É um engano supor que o povo nosso só tenha superstições com sapatos virados, cantos de coruja; e que só haja na sua alma crendices em feiticeiros, em cartomantes, em rezadores, etc. Ele tem, além dessas superstições todas, uma outra de natureza singular, partilhada até, como as demais, por pessoas de certo avanço mental.
Dizia-me isto, há dias, um meu antigo companheiro de colégio que se fizera engenheiro e andava por estes Brasis todos, vegetando em pequenos empregos subalternos de estudos e construção de estradas de ferro e até aceitara simples trabalhos de agrimensor. Em encontro anterior, ele me dissera: “Antes eu tivesse ficado nos correios, pois ganharia agora mais ou menos aquilo que tenho ganho com o ‘canudo’, e sem canseiras nem maçadas”. Quando se formou já era amanuense postal.
Tendo ele, daquela vez, me falado em superstição nova do nosso povo que observara, não pude conter o meu espanto e perguntei-lhe com pressa:
– Qual é?
– Não sabe?
– Não.
– Pois é a do doutor.
– Como?
– O doutor para a nossa gente não é um profissional desta ou daquela especialidade. É um ser superior, semidivino, de construtora fora do comum, cujo saber não se limita a este ou aquele campo das cogitações intelectuais da humanidade, e cuja autoridade só é valiosa neste ou naquele mister. É omnisciente, senão infalível. É só ver como a gente do mar, do Lloyd, por exemplo, tem em grande conta a competência especial dos seus diretores – doutor. Todos eles são tão marítimos como um nosso qualquer ministro da Marinha nouveau gens*, entretanto, os lobos do mar de todas as categorias não se animam a discutir a capacidade de seu chefe. É doutor e basta, mesmo que seja em filosofia e letras, coisas muito parecidas com comércio e navegação. Há o caso, que tu deves conhecer, daquele matuto que se admirou de ver que o doutor por ele pajeado, não sabia abrir uma porteira do caminho. Lembras-te? Iam a cavalo...
– Pois não! Que doutor é esse que não sabe abrir porteira? Não foi essa a reflexão do caboclo?
– Foi. Comigo, aconteceu-me uma muito boa.
– Qual foi?
– Andava eu perdido numas brenhas com uma turma de exploração. O lugar não era mau e até ali não houvera moléstias de vulto. O pessoal dava-se bem comigo e eu bem com ele. Improvisamos uma aldeia de ranchos e barracas, pois o povoado mais próximo ficava distante umas quatro léguas. Morava eu num rancho de palha com uma espécie de capataz que me era afeiçoado. Dormia cedo e erguia-me cedo, muito de acordo com os preceitos do falecido Bom Homem Ricardo. Uma noite – não devia passar muito das dez – vieram bater-me à porta.
“Quem é”? perguntei.
“Somos nós”.
Reconheci a voz dos meus trabalhadores, saltei da rede, acendi o candeeiro e abri a porta.
“Que há”?
“Seu doutô! É u Feliço qui tá cô us óios arrivirados pra riba. Acode que vai morrê... ”
Contaram-me então todo o caso. O Felício, um trabalhador da turma, tinha tido um ataque, ou acesso, uma súbita moléstia qualquer e eles vinham pedir-me que acudisse o companheiro.
“Mas”, disse eu, “não sou médico, meus filhos. Não sei receitar”.
“Quá, seu doutôl Quá! Quem é doutô sabe um pouco de tudo”.
Quis explicar a diferença que existia entre um engenheiro e um médico. Os caipiras, porém não queriam acreditar. Da mansidão primeira, foram se exaltando, até que um disse a outro um tanto baixo, mas eu ouvi:
“A minha vontade é aprontá esse marvado! Ele u qui não qué é i. Deixa ele!”
Ouvindo isto, não tive dúvidas. Fui até ao barracão do Felício, fingi que lhe tomava o pulso, pois nem isso sabia, determinei que lhe dessem um purgante de óleo e...
– Eficaz medicina! refleti.
– ...depois do efeito, umas cápsulas de quinino que sempre tinha comigo.
– O homem curou-se?
– Curou-se.
– Ainda bem que o povo tem razão.
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* Nouveau gens = pessoas recém chegadas
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AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO nasceu em 1881, na cidade do Rio de Janeiro. Era negro e de família pobre. Sua mãe era professora primária e morreu de tuberculose quando Lima Barreto tinha 6 anos. Seu pai era tipógrafo, porém sofria de doença mental. Mas tinha um padrinho com posses - o Visconde de Ouro Preto (1836-1912) -, o que permitiu que o escritor estudasse no Colégio Pedro II. Depois, ingressou na Escola Politécnica, mas não concluiu o curso de Engenharia, pois precisava trabalhar. Em 1903, fez concurso e foi aprovado para atuar junto à Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra. Assim, concomitantemente ao trabalho como funcionário público, escrevia os seus textos literários. Em 1905, trabalhou como jornalista no Correio da Manhã. Lançou, em 1907, a revista Floreal. Em 1909, o seu primeiro romance foi editado em Portugal: Recordações do escrivão Isaías Caminha. O romance Triste fim de Policarpo Quaresma foi publicado, pela primeira vez, em 1911, no Jornal do Comércio, em forma de folhetim. Em 1914, Lima Barreto foi internado em um hospital psiquiátrico pela primeira vez. Se candidatou três vezes a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, recebeu dela, apenas uma menção honrosa em 1921. Morreu em 1922.
Fontes:
Publicado na Revista Careta, Rio de Janeiro, em 06 de março de 1920. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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