sábado, 2 de agosto de 2025

Carina Bratt (Por tantos caminhos percorridos, um me levou à vida que não vivi)

‘É sempre assim: quando você não está aqui, simplesmente eu me perco de mim...’
Aparecido Raimundo de Souza
EXISTE UM CANTO de terra que o mundo lá fora não conhece, um pedacinho de paraíso que mora inteiro dentro de mim. Fica ali, depois da porteira de madeira torta, onde o vento dança com os galhos da jabuticabeira e os passarinhos fazem reunião todas as manhãs. Esse pedacinho de chão se chama Shangri-Lá (nome dado por Apa*, tirado do livro ‘Horizonte Perdido,’ de James Hilton). Esse pequeno Éden não tem nome nos mapas, mas em compensação tem cheiro forte de café coado na hora e o som mavioso das risadas do caseiro (senhor Valdemar, da esposa dele, dona Diná e da filha adolescente, de 13 anos, a Liliane) e logicamente do Apa. Por falar no Apa, eu o flagro sentado na varanda espaçosa escrevendo as suas crônicas que misturam galinhas, porcos e vacas, cobras, cachorros e uma boa pitada de assombrações.

Esse chão tem calo, tem vida plena. Nele, meus pés sem meias e sapatos distanciados das ruas e avenidas da cidade grande aprenderam o peso da enxada e a leveza de correr descalça atrás das borboletas. Aqui, cada pedrinha que piso me conhece pelo nome. É onde meus sonhos germinaram sob o sol escaldante e floresceram com as chuvas teimosas. Mesmo quando vou embora, e me pego na Borges de Medeiros, de frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas, tendo como pano de fundo o Cristo Redentor, por testemunha, levo terra entre os dedos e nas solas dos pés. E nos dias em que o mundo parece grande demais, lembro do silêncio harmonioso do terreiro ao entardecer, quando tudo se acalma, e o céu vira um mar a se perder no meu horizonte de sonhos imorredouros. Shangri-Lá é como se fosse o meu pedacinho de chão. Está esquecido na sua pequenez, em meio do nada, mas em compensação é vasto em lembranças. 

É raiz, é abraço, é casa simples de salas e quartos espaçosos, de mesa farta, de boa comida, de esperança de dias melhores e recordações que não envelhecem. É onde meu nome ecoa com carinho e onde o Apa, com olhos de quem viu a vida inteira, ainda me chama melodicamente de ‘Doce Carina’ como se fosse bênção. Por aqui há um tempo em que o chão não é só terra: é memória. O meu, ‘eu’ se perde escondido, entre morros e silêncios, ao tempo em que se ergue como lembrança viva — feito álbum sem fotografia, onde cada cheiro, cada som, cada cor carrega uma história que pulsa e faz tremer o âmago da alma. E é aqui no terreiro enorme de chão batido, de terra virgem, que o seu Valdemar me ensina sem dar aula. Suas mãos calejadas dizem tudo. 

Não falam de mundo, falam de raízes. ‘A gente nasce pra pertencer’, ele diz, olhando longe, como quem conversa com o tempo. Hoje entendo: mais que um lugar, esse meu pedacinho de chão é ideia — é onde aprendi que existir é ocupar espaço com amor e simplicidade. Aqui, tudo tem alma. Até o fogão à lenha onde a senhora dona Diná mais a filha Liliane preparam o almoço parece respirar junto com a casa. E eu, me sinto menina, me ponho a correr atrás das galinhas e dos pintinhos, como se fosse uma peleja contra o tempo, sem saber que o tempo é o único que nunca perde. Estar aqui com o Apa foi descobrir que algumas distâncias não se medem em quilômetros, mas em saudade. Quando estou fora, seja na Lagoa, de frente para o Cristo, ou em Vila Velha, de frente para o mar, euzinha volto sempre em pensamento. 

Nesse regresso sinto o barulho das águas que descem e cortam a mata fechada. Sinto o cheiro do feijão e do arroz feito na hora, das batatinhas fritas ou da carne assada aquecida no fogo brando, e as gargalhadas que são feitas de som —, nessas horas em que me pilho distanciada, se tornam resplandecidas de eternidade. A gente por aqui aprende que há coisas que nunca se esquece… não porque quer lembrar, mas porque elas decidem morar para sempre dentro da gente, num lugarzinho secreto dentro do coração. Shangri-Lá ou melhor, meu pedacinho de chão é o lugar onde aprendi que a vida não cabe em manual. Descobri que há mais sabedoria num olhar demorado para o horizonte do que nos mais de três mil livros que tenho em minha biblioteca. Concluí que o chão não é só onde se pisa — é onde igualmente a gente volta, mesmo quando se está alguns quilômetros de distância.  

O longe se torna perto e o perto nesses momentos mágicos, renova, revigora, vivifica, engrandece a alma e põem o corpo inteiro em estado de pura levitação. Quando o Apa me leva junto, o meu todo se transforma. O meu âmago tem som de viola e cheiro de pão de forno. Essa localidade fica nas divisas do Espírito Santo, na bucólica e pequena Pequiá, com Minas Gerais, onde o sol madruga com a gente e o tempo corre devagarzinho, como quem não quer atrapalhar a conversa do terreiro. É pedaço de mundo onde o ‘bom dia’ vem com abraço e onde a gente ainda se senta no chão para prosear, com café preto ou com leite e pedaços de bolo de chocolate ou de fubá. O Apa — esse homem de fala mansa e olhos sabidos — costuma dizer que ‘terra boa é aquela que a gente não precisa explicar, só sentir.’ Nessas horas retorno à minha infância em Curitiba. 

Eu menina, mas na mesma sintonia, e o que por aquelas paragens vivi, por certo ficou plantado em mim igual muda de laranja —, a coisa cresceu sem que eu percebesse. Nesse cantinho de chão, imaginem vocês, as galinhas sabem o nome da gente, e o firmamento parece mais perto. É lá que o vento faz confidência com as árvores e a chuva cai com aquele barulhinho que embala lembranças adormecidas. Quando não estou lá, ou melhor dito, quando vou, mesmo que só em pensamento, parece que meu coração muda o passo — anda mais lento, bate mais firme. Tudo por lá tem um quê de eternidade: o cheiro de mato depois da chuva, o eco das risadas do casal de caseiros e da filha, as histórias inventadas da Dona Diná. E o seu Valdemar, sentado debaixo do abacateiro, diz para mim, ‘Cê sabe, Carina, que esse chão não é só terra... é onde as nossas alma descansa.’ E olhem... esse velho senhor de tantos janeiros sabe muito das coisas.

Shangri-Lá, todo ele, é feito de um silêncio que consola, de saudade que canta, de raiz que nunca arreda. Pode o mundo girar ligeiro como for — é lá, distanciado a poucos passos da BR 262 que eu deixo de ser eu, para ser gente. Por lá, não tem elevadores, senhas para abrir portas de apartamento, telefone celular para perturbar. Do mesmo modo, não existem cercas altas, nem relógio de pulso apressado. É caminho de barro vermelho, marcado por patas de cavalos e pegadas de quem vive com o tempo no modo certo: o do sol e do céu. Por aqui, tudo respira junto: as galinhas e os pintinhos que ciscam com agilidade, o velho senhor Valdemar e dona Diná que andam por toda a propriedade, um ao lado do outro, (cada um em seu cavalo) trotando devagar, acenando para os vizinhos com um chapéu surrado, e os ‘causos’ que se contam debaixo do pé de manga, sempre com alguém rindo antes de terminar.

O Apa diz que ‘ninguém precisa ser grande para ser feliz... só tem que caber bem dentro do próprio silêncio.’ E ele cabe. Se amolda na rede, se harmoniza na prosa, se infiltra no cheiro de terra molhada que vem depois da chuva — aguaceiro que lava o mundo e deixa tudo com gosto de recomeço. Nesse ‘pedacinho de tudo dentro do nada em lugar nenhum,’ a simplicidade é luxo. A gente sai de sainha curta, as pernas de fora, ora plantando feijão, ora colhendo verduras, enquanto espera o milho cozinhar e colhe uma fatia de amizade no varal da vizinha (a meio quilômetro da casa principal do Apa). O rádio antigo toca alto na varanda, um sertanejo ‘porreta’, enquanto Dona Diná mais a filha Liliane ajeitam os lençóis recém lavados no varal e conta que o galo Pafúncio fugiu ‘de novo’, em direção a rodovia 262, como se isso fosse notícia importante de jornal. Por aqui tem geladeira, fogão a gás, máquina de lavar, aparelhos de ar condicionado, vários televisores, rede de internet, wi-fi e também se encontram galhos do mais puro afeto espalhados por toda a extensão do terreiro. 

E mesmo quem chega em visita (vindo de Vitória, no Espírito Santo ou retornando de Minas Gerais) e depois vai embora, carrega lembranças do lugar nos olhos: se encanta com os cavalos soltos na pastagem, se apaixona pelo cheiro de esterco fresco, ou morre de rir das conversas quando atravessando a cerca de arame, por vezes, por puro descuido, acabam rasgando a camisa e a calça e o tempo... ah, o tempo sempre quieto, tranquilo e sereno, como deve ser. Por aqui não é só paisagem — é modo de viver. É gente que não quer ser estrela, nem faz questão de aparecer, tampouco ser o tal, somente acender a luz da cozinha para quem chega. É por essas bandas que todos me chamam de ‘a secretária perfeita, a metade faltosa do senhor seu Aparecido’ e fazem isso com um orgulho que vale mais do que meu diploma pendurado sobre o piano da minha sala. Estar aqui, em resumo, é ser chão que não pisa, mas sustenta. Por aqui, com o Apa (e às vezes com a neta dele, a Ellen), é me amoldar no próprio silêncio que diz tanto como explica tão pouco. Por essas bandas, no meio do nada, é reconhecer e eu acolho e percebo que há uma paz harmoniosa em ser inteira, em ser eu mesma, sem precisar me explicar a quem quer que seja. 
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(*) Apa – Forma como trato o Aparecido, desde quando passei a ser a sua secretária particular.
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CARINA BRATT nasceu em Curitiba/PR. Trabalha como secretária particular e assessora de imprensa do jornalista Aparecido Raimundo de Souza, em Vila Velha/ES. Escreve crônicas em uma coluna denominada "Danações de Carina" para um site de Portugal.

Fontes:
Texto enviado pela autora.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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