Há vinte e cinco anos que Alcebíades vinha sempre na mesma batida. Chegava em casa, dizia pra mulher:
— Estou exausto.
Ela servia o jantar, tentava com toda habilidade:
— Vamos ao cinema, meu bem? Ele respondia com voz melancólica:
— Deixa pra manhã, meu amor. Hoje eu trouxe serviço pra fazer em casa.
Era a rotina infalível. Trabalhava o dia todo, chegava morto de cansado, trancava-se no escritório e trabalhava até de madrugada. Há vinte anos que Matilde não punha o pé num cinema, a última fita que viu foi com Shirley Temple, no tempo que ainda era menina. Quando se falava em cinema, Matilde dava os maiores vexames, relembrando Jean Harlow, Mae West, Carole Lombard, Greta Garbo, Alice Faye, Myrna Loy.
— Você está mais por fora que rótulo de garrafa — dizia um primo seu que trabalhava na tevê.
Matilde era paciente e cultivava a sua paciência com amor e carinho. Passava as noites sem dormir, bolando uma fórmula de afastar Alcebíades do trabalho. Pelo menos do trabalho em casa. Ele era compreensivo, tinha a maior boa vontade com a mulher, mas o tempo era curto demais, nunca dava pra terminar o crescente acúmulo de serviço. Despejava a pasta em cima da mesa, folheava aquela papelada toda, mergulhava no mundo dos cálculos, somava, multiplicava, dividia, subtraía, escrevia cartas, deixava tudo arrumadinho, de manhã cedo levava tudo pronto, pra voltar logo mais à noite com nova carga.
— Estou exausto. Trouxe serviço pra fazer em casa.
Matilde teve uma ideia, há cinco meses vinha martelando na cabeça de Alcebíades:
— Você precisa treinar um pouco de boxe.
— Na minha idade?
— Cinquenta anos é a metade de uma vida. Você passou a metade metido entre papéis. Agora precisa se dedicar um pouco ao esporte.
A doçura com que Matilde falava, a ingenuidade com que argumentava, impediam que Alcebíades a chamasse de criança. Mas era justamente isso que ela era: uma criança de quase quarenta anos.
— Você não percebe, meu bem, que não tenho mais resistência para essas coisas?
— Faça um esforço, meu amor. Será para o bem de nós dois.
Alcebíades acabou se convencendo. Meteu na cuca que passou a vida inteira sem dar muita atenção a Matilde, não custava lhe satisfazer esse desejo. Entrou para uma academia de boxe, começou o seu treininho:
— Me acorda cedo, amanhã.
— Por quê?
— É uma surpresa.
Passou dois meses treinando, pulando corda, dando murros em saco, correndo a pé, tomando ducha.
— Vamos ao cinema hoje, meu bem?
— Hoje não posso, preciso levantar cedo amanhã.
— Mas que mistério é esse, Alcebíades?
— Já lhe disse que é uma surpresa. Você vai gostar.
Uma noite, Alcebíades chegou em casa com outra disposição. Veio acompanhado de um senhor alto e forte, apresentou-o à mulher. Pediu um jantar com muita salada e vitamina. De sobremesa, só frutas. Depois foram para o living, tomaram cafezinho, conversaram algum tempo, o assunto não saiu de Jack Dempsey, Joe Louis e Cassius Clay. Finalmente, veio a surpresa:
— Querida, agora sou boxeador profissional. Matilde sorriu, vitoriosa:
— Ah, quer dizer que este senhor é o seu empresário?
— Não, querida, este é o meu treinador.
— Que ótimo, então vamos todos ao cinema?
— Hoje não posso, querida.
Meteram-se dentro do quarto e começaram a se esmurrar. Alcebíades não havia perdido o hábito de trazer serviço pra casa.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *
Leon Eliachar nasceu no Cairo/Egito, em 1922 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1987. Jornalista de humor e escritor brasileiro. Veio para o Brasil muito pequeno e viveu quase toda a sua vida no Rio de Janeiro. Jornalista desde os 19 anos de idade, Trabalhou em diversos jornais e revistas, entre elas, “Manchete”, “Cruzeiro”, “Fatos & Fotos”, “Cigarra”, “Revista da TV”, “Fon-Fon”, “Pif-Paf”, “Diário de Notícia” e “Ùltima Hora”, onde mantinha uma página com o título de “Penúltima Hora”. Justificava o nome da página com a legenda "um jornal feito na véspera". Foi colaborador dos roteiros de dois filmes carnavalescos, e autor de programas de rádio e secretário da revista Manchete. Também foi colunista da revista O Cruzeiro. Em 1956 foi laureado com o primeiro prêmio na IX Exposição Internacional de Humorismo realizada na Europa, em Bordighera, na Itália. Segundo notícias da época, ele foi assassinado a mando de um rico fazendeiro paranaense com cuja esposa o autor vinha mantendo um romance. Leon morreu com um tiro no rosto, em seu apartamento. Escreveu O Homem ao Quadrado (1960); O Homem ao Cubo (1963); A Mulher em Flagrante (1965); O Homem ao Zero (1967); 10 em Humor (1968, em conjunto com Millôr Fernandes, Stanislaw Ponte Preta, Fortuna, Ziraldo, Jaguar, Claudius, Zélio, Henfil e Vagn) e O Homem ao Meio (1979)
Fontes:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. Publicado originalmente em 1965.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
Nenhum comentário:
Postar um comentário