domingo, 18 de maio de 2025

Contos das Mil e Uma Noites (Os amores de Zain Al-Mauassif)


Conta-se, ó afortunado rei, que havia certa vez, no antigo dos tempos, um adolescente formoso chamado Anis. Era o mais rico, o mais generoso, o mais delicado e o mais agradável jovem de seu tempo. Amava tudo que era digno de ser amado: as mulheres, os amigos, a poesia, a música, os perfumes, uma boa risada - e vivia no auge da felicidade. Certa tarde, enquanto dormia sob uma árvore em seu jardim, sonhou que estava brincando com quatro pássaros e uma pomba, quando um corvo se precipitou sobre a pomba, arrebatou-a e a levou. Anis acordou impressionado com o sonho e saiu a procurar quem lho pudesse interpretar. No seu caminho, passou por uma linda residência onde uma voz feminina cantava com acentos melancólicos estes versos: 

Ouço o coração dos enamorados 
cantar livremente na madrugada. 
Mas meu coração não canta 
por causa de um cabritinho montês, 
mais ligeiro que um gamo. 
Tenho-te, presente ou ausente. 
E teu nome nunca deixa meus lábios. 
Durará ainda muito teu afastamento? 
o amor, de que me penetraste, 
tornou-se uma tortura além das minhas forças. 
Até quando continuarias a fugir de mim? 
Se teu propósito era matar-me de saudade, 
sente-te feliz, pois teu desejo se cumpriu. 

Levado pelo ímpeto de conhecer a cantora, Anis olhou pela porta semi-aberta e viu um jardim cheio de rosas, jasmins, violetas, narcisos onde gorjeavam mil pássaros. Entrou e começou a andar no jardim e deparou com uma jovem sentada sobre um tapete com quatro companheiras. Era tão bela que podia acender fogo na pedra mais dura. 

Anis inclinou-se diante dela e levou a mão ao coração, lábios e fronte naquela saudação árabe pela qual oferecemos ao interlocutor nossos sentimentos, nossos cumprimentos e nossos pensamentos. Mas a moça gritou: “Como ousaste penetrar neste lugar reservado, ó jovem impertinente? 

Anis respondeu: “Ó minha ama, a culpa não é minha. É tua e deste jardim. Pela porta entreaberta, vi as flores e os pássaros homenagearem a rainha da beleza, e minha alma não resistiu à tentação de vir juntar sua homenagem à das flores e dos pássaros.”

A jovem riu e perguntou: “Como te chamas?”

- Anis, teu escravo.

Ela exclamou: “Anis, agradas-me. Vem sentar-te a meu lado.”

Depois, perguntou-lhe: “Sabes jogar xadrez?” 

“Sim”, respondeu Anis.

O jogo começou. Mas Anis dava mais atenção à beleza da adversária que aos peões, e acabou por exclamar: “Como posso ganhar contra esses dedos?” 

E perdeu um primeiro e um segundo jogos.

- Vamos apostar cem dinares por jogo, disse a moça. Isso te obrigará a te concentrares.

- Com prazer, disse Anis, mas continuou a perder.

- Vamos apostar mil dinares, disse a moça.

- Aceito, disse Anis, mas continuou a perder.

Depois, apostou sua loja, sua casa, seu jardim, seus escravos até que nada lhe sobrasse.

- Anis, meu amigo, és um louco, disse a moça. Mas para que não lamentes ter vindo aqui, devolvo-te tudo que perdeste. Agora, levanta-te e retoma teu caminho em paz.

- Por Alá, minha rainha, não lamento o que perdi. Se me pedisses minha alma, oferecer-te-ia com prazer. Mas deixarás que eu parta sem satisfazer meu desejo?

- Posso satisfazer teu desejo; mas, primeiro, deves trazer-me quatro odres de almíscar puro, quatro onças de âmbar cinzento, quatro mil peças de brocado de ouro e quatro mulas arreadas.

- Pela minha vida, terás tudo isso.

- Como? Não possuis mais nada.

- Tenho amigos. Eles me socorrerão.

- Não precisas apelar para eles, pois com certeza te decepcionarão. Eu te devolvo tudo que perdeste se fores mais hábil no outro jogo de xadrez do que neste.

E Zain Al-Mauassif levou Anis até a alcova. Lá Anis tomou a adolescente nos braços e jogou com ela um jogo de xadrez, seguindo todas as regras com refinamento e perícia. Depois, iniciou e ganhou quinze jogos seguidos, comportando-se o rei em todos eles com a mesma valentia e estando sempre na ofensiva, até que a moça reconheceu ter sido derrotada e exclamou, já sem fôlego: “Ganhaste, ó pai das lanças. Dize ao rei que descanse.”

Depois, disse: “Anis, seduziste-me. Por Alá, não poderei mais viver sem ti.” 

E passaram o resto do dia e toda a noite juntos, beijando-se e se amando. E continuaram assim durante um mês inteiro, só parando para comer. 

Zain AlMauassif, que era casada, recebeu então uma carta do marido, anunciando sua volta. 

“Possa o demônio quebrar-lhe os ossos,” exclamou. “Que devemos fazer, Anis?”

- Os estratagemas e os ardis pertencem mais ao campo feminino que ao masculino.

Ela refletiu uma hora, depois disse: “Meu marido é muito ciumento e astuto. O único meio que vejo é que tu te apresentes a ele como mercador de perfumes e especiarias. Estuda bem este negócio. Depois, procura-o na sua loja e faze amizade com ele.”

Quando o bom homem chegou, achou a mulher toda amarela, da cabeça ao pés. Ignorando que ela se tinha esfregado com açafrão, perguntou-lhe, apavorado, se estava doente. Respondeu: “Estou amarela, não porque estou doente, mas por causa de minhas preocupações a teu respeito durante tua ausência. Em nome da compaixão, não viajes mais sem tomar um companheiro que te possa defender e cuidar de ti.” 

O homem agradeceu esta manifestação de afeto, beijou a mulher com amor redobrado e foi para sua loja, pois era um grande mercador judeu. A mulher também era judia. Anis, que havia estudado seu novo comércio, estava esperando por ele. Para ganhar-lhe a boa vontade imediatamente, ofereceu-lhe perfumes e especiarias por preços bastante inferiores aos do mercado. 

O marido de Zain Al-Mauassif, que tinha a alma endurecida, ficou tão satisfeito que os dois se tornaram amigos e depois sócios, da noite para o dia. E o homem levou Anis para jantar com ele em sua casa, pois sendo destituído de vergonha e não mantêm seus haréns protegidos.

Quando o marido quis apresentar a mulher a Anis, ela se revoltou: “Por Moisés, como ousas introduzir estranhos na intimidade de teu lar? Devo renunciar à virtude das mulheres porque achaste um associado? Prefiro cortar meu corpo em pedaços.”

O judeu regozijou-se no seu coração por ter uma mulher tão casta e reservada; mas disse em alta voz: “Desde quando adquirimos os modos dos muçulmanos de esconder nossas mulheres? Somos filhos de Moisés.” 

E ele apresentou Zain AlMauassif a Anis. Ambos fingiram que não se conheciam e nem sequer olharam um para o outro durante todo o tempo da visita.

O marido reparou, todavia, numa coincidência estranha. Tinha ele em casa uma ave que se habituara a brincar com ele e a pousar em seu ombro. Quando ele voltou da viagem, não o reconheceu. Mas, quando Anis chegou, acorreu a ele com gritos de alegria.

Reparou também que a mulher, que sempre tivera um sono tranquilo, tinha agora sonhos que a agitavam a noite toda. 

Convidou Anis outra vez para sua casa e, antes de mandar servir o jantar, alegou que recebera uma convocação urgente do uáli. 

“Irei vê-lo porque ë meu interesse,” disse à mulher e a Anis; “mas será coisa rápida. Voltarei logo para o jantar.”

Saiu, mas em vez de ir à casa do uáli, deu uma volta e subiu secretamente ao sótão de onde podia observar o que se passava na sala de visitas. E viu os dois se jogarem nos braços um do outro e trocarem beijos de paixão incontida. O homem escondeu sua indignação e voltou para casa, sorridente. Jantaram como se nada tivesse acontecido. 

No dia seguinte, disse à mulher que recebera um relatório de um de seus agentes que o obrigava a viajar de novo. A mulher camuflou sua alegria e começou a gemer e reclamar: “Deixar-me-ás morrer de solidão, amado marido? Pobre Zain Al-Mauassif, nunca poderás conservar teu marido junto de ti?”

Mas o marido retrucou: “Não te aflijas, querida. Decidi levar-te comigo desta vez e não mais te expor aos tormentos da saudade.” 

E partiram na hora, eles e as quatro aias de Zain Al-Mauassif, Hubub, Sukub, Kutub e Rukub.

Após viajarem um mês, o judeu mandou que parassem e montassem as tendas na vizinhança de uma cidade que ele conhecia. Aí, despiu a mulher de suas ricas vestes, pegou numa vara e disse-lhe: “Vil e hipócrita rameira, só esta vara será capaz de purificar-te. Chama Anis em teu socorro.” 

E não obstante os gritos e os protestos, fustigou-a sem piedade.

Depois, foi á cidade e trouxe um ferrador a quem pediu: “Põe ferraduras nas mãos e nos pés desta escrava.” 

O ferrador estupefato, replicou: “Por Alá, é a primeira vez que sou chamado a ferrar seres humanos. Que fez esta jovem para merecer tal castigo?”

- Pelo Pentateuco! Este é o castigo que nós, judeus, impomos às escravas de quem temos queixas.

Mas o ferrador, extasiado diante da beleza de Zain Al-Mauassif, olhou o judeu com desprezo e cuspiu-lhe na face. Em vez de tocar na rapariga, dirigiu estes versos ao seu marido:

Ó cavalgadura imunda, enfiaria mil pregos na tua pele
antes de torturar pés tão delicados,
feitos para serem domados com anéis de ouro.
Se for dado a um pobre senador julgar das coisas,
tu deverias ter ferraduras, e ela, asas.

E o ferrador foi informar o uáli do que estava acontecendo à mais bela das mulheres. O uáli mandou os guardas levarem à sua presença do judeu, a escrava e os outros componentes da caravana.

Quando se apresentaram, o uáli maravilhou-se com a beleza de Zain Al-Mauassif e perguntou-lhe: “Como te chamas, minha filha?”

“Meu nome é Zain Al-Mauassif, tua escrava. Este judeu raptou-me de meu pai e mãe, violentou-me e quis obrigar-me a abjurar a santa fé dos muçulmanos, meus antepassados. Todos os dias tortura-me e tenta superar a minha insistência em permanecer muçulmana. Minhas aias confirmarão o que digo. E o ferrador poderá descrever o bárbaro tratamento a que este judeu queria submeter-me.”

O judeu gritou: “Pelas vidas de Jacó, Moisés e Aarão, esta mulher é judia e é minha legítima esposa.” 

Mas o uáli perguntou às aias: “Qual dos dois está dizendo a verdade?” 

Hubub, Kutub, Sukub e Rukub responderam: “Nossa ama.”

O uáli mandou então aplicar no judeu trezentas chicotadas e ameaçou cortar-lhe as mãos e os pés se não confessasse. Para escapar a tal calamidade, o homem disse: “Pelos comos sagrados de Moisés, confesso que esta mulher não é minha esposa e que a raptei de sua família.”

Ordenou então o uáli “Na base da confissão do réu, condeno-o à prisão perpétua. Assim sejam punidos os homens sem crença.”

Zain Al-Mauassif beijou a mão do uáli, mandou levantar o acampamento e iniciar a marcha da volta.

Ao crepúsculo do terceiro dia, a caravana chegou a um mosteiro cristão, habitado por quarenta monges e seu patriarca Danis. O patriarca convidou a caravana a passar a noite no mosteiro e foi tomado de uma louca paixão por Zain Al-Mauassif. Mandou sucessivamente os quarenta monges pleitearem sua causa junto à moça. Mas foram todos repelidos. 

Então, o patriarca, recordando o provérbio de que “para coçarmos a pele não há como as próprias unhas,” procurou pessoalmente Zain Al-Mauassif, que o rejeitou e humilhou, zombando de sua barba e de sua idade avançada. 

Depois, Zain Al-Mauassif disse a suas companheiras:

“Vamos fugir deste mosteiro antes de sermos violentadas e maculadas por contatos tão aviltantes.” 

Quando, na manhã seguinte, os monges e seu patriarca se deram conta da fuga de Zain Al-Mauassif, reuniram-se na igreja para cantar como asnos, conforme seu costume. Mas em vez de cantarem os hinos habituais, improvisaram versos como estes:

Senhor que criaste o fogo da paixão e 
despertaste em mim este ardente desejo, 
devolve-me o seu corpo saboroso,
ó Senhor que puseste amor na cama de teus filhos.

Depois, decidiram pintar uma imagem da fugitiva e colocá-la nos seus altares.

Quanto a Zain Al-Mauassif, chegou em segurança a sua terra e reencontrou seu amado, que tinha quase enlouquecido de saudade e preocupação diante do mistério de sua desaparição. Curou-o com uma noite de excessiva paixão. 

No dia seguinte, mandaram vir o cádi e as testemunhas e casaram-se legalmente e viveram na felicidade até o fim de seus dias. 

Glorificado seja Aquele que distribui a beleza e os prazeres de acordo com sua justiça. E bênçãos sobre Maomé, o maior dos profetas, que reservou o Paraíso a seus crentes!
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As Mil e Uma Noites é uma coleção de histórias e contos populares originárias do Médio Oriente e do sul da Ásia e compiladas em língua árabe a partir do século IX. As histórias que compõem as Mil e uma noites têm várias origens, incluindo o folclore indiano, persa e árabe. Não existe versão definitiva da obra, uma vez que os antigos manuscritos árabes diferem no número e no conjunto de contos. O Imperador brasileiro Dom Pedro II foi o primeiro a traduzir diretamente do árabe para o português partes da obra mais conhecida da literatura árabe, e o fez com um rigor raro para a época. Já em idade avançada, aos 62 anos, ele começou o processo, o último registro de texto traduzido é de novembro de 1891, um mês antes de sua morte.

O que é invariável nas distintas versões é que os contos estão organizados como série de histórias em cadeia narrados por Xerazade, esposa do rei Xariar. Este rei, louco por haver sido traído por sua primeira esposa, desposa uma noiva diferente todas as noites, mandando matá-las na manhã seguinte. Xerazade consegue escapar a esse destino contando histórias maravilhosas sobre diversos temas que captam a curiosidade do rei. Ao amanhecer, Xerazade interrompe cada conto para continuá-lo na noite seguinte, o que a mantém viva ao longo de várias noites - as mil e uma do título - ao fim das quais o rei já se arrependeu de seu comportamento e desistiu de executá-la.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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