Não o daqui, este genérico, mas o de lá, o de marca.
Não passar, como passo, horas na frente da tela do computador, mas diante do écrã.
Conseguir dizer “queria ter consigo” sem que me olhassem como se estivesse a falar grego (significa “quero estar com você”, em tradução livre para o português de cá).
E, claro, abusar da segunda pessoa. Não só do pronome, como fazemos aqui, mas também do verbo. Nada de “tu vai”, “tu viu”, “tu foi”: vais, viste, foste – e tudo isto chiando – ops, a chiar – feito uma panela de pressão no cio, igual mineiro depoix de doix diax de fériax no Rio.
Ter a chance de mandar e desmandar com dois imperativos, o afirmativo e o negativo:
– Vai-te embora! Não, não te vás.
Aqui são iguais:
– Vá embora. Vá embora não.
E a gente nem usa o imperativo, porque prefere pedir, e com jeitinho.
Queria poder aplicar na vida real aquelas conjugações todas que a gente é obrigado a aprender para aplicar só na prova.
Usar “a gente” no sentido de “os outros”, não de “nós”. E usar “nós” de vez em quando, em vez de “a gente”.
Ah, como eu queria uma chávena, em vez de uma xícara. De chá, de preferência, porque chávena de chá é o que o há de mais chique.
Atender o telefone e dizer “Estou”, como se fosse possível atendê-lo não estando.
Valer-me dos pronomes oblíquos e usá-los em lugar de usar eles.
Falar “seu” no sentido de “dele”. E quando alguém disser “Ele levou seu cão a passear” não ter dúvidas de que ele tenha levado o cachorro dele, não o Tião – que, de vira-lata, seria promovido a rafeiro.
E dizer, no acto, que estou convicto que o facto, de prompto, não causará impacto – assim, cheio de soluços, de estalidos na fala.
E ser arquitecto, talvez escriptor (acho que essa eles nem usam mais, mas eu usaria, porque, como eles, me negaria a adoptar o Accordo Ortographico, e ressuscitaria tranqüilamente o trema e o acento grave sòmente por pirraça, para provar que a língua é minha e ninguém tasca).
A propósito, usaria tasca como taberna, jamais como conjugação do verbo tascar, que no português de lá acho que nem existe.
Complicado seria misturar os idiomas e dizer que a gira é gira, que tinha uma bicha na bicha, que o cacete era do cacete. Enfim, essas confusões de todo bilíngue. Ops, bilíngüe (e dá-lhe brigar com o corrector do telemóvel, que teria que ser actualizado para o português que falávamos aqui cem anos atrás).
Queria muito partilhar este texto num sítio, em vez de compartilhá-lo num site.
E junto, postar um enlace, não um link – bastando para tanto acionar a tecla do meu rato. E me acostumar ao facto de que, em português, mouse se diz rato.
Se calhar, se me apetecer, um dia hei-de escrever assim (inclusive com esses hÍfens, que são os únicos cuja regra não tem excepção).
Estás a perceber por que tem horas – perdão, por que há horas – em que dá vontade de falar português?
Mas bate uma lombeira, um banzo, uma leseira, um quebranto, que a vontade logo passa, e eu volto a falar em brasileiro, que tem outro gingado, outro molejo, outro encanto.
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Arquiteto mineiro de Belo Horizonte, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique Nenhum livro publicado.
Fontes:
Blog do autor. 22.06.2019
https://tianeysa.wordpress.com/2019/06/22/portugues-de-grife/
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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