sábado, 12 de julho de 2025

Asas da Poesia * 49 *


 Trova de
WELLINGTON FREITAS
Caicó/RN

Há um relógio em cada esquina
marcando o tempo atual;
mas não marca quem destina,
nosso destino final.
= = = = = =

Poema de
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

Agradecimento

Feldman é um vencedor 
um mestre da alegria, 
um Poeta Trovador, 
um fazedor de Poesia. 
Não há em todo universo 
melhor fazedor de verso 
pois é um dom que ele traz! 
Pra Feldmam, em nada eu ganho, 
ele é grande no tamanho 
e nas Poesias que Faz.
= = = = = = = = =  

Trova de
ARI SANTOS CAMPOS
Balneário Camboriú/SC

Meus bons anos se passaram
com a leitura aprendi...
Hoje as letras se apagaram
mas o saber não perdi.
= = = = = = = = =  

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Chave do tempo

Tarde de inverno,
Imóvel no arame
Ele continua
O prendedor de roupas
Silencia-se
Sem a companhia
Do lençol ou da camisa branca...
Em sua geometria
Ostenta as marcas
Do sol, da chuva
E das noites frias...
A ferrugem
Com seus tons cobriu seu metal,
E a boa parte de sua madeira
Foi tingida com a passagem
Do pôr do sol e do amanhecer
Prendendo com suas pontas
Lembranças de ontens -
Admirável sua resistência,
Quase, dobra-se à rotina
Das horas, dias e anos -
Mas, a essência permanece
Misteriosa
Chave do Tempo...
= = = = = = 

Poetrix de
BETO QUELHAS
São Paulo/SP

arteiro

o vento brinca escondendo
na cortina dos seus cabelos
os seus olhos em venenos
= = = = = =

Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Nunca a casa ficou só de tão vazia
(Rui Balsemâd da Silva in "Meu grito meu canto")

Nunca a casa ficou só de tão vazia
Como nesse dia trinta de Agosto
Quando os olhos te fechei, e o teu rosto
Ficou da mesma cor da cama fria.

A tua alma pura é que aquecia
Esta tua casa onde tinhas posto
Coisas poucas, pequenas, mas com gosto
Com esse amor que à vida te prendia.

Mas da vida, sem ódios, te esvaíste
E nesse dia negro tu partiste
Para onde pertencias; o Além.

Regressaste ao lugar de onde vieste
E já que aos outros tudo de ti deste
Daqui nada levaste, ó minha Mãe! 
= = = = = = = = = 

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

A lua, em passo indeciso,
muda o andante da sonata,
pondo pausas de improviso
no pentagrama de prata.
= = = = = =

Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Pecador

Este é o altivo pecador sereno,
Que os soluços afoga na garganta,
E, calmamente, o copo de veneno
Aos lábios frios sem tremer levanta.

Tonto, no escuro pantanal terreno
Rolou. E, ao cabo de torpeza tanta,
Nem assim, miserável e pequeno,
Com tão grandes remorsos se quebranta.

Fecha a vergonha e as lágrimas consigo...
E, o coração mordendo impenitente,
E, o coração rasgando castigado,

Aceita a enormidade do castigo,
Com a mesma face com que antigamente
Aceitava a delícia do pecado.
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Ninguém calcula essa dor 
no coração dos mortais… 
Quando a saudade é de amor, 
a dor é cem vezes mais !
= = = = = = 

Setilha e Trovas de
NEMÉSIO PRATA 
(Fortaleza/CE) 
JOSÉ FELDMAN 
(Floresta/PR)

Diálogo sem Pé nem Cabeça

Eu pensei por tanto tempo 
no tempo sem ter um tempo 
pra pensar no tanto tempo 
que pensei: passei do tempo... 
e pensar que o tempo tem 
tempo para quem não tem 
tempo de pensar no tempo!
Nemésio Prata

Amigo Nemésio 
Mas o tempo não para por aí... se tiver algum com pé quebrado me enforco num pé de alface...rsrsrs 

Passa o tempo, tanto tempo... 
passa o tempo por quem tem 
um tempo sem contratempo, 
sobre um tempo que não tem. 

Se para agora há mais tempo, 
qual o tempo você tem? 
Pois já se faz tanto tempo, 
que um tempo muitos não têm. 
José Feldman

Um tempo de pé quebrado 
não é tempo, é contratempo; 
gostei do refrão dobrado... 
igual não vi, faz é tempo! 

Quanto a morrer enforcado 
num pé de alface, essa é boa, 
ruim é ficar pendurado; 
assim você me magoa!
Nemésio Prata

Mas se eu ficar pendurado, 
a fome pode bater... 
com tanto alface do lado, 
não terei quando morrer... 

Daí eu terei mais tempo, 
para o tempo que se tem, 
então será um passatempo, 
que o tempo tem... e não tem.
José Feldman

Do Nemésio – A minha última trova estava com 8, corrigi a tempo.

Se não fosse a corrigenda 
feita, de imediato e a tempo, 
era "forca" na merenda, 
sem alface, ao meio-tempo!
Nemésio Prata
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Partir é quase morrer... 
É deixar na despedida 
um pouco do próprio ser 
e muito da própria vida…
= = = = = = 

Poema de
RENATO RUSSO
(Renato Manfredini Júnior)
Rio de Janeiro/RJ, 1960 – 1996

Tempo Perdido

Todos os dias quando acordo, 
Não tenho mais o tempo que passou 
Mas tenho muito tempo 
Temos todo o tempo do mundo. 

Todos os dias antes de dormir, 
Lembro e esqueço como foi o dia 
"Sempre em frente, 
Não temos tempo a perder". 

Nosso suor sagrado 
É bem mais belo que esse sangue amargo 
E tão sério 
E selvagem. 

Veja o sol dessa manhã tão cinza 
A tempestade que chega é da cor dos teus 
Olhos castanhos 
Então me abraça forte 
E diz mais uma vez 
Que já estamos distantes de tudo 
Temos nosso próprio tempo. 

Não tenho medo do escuro, 
Mas deixe as luzes acesas agora, 
O que foi escondido é o que se escondeu, 
E o que foi prometido, 
Ninguém prometeu. 

Nem foi tempo perdido; 
Somos tão jovens.
= = = = = = 

Trova de
GERALDO TROMBIN
Americana/SP

O tempo vem desfazendo
a família dia a dia;
hoje vivemos fazendo
sala pra tecnologia.
= = = = = = 

Hino de
FLORES DA CUNHA/ RS

Envolvido por um sonho
Sua Itália deixou,
Enfrentando a dor nos mares,
O imigrante aqui chegou;

E da serra indomável,
A videira se adonou,
Sendo mastro da bandeira
De uma história que ficou.

Jorra vinho, giram taças
Espumantes de prazer,
A brindar Flores da Cunha,
Terra do Galo e do bem-viver.

A semente é lançada
Pela mão do agricultor,
Outra mão mais delicada
Faz a arte do sabor.

No trabalho da madeira
Nascem jóias de artesão;
As agulhas trançam malhas
Como pautas de canção.

Uma torre imponente
Representa o vigor
De um povo religioso
Alicerçado em seu labor.

As cascatas, que parecem
Espumantes naturais,
Também lembram tantas lágrimas
Dos bravos ancestrais.
= = = = = = = = =  

Haicai de
GUILHERME DE ALMEIDA
Campinas/SP 1890 – 1969 São Paulo/SP

Vento de Maio

Risco branco e teso
que eu traço a giz, quando passo.
Meu cigarro aceso.
= = = = = =

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Sonho de beija-flor

Beija-flores são almas flutuando
em busca de um amor plasmado em flor.
Em volteios inquietos ao sabor,
um só, se afasta, se aproxima olhando...

No suave bailado ao seu amor,
em cuidados atentos vai levando
a ternura distribuída quando,
em doces toques vai colhendo olor.

O sonho que o fascina enche-o de graça
Nesse momento de ternura abraça
com plenitude, comunhão, calor.

E o beija-flor enamorado andeja
de selinho em selinho busca, almeja
o etéreo sonho de levar sua flor.
= = = = = = = = =  

Trova de
ARTHUR THOMAZ
Campinas/ SP

O passado é intrigante! 
Ontem mesmo era presente… 
Durou por algum instante 
e esvaiu-se de repente.
= = = = = =

Soneto de
IALMAR PIO SCHNEIDER
Porto Alegre/RS

Soneto a Cora Coralina – In Memoriam 

Poesia simples, plena de filosofia,
de gente humilde da cidade e do interior,
que só nos trouxe tanta vida e tanto amor,
colhidos no lutar no afã do dia-a-dia...

Viveu a transmitir sua sabedoria,
na qual não faltaram as pitadas de dor,
mas momentos também de jovem alegria,
em que desenvolveu seu talento de humor...

Foi Cora Coralina, a poetisa exemplar,
cuja existência de noventa e cinco anos,
quase um século de conhecimento audaz...

Seus versos vão viver por longo tempo, a dar
uma bênção sublime aos viventes humanos,
porque ela foi feliz, sempre pregando a paz…
= = = = = = = = =

Quadra Popular de
Ouro Fino/MG

Quando o loureiro der baga
e o loureiro der cortiça,
então te amarei, meu bem,
se não me der a preguiça.
= = = = = = = = =  

Dobradinha Poética (trova e soneto) de
LUCÍLIA A. T. DECARLI
Bandeirantes/PR

Fruta da Semente

Não meças nela o trabalho,
pois colheita é contingente,
mas quanto, de orvalho a orvalho,
tu já plantaste… em “semente”…

De sol a sol, firmando as mãos no arado,
suor pingando, ao solo se entregava…
– Hoje, um trabalho rude e ultrapassado
do lavrador, que a terra cultivava.

Com grande afinco e sempre atarefado,
fazia os sulcos, com as mãos semeava
e, esperançoso a capinar, cansado,
o agricultor, temente a Deus, rezava…

Pedia chuva para aquela empreita,
o pensamento firme na colheita,
depois que via germinando o grão…

E desejava, então, ardentemente,
ver pão na mesa, fruto da semente,
que enverdecera todo aquele chão!
= = = = = =

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Garota que, muitas vezes,
com jantares se tapeia,
vai, durante nove meses,
“chorar... de barriga cheia!”
= = = = = = = = =  

Poema de
ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG
São Fidélis/RJ

Busca

Traço na tábua a trilha da traça.
Tiro da tira um tanto de nada.
Fito na foto a fita que enfeita,
O filme perfeito de um conto de fada.

Fico atento focando no trono,
O rato roendo a roupa do rei.
Vejo ao relento a força da lei,
Perco a esperança, o sonho, o sono!

Sinto na alma um quê de saudade,
Choro sozinho o sonho perdido,
Vejo o passado morto e partido.
De mim sinto pena, dó, piedade!

Lanço o laço em busca do nada.
Sinto o horizonte mais longe que tudo.
Perco o caminho, o rumo, a estrada,
Caio na poça de um poço bem fundo.

Busco na fé a força do forte.
Conto o tempo em cada segundo.
Procuro na bússola a reta, o norte,
Acho você: meu mundo, meu tudo!
= = = = = = = = =  

Poetrix do
RICARDO INGENITO ALFAYA
Rio de Janeiro/RJ

porcelana chinesa

Luz na água do chá
O rosto de um monge
Dentro da xícara
= = = = = = = = =  

Poema de
ANA LUÍSA AMARAL
Lisboa/Portugal

Espaços

 As nuvens não se rasgaram
nem o sol: só a porta
do meu quarto

 A abrir-se noutras
portas dando para outros
quartos e um corredor ao fundo

 Não havia janelas nem
silêncios: sinfonias por dentro
a rasgar o silencio

 A porta do meu quarto
já nem porta: madeiramento
para o fogo
= = = = = = = = =  

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

– Aceitas dar-me os deleites 
da próxima contradança?... 
– Aceito, desde que aceites 
não me apertar contra a pança! 
= = = = = = = = =  

Poema de
MARIA LUÍZA WALENDOWSKY
Brusque/SC

Vidas II

Vidas, que se cruzam,
Que em seus trilhares
se confundem,
num misto de alegrias,
tristezas...
companheirismo e confidências.

Vidas, que ao longo do tempo,
criam raízes em nossos corações...
que ao se depararem com intempéries,
deixam cicatrizes... apenas!

Vida, que Deus nos presenteia...
e basta um segundo,
um instante,
para se entrelaçar
olhos,
 alma...
e coração!
= = = = = = = = = 

Júlia Lopes de Almeida (A caolha)

A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.


O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível: haviam lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante.

Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa destilação incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda gente.

Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa fábrica de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que ia crescendo, ia-se a pouco e pouco manifestando na fisionomia a repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora…

Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.

Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.

Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe pagasse com um beijo todas as amarguras da existência?

Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para o triste coração de mãe! Mas… os beijos foram escasseando também, com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos braços e enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita, aquela onde não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!

Ela compreendia tudo e calava-se.

O filho não sofria menos.

Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo – o filho da caolha.

Aquilo exasperava-o; respondia sempre:

– Eu tenho nome!

Os outros riam e chacoteavam-no; ele se queixava aos mestres, os mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los – mas a alcunha pegou. Já não era só na escola que o chamavam assim.

Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou outra janela dizerem: o filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!

Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, instruídas pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!

As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o lanche, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros, e, muitas vezes, afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:

– Taí, isso é para o filho da caolha!

O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num estribilho já combinado:

– Filho da caolha, filho da caolha!

O Antonico pediu à mãe que não o fosse buscar à escola; e muito vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico e faziam caretas de náuseas.

A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.

Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com os condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a chamá-lo – o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.

Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda: os seus colegas agruparam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais sobre o pobre Antonico!

Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta poupava-o: tinha medo que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate. A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!

Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos companheiros; quando o mestre dizia: sr. Antonico, ele percebia um sorriso mal oculto nos lábios dos oficiais; mas pouco a pouco essa suspeita, ou esse sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.

Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! Amava como um louco a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos negros como veludos e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia, em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento de esquecida ternura!

Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! Tornara a encontrar o seu querido filho! Pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia consigo:

– Sou muito feliz… o meu filho é um anjo!

Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjecturas.

Ao princípio pensava: – É o pudor.

Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser alcunhada em breve de – nora da caolha, ou coisa semelhante!

O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos tão práticos!

Depois o seu rancor se voltou para a mãe.

Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; iria considerar-se humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo de vez em quando vê-la à noite, furtivamente…

Salvava assim a responsabilidade do protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor…

Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa levava o seu projeto e a decisão de o expor à mãe.

A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo engordurado. O Antonico pensou: “Ao dizer a verdade eu havia de sujeitar minha mulher a viver em companhia de… uma tal criatura?” Estas últimas palavras foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:

– Limpe a cara, mãe…

Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:

– Afinal, nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!

– Foi uma doença, – respondeu sufocadamente a mãe – é melhor não lembrar isso!

– E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?

– Porque não vale a pena; nada se remedia…

– Bem! Agora escute: trago-lhe uma novidade. O patrão exige que eu vá dormir na vizinhança da loja… já aluguei um quarto; a senhora fica aqui e eu virei todos os dias saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma coisa… É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!…

Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olhar desconfiado e medroso.

A caolha se levantou e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com doloroso desdém:

– Embusteiro! O que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! Que eu também já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!

O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.

Ela o acompanhou, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se cambaleante à parede do corredor e desabafou em soluços.

O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.

Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho – murcho e sujo de pus; via a sua atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante.

Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a procurava.

Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo o que houvera.

A madrinha escutou-o comovida; depois disse:

– Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade inteira; ela não quis, aí está!

– Que verdade, madrinha?

Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho – queria mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz se arrependera das palavras que dissera e tinha passado a noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas… Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarraram-lhe toda a ação.

A madrinha do Antonico começou logo:

– O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito!

– Cala-te! – murmurou com voz apagada a caolha.

– Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha, rapaz! Quem cegou a tua mãe foste tu!

O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:

– Ah, não tiveste culpa! Eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a catástrofe, tu o enterraste pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!

O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:

– Pobre filho! Vês? Era por isto que eu não queria dizer nada!
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JÚLIA LOPES DE ALMEIDA nasceu em 1862, no Rio de Janeiro. Fixou residência em Campinas, onde aos 19 anos, publicou seu primeiro texto, no jornal A Gazeta de Campinas, por incentivo do pai, que descobrira que a filha escrevia às escondidas. Mais tarde, em 1884, começou a escrever para o periódico O País. Dois anos depois, foi viver em Portugal, onde publicou, em 1887, o seu primeiro livro, Contos infantis, em coautoria com sua irmã, Adelina Lopes Vieira (1850-1923). Nesse país, ela se casou com o escritor português Filinto de Almeida. Em 1888, de volta ao Brasil, publicou, em forma de folhetim, na Tribuna Liberal, seu primeiro romance — Memórias de Marta. Seus textos faziam reflexões, principalmente, acerca da condição da mulher na sociedade da época. A romancista é considerada, por alguns estudiosos, como uma feminista, pois defendia a educação para as mulheres, o divórcio e o direito ao voto, além de refletir sobre o lugar da mulher no campo artístico. Assim, no início do século XX, a escritora experimentou a fama devido a seus textos e suas palestras. Foi uma das fundadoras da Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher. Já em 1925, foi para a França, onde residiu até 1931. Foi a única mulher que participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, inaugurada em 1897. No entanto, a escritora não ocupou nenhuma cadeira na instituição, já que muitos de seus colegas foram contra a presença de mulheres nas sessões da ABL. Faleceu em 1934, no Rio de Janeiro. Foi esquecida pela crítica especializada, sendo redescoberta só a partir dos anos 1980. 

Fontes
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. Publicado originalmente em 1903. Disponível em Domínio Público.  
Imagem criada com Microsoft Bing  

Estante de Livros (“Histórias sem Data”, de Machado de Assis) – 1


Histórias sem data é um livro de contos de Machado de Assis lançado em 1884 pela editora Garnier,”constituído de dezoito contos em que se encontram várias de suas obras-primas no gênero”. O título não significa que os contos não se situam num período de tempo específico (só dois não o fazem), e sim que são atemporais, descrevem situações que poderiam ter acontecido em qualquer época. Como explica o próprio autor na “Advertência da 1a edição”, os contos tratam “de cousas que não são especialmente do dia, ou de um certo dia”. “Machado, nessas Histórias sem Data, mostra de novo que é um autor que escreve sobre seu tempo e lugar, de olho no que está além deles.”

Este espírito atemporal é muito bem captado pela resenha do livro publicada na coluna “Notas à Margem”, assinada por V., na primeira página do Diário de Notícias de 2 de setembro de 1884:

“estas histórias não têm data, nem dela precisam, em verdade.
Se as recuássemos cem anos, pareceriam modernas aos largos e poderosos espíritos que semearam no século XVIII todos os germes da psicologia, da filosofia e das ciências de hoje. Cem anos passados sobre a data de seu aparecimento, serão lidas ainda com o interesse que despertam as coisas novas.

Modernas hoje, como ontem, como amanhã.”

Miguel de Novais, cunhado de Machado de Assis, então vivendo em Lisboa, a quem este enviara um exemplar do livro, escreveu em 5 de janeiro de 1885: “Já li duas vezes estas suas histórias sem data. O meu amigo adotou um gênero, de que eu aliás gosto, que pode agradar a muitos como agrada, mas que não fará de Machado d'Assis um escritor popular.”

A imprensa da época publicou várias notas e resenhas sobre o livro, sempre elogiando o “estilo correto e leve”, “estilo cuidadosamente lapidado”, “correção de frase e limpidez de estilo”, etc. de Machado, com a única exceção da resenha no folhetim “Sobre a Perna” de A Folha Nova de 15/9/1884, que se queixa do excesso de galicismos na obra.

Sobre este livro comenta Monteiro Lobato em carta de 3 de junho de 1915 a Godofredo Rangel: "Ontem li Histórias sem data, de Machado, e ainda estou sob a impressão. Não pode haver língua mais pura, água mais bem filtrada, nem melhor cristalino a defluir em fio da fonte. E ninguém maneja melhor tudo quanto é cambiante. A gama inteira dos semitons da alma humana. É grande, é imenso, o Machado. É o pico solitário das nossas letras. Os demais nem lhe dão pela cintura."

CONTOS DO LIVRO

1) A Igreja do Diabo

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 17 de fevereiro de 1883 e republicado na edição semanal de 20 de fevereiro. Conto fantástico. O diabo, desafiando a Deus, resolve fundar sua própria igreja onde o que era pecado vira virtude, e o que era virtude vira pecado. A humanidade adere com entusiasmo. Mas se nas religiões tradicionais as pessoas pecavam às escondidas, agora elas praticam o bem furtivamente, sintoma da eterna contradição humana.

TRECHO: O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

2) O lapso

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 17 de abril de 1883 e republicado na edição semanal de 24 de abril. Conto satírico sobre pessoas que prosperam à custa do endividamento. A história transcorre no final do século XVIII, quando o Brasil ainda era colônia. Tomé Gonçalves, homem abastado, deve a meio mundo: ao cabeleireiro, ao sapateiro, ao alfaiate, etc. O médico holandês Jeremias Halma, que se radicou no Rio de Janeiro, explica que o devedor é vítima de uma doença, o “lapso de memória”. Ele esqueceu o que significa “pagar”. Mas o médico promete curar o “doente”.

TRECHO: […] um lapso da memória; o Tomé Gonçalves perdeu inteiramente a noção de pagar. Não é por descuido, nem de propósito que ele deixa de saldar as contas; é porque esta ideia de pagar, de entregar o preço de uma cousa, varreu-se lhe da cabeça.

3) Último capítulo

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 20 de junho de 1883. Perfil masculino. Conta a história, narrada em primeira pessoa, de um personagem trágico e caricatural ao mesmo tempo, o qual, perseguido a vida toda pelo azar (caiporismo no linguajar da época), decide se matar com um tiro de pistola. Sobre este mesmo tema Machado já escrevera em 1870 no Jornal das Famílias um conto não publicado em livro intitulado “O Rei dos Caiporas”, reunido postumamente nos Contos Avulsos coletados por Raimundo Magalhães Júnior.

TRECHO: Repito, sou um grande caipora, o mais caipora de todos os homens.

4) Cantiga de esponsais

Publicado originalmente na revista A Estação de 15 de maio de 1883 e na revista O Álbum de outubro de 1883. Conto melancólico, protagonizado em 1813 (quando Machado nem tinha nascido), sobre o tema do artista frustrado, incapaz de pôr no papel as ideias criativas que pululam em sua mente. É a história de Romão Pires que, três dias depois de casado, iniciou um “canto esponsalício” (ou “cantiga de esponsais” como está no título), mas nunca conseguiu concluí-lo. No final ouve a canção que gostaria de ter composto cantarolada à janela por uma moça recém-casada. Este tema da incapacidade de exprimir um pensamento que está no cérebro é expresso à perfeição no soneto “O Martírio do Artista” do poeta Augusto dos Anjos.

TRECHO: a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia.

5) Singular Ocorrência

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 30 de maio de 1883. História forte, dramática, de dupla traição: O marido trai sua esposa e é traído pela amante. Mas se reconciliam. A história é narrada em forma de um diálogo. O marido da história é o Andrade, alagoano, 26 anos, misto de advogado e político, casado, mas mulherengo. A amante é a Marocas, profissão não explicitamente nomeada (“Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará.”), com muitos namorados, alguns deles “capitalistas bem bons”. Segundo o prefácio de Antônio Houaiss e Francisco de Assis Barbosa das Histórias sem Data das Edições Críticas de Obras de Machado de Assis, “Machado retoma um tema romântico por excelência, o da prostituta regenerada [...]”, que já fora tema de José de Alencar em Lucíola.

TRECHO: Mas o acaso, que é um deus e um diabo ao mesmo tempo...

6) Galeria póstuma

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 2 de agosto de 1883. Joaquim Fidélis, apesar da “saúde de ferro”, morre inesperadamente, deixando um diário com descrições nem sempre lisonjeiras de seus amigos e do sobrinho Benjamim, que ele criou. Outro morto-que-volta-da-tumba para perturbar os vivos. Todos lamentaram o falecimento de Joaquim Félix, mas a surpresa estava nos comentários que ele deixou sobre os seus melhores amigos.

TRECHO: "Este meu sobrinho, dizia o manuscrito, tem vinte e quatro anos de idade, um projeto de reforma judiciária, muito cabelo, e ama-me. Eu não o amo menos. Discreto, leal e bom, — bom até à credulidade. Tão firme nas afeições como versátil nos pareceres. Superficial, amigo de novidades, amando no direito o vocabulário e as fórmulas."

7) Capítulo dos Chapéus

Publicado originalmente na revista A Estação de 15 e 31 de agosto e 15 de setembro de 1883. Perfil feminino. Conto espirituoso sobre uma desavença conjugal por causa de um chapéu.

TRECHO: Musa, canta o despeito de Mariana, esposa do bacharel Conrado Seabra, naquela manhã de abril de 1879. Qual a causa de tamanho alvoroço? Um simples chapéu, leve, não deselegante, um chapéu baixo.

8) Conto Alexandrino

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 13 de maio de 1883. Este conto satírico transcorre na Antiguidade. Dois filósofos cipriotas (que mais parecem uns “cientistas malucos”) viajam de navio para Alexandria a fim de testarem a hipótese de que “o princípio das paixões e das virtudes humanas estava distribuído pelas várias espécies de animais”, sendo assim possível transmiti-las para os homens, por exemplo, “o sangue de rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um ratoneiro”. A experiência com o sangue dos ratos, de uma crueldade extrema, de fato transforma os dois honestos em ladrões, levando-os à prisão. No final, eles próprios são vítimas de uma cruel experiência por parte de Herófilo, inventor da anatomia.

O conto pode ser visto como uma crítica aos excessos da ciência. “Machado de Assis aborda como tema central do conto a criação exagerada de teorias no século XIX, pois é possível perceber no conto um questionamento bem pontual sobre a cientificidade desse mesmo século: se realmente tudo valia a pena em nome da ciência.”

TRECHO: Os infelizes berravam, choravam, suplicavam; mas Herófilo dizia-lhes pacificamente que a obrigação do filósofo era servir à filosofia, e que para os fins da ciência, eles valiam ainda mais que os ratos, pois era melhor concluir do homem para o homem, e não do rato para o homem. E continuou a rasgá-los fibra por fibra, durante oito dias. No terceiro dia arrancaram-lhes os olhos, para desmentir praticamente uma teoria sobre a conformação interior do órgão. Não falo da extração do estômago de ambos, por se tratar de problemas relativamente secundários, e em todo caso estudados e resolvidos em cinco ou seis indivíduos escalpelados antes deles.

9) Primas de Sapucaia!

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 24 de outubro de 1883 e republicado na edição semanal de 30 de outubro. Conto com pinceladas românticas. As primas que dão título ao conto (chamadas Claudina e Rosa) não têm vida própria, figurando apenas como símbolo de um estorvo, de alguém que atrapalha uma conquista amorosa. Na verdade, o conto gira em torno do que chamamos hoje de “mulher fatal”, que atrai os homens para destruí-los.

Resumo do conto: O narrador (o conto é em primeira pessoa) depara, em frente à Igreja de São José, no Rio de Janeiro, com uma mulher por quem sentira forte atração dois meses atrás no Prado Fluminense, mas não pode ir atrás dela porque está acompanhando duas primas da cidade interiorana de Sapucaia que não sabem se locomover sozinhas no Rio de Janeiro. Depois de deixá-las em casa, ele volta a procurar aquela mulher, mas sem êxito. Cansado, entra num hotel para almoçar e lá se imagina fazendo dela sua amante. Imagina até seu nome: Adriana. Por algum tempo, procura sua musa pelos logradouros, mas sem êxito. No ano seguinte, surpreende-se quando, em viagem a Petrópolis com o amigo Oliveira, descobre que ele está tendo um caso com uma mulher também de nome Adriana e, por uma incomum coincidência, trata-se da mesma mulher por quem estava interessado. Mas o relacionamento do amigo com aquela “mulher fatal” acaba se revelando abusivo e destrutivo.

TRECHO: Adriana é casada; o marido conta cinquenta e dois anos, ela trinta imperfeitos. Não amou nunca, não amou mesmo o marido, com quem casou por obedecer à família. Eu ensinei-lhe ao mesmo tempo o amor e a traição; é o que ela me diz nesta casinha que aluguei fora da cidade, de propósito para nós.
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continua…

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Histórias_sem_Data
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Artur de Azevedo (O Gramático)

Havia na capital de uma das nossas províncias menos adiantadas certa panelinha de gramáticos, sofrivelmente pedantes. Não se agitava questão de sintaxe, para cuja solução não fossem tais senhores imediatamente consultados. Diziam as coisas mais simples e rudimentares num tom pedantesco e dogmático, que não deixava de produzir o seu efeito no espírito das massas boquiabertas.


Dessa aluvião de grandes homens destacava-se o Dr. Praxedes, que almoçava, merendava, jantava e ceava gramática portuguesa.

Esse ratão, bacharel formado em Olinda, nos bons tempos, era chefe de seção da Secretaria do Governo, e andava pelas ruas a fazer a análise lógica das tabuletas das lojas e dos cartazes pregados nas esquinas. "Casa do Barateiro, -sujeito: esta casa; verbo, é; atributo, a casa; do barateiro, complemento restritivo." O Dr. Praxedes despedia um criado, se o infeliz, como a soubrette das Femmes Savantes, cometia um erro de prosódia.

E quando submetia os transeuntes incautos a um exame de regência gramatical?

Por exemplo: encontrava na rua um menino, e este caía na asneira de perguntar muito naturalmente:

 Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?

 Venha cá, respondia ele agarrando o pequeno por um botão do casaco: "Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?" - que oração é esta?

-– Mas... é que estou com muita pressa...

 Diga!

 É uma oração interrogativa.

 Sujeito?

 Sr. Dr. Praxedes.

 Verbo?

– Ter.

 Atributo?

 Passado.

 Bom. Pode ir. Lembranças a seu pai.

E, com uma ideia súbita, parando:

 Ah! venha cá! venha cá! Lembranças a seu pai - que oração é esta?

 É uma oração... uma oração imperativa.

 Bravo! - Sujeito?

 Está oculto... é você... Você dê lembranças a seu pai.

 Muito bem. Verbo?

 Dar.

 Atributo?

 Dador.

– Lembranças é um complemento...?

 Objetivo.

 A seu pai...?

 Terminativo.

 Muito bem. Pode ir. Adeus.
* * *

Depois de aposentado com trinta anos de serviço, o Dr. Praxedes recolheu-se ao interior da província, escolhendo, para passar o resto dos seus gloriosos dias, a cidadezinha de ***, seu berço natal. Aí advogava por muito empenho, continuando a exercer a sua missão de oráculo em questões gramaticais.

Raramente saia à rua, pois todo o tempo era pouco para estar em casa, respondendo ás numerosas consultas que lhe dirigiam da capital e de outros pontos da província.
* * *

A cidadezinha de *** dava-se ao luxo de uma falha hebdomadária, o Progresso, propriedade do Clorindo Barreto, que acumulava as funções de diretor, redator, compositor, revisor, paginador, impressor, distribuidor e cobrador.

Ninguém se admire disso, porque o Barreto – justiça se lhe faça – dava mais uso à tesoura do que à pena. O vigário, que tinha sempre a sua pilhéria aos domingos, disse um dia que aquilo não era uma tesoura, mas um tesouro.

Entretanto, se no escritório do Progresso a goma-arábica tinha mais extração que a tinta de escrever, não se passava caso de vulto, dentro ou fora da localidade, que não viesse fielmente narrado na folha.

Por exemplo.

"O Sr. Major Hilarião Gouveia de Araújo acaba de receber a grata nova de que seu prezado filho, o jovem Tancredo, acaba de concluir os seus preparatórios na Corte, e vai matricular-se na Escola Politécnica, da referida Corte.

"Cumprimentamos cheios de júbilo o Sr. Major Hilarião, que é um dos nossos mais prestimosos assinantes, desde que fundou-se a nossa falha."
* * *

Em fins de maio de 1885, a notícia do falecimento de Victor Hugo chegou à cidadezinha de ***, levada por um sujeito que saíra da capital justamente na ocasião em que o telégrafo comunicara o infausto acontecimento.

O Barreto, logo que soube da notícia, coçou a cabeça e murmurou:

 Diabo! Não tenho jornais... Como hei de descalçar este par de botas? A notícia da morte de Victor Hugo deve ser floreada, bem escrita, e não me sinto com forças para desempenhar semelhante tarefa!

Todavia, molhou a pena, que se parecia um tanto com a espada de certos generais, e rabiscou: Víctor Hugo.

Ao cabo de duas horas de cogitação, o jornalista não escrevera nem mais uma linha...
* * *

Mas, oh! Providência! Nesse momento passou pela porta da tipografia o sábio Dr. Praxedes, a passos largos, medidos e solenes, e uma ideia iluminou o cérebro vazio de Clorindo Barreto.

– Doutor Praxedes! Doutor Praxedes! – exclamou ele. - Tenha vossa senhoria a bondade de entrar por um momento. Preciso falar-lhe.

O Dr. Praxedes empacou, voltou-se gravemente e, conquanto embirrasse com o Barreto, por causa dos seus constantes solecismos, entrou na tipografia.

– Que deseja?

O redator do Progresso referiu a notícia da morte do grande poeta, confessou o vergonhoso embaraço em que se achava, e apelou para as luzes do Dr. Praxedes.

Este, com um sorriso de lisonjeado, sorriso que logo desapareceu, curvando-se-lhe os lábios em sentido oposto, sentou-se a mesa com a gravidade de um juiz, tirou os óculos, limpou-os com muito vagar, bifurcou-os no nariz, pediu uma pena nova, experimentou-a na unha do polegar, dispôs sobre a mesa algumas tiras de papel, cujas arestas aparou cuidadosamente com a... com o tesouro, chupou a pena, molhou-a três vezes no tinteiro infecundo, sacudiu-a outras tantas, e, afinal escreveu:

"Falecimento. – Consta, por pessoa vinda de ~ ter falecido em Paris, capital da França, o Sr. Victor Hugo, poeta insigne e autor de várias obras de mérito, entre as quais um drama em verso, Mariquinhas Delorme (Marion Delorme) e uma interessante novela intitulada Nossa Senhora de Paris (Notre-Dame de Paris)

"O ilustre finado era conde e viuvo.

"O seu falecimento enluta a literatura da culta Europa.

"Nossos sinceros pêsames à sua estremecida família."
* * *

O Dr. Praxedes saiu da tipografia do Progresso, e continuou o seu caminho a passos largos, medidos e solenes.

Ia mais satisfeito e cheio de si do que o próprio Sr. Víctor Hugo quando escreveu a última palavra da sua interessante novela.

O Barreto ficou radiante, e, examinando a tira de papel escrita pelo gramático, exclamou, comovido pela admiração:

– Nem uma emenda!

Fontes:
AZEVEDO, Artur de. Contos Possiveis. Publicado originalmente em 1889. Disponível em Domínio Público.  
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A Novela - Fotonovela - Telenovela - Radionovela

 
 NOVELA 

Novela em português é uma narração em prosa de menor extensão do que o romance. Se bem que a distinção entre novela e romance não seja clara, pode-se dizer que a novela apresenta, por um lado, uma maior economia de recursos narrativos do que o romance e, por outro, um maior desenvolvimento de enredo e personagens do que o conto, com diversos personagens e linhas narrativas. Etimologicamente, folhetins televisivos de longa duração deveriam ser chamados em português de telerromances, mas o termo origem espanhola já está consagrado: telenovelas. No Brasil, os termos novela e telenovela são sinônimos, mas o primeiro é muito mais usado.

A novela literária

Os estudos de gênero da literatura em língua portuguesa classificam uma narrativa, grosso modo, em Romance, Novela ou Conto. É comum dividirmos romance, novela e conto pelo número de páginas. Em média, a novela tem entre 50 e 100 páginas, ou seja 20 mil a 40 mil palavras. Entretanto, o romance tem diferenças estruturais importantes em relação à novela e ao conto, estes sim gêneros sem diferenciação em determinados países. Os equivalentes de novela em inglês e francês são novella e nouvelle, respectivamente, enquanto romance se diz novel em inglês e roman em francês.

Para Carlos Reis (2003), enquanto no conto a ação manifesta-se como uma ação singular e concentrada, no romance há um paralelo de várias ações e, na novela, uma concatenação de ações individualizadas.

Eikhenbaum, formalista russo, define a diferença entre um e outro em artigo de 1925. Para ele "o romance é sincrético, provém da história, do relato de viagem, enquanto novela é fundamental, provém do conto (Poe) e da anedota (Mark Twain). A novela baseia-se num conflito e tudo mais tende para a conclusão."

Primórdios da novela

As origens da novela enquanto gênero literário remontam aos primórdios do Renascimento, designadamente a Giovanni Boccaccio (1313-1375) e a sua grande obra, o Decameron, ou Decamerão, que rompe com a tradição literária medieval, nomeadamente pelo seu carisma realista. Trata-se de uma compilação de cem novelas contadas por dez pessoas, refugiadas numa casa de campo para escaparem aos horrores da Peste Negra, a qual é objeto de uma vívida descrição no preâmbulo da obra. Ao longo de dez dias (de onde decameron, do grego deca, dez), as sete moças e os três jovens, para ocuparem as longas horas de ócio do seu auto-imposto isolamento, combinam que todos os dias cada um conta uma estória, geralmente subordinada a um tema designado por um deles. Refira-se ainda outra obra, escrita em francês, com o mesmo tipo de estruturação: o Heptameron, da autoria de Margarida de Navarra (1492-1549), rainha consorte de Henrique II de Navarra. Aqui, são dez viajantes que se abrigam de uma violenta tempestade numa abadia. Impossibilitados de comunicarem com o exterior, todos os dias cada um conta uma estória, real ou inventada. Em jeito de epílogo, cada uma é concluída com comentários dos participantes, em ameno diálogo. Era intenção da autora que, à semelhança do Decameron, a obra compreendesse cem estórias, porém a morte impediu-a de realizar o seu intento, não indo além da segunda estória do oitavo dia, num total de 72 relatos. Será também a morte prematura que poderá explicar uma certa pobreza de estilo, contrabalançada porém por uma grande perspicácia psicológica.

Instituição da novela enquanto estilo literário

Mas será apenas nos séculos XVIII e XIX que os escritores fundam a novela enquanto estilo literário, regido por normas e preceitos. Os alemães foram então os mais prolíficos criadores de novelas (em alemão: "Novelle"; plural: "Novellen"). Para estes, a novela é uma narrativa de dimensões indeterminadas – desde algumas páginas até às centenas – que se desenrola em torno de um único evento ou situação, conduzindo a um inesperado momento de transição (Wendepunkt) que tem como corolário um desfecho simultaneamente lógico e surpreendente.

Grandes novelas da literatura mundial

1759: Cândido, ou o otimismo, de Voltaire
1882: O Alienista, de Machado de Assis
1886: A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói
1887: Um estudo em vermelho, de Sir Arthur Conan Doyle
1891: Billy Budd, Herman Melville
1898: A volta do parafuso, de Henry James
1903: Tufão, de Joseph Conrad
1915: Metamorfose, de Kafka
1952: O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway
1959: Adeus, Columbus, de Philip Roth
1962: Aura, de Carlos Fuentes
1973: O Exército de um homem só, Moacyr Scliar

FOTONOVELA

Uma fotonovela é uma espécie de novela em formato de história em quadrinhos onde o tipo das imagens predominantes são fotos em vez de desenhos.

É uma forma de arte sequencial que conjuga texto e imagens com o objetivo de narrar histórias dos mais variados gêneros e estilos. São, em geral, publicadas no formato de revistas, livretos ou de pequenos trechos editados em jornais e revistas.

Assim como as telenovelas, algumas fotonovelas são divididas em capítulos que geralmente tem um desfecho próprio, para dar a sensação de suspense e curiosidade ao leitor que certamente ficará tentado a comprar a continuação.

História da Fotonovela

Considerada um subgênero da literatura, a fotonovela é uma narrativa mais ou menos longa que conjuga texto verbal e fotografia. A história é narrada numa sequência de quadradinhos (como a banda desenhada) e a cada quadradinho corresponde uma fotografia acompanhada por uma mensagem textual.

A fotonovela teve início na década de 40 em Itália e a sua origem foi motivada pela crescente popularização do cinema e a fama dos atores. A estabilização e o aperfeiçoamento técnico da fotografia, o acesso mais ou menos difícil de um público geral ao cinema e a inexistência ou limitada difusão da televisão são também fatores importantes para o surgimento e sucesso da fotonovela. O neo-realismo em voga na Itália determinou as descrições quotidianas e a temática urbana e realista presente nas fotonovelas. Os iniciadores da fotonovela em Itália foram Stefano Reda e Damiano Damiani que começaram por publicar em revistas adaptações de filmes de sucesso (o chamado cine-romance que adaptou obras como O Conde de Monte Cristo, O Monte dos Vendavais, Ana Karennina, e A Dama das Camélias). Essas primeiras fotonovelas eram protagonizadas por atores populares e as revistas tentavam realçar um determinado tipo de imagem do ator em questão.

Mais tarde a fotonovela torna-se independente do cinema e caracteriza-se pelas suas intrigas sentimentais (a heroína é quase sempre uma rapariga de origem modesta que sonha com um amor cheio de obstáculos e dificuldades, mas no final consegue o seu objetivo), as personagens não demonstram um grande desenvolvimento psicológico e são sempre estereotipadas (os bons são sempre bons e os maus arrependem-se no final ou sofrem as consequências), predomina o imaginário exótico, e, mais tarde o “suspense” e o sexo, os temas variam entre problemas afetivos, sociais, a procura de sucesso numa carreira, a justiça na sociedade, a ascensão social, a marginalidade, etc.

O público da fotonovela é um público majoritariamente feminino e culturalmente pouco exigente, com pouca formação e com um baixo poder econômico. As revistas de fotonovela têm como finalidade a transmissão dos princípios éticos, morais e sociais concordantes com o sistema de valores da ideologia dominante através da integração da mulher na sociedade urbana.

Em França a primeira fotonovela data de 1949 e a sua expansão para Luxemburgo e Bélgica acontece logo depois. Em Espanha, a fotonovela surge nos finais dos anos 60 e conta com um público bastante extenso. Mais tarde a fotonovela chega à América latina e África do norte (a maior parte das revistas são traduções dos originais italianos). A fotonovela é um fenômeno que não tem ocorrência no mundo anglo-saxônico. É um produto de literatura de massas tipicamente latino.

A articulação narrativa da fotonovela é semelhante à da banda desenhada: um fotograma que apresenta um plano da ação acompanhado do texto verbal que reproduz o discurso das personagens, funcionando também como legenda ou resumo. O encadeamento da ação é lógico e cronológico, utilizando-se muitas vezes o recurso à elipse. A ação é, muitas das vezes, arrastada ao longo de vários números de uma revista o que aproxima a fotonovela do romance-folhetim do séc. XIX e do folhetim radiofônico. O narrador desempenha um papel importante na fotonovela uma vez que, para além de elucidar o leitor sobre a ação, enuncia também juízos de valor, ilações de teor moral, justificações sobre o comportamento das personagens e controla a ação, retardando-a e alongando-a. A linguagem utilizada nas fotonovelas é, normalmente redundante e expositiva para evitar a possibilidade de dúvidas ou conflito.

Relativamente à fotografia nem sempre as fotonovelas possuem grande qualidade uma vez que a preocupação do consumo rápido e imediato das revistas e a preocupação do lucro fácil sobrepõem-se a uma maior noção artística. Os planos e os enquadramentos utilizados nas fotografias são quase sempre retirados do cinema.

TELENOVELA

Uma telenovela é um folhetim televisivo de longa duração, diferentemente da minissérie, que é de curta duração. A telenovela caracteriza-se por explorar enredos de fácil aceitação pelo público, como histórias de amor e conflitos familiares e sociais. Diferencia-se do teatro e do cinema basicamente por ser um produto cultural rapidamente descartável, além de funcionar como uma espécie de obra aberta, cujo desenvolvimento e desfecho podem ser alterados a qualquer momento, de acordo, principalmente, com os índices de audiência (Ibope), ou seja, segundo o interesse imediato do público na história.

História da telenovela no Brasil

Em 1950 surge a televisão e logo depois, em 1951, a primeira telenovela é transmitida na TV Tupi, Sua vida me pertence. Este novo tipo de narrativa era uma aquisição recente, e não se sabia ainda como explorá-lo, então o passado radiofônico foi usado como apoio. Durante praticamente toda a década de 50, a telenovela evoluiu no interior de uma TV pautada pela improvisação técnica, organizacional e empresarial. Este quadro que irá se transformar na década de 60. A implantação de uma indústria cultural modifica o padrão de relacionamento com a cultura, uma vez que definitivamente ela passa a ser concebida como um investimento comercial, e transforma a mentalidade na forma de gerir o patrimônio.

O advento da telenovela diária está estreitamente ligado a este quadro mais amplo de transformações. Com o surgimento do videoteipe, a primeira telenovela diária, 2-5499 ocupado, do argentino Alberto Migré, é levada ao ar em julho de 1963 pela Excelsior. Ela surge como uma narrativa apropriada para ampliar o público das emissoras e dá certo, embora no início o público tenha tido ainda algumas dificuldades para se acostumar à sua sequência diária. Ela entrou no cotidiano e já em 1964, tornou-se mania nacional, com o grande sucesso O Direito de Nascer. Entre 1963 e 1969 são levadas ao ar 195 novelas, número superior ao do período de 1951 a 1963, com uma diferença significativa, trata-se agora de estórias diárias, que preenchem a programação durante toda semana.

Programação obrigatória das emissoras, elemento fundamental na distribuição dos horários e dos custos, a telenovela é também responsável pela elevação dos índices de audiência das emissoras e alteração na distribuição da programação. O horário entre 19h e 20h30, antes preenchido prioritariamente com filmes e telejornalismo, passa a ser ocupado quase que inteiramente pelas novelas. Somente em 1965 foram produzidos 48 textos diários. Isto significa, por um lado, o fortalecimento do gênero, mas por outro, demonstra ainda a ausência de um modelo de produção que racionalize a relação entre duração e custo operacional, e permita determinar com alguma precisão qual o número de capítulos que uma estória deve ter para ser rentável.

Uma periodização histórica, de 1963-66, nos permite ter uma ideia do tipo de novelas que marcam os anos 60. O que caracteriza o período é a presença do melodrama. Mas se é verdade que o melodrama era homogêneo, é importante levarmos em consideração que a década de 60 não se caracteriza exclusivamente pela sua presença. Existiram algumas tentativas que buscaram reformular as temáticas e os referenciais de linguagem circunscritos até então ao modelo folhetinesco, como Beto Rockefeller que aparece como um marco no gênero. A contradição que existia entre teleteatro e telenovela nos anos 50, enquanto elemento de distinção entre dois gêneros dramático, se repõe no interior da própria novela.

A partir da virada dos anos 60/70, a telenovela se encontra imersa num processo cultural cada vez mais atravessado pelos influxos modernizadores da sociedade. A época será de busca de padrões de excelência no campo empresarial, de estabilização da programação, e também de qualificação da ficção televisiva. A TV Globo emerge, então, como emissora exemplar e as telenovela passam a enfatizar o uso de linguagem coloquial, cenários urbanos contemporâneos e referências compartilhadas pelos brasileiros. Hoje, a telenovela é responsável pela sustentação econômica e pela maior parte dos lucros das emissoras de televisão. A atração do público pelo universo ficcional e a rentabilidade que ela gera são os principais componentes para o sucesso desse gênero.

Influência da Telenovela na Sociedade Brasileira

A televisão tem uma capacidade peculiar de captar, expressar e atualizar representações através da construção de uma comunidade nacional imaginária. Ela fornece um repertório, anteriormente da alçada privilegiada de certas instituições tradicionais como a escola e a família por meio do qual as pessoas de classes sociais, gerações, sexo e religiões diferentes se posicionam, sendo emblemática do surgimento de um novo espaço público. Ironicamente esse espaço surge sob a égide da vida privada. Não por coincidência, o panorama de maior popularidade e lucratividade da televisão brasileira é a telenovela.

A telenovela exerce um papel de fundamental importância na representação da sociedade brasileira no meio televisivo. A representação é, de uma maneira geral, o ato de tornar algo presente, através de imagens abstratas ou concretas, de conteúdos mentais, de discursos e de outros meios, sem que a ausência material seja superada. No caso da telenovela, a representação diz respeito à capacidade artística de tornar presente, através de formas e figuras, um mundo real ou possível, da experiência direta e concreta ou da fantasia, do delírio ou da intimidade mais idiossincrática.

Abordando temáticas fortes e contundentes, a telenovela se firmou como um dos mais importantes e amplos espaços de problematização do Brasil, das intimidades privadas às políticas públicas. Seus textos sintetizam o público e o privado, o político e o doméstico, a notícia e a ficção, convenções formais do documentário e do melodrama. São vários os exemplos de telenovelas que trataram de forma incisiva temas do âmbito público através da representação da ficção: Verão Vermelho (1960) e Rei do Gado (1996) com a reforma agrária; Gabriela (1975), Saramandaia (1976), O Bem Amado (1973) e Roque Santeiro (1985) com o coronelismo direta ou indiretamente; Vale Tudo (1988), Que rei sou eu (1989), Deus nos Acuda (1992) e Porto dos Milagres (2001) com a corrupção política.

Esse gênero é capaz de propiciar a expansão de dramas privados em termos públicos e de dramas públicos em termos privados. Os modelos de homem e mulher, de relacionamentos, de organização familiar e social são amplamente divulgados e constantemente atualizados pela telenovela para todo o território nacional. Ela estabelece padrões com os quais os telespectadores não necessariamente concordam mas que servem como referência legítima para que eles se posicionem e dá visibilidade a certos assuntos, comportamentos, produtos e não a outros. O vestuário, a decoração, as gírias e as músicas que cada telenovela lança transmitem uma certa noção do que é ser contemporâneo. Personagens usam telefones sem fio, celulares, faxes, computadores, trens, helicópteros, aviões, meios de comunicação e de transporte que atualizam de modo recorrente os padrões vigentes na sociedade.

Nota linguística

A palavra telenovela é uma palavra que surgiu inicialmente na língua castelhana, baseada nas palavras televisión (televisão) e novela. Novela, ou melhor, novel tem em língua inglesa que predomina uma linguagem mundial o sentido de história longa e enredo complexo, ou seja romance, e é esse o sentido que se lhe dá em telenovela. Em português, as novelas passaram a ser transmitidas em outros países da América Latina, no entanto, novela significa história curta, ou seja, aproximadamente 7 meses, (O equivalente inglês é novelette.) Folhetins de longa duração deveriam ser chamados em português tele-romances. Essa palavra foi usada em Portugal com a telenovela Chuva na Areia de Luís de Stau Monteiro, mas o termo não criou uso. No Brasil, o gênero é chamado simplesmente "novela" (como abreviação da palavra telenovela).

RADIONOVELA

Radionovela é uma novela exibida em rádio. O lugar que atualmente cabe à televisão no entretenimento doméstico era ocupado pelo rádio, incluindo a exibição de novelas. Jerônimo, o Herói do Sertão, é talvez a radionovela nacional mais famosa do Brasil. A versão de O direito de nascer também fez sucesso.

Jerônimo foi adaptada pela TV Tupi como Telenovela, protagonizada pelo ator Francisco Di Franco ao lado de Eva Christian (Aninha),Canarinho (Moleque Saci), Toni Tornado (João Corisco) e Ítalo Rossi (Coronel Saturnino de Bragança, avô de Aninha). A versão televisiva teve três episódios: Laços de Sangue (que contava a origem do herói), Fronteiras do Mal e Sendas do Crime.

História da Radionovela no Brasil

A pequena Rádio São Paulo dá abrigo a Oduvaldo Vianna , que retornando de uma temporada como correspondente do jornal A Noite em Buenos Aires, trazia como grande novidade o enorme sucesso das novelas transmitidas pela Radio El Mundo. Entusiasmado Oduvaldo escreveu algumas novelas e, inutilmente , procurou patrocinadores . Convidado a dirigir a Rádio São Paulo aceitou o cargo e aproveitou para levar ao ar sua radionovela : A predestinada.

O sucesso foi tão rápido e consistente que em poucos meses a emissora situava-se como líder de audiência em São Paulo. Qual a receita deste inesperado sucesso? A radionovela resgatava, de alguma forma, o imaginário popular reproduzindo através dos contos e casos do cotidiano simples e sofrido da brasileira típica da época : a dona de casa. Em se tratando do universo feminino , numa época em que predominava o comportamento submisso , fruto de uma cultura historicamente machista e autoritária , a radionovela - bem como sua irmã mais próxima : a fotonovela - priorizava temáticas próximas ao papel possível em uma sociedade em transição do rural para o urbano , do arcaico para o moderno.

Voltada para um público onde a subserviência e alienação ditam o modo de agir, a radionovela exerceu papel importante ao reforçar os papéis femininos desejáveis, fortemente enraizados nos quatro mitos da cultura cristã - ocidental em relação à mulher: o amor, a paixão, o incesto e a pureza. Estes elementos, fortemente presentes na cultura latina foram assimilados, codificados e transformados de modo a constituir um produto rentável e facilmente palatável, seja para o ouvinte quanto aos interesses financeiros de mercado. Assim , formatado como um produto direcionado à mulher, os temas desenvolvidos priorizavam as questões ligadas à busca do casamento (objetivo final de toda mulher de família); mulheres traídas e/ou abandonadas (decorrência do casamento frustrado); mães solteiras (casamento não consolidado) rejeitadas pela família e pela sociedade; adultério (casamento em crise pela incapacidade da mulher em completar os anseios do marido); preservação da pureza feminina (condição necessária para concretizar o casamento) e pecados carnais e luxuriosos (o sexo extra-casamento, novamente causado pela incapacidade feminina e reservado exclusivamente ao homem).

Os títulos das novelas , bem como das fotonovelas, filmes mexicanos , argentinos e italianos exibidos em grande quantidade nos anos quarenta e cinquenta , deixam claro o tom melodramático e a necessidade de fazer chorar e sofrer : Almas desencontradas; Prisioneira do Passado; Sonhos Desfeitos; Mais forte que o amor; Perdida ; Mulher sem alma e - a maior de todas - O Direito de nascer do cubano Félix Cagnet, cujo enredo tinha início com a frase bombástica de Maria Helena (futura mãe de Albertinho Limonta) :

-"Doutor , não posso ter este filho que vai nascer."

Primeiramente na voz de Walter Foster na Rádio Tupi de São Paulo e de Paulo Gracindo na Nacional do Rio de Janeiro o personagem de Albertinho Limonta, pela primeira vez na história da comunicação brasileira, levou a população a um estado de comoção. O mesmo sucederia nas diversa vezes em que foi exibida pela televisão. Registra Ismael Fernandes em Telenovela Brasileira: Memória que o último capítulo em 13 de agosto de 1965 foi seguido de uma festa no Ginásio do Ibirapuera¸ totalmente lotado e numa espécie de neurose coletiva o povo gritava os nomes dos personagens e chorava por Mamãe Dolores, Maria Helena e Albertinho.

Nas emissoras do ABC o gênero consolidou-se na forma de rádio teatro como o Grande Teatro de Emoções apresentado na Rádio Independência de São Bernardo do Campo e que levava ao ar , no final da década de 50, peças produzidas por Guido Fidélis e Oswaldo Russi. A mesma dupla escreveu para a Rádio São Paulo em 1958 a novela Remorso . Pelas ondas da ZYR - 82, Rádio Emissora ABC, ia ao ar aos sábados o Grande Teatro Philips com textos de Alves Cabral e Edson Lazari.

Segundo Silvia Borelli e Maria Celeste Mira a partir dos anos 60 a radionovela perde espaço para a telenovela, até desaparecer em 1973. Segundo estas pesquisadoras: com a consolidação da telenovela, risos, lágrimas, medos e ansiedades passam a ser visualizados.(...) O melodrama ocupou novos territórios; construiu sua hegemonia original e passou gradativamente a conviver com aventuras, comédias, policiais, até a plena explosão da diversidade ficcional na televisão, a partir dos anos 70 .

FONTES:
Imagem obtida com Microsoft Bing