos
Que saciem as mais que humanas sedes.

Crianças rindo em tão ingênuas poses
São cobaias das vis metamorfoses
Que ar sisudo lhes há de conferir.

São os nossos avós, nossos parentes
E se hoje nos achamos diferentes
É porque não sabemos nos despir. 
= = = = = = = = = 

Triverso de
FRANCISCO DE ASSIS NASCIMENTO
Goiânia/GO

Letras em fulgor
E solenes trilham.
Compor com amor.
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Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Virgens mortas

Quando uma virgem morre, uma estrela aparece,
Nova, no velo engaste azul do firmamento:
E a alma da que morreu, de momento em momento,
Na luz da que nasceu palpita e resplandece.

Ó vós, que, no silêncio e no recolhimento
Do campo, conversais a sós, quando anoitece,
Cuidado! – o que dizeis, como um rumor de prece,
Vai sussurrar no céu, levado pelo vento...

Namorados, que andais, com a boca transbordando
De beijos, perturbando o campo sossegado
E o casto coração das flores inflamando,

- Piedade! elas veem tudo entre as moitas escuras...
Piedade! esse impudor ofende o olhar gelado
Das que viveram sós, das que morreram puras!
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Lágrimas, fuga das águas 
por um riacho inclemente 
que numa enchente de mágoas 
inunda o rosto da gente!
= = = = = = 

Estância Tripla de
JOSÉ FELDMAN
Floresta/ PR

Lira da poesia 

Quando a luz da manhã se faz presente,  
o poeta desperta, a alma em ebulição,  
a inspiração se faz reluzente,  
e a esperança surge com nova emoção.  

Ao entardecer, o sol se retira,  
as sombras bailam segredos no ar,  
mas a caneta persiste em sua lira,  
escrevendo versos que não vão cessar.  

Assim, entre o amanhecer e o anoitecer,  
o coração bate forte, anseia amar,  
cada estrofe é um sonho que está a crescer,  
e um futuro luminoso a se desenhar.
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Sai do museu, braço dado 
com sua sogra, o Sinfrônio:
- e o guarda grita, alarmado: 
- "Tão roubando o patrimônio!"
= = = = = = 

Poema de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Canção da Garoa

Em cima do meu telhado,
Pirulin lulin lulin,
Um anjo, todo molhado,
Soluça no seu flautim.

O relógio vai bater;
As molas rangem sem fim.
O retrato na parede
Fica olhando para mim.

E chove sem saber por quê...
E tudo foi sempre assim!
Parece que vou sofrer:
Pirulin lulin lulin…
= = = = = = 

Hino de
ALVORADA DO SUL/ PR

O teu nome alvorada do sul
Sintetiza o despertar para o futuro
Em teu céu sempre azul o cruzeiro a brilhar
Mostra o rumo que tens a trilhar

E o alvorecer de um novo dia
Surge esperançoso de sucesso
Cheio de paz e alegria, na marcha firme.
Para o progresso

E o teu povo trabalhador confia no amanhã
Cheio de esplendor
E o teu povo trabalhador
Confia no amanhã cheio de esplendor
 
O teu nome alvorada do sul
Sintetiza o despertar para o futuro
Em teu céu sempre azul o cruzeiro a brilhar
Mostra o rumo que tens a trilhar
 
Em cada dileto filho teu
Vive a chama de um ideal
És o amor que nasceu
De um desejo bom e triunfal
 
E o teu povo trabalhador confia no amanhã
Cheio de esplendor
E o teu povo trabalhador
Confia no amanhã cheio de esplendor
 
O teu nome alvorada do sul
Sintetiza o despertar para o futuro
Em teu céu sempre azul o cruzeiro a brilhar
Mostra o rumo que tens a trilhar
 
E o teu povo trabalhador
Confia no amanhã cheio de esplendor
E o teu povo trabalhador
Confia no amanhã cheio de esplendor 
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Liberdade

Eu quero a liberdade e a leveza do vento,
A brincar co'a folhagem  a rolar  na grama.
Eu quero a submissão  da criança que mama
E a  servidão do frade  a buscar seu intento.

Eu quero a autonomia  e a coragem de um cego
A andar pela avenida e ruas da cidade,
Buscando a sinergia entre o homem  e a liberdade,
Com a espontaneidade e a visão de seu ego.

Em busca da existência  e condição humana,
querendo a independência  e nada o desengana;
Nesse comportamento há medos que o consomem.

E na disposição de sua liberdade
Está a proposição e na eterna vontade
A força propulsora  da liberdade do homem.
= = = = = = = = =  = = = = 

Trova Premiada de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

Roxa ou preta quando antiga, 
mas rubra se a dor maltrata. 
Por isso não há quem diga 
da saudade a cor exata.
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Uma Lengalenga de Portugal
A Boneca
 
 Tia Anica Marreca
 Traga-me uma roca
 Pra minha boneca
 Que ela é careca.
 Tem um pé de pau
 Quando vai pra cama
 Faz trau tau tau.
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
DEODATO PIRES
Olhão/ Portugal

Quer tenha ou não tenha sorte
na vida que Deus lhe deu,
não pode fugir à morte
todo aquele que nasceu.
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Bento Serrano (Gratidão de um filho, ingratidão de outro)

Quem reparar um pouco, há de ver muitas vezes que o homem na velhice é tratado por seus filhos exatamente do mesmo modo, como ele havia tratado seus pais, quando eram velhos e já sem forças. E isto compreende-se bem. Os filhos aprendem com os pais; não veem, nem ouvem mais ninguém, e por isso seguem o seu exemplo. Assim se verifica naturalmente o que tantas vezes se diz, e está escrito: “a benção e a maldição dos pais vem cair sobre os filhos.”

Ouçamos agora duas histórias que se contam a propósito disto: a primeira é digna de imitação; a segunda merece ser muito meditada.

Uma vez um certo príncipe foi dar um passeio a cavalo, encontrou-se com um camponês diligente e alegre, que andava a trabalhar em um campo, e pôs-se a conversar com ele.

Dali a alguns dias soube o príncipe que o campo não era propriedade daquele homem, o qual não passava de um jornaleiro que pela módica quantia de três tostões por dia cuidava do seu amanho. 

O príncipe, que para os pesados encargos do governo precisava de enormíssimas somas, não podia compreender como três tostões diários eram meios bastantes para o nosso homem viver, e de mais a mais de rosto tão alegre. 

Este porém respondeu-lhe: “Nada me faltaria, se eu pudesse dispor de todo esse dinheiro: a terça parte chega-me bem; com um terço pago as minhas dívidas e a terça parte restante pertence às minhas economias.” 

O bom do príncipe ficou ainda mais admirado. Mas o camponês continuou: “O que tenho, reparto-o com meus pais, que são velhos e já não podem trabalhar, e com meus filhos, que andam por ora a aprender; àqueles pago-lhes o amor com que me trataram na minha infância, e destes espero que não me abandonarão também na minha cansada velhice.” 

Verdade que tudo isto foi muito bem dito, e ainda melhor pensado, e ainda muito melhor executado? O príncipe recompensou aquele homem de bem, olhou com desvelo pelos filhos, e a benção que os pais lhe lançaram ao morrer, foi-lhe retribuída pelos filhos agradecidos com amor e amparo.

Havia porém outro homem que tratava tão mal seu pai, a quem a idade e as doenças tinham na verdade tornado impertinente, que o velhinho mostrou desejos de entrar em um hospital de pobres, que havia na mesma aldeia. Ali esperava ele, apesar do pouco afeto, pelo menos ver-se livre das repreensões que em casa lhe amarguravam os últimos dias da vida. 

O filho ingrato saltou de contente apenas soube dos desejos do pobre velho, e ainda antes de o sol se esconder por detrás das montanhas vizinhas, já eles estavam satisfeitos. Mas no hospital não encontrou ele tudo quanto desejava, e passado algum tempo pediu ao filho, como último favor, que lhe mandasse dois lençóis, para não ter de dormir toda a noite na palha fria. Procurou este os piores que tinha, e chamando seu filho, criança de dez anos, ordenou-lhe que os levasse ao hospital.

Ficou porém admirado ao ver que o pequeno escondia a um canto um dos lençóis e só levava ao avô o outro; e apenas ele veio, perguntou-lhe porque tinha feito aquilo. O filho respondeu friamente que tinha guardado um dos lençóis para o dar ao pai, quando mais tarde o mandasse para o hospital.

Que lição tiramos daqui?
Honra teu pai e tua mãe, para que sejas feliz.
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BENTO SERRANO nasceu em Portugal, em meados do século XIX e faleceu em 1939. Foi um astrólogo, escritor e ativista republicano. Ferrenho defensor do republicanismo, produzindo diversos periódicos publicados pela Editora Livraria Portuguesa em prol da república e contra a monarquia em seu país. Retirou-se para uma gruta na região de Serra da Estrela em Portugal, onde montou seu improvisado gabinete de estudos astronômicos e astrológicos, dedicando grande parte da sua vida ao estudo dos astros e à recolha da sabedoria tradicional e popular portuguesa. É autor de diversos livros esotéricos e de sabedoria popular, tendo publicado diversos almanaques e outros periódicos a partir de 1883 até o ano de sua morte em 1939. Conhecido por sua habilidade em misturar elementos de mistério e fantasia com uma narrativa envolvente. Oráculo do passado, do presente e do futuro, é uma das mais completas obras sobre "o verdadeiro modo de aprender no passado a prevenir o presente, e a adivinhar o futuro".

Fontes:
Bento Serrano. Oráculo do Passado, Presente e Futuro. vol. VII: O oráculo da mágica. Publicado originalmente em 1883. Disponível em Domínio Público.  
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Sílvio Romero (A onça e o bode)


(Folclore do Sergipe)

UMA VEZ A ONÇA QUIS FAZER UMA CASA; foi a um lugar, roçou o mato para ali fazer a sua casa. O bode, que também andava com vontade de fazer uma casa, foi procurar um lugar, e, chegando no que a onça tinha roçado, disse: “Bravo! Que belo lugar para levantar a minha casa!” 

O bode cortou logo umas forquilhas e fincou naquele lugar, e foi-se embora. 

No dia seguinte a onça lá chegando, e vendo as forquilhas fincadas, disse: “Oh! Quem me está ajudando?! Bravo, é Deus que está me ajudando!”  Botou logo as travessas nas forquilhas, e a cumeeira, e foi-se. 

O bode, quando veio de novo, admirou-se e disse: “Oh! Quem está me ajudando?! É Deus que está me protegendo.” Botou logo os caibros na casa, e foi-se. 

Vindo a onça, ainda mais se espantou, e botou as ripas e os enchimentos e retirou-se. O bode veio, e varou a casa e foi-se. A onça veio e a cobriu. O bode veio e tapou. 

Assim foram, cada um por sua vez, e aprontaram a casa. Acabada ela, veio a onça, fez a sua cama e meteu-se dentro. 

Logo depois chegou o bode, e, vendo a outra, disse: “Não, amiga, esta casa é minha, porque fui eu quem finquei as forquilhas, botei os caibros, varei, e tapei.” 

— “Não, amigo”, respondeu a onça, “a casa é minha, porque fui eu que rocei o lugar, botei as travessas, a cumeeira, as ripas, os enchimentos, e o sapé.”

Depois de alguma questão, a onça, que estava com vontade de comer o bode, disse: “Mas não haja briga, amigo bode, nós dois podemos ficar morando na casa.” 

O bode aceitou, mas com muito medo. O bode armou a sua rede bem longe do jirau da onça. 

No outro dia a onça disse: “Amigo bode, quando você me vir frangir o couro da testa, eu estou com raiva, tome sentido!” 

— “Eu, amiga onça, quando você me vir balançar as minhas barbinhas ali nas goteiras e dar um espirro, você fuja, que eu não estou de caçoada.” 

Depois a onça saiu, dizendo que ia buscar de comer. Lá, por longe de casa, pegou um grande bode e, para fazer medo ao seu companheiro, matou-o, e entrou com ele pela casa adentro. Atirou-o no chão e disse: “Está, amigo bode, esfole e trate para nós comer.” 

O bode, quando viu aquilo, disse lá consigo: “Quando este, que era tão grande, você matou, quanto mais a mim!” 

No outro dia ele disse à onça: “Agora, amiga onça, quem vai buscar de comer sou eu.” 

E largou-se. Chegando longe, avistou uma onça bem grande e gorda, disfarçou e pôs-se a tirar cipós no mato. A onça veio chegando, e, vendo aquilo, disse: “Amigo bode, para que tanto cipó?” 

— “Fum! Para quê?! O negócio é sério, trate de si... O mundo está para acabar, e é com dilúvio...” 

— “O que está dizendo, amigo bode?” 

— “É verdade; e você, se quiser escapar, venha se amarrar, que eu já me vou.” 

A onça foi, e escolheu um pau bem alto e grosso, e pediu ao bode para que a amarrasse. O bode enleou-a perfeitamente, e, quando a viu bem segura, meteu-lhe o cacete como terra, até matá-la. Depois arrastou-a; chegou em casa, largou-a no chão, dizendo: “Está; se quiser esfole e trate.”

A onça ficou espantada e com medo. Ambos dois temiam um ao outro.

Num dia o bode pôs-se junto das biqueiras, tomando fresco; olhou para a onça, e ela estava com o couro da testa frangido. Ele teve receio e abalou as barbas, e largou um espirro. A onça pulou do mundéu e largou na carreira, o bode também abriu o pano. Ainda hoje correm cada um para o seu lado.
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SÍLVIO VASCONCELOS DA SILVEIRA RAMOS ROMERO (1851-1914) foi crítico e historiador da literatura brasileira. Fundador da Academia Brasileira de Letras. Pensador social, folclorista, poeta, jornalista, professor e político. Era sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Nasceu na vila de Lagarto, Sergipe, 1851. Em 1868 mudou-se para o Recife e ingressou na Faculdade de Direito. Polêmico, combativo e contraditório, foi influenciado por seu conterrâneo Tobias Barreto. Juntos, lideravam uma escola que reunia jovens inteligentes e destemidos, que se encarregavam de irradiar as recentes ideias vindas da França. Quando estava no 2. Ano da faculdade, Sílvio Romero colaborou com vários jornais. Em 1873 concluiu o curso de Direito. Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro onde obteve a cátedra de filosofia. Romero foi também professor da Faculdade Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Como poeta, teve uma breve carreira. O primeiro livro de poemas foi Cantos do Fim do Século, lançado em 1878, em uma tentativa de aderir poesia filosófica científica que pregava desde 1870 em artigos, mas que não obteve êxito. Em 1883 publicou Últimos Arpejos, seu segundo e último volume de poesia. Desenvolveu intensa atividade como escritor. Escreveu vários livros que abordavam praticamente tudo que se referia à realidade cultural brasileira como: filosofia, literatura, folclore, educação, política e religião. Publicou assuntos ligados à cultura popular revelando-se um grande folclorista. Escreveu sobre filosofia no Brasil e sobre escolas filosóficas diversas. Em 1878 escreveu Filosofia no Brasil, publicado em Porto Alegre. Sua obra História da Literatura Brasileira (1888), em dois volumes, menos uma história literária do que uma enciclopédia de conhecimentos sobre o Brasil, a origem e evolução de sua cultura, suas raízes sociais e técnicas, foi considerada sua obra mais revolucionária. Deixou uma vasta obra culturalmente valiosa e pioneira em muitos aspectos. Respeitado pela imprensa nacional, conquistou seu lugar como um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura brasileira do século XIX. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1914.

Fontes:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1883.
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