segunda-feira, 26 de maio de 2025

Asas da Poesia * 28 *

 

Poema de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

Beijos ao Luar

Sorrisos tímidos, encantados,
Estrelas refletem nosso olhar.
Momento tão íntimo, desejado,
Mãos dadas, deitados na areia, a lua e o mar.

As palavras são desnecessárias;
Nossos corpos traduzem nosso amor.
Nossas almas estão eternizadas,
Naquela praia nos amamos, sem pudor.

O que houve a seguir, foi envolvente.
Felizes, apenas nos entreolhamos...
Sua boca na minha, novamente.

Quando seus lábios os meus encontrar
Uma leve brisa, o céu soprará...
Embalando nossos beijos ao luar.
= = = = = = = = =  

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Riscos e rabiscos

Riscos
Na mesa de madeira,
    Rabiscos nos tijolos
    Do fogão a lenha...

Desenhos no vidro
Nublado da janela,
Linhas curvas e retas
Na cadeira de palha
Marcam presença,
Pincelando ausências,
Enquanto a chuva risca
Mais um fim de tarde...
= = = = = = 

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

O cara dentro do armário
diz: “Não é o que você pensa”...
“Eu já sei”, responde o otário,
“o gajo é o lá da despensa”.
= = = = = = 

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Nada de novo é novo, a própria história
(Narciso Alves Pires, in “Para além do adeus”, p.90)

Nada de novo é novo, a própria História
Já se repete em ciclos conhecidos
E o poder e os conflitos já vividos
Renascem das profundas da memória.

Deixou a vida de ser aleatória
E a patina cobrindo os tempos idos
Deixa vê-los, de novo, promovidos
A pepitas que brilham entre a escória.

Se tudo se transforma, diz a lei
Que deixada nos foi por Lavoisier
O mundo ao girar outro mundo deu.

Nesse rodar eu nunca saberei
Se existe uma razão e algum porquê
Que me impeça de eu ser um outro eu. 
= = = = = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Quando pergunta o burrinho, 
diz a mula envergonhada:
- "Tu nasceste, meu filhinho, 
por causa de uma...burrada!..."
= = = = = = 

Poema de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Saudade

Que me dizias, Augusto Meyer,
naquele tempo que não passa,
na mesa, junto à vidraça,
naquele bar que era um barco?

Por ela passavam mares,
passavam portos e portos,
ali que os ventos ventavam,
dos quatro cantos do mundo!

O que dizíamos? Sei lá!
não falemos em nossas vidas...
nem, por nós, se salvou o mundo...

Mas, Amigo, eu sei que tenho
— naquelas horas perdidas —
o meu ganho mais profundo!
= = = = = = 

Hino de
PRACUÚBA/AP

Eia povo destemido tão querido,
Habitante desta linda natureza,
Vibra um sonho de um futuro radiante
Nesta terra que se torna fortaleza.

A vitória segue aos rios pela pesca,
Por pescadores corajosos habitantes,
Cuja fonte de saúde é majestosa
Se vasculhada nesses rios penetrantes.

Ó brava terra de mãe gentil,
Pracuúba, Amapá, Brasil...

Ó Deus, que abençoe esta terra
Da fauna rica e flora verdejante
Onde o rio que exalta a natureza
Resplandece seu trabalho exuberante.

Encoberto pela própria natureza,
Homenageia uma árvore gigante
Com um povo tão guerreiro e tão humilde
Que demonstra tal bravura radiante.

Que destaca nesta fauna o Tracajá,
O pirarucu e o Tucunaré
A beleza de Pracuúba, vale a pena observar,
É sua flora, a mais rica do lugar.

Ó brava terra de mãe gentil,
Pracuúba, Amapá, Brasil…
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Intolerância

Todos meus sentimentos embotados
deixam-me quase morta para a vida.
Roubaram minha astúcia e sem guarida,
deixaram os sentimentos desviados.

E com esta tristeza agoniada
não consigo os caminhos desejados.
Busco alento nos dias já passados,
só encontro a decepção continuada.

Não me deixa encontrar justa assertiva,
da falta de ternura que me invade,
ao ver o fingimento na inventiva.

Pensando já ser mestre no que faz,
assume esta postura intolerante,
achando que ninguém mais é capaz.
= = = = = = = = =  = = = = 

Trova Premiada de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

Julguei sem pensar que um dia 
os anos réu me fizessem, 
sem defesa à revelia, 
nos bancos dos que envelhecem.
= = = = = = = = = 

Poema de
CARLOS NEJAR
Porto Alegre/RS

Formoso é o Fogo

Formoso é o fogo e o rosto
da amada junto a ele.
No lume de seu corpo
tudo em redor clareia.

Depois o que era fogo,
é espuma que se alteia.
E o mundo se faz novo
nas curvas da centelha.

Já não existe esboço,
mas desenhos, e teimam
— unos e justapostos.

Já não existe corpo:
são almas que se queimam
no amor de um mesmo sopro.
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Já fui galo, já cantei
já fui dono do terreiro.
Não me importo que outros cantem
onde eu já cantei primeiro.
= = = = = = = = =

Soneto de
VICENTE DE CARVALHO
Santos/SP (1866 – 1924)

Velho tema I

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.
= = = = = =

Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Somos barcos que navegam sem partirmos

A distância nos separa, mas sonhamos...
E nos sonhos, somos muito mais felizes,
Pois nas cores mais sensíveis que criamos,
Inventamos flores de novos matizes.

Nossas rosas são azuis sem as tingirmos,
Nossos mares são tranquilos ou selvagens,
Somos barcos que navegam sem partirmos,
Ninguém pode impedir nossas viagens.

Somos seres que transcendem sentimentos,
Nosso voo vai muito além da eternidade,
Recriamos nossos próprios pensamentos,
Nosso amor só sobrevive em liberdade.

Colorimos as imagens que queremos,
Encurtamos o espaço que separa
Quem nos ama, com o melhor amor que temos
E é assim que a solidão nos vira a cara.

Mesmo quando alguma dor nos surpreende,
Porque somos seres frágeis e mortais,
Só a nossa fantasia compreende
Esses nossos sofrimentos tão iguais.

Construímos nossas naus e viajamos
Para onde os sonhos possam nos levar
Pois em cada sonho bom que recriamos
Nós soltamos nossa solidão... no mar.
= = = = = =

Escada de Trovas de
FILEMON MARTNS
São Paulo/SP

“É frio, a noite descansa;
o espaço é vasto e medonho.
De repente, a lua mansa
surge nos braços de um sonho.”
Humberto Del Maestro 
(Serra/ES)

“Surge nos braços de um sonho”
numa beleza sem fim,
e a poesia que componho
fica mais perto de mim.

“De repente, a lua mansa”
aparece sorridente
dando vivas à esperança
e sorrindo à minha frente.

“O espaço é vasto e medonho”
quase sempre me dá medo,
que às vezes fico tristonho
pensando no teu segredo.

“É frio, a noite descansa”
e eu sonho com as estrelas
tão belas, ninguém alcança,
- só é permitido vê-las.
= = = = = =

Poema de
EUNICE ARRUDA
Santa Rita do Passa Quatro/SP, 1939 – 2017, São Paulo/SP

Um dia

um dia eu
morrerei
de sol, 
de vida acumulada
na convulsão
das ruas

um dia eu
morrerei e
não
podia:

há poemas
escorregando de meus dedos
e um vinho não
provado
= = = = = = 

Poema de
CLEVANE PESSOA
Belo Horizonte/MG

Origami da sorte

A folha de papel A4, totalmente em branco
é uma tentação a que eu derrame a alma,
para sempre marcando-a com a magia da Palavra...
Meu lado artesã/artista discute com meu lado poetisa:
desenhar, dobrar, fazer
em vez de apenas escrever...
Então, aliso a folha nívea,
triangulo o gesto,
corto a sobra e obtenho
um perfeito quadrado...
As dobraduras se sucedem, aqui e ali,
faço um dos mais básicos origamis:
uns dizem que é um saleiro,
outros, um açucareiro
para qualquer escoteiro,
mas os sonhadores,
viram-no do lado oposto,
encaixam nas abas os polegares e indicadores
e se põem a ler a sorte, a partir de números
pedidos ao acaso...
Para falar de sorte ou atraso,
perdas e ganhos,
amores,
levanto cada espaço
e neles escrevo trovas
sem nenhum embaraço...
assim , ao chamar a menina
que cochilava dentro de mim,
resolvi o impasse:
fiz um objeto, escrevi versos
e pude brincar como se a infância
nunca tivesse acabado…
= = = = = = 

Trova de
IALMAR PIO SCHNEIDER
Porto Alegre/RS

Um verso pobre, uma trova,
merecem sempre acolhida,
pois o sonho se renova
a cada instante da vida.
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Trovador

Não sei se trovador já nasce feito,
ou se ele é feito apenas por amor;
sei que ele lembra muito o amor-perfeito,
se nos encanta, assim como essa flor.

Qualquer das duas formas, com efeito,
talvez nem interfira em seu valor,
pois na flor ou poesia vale é o jeito
encantador que o deu seu criador.

No amor-perfeito o belo é sempre assim,
quer ele nasça num nobre jardim,
ou num quintal bem rude e desprezado.

E o trovador em sua poesia,
tem que insuflar amor, com estesia,
para exaltar alguém apaixonado!
= = = = = = 

Trova do 
Príncipe dos Trovadores
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ (1916 -1977) Santos/SP

Nessas angústias que oprimem,
que trazem o medo e o pranto,
há gritos que nada exprimem,
silêncios que dizem tanto!...
= = = = = = 

Poema de
PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR, 1944 – 1989

O assassino era o escriba

Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito
inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida, regular
com um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito assindético
de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Erguei-vos flores da noite,
tristes rosas da manhã,
velem umas sobre as outras
O tum'lo de minha irmã.
= = = = = = 

Soneto de 
EMILIANO PERNETA 
Pinhais/PR, 1866 — 1921, Curitiba/PR

D. Juan

Sensível, como quem podia ser, apenas
Mais vão do que uma sombra um gesto perpassou,
E logo desse herói, revoltas as melenas,
Brilhava o estranho olhar, que tanto ambicionou...

Era uma confusão. Pálidas e morenas,
Cada qual, cada qual, como Deus a formou,
Não foi uma, nem dez, porém foram centenas
As mulheres por quem D. Juan desesperou...

Todas, todas que viu, ele mordeu de beijos,
Enraiveceu de amor, poluiu de desejos,
Tomado de furor, doido d'embriaguez...

Um delírio! Porém, D. Juan era um artista
E portanto cruel, nervoso, pessimista,
E de resto, o infeliz nunca se satisfez!
= = = = = =

Poema de 
DILMA DAMASCENO
Caicó/RN

Relembrando a minha origem (I)

Amo a vida genuína
(ornada de singeleza)!...
Idolatro a Natureza!...
A floração, me fascina!

Exulto, sobremaneira,
com o cantar que encerra
meu querido “Pé de Serra”!...
Sou Cabocla Brasileira,
aguerrida descendente
da Região do Nordeste…
portanto, “Cabra da Peste”...

Ademais, sou renitente,
Potiguar e Sertaneja
(do Sertão do Seridó)…
e natural de Caicó
(onde a brisa é benfazeja…
e o povo é bom, e gentil),
Cidade de clima quente
(terra do sol reluzente),
que acende o céu do Brasil!
= = = = = = 

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

- Peço a mão de sua filha...
e aí para, ante a visão:
Tá o sogro... de sapatilha
e a sogra... que sapatão!
= = = = = = 

Soneto de 
JOSÉ D'ABREU ALBANO 
Fortaleza/CE 1882-1923

Soneto da Dor

Mata-me, puro Amor, mas docemente,
Para que eu sinta as dores que sentiste
Naquele dia tenebroso e triste
De suplício implacável e inclemente.

Faze que a dura pena me atormente
E de todo me vença e me conquiste,
Que o peito saudoso não resiste
E o coração cansado já consente.

E como te amei e sempre te amo,
Deixa-me agora padecer contigo
E depois alcançar o eterno ramo.

E, abrindo as asas para o etéreo abrigo,
Divino Amor, escuta que eu te chamo,
Divino Amor, espera que eu te sigo.
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

A velhice se avizinha, 
porém não me assusta não. 
– Eu sei que no fim da linha 
Deus me espera na estação!
= = = = = = 

Poema de
JOVINO PEREIRA DA LUZ
Pão de Açucar/AL 1855 – 1908

O São Francisco a sonhar

Era noite! O São Francisco,
Dormindo e manso a sonhar,
Entre os beijos d’uma brisa,
Ao sorriso d’um luar!
As estrelas lhe sorriam,
Os aromas o envolviam!
E eu dizia, então:
“Como é belo quando dorme
O gigante rio enorme
Nestas plagas do sertão!”
................

Era belo ver-se o rio
Venturoso assim dormir,
Entre flores trescalando,
Entre belas a sorrir!
Oh! Lembro-me dessa cena,
Grandiosa e tão serena
Como um riso p’raisal!
Cena tocante e sublime
Que um poeta não exprime
E só diz: - “Não tinha igual!”
= = = = = = 

Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Se tu não tens água e pão,
te expões ao mundo voraz...
Migra em busca de outro chão,
sê pois, migrante da paz!
= = = = = =

Sonetilho de 
OLIVALDO JUNIOR
Mogi-Guaçu/SP

Um poeta se despede

Com a mão na consciência,
um poeta sempre pede
um pouquinho de ciência,
claridade que nos mede.

Já sem pouso, em paciência,
um poeta sempre cede
quando a vida, efervescência,
só borbulha e retrocede.

Com as linhas mal traçadas,
um poeta se despede,
despe o corpo de alvoradas!...

Deixa versos sem amadas
e uma mãe que lhe concede
muitas lágrimas roladas.
= = = = = = 

Trova de
ALOÍSIO ALVES DA COSTA
Umari/CE (1935 – 2010) Fortaleza/CE

Feliz é quem, pela vida,
envelhecendo sem fugas,
alegre e de fronte erguida,
zomba do espelho e das rugas.
= = = = = = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

As rãs e o Sol

Querendo o Sol casar-se,
As rãs, quando o souberam,
A Júpiter fizeram
Humilde petição,
Dizendo: «Não consintas,
Ó Júpiter sagrado,
Que mude o Sol de estado,
Que tenha geração;
Porque se ele sozinho,
Com seu calor intenso
Nos faz um dano imenso
Na cálida estação;
Em tendo esposa e prole,
Seus novos sucessores,
Com férvidos calores
O mundo abrasarão:
Secando-se as lagoas,
As fontes e as correntes,
Os nossos descendentes
A vida acabarão!»
Ouvindo Jove as preces,
Negou consentimento
Do Sol ao casamento,
Às rãs em atenção.

Aquele que previne
Que o mal se reproduza,
Prudente evita e escusa
De horrores profusão.
= = = = = = = = = 

Eduardo Martínez (Almeidinha e o senegalês)


Não sei se você sabe, mas o meu grande amigo Almeidinha já passou um tempo em Londres, onde fazia parte da tripulação de um barco de turismo no famoso rio Tâmisa. Ele ajudava na cozinha e servia os clientes à bordo. Corria para cá, corria para lá, atendia a todos os pedidos com até certa gentiliza, levando-se em conta o seu temperamento nem sempre tão polido. Mas como estava na Inglaterra, isso poderia até passar despercebido, pois todos poderiam supor que aquele era o jeito da população local.

Mas eis que um dia o Almeidinha, praticamente um inglês na pontualidade, chegou atrasado. O encarregado disse para ele e outro funcionário, um enorme senegalês que também havia chegado mais tarde, lavarem a louça da viagem anterior. O meu amigo, que não é de muita conversa, foi logo pegando uma esponja e o sabão e, em seguida, começou a cumprir a tarefa recebida. Já o seu companheiro de labuta se sentou na bancada logo atrás e começou a descascar uma banana calmamente. O Almeidinha olhou aquilo com certa raiva, mesmo porque os dois não se bicavam há tempos.

Quase dez minutos se passaram, e lá estava o meu amigo esfregando uma enorme panela cheia de restos de comida. Ele deu uma olhada para trás e viu o senegalês comendo outra fruta, desta vez uma maçã. O Almeidinha, ainda com a panela e a esponja nas mãos, perguntou: "Ei, se você for ficar aí me olhando trabalhar, melhor ir lá pra fora". Nisso, o senegalês, que tinha quase dois metros de altura e um corpo digno de um fisiculturista, respondeu: "Estou na minha hora de folga". Pra quê? 

O Almeidinha, que é até atarracado, mas não é maior que eu, que não sou alto, jogou a enorme panela na direção do senegalês. Este ainda conseguiu se desviar, mas uma comédia pastelão se instalou em plena cozinha, pois o Almeidinha, na ânsia de pular no pescoço do colega de trabalho, escorregou e caiu de bunda no chão. E, antes que uma tragédia maior acontecesse naquele ambiente cheio de facas, eis que o encarregado apareceu e pôs fim àquela contenda. 

O chefe perguntou que bagunça era aquela, e o meu amigo explicou o ocorrido, já se pondo à disposição para ser despedido. Todavia, para surpresa do Almeidinha, o senegalês é que foi mandado embora. Tudo parecia resolvido, até que o enorme africano olhou para o meu amigo e, com o indicador de uma das mãos, passou no próprio pescoço e disse: "Eu vou te matar!" Logicamente, o Almeidinha se tremeu todo de medo, pois percebeu que o seu temperamento de pinscher miniatura havia arrumado confusão justamente com o pit bull do local. Aliás, um pit bull com o tamanho de um fila. 

Seja como for, o senegalês, que havia sido despedido, foi embora mais cedo, o que foi até um alívio para o Almeidinha. No entanto, assim que chegou a sua hora de também ir para o lar, doce lar, o meu amigo percebeu que, do outro lado da linha do metrô que ele pegava, lá estava aquela montanha de músculos esperando por ele. 

O meu amigo, antes do senegalês dar a volta na estação do metrô, entrou em uma linha, que nem era a sua, simplesmente para não tomar uma surra daquelas. E, ao entrar no vagão, para a sua sorte, encontrou um local vazio. Infelizmente, logo percebeu, pela umidade do fundilho da calça, que precisava aprender a controlar seu temperamento impetuoso.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Eduardo Martínez possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Imagem por JFeldman criada com Microsoft Bing

Carina Bratt (Um dia todos nós partiremos daqui)


A NOSSA VIDA, toda ela, é feita de chegadas e partidas. De partidas e chegadas. Cada lugar que habitamos, cada pessoa que encontramos, cada experiência vivida, cada hora, minuto e até o segundo, nos molda de alguma forma.  Inevitavelmente, um dia (sempre haverá um dia), seja hoje ou amanhã, ele chegará e baterá na nossa porta lembrando o momento de partir. 

Partir ou ir ou seguir em frente, a bem da verdade, pode ser melhor, é uma palavra difícil de ouvir, como também de dizer, e o mais importante: é uma coisa libertadora. Sinaliza o fim de um capítulo como também nos direciona para o início de um outro. Como um romance que estivéssemos lendo. Do mesmo lado da moeda, às vezes se torna a chance de recomeçarmos, de mudarmos de caminho, de estratégia, para descobrirmos e de encontrarmos novas oportunidades. 

Partir também significa deixarmos para trás o que conhecemos e amamos, como nossos pais, irmãos, esposos, filhos, enfim todas as demais criaturas do nosso convívio diário que nos são caras e muitas vezes insubstituíveis. Geralmente, amigos queridos, bem ainda lugares, situações, memórias imorredouras e preciosas, sem falarmos que sinaliza também enfrentarmos o incerto, o obscuro, o desconhecido e o mais importante e ao mesmo tempo temeroso: convivermos com as incertezas, as ansiedades, as sofreguidões e as controvérsias. 

Se pararmos para pensar por alguns minutos, chegaremos à conclusão que todas essas impaciências e incredulidades, receios e titubeações, fazem parte do ponto nevrálgico para darmos de cara com as possibilidades de apreciarmos com mais acuidade e carinho o nosso presente e valorizarmos cada momento. Cada pedacinho desse NOSSO AGORA é o que objetivamente importa.  

Nesse momento, quando o dia de partir chegar, e euzinha precisar viajar, quero levar comigo na bagagem do meu ‘eu’ as memórias dos momentos felizes, os instantes que passei com as almas que me tocaram o coração e me fizeram, de alguma forma, ser feliz. Quero partir de braços dados com a convicção de que vivi plenamente e que estarei pronta para o que vier a seguir.  Minhas amigas umas perguntinhas básicas: 

Alguma vez vocês pensaram para onde irão no dia que partirem? Quais memórias levarão? Quais sonhos prosseguirão alimentando dentro dos seus interiores? Enquanto esse dia de partir não chega, vamos viver plenamente. Na hora derradeira, o melhor a fazer é ir embora com o coração e a alma cheios de alegria e  de gratidão, mesmo sabendo que a partida é um tema profundo e complexo. 

É como se fosse um ciclo natural da nossa vida e onde cada chegada traz consigo a promessa de uma partida. Penso que é essa dualidade que torna a vida tão rica, tão linda, tão bela e feliz, auspiciosa e repleta de infinitos significados. Tenho comigo que quando pensamos em partir, (claro, se der tempo) teremos em mente a ideia de mudança, de transformação. É como se estivéssemos deixando para trás, uma versão de nós mesmas e embarcando no trem para uma nova estação, destinados a uma outra cidade. 

Então, amigas e amigos diante desse quadro quando vocês pensam em partir, o que lhes vem à mente? Seria a emoção da mudança? A saudade dorida do que ficou para trás? Ou, a grosso modo, tudo o que acima foi aventado, ficaria em espera ou por acaso, um anjinho bom, alegre e saltitante desenharia em seu imaginário a expectativa do que ainda está por vir de uma maneira bem clara e amena?

Isso é o que torna ou o que faz a nossa partida em algo emocionante e ao mesmo tempo assustadora, a oportunidade em que nos faz crescer e nos desafia a sermos mais fortes e crentes, perseverantes e felizes. No fim das contas, não importa onde o amanhã nos levará. Se aqui ou ali ou acolá, para não sei onde, o Pai Maior sabe todas as coisas e creio, seremos todas FELIZES E REALIZADAS.
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CARINA BRATT nasceu em Curitiba/PR. Trabalha como secretária particular e assessora de imprensa do jornalista Aparecido Raimundo de Souza, em Vila Velha/ES. Escreve crônicas em uma coluna denominada "Danações de Carina" para um site de Portugal.

Fonte:
Texto enviado pela autora, 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Marcelo Spalding (O que faz um livro ter êxito em concursos literários)


Há cerca de dois anos dei uma entrevista para a Cínthia Dalla Valle sobre concursos literários, em função do texto que ela estava produzindo à época, Como escolher concursos literários. Encontrei a entrevista e achei pertinente publicá-la na íntegra.

Você acabou de ser finalista de um dos maiores concursos literários do país, o Jabuti, com o livro Clube do Rock. Em algum momento da escrita do seu livro, algo foi pensado ou planejado tendo em vista esse ou outros concursos?

A gente nunca pode escrever pensando em prêmio, reconhecimento, mas esses prêmios mais institucionais buscam no texto aquelas características que trabalhamos na academia, nas oficinas: subtexto, intensidade, concisão, polissemia. Além de estarem muito atentos a temas sociais contemporâneos, candentes e necessários. E acho que Clube do Rock tem tudo isso, além de um manejo com técnicas linguísticas como gêneros textuais variados, polifonia e troca de narrador que funcionam muito bem.

Você acredita que ter participado de concursos anteriores tenha ajudado a chegar neste resultado? Por quê?

Acredito que a gente vai amadurecendo a cada livro, este é um livro que sinto orgulho de ter escrito porque percebo um melhor uso das ferramentas técnicas que aprendi ao longo do tempo. Também acho importante que seja um livro que, mesmo enquadrado como juvenil pelos protagonistas e temática juvenil, possa ser lido e ser significante para leitores de todas as idades.

Como o fator prazo influencia no planejamento de uma obra? Qual foi o tempo para planejar e elaborar o seu livro?

Não se pode escrever um livro com pressa, embora seja importante estabelecer alguns prazos para que a ideia não perca fôlego, não se arraste demais. Este livro começamos a escrever em meados de 2019, e a primeira ideia era lançar na Feira do Livro daquele ano. Acabou atrasando o processo, até em função de ser um livro a quatro mãos, e apenas a partir de dezembro que deslanchou, ficando pronto em meados de 2020. Optamos por lançar mesmo com a pandemia, mas o reconhecimento tem chegado mesmo em 2021, com o Prêmio Jabuti, o Prêmio AGES e a visibilidade que o livro teve na Feira do Livro, ficando entre os 5 mais vendidos do estande da Editora Metamorfose.

Como você lida com a ansiedade e a vontade de ganhar ou de se ser finalista de um concurso?

No começo eu era muito inseguro em relação ao meu trabalho, talvez por começar muito novo, talvez por vaidade, então havia uma certa ânsia pelos concursos e admiração pelas pessoas que os conquistavam. Só que eu, com exceção do Prêmio AGES, patinava e não conseguia relevância nos concursos. Aí com o tempo relaxei quanto a isso, entendi melhor a dinâmica do meio literário e aos poucos, naturalmente, começaram a vir alguns prêmios surpreendentes, que vistos em conjunto me enchem de orgulho: finalista do Açorianos, finalista do Jabuti e Prêmio Livro do Ano AGES, ou seja, o livro mais votado entre todas as categorias.

Você acredita que ganhar ou ser finalista de um concurso literário pode mudar a vida de um escritor? Quais os benefícios deste reconhecimento, na sua opinião?

Um prêmio não muda objetivamente, pelo menos não a maioria dos prêmios (talvez ganhar um Jabuti ou um Prêmio SESC mude). Mas o conjunto de prêmio começa dar credibilidade para um autor, uma editora. E, claro, o prêmio motiva demais, então é natural que um reconhecimento desses te motive a continuar trabalhando, escrevendo, divulgando. O risco é ficar refém dos prêmios, frustrar-se por não figurar neles com determinado livro, pois não podemos perder de vista o quão difícil é para um livro se destacar entre as centenas que são produzidos todo ano.
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MARCELO SPALDING é de Porto Alegre/RS, jornalista, professor, escritor e editor, com 8 livros individuais publicados e mais de 120 livros editados. Professor de oficinas de Escrita Criativa presenciais e online desde 2007, fundou e dirige a Metamorfose Cursos. É pós-doutor em Escrita Criativa pela PUCRS, doutor e mestre em Letras pela UFRGS e formado em Jornalismo e Letras. Ex-professor universitário, atuou como professor de Escrita Criativa e Jornalismo na graduação e no PPG Letras da UniRitter, além de coordenar o Pós-graduação em Produção e Revisão Textual e a Editora UniRitter. É idealizador do Movimento Literatura Digital, editor dos sites minicontos.com.br e escritacriativa.com.br e autor do livro Escrita Criativa para Iniciantes, além de ter criado o primeiro jogo de tabuleiro de Escrita Criativa do Brasil.

Fontes:
Escrita Criativa
https://www.escritacriativa.com.br/?cid=5666&wd=Resenhas 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Clarisse Cristal (Clara: A pequena orquestra)


Do embate matinal com Manoel, o burgomestre local, até o cair da noite, muitas coisas tinham mudado. Das entregas dos frutos do mar, que Clara tinha encomendado com o burgomestre notou que os frutos do mar eram frescos e que Manoel não superfaturou os preços. Os jornais semanais, revistas e as correspondências, que eram entregues atrasados, foram entregues. Trabalhadores locais foram se oferecer para trabalhar e pessoas que passavam apressadas na frente da residência de Clara, pararam e davam bons dias e boas tardes. Clara Witmarsum, não soube e não tinha como saber que o seu marido, Rodolfo Bianchi Hoffmann, um jovem advogado, recebeu telefonemas e breves visitas em seu escritório, sobre assuntos amenos e boas-vindas. Agora ao cair da noite, depois de jantar, os poucos convidados estavam na ampla sala de estar.

No moderno aparelho de som, um chorinho tocava baixo e contrariando a vontade de Rodolfo, os empregados domésticos há muito foram dispensados por Clara. Estavam todos tomando licores e fumando os seus cigarros e o silêncio imperava, em um misto de curiosidade e apreensões. 

— Então, dona Clara! Soube que a senhora tem um tio controverso na velha Europa! É verdade? — perguntou o comerciante aduaneiro Genaro Manfredini. 

— Na verdade, um tio-avô materno! — corrigiu Rodolfo. 

Clara passou a contar parte da história da própria família materna. Eram, segundo ela, a família Witmarsum que estava envolvida na  longa disputa entre as regiões da Alsácia e Lorena, que remonta há uma milenar disputa sangrenta e como a família Witmarsum percorreu as regiões de fala germânicas na velha Europa. Então o núcleo familiar de Clara foi se estabelecer entre a Áustria e a Suíça. A pátria dos Witmarsum, por fim, se resumia à fala alemã. 

Tudo ia bem, até que o bisavô materno de Clara, Wagner Witmarsum, resolveu juntar os poucos bens em uma mala e partir para o sul e a partir daí percorrer toda a Europa latina. Foi ser ator de teatro mambembe, músico de rua, cozinheiro, artesão, marujo de várias embarcações e percorreu todo o Mediterrâneo, participou de revoltas, rebeliões e guerras civis no sul do continente europeu e por fim desapareceu por completo de vista. 

— Nossa! Que vida, dona Clara, que vida teve o seu parente! — disse Antônio Dias, depois que ouvir a história e continuou! — Como a senhora soube tudo isto? 

Clara levou um cálice e licor de goiaba até os lábios, manchado da peça de cristal com batom. 

— Parte da história soube por familiares, outra parte tive acesso às correspondências da minha bisavó com Wagner e as lacunas fiz uma pesquisa das aventuras e desventuras de Wagner. O meu parente aparece em diários, notas de jornais, memórias, cartazes das peças teatrais que ele participou, partituras de músicas que ele compôs, exposição de quadros que participou, opúsculos e alfarrábios que editou — disse Clara omitindo os escândalos e aventuras amorosas que Wagner Witmarsum teve ao longo dos anos, até o aventureiro morrer em algum país na costa africana do Mediterrâneo. 

— Daria um bom livro, dona Clara! — ponderou o guarda-livros Guilherme Conrad.

Todos os olhos se voltaram para a dona da casa naquela hora, Clara caminhou até a janela, estavam no terceiro andar, a dona da casa abriu a janela, sentiu a brisa outonal marítima e escutou as ondas quebrando na orla e se virou para os convidados e o marido. 

— Temos assuntos mais urgentes, senhores! — sentenciou a dona da casa e continuou — Vamos fundar uma cidade!

Um silêncio supra real tomou conta da sala de estar, depois sorrisos nervosos, pigarros de indignação, olhos arregalados e bocas abertas, pois homens de meia idade, com certo poder em pequenas cidades vizinhas, estavam em um pequeno balneário de veraneio. Todos ali sabiam que Clara Witmarsum não era uma mulher qualquer e que ela estava além deles e do tempo em que vivia.  

— Na verdade, vamos desmembrar esta praia da cidade! E cada um terá um papel fundamental, seremos como uma pequena orquestra tocando uma sinfonia inaudita, tocando nas sombras.    
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Clarisse Cristal, Lady Cristal como é mais conhecida, é natural de Balneário Camboriú, formada em Belas letras e pós-graduada e biblioteconomia. Exerce o ofício de bibliotecária é contista, crítica literária, poetisa, novelista e poetisa

Fontes:
Fragmento do livro de Clarisse Cristal. Diário de uma louca. Texto enviado pela autora.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing