quarta-feira, 21 de maio de 2025

Aparecido Raimundo de Souza (Os cegos e o eterno caos urbano)


DOIS AMIGOS completamente cegos Zeca e Toninho, chegam à beira de uma avenida movimentada no centro de São Paulo.

Zeca:  — Beleza, Toninho. Galgamos a parte mais crítica da nossa missão. 

Toninho: — Que missão? 

Zeca: — Atravessar essa avenida sem virar mais um número na estatística! 

Toninho: — Perfeito. Como vamos fazer isso da próxima vez? 

Zeca: — Eu pensei num plano infalível. 

Toninho: — Tomara que seja melhor que aquele do elevador. 

Zeca: —  O elevador não foi minha culpa. Quem mandou colocarem dois botões iguais no painel que acessam os andares? 

Toninho: — Certo, qual o plano aqui? 

Zeca: — Vamos ouvir as buzinas! 

Toninho: — E como isso nos ajudará? 

Zeca: — Se ouvirmos buzinas muito perto, ficamos parados. Se estiverem mais longe, aí sim, andamos. 

Toninho: — Isso não é um plano. Isso é um pedido de atropelamento em tempo real.

 Zeca: — Confia em mim, Toninho! Eu sou um mestre da leitura sonora urbana!

Nesse momento, ao redor deles, sons de buzinas ensurdecedoras.

Toninho: — Zeca, eu acho que ouvi uma nova leva de trombetas sem noção. Isso foi perto ou longe? 

Zeca: — Perto demais. 

Toninho: — E agora? 

Zeca: — Agora é fé em Deus e passo firme! Em frente...

Ambos avançam com cautela, mas no meio do caminho…

Toninho: — Espera! Tem uma mão no meu ombro! 

Zeca: — O que, Toninho? 

Toninho: — Alguém me pegou pela mão! 

Zeca: — Então pergunta se é um assaltante ou um anjo da guarda! 

Ao ouvir essas palavras, o estranho tenta ser gentil: — Pelo amor de Deus, vocês estão atravessando na frente do ônibus! 

Toninho: — Ah, então é um cidadão preocupado...

Zeca: — Avisa para ele que estamos confiantes. 

Voz Estranha: — Que mal pergunte: confiantes no quê?! 

Zeca: — Na lei da sobrevivência urbana!

O desconhecido arrasta os dois com a maior cautela para o outro lado da calçada.

Toninho: — Ufa, chegamos vivos. 

Zeca: — Vivos, sim… mas cá entre nós, humilhados. 

Toninho: — Esquece. Vamos em frente...

Toninho e Zeca agora em segurança no outro oposto, enfrentam um novo desafio. De repente, uma tempestade de ventos inesperados sopra a todo vapor.

Zeca: — Beleza, sobrevivemos à primeira tentativa. 

Toninho: —  Sim, Zeca. Mas agora temos um problema novo. 

Zeca: — Pelo amor de Deus, qual? 

Toninho: — Tem um cachorro me seguindo... 

Zeca: — Como assim te seguindo? 

Toninho: — Sinto ele aqui do meu lado… tá respirando forte. 

Zeca: — Pergunta se ele tem alguma dica de navegação. Toninho: —  Amigo, você sabe atravessar avenidas? 

Em meio ao burburinho das pessoas, carros e ônibus os dois amigos ouvem apenas latidos. 

Toninho: — Nada útil. 

Zeca: — Talvez seja um guia voluntário. 

Toninho: — Ou só quer um biscoito para mastigar enganando a fome. 

Zeca: — Ignora esse bicho. Vamos continuar...

Toninho e Zeca avançam. Todavia, o fazem à esmo. No meio do caminho, surge um motoboy. A criatura freia ao mesmo tempo em que grita.

Motoboy, aos berros:  — Vocês dois são malucos?  

Zeca: — Um pouco, sim! 

Motoboy: — Atravessar essa via assim? Sem ajuda? Querem ver Deus mais cedo?

Toninho: — Se quiser nos ajudar, estamos aceitando. 

Motoboy: — Eu não faço seguro para isso! 

Zeca: — Então, meu amigo só torce por nós e deixa que Deus faça o resto!

O motoboy acelera, buzina e desaparece no trânsito.

Toninho: — Pronto, Zeca. Agora temos duas preocupações. 

Zeca: — Diz ai, Toninho: O cachorro continua no seu pé? 

Toninho: — Continua. Ei espere!  Acho que tem um policial vindo na nossa direção. 

Zeca: — Como sabe? Você é cego ou está mentindo? Deixa pra lá. O policial que está vindo... isso pode ser bom como pode ser ruim... 

Toninho: — Ele está falando no rádio. 

Policial: — "Central, temos dois cidadãos tentando chegar a algum lugar. Parecem perdidos." 

Toninho: — Talvez ele nos dê uma direção. 

Policial: — Senhores, boa tarde.  Precisam de ajuda? 

Zeca: — Depende. Essa ajuda vem com ou sem multa? 

Policial, rindo: — Sem. 

Toninho: — Então aceitamos.

O policial guia os dois rapazes para um outro local. Um prédio com dois bancos na porta de entrada. O cachorro os segue. Quando chegam…]

Zeca: — Fim da linha perigosa! 

Toninho: — Sim! 

Policial: — Vocês sabem que tem faixa de pedestres a dez metros daqui, né? 

Zeca: — Sim… mas seu guarda, onde fica a emoção nisso?

O policial suspira. O cachorro abana o rabo e senta.

Toninho: — E agora? 

Zeca:  — Agora vamos almoçar.

Toninho:  — E o cachorro? 

Zeca: — Ele almoça com a gente.

Nessa altura dos acontecimentos, temos um cachorro aparecido do nada, um motoboy irritado, um policial confuso e uma travessia repleta de risco iminentes. 

Depois de galgarem uma nova avenida com a ajuda do policial, Zeca, Toninho e o cachorro misterioso chegam a uma praça cheia de árvores.  Nela, algo estranho acontece.

Toninho: — Zeca… 

Zeca: — O quê? 

Toninho: — Já reparou que tem uma multidão nos olhando? 

Zeca: — Como assim? 

Toninho: — Eu tô ouvindo cochichos… e palmas. 

Zeca: — Isso significa que acabamos de virar um evento público. 

Toninho: — Ou um protesto, vai se saber agora, com a precisão devida... 

Zeca: — Ou, no pior dos mundos, um “flash mob” espontâneo. 

Toninho: — Ou só uma turma de curiosos achando que atravessar avenidas movimentadas, como fizemos ainda há pouco, apesar de sermos cegos, seja um esporte radical.

Misteriosamente um repórter de microfone na mão e uma câmera surgem do nada.

Repórter: —  Senhores, podem dar uma declaração sobre essa incrível demonstração de coragem? 

Toninho:  — Coragem? 

Repórter: — Sim, meus prezados! Vocês ali atrás enfrentaram o que chamamos de caos urbano e o fizeram sem medo, e agora o público aqui presente quer saber: é um movimento oficial? 

Zeca: — Perfeito. Um movimento oficial… 

Toninho: — Zeca, não faz isso. 

Zeca: — É claro que é oficial! 

Repórter:  — Qual o nome desse movimento? 

Zeca: —“Travessia Sem Medo – “A Revolução Urbana”! 

Toninho: — Meu Deus!

A multidão na praça, vibra. Pessoas pegam o celular para filmar.

Repórter: — E qual é o objetivo da “Travessia Sem Medo?”. Zeca: — Mostrar que São Paulo pertence aos pedestres destemidos! 

Toninho: — Isso vai dar processo... 

Zeca: — Ou um documentário fabuloso.

O policial que os ajudou apareceu de novo e suspirou fundo.

Policial: — Se isso virar moda, eu saio do meu emprego. Toninho: — Faz sentido.

 O cachorro continua seguindo os dois cegos.

Do nada, graças aos dois cegos, tivemos um movimento urbano revolucionário sem qualquer necessidade, tipo uma plateia espontânea e um repórter sedento por manchetes! Em meio a toda essa balburdia, uma “influencer” famosa decidiu aderir à tal da “Travessia Sem Medo” e aproveitando a deixa, fez um vídeo viral. De repente, todo mundo começou a atravessar as avenidas sem hesitação, sem olhar, tanto de um lado, como de outro, enquanto os motoristas entravam em colapso nervoso, tentando entender o que acontecia. Os dois cegos sem alguém explicar os verdadeiros motivos, acabaram presos e levados para uma delegacia nas imediações. Ao serem liberados, horas depois, ao fazerem o caminho contrário, de volta para casa, foram ambos barbaramente atropelados e mortos por uma ambulância a toda velocidade que os pegou em cheio, justamente em frente ao restaurante onde horas atrás, os dois amigos pretendiam almoçar. Quanto ao cachorro o guarda levou para sua casa e o deu de presente à filha de cinco anos.  
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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