Para falar verdade, a ruazinha é bem insignificante. Mas é simpática. Simpática, comprida, estreitíssima. É comprida e vai terminar nos fundos de uma igreja muito velha. O que, aliás, não tem importância, porque, desgraçadamente, eu não sei mais entrar em igrejas. Não sei entrar nas igrejas nem pela porta grandiosa, nem pela porta dos fundos. Por isso, eu entro, mas é no estabelecimento Élite, muito embora o meu sangue seja bem ordinário e provenha de um cabo da polícia pernambucana que se casou de supetão com a filha de uma quitandeira baiana muito gorda. O estabelecimento Élite é campeão no gênero, põe saltinhos em cinco minutos e meias-solas garantidas num simples quarto de hora.
O freguês entra, esconde só as pernas no cubículo, dá o sapato pra o italiano proprietário, o qual distribui o serviço pra os brasileiros sapateiros. Eu agora estou preso em um dos cubículos, e fico espiando o movimento, desde que não tenho um só jornal vespertino cheio de grandes títulos onde possa conhecer a mais recente cena de sangue de qualquer subúrbio abandonado.
A meu lado, um homem de imensos bigodes pitorescos recebe o sapatão de cano alto, acha que o serviço não prestou, paga só quatro mil e quinhentos, vai embora pisando duro. Estamos em março (quer dizer que, até fins de junho, não precisarei voltar aqui), pergunto que horas são, me respondem que são duas horas e quinze.
Os sapateiros brasileiros suam sem parar, o ambiente continua abafado, cheirando a couro, a suor, a tinta. Todos os três cheiros são fortes e nenhum deles me é agradável.
Presto atenção e concluo que o dono do estabelecimento usa camisa preta. Sinto ganas de dar um viva à Abissínia (só para anarquizar a geografia) mas tenho medo de ser posto na rua descalço e de meia furada.
Entra uma radiosa mocinha, que põe o embrulho em cima do balcão e dá instruções ao homem. Um dos artífices conhece a mocinha e diz:
— Como vai, sérrgipana? (abre o e e carrega no r).
Ela sorri, olha pra mim não sei por que, me acha simpático. Eu lhe pergunto:
— Conhece o Tobias Barreto?
A mocinha fala:
— Em que time joga esse bicho?
Dou uma bruta gargalhada, fico sério de uma hora pra outra, todos pensam que eu sou louco, mas eu não sou louco não. O que eu sou é um homem triste, desesperado, desesperadíssimo, porque minha mulher geme com pneumonia, meu garoto sofre com sarampo, meu sapato está cheio de buracos. Eu sou um homem desesperado, desesperadíssimo, que quer sair do cubículo, que está doente de amor pela mulher pneumônica, pelo filho sarampento, que não aguenta mais o calor, nem o estabelecimento Élite, nem a rua comprida e estreitíssima.
A sergipana foi embora, não sei nada do que se passou, todos estão agora me olhando, o italiano proprietário até me vem ajudar, mas eu não aceito o favor e enfio sozinho a botina consertada. Não digo até logo, piso a rua comprida.
A rua é comprida, vai dar no fundo de uma igreja muito velha, mas isso não tem importância porque eu não sei mais entrar nas igrejas. Nem pela porta gloriosa, nem pela porta dos fundos.
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NEWTON SAMPAIO natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938, foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras: Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.
Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing
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