segunda-feira, 26 de maio de 2025

Clarisse Cristal (Clara: A pequena orquestra)


Do embate matinal com Manoel, o burgomestre local, até o cair da noite, muitas coisas tinham mudado. Das entregas dos frutos do mar, que Clara tinha encomendado com o burgomestre notou que os frutos do mar eram frescos e que Manoel não superfaturou os preços. Os jornais semanais, revistas e as correspondências, que eram entregues atrasados, foram entregues. Trabalhadores locais foram se oferecer para trabalhar e pessoas que passavam apressadas na frente da residência de Clara, pararam e davam bons dias e boas tardes. Clara Witmarsum, não soube e não tinha como saber que o seu marido, Rodolfo Bianchi Hoffmann, um jovem advogado, recebeu telefonemas e breves visitas em seu escritório, sobre assuntos amenos e boas-vindas. Agora ao cair da noite, depois de jantar, os poucos convidados estavam na ampla sala de estar.

No moderno aparelho de som, um chorinho tocava baixo e contrariando a vontade de Rodolfo, os empregados domésticos há muito foram dispensados por Clara. Estavam todos tomando licores e fumando os seus cigarros e o silêncio imperava, em um misto de curiosidade e apreensões. 

— Então, dona Clara! Soube que a senhora tem um tio controverso na velha Europa! É verdade? — perguntou o comerciante aduaneiro Genaro Manfredini. 

— Na verdade, um tio-avô materno! — corrigiu Rodolfo. 

Clara passou a contar parte da história da própria família materna. Eram, segundo ela, a família Witmarsum que estava envolvida na  longa disputa entre as regiões da Alsácia e Lorena, que remonta há uma milenar disputa sangrenta e como a família Witmarsum percorreu as regiões de fala germânicas na velha Europa. Então o núcleo familiar de Clara foi se estabelecer entre a Áustria e a Suíça. A pátria dos Witmarsum, por fim, se resumia à fala alemã. 

Tudo ia bem, até que o bisavô materno de Clara, Wagner Witmarsum, resolveu juntar os poucos bens em uma mala e partir para o sul e a partir daí percorrer toda a Europa latina. Foi ser ator de teatro mambembe, músico de rua, cozinheiro, artesão, marujo de várias embarcações e percorreu todo o Mediterrâneo, participou de revoltas, rebeliões e guerras civis no sul do continente europeu e por fim desapareceu por completo de vista. 

— Nossa! Que vida, dona Clara, que vida teve o seu parente! — disse Antônio Dias, depois que ouvir a história e continuou! — Como a senhora soube tudo isto? 

Clara levou um cálice e licor de goiaba até os lábios, manchado da peça de cristal com batom. 

— Parte da história soube por familiares, outra parte tive acesso às correspondências da minha bisavó com Wagner e as lacunas fiz uma pesquisa das aventuras e desventuras de Wagner. O meu parente aparece em diários, notas de jornais, memórias, cartazes das peças teatrais que ele participou, partituras de músicas que ele compôs, exposição de quadros que participou, opúsculos e alfarrábios que editou — disse Clara omitindo os escândalos e aventuras amorosas que Wagner Witmarsum teve ao longo dos anos, até o aventureiro morrer em algum país na costa africana do Mediterrâneo. 

— Daria um bom livro, dona Clara! — ponderou o guarda-livros Guilherme Conrad.

Todos os olhos se voltaram para a dona da casa naquela hora, Clara caminhou até a janela, estavam no terceiro andar, a dona da casa abriu a janela, sentiu a brisa outonal marítima e escutou as ondas quebrando na orla e se virou para os convidados e o marido. 

— Temos assuntos mais urgentes, senhores! — sentenciou a dona da casa e continuou — Vamos fundar uma cidade!

Um silêncio supra real tomou conta da sala de estar, depois sorrisos nervosos, pigarros de indignação, olhos arregalados e bocas abertas, pois homens de meia idade, com certo poder em pequenas cidades vizinhas, estavam em um pequeno balneário de veraneio. Todos ali sabiam que Clara Witmarsum não era uma mulher qualquer e que ela estava além deles e do tempo em que vivia.  

— Na verdade, vamos desmembrar esta praia da cidade! E cada um terá um papel fundamental, seremos como uma pequena orquestra tocando uma sinfonia inaudita, tocando nas sombras.    
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Clarisse Cristal, Lady Cristal como é mais conhecida, é natural de Balneário Camboriú, formada em Belas letras e pós-graduada e biblioteconomia. Exerce o ofício de bibliotecária é contista, crítica literária, poetisa, novelista e poetisa

Fontes:
Fragmento do livro de Clarisse Cristal. Diário de uma louca. Texto enviado pela autora.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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