sábado, 29 de junho de 2024

Luís da Câmara Cascudo (Os Compadres Corcundas)

Era uma vez dois corcundas, compadres, um rico e outro pobre. O povo do lugar vivia mangando do corcunda pobre e não reparava no rico. O pobre andava triste e de mais a mais o tempo estava cruel e ele era caçador.

Numa feita, esperando uns veados, já tardinha, adormeceu no jirau e acordou noite alta. Ficou sem querer voltar para casa. Ia se acomodando para pegar no sono de novo quando ouviu uma cantiga ao longe, como se muita gente cantasse ao mesmo tempo.

“Deve ser alguma desmancha de farinha aqui por perto. Vou ajudar!”

Desceu da árvore e botou-se no caminho, andando, andando, no rumo da cantiga que não descontinuava. Andou, andou, até que chegando perto de um serrote, onde havia uma laje limpa, muito grande e branca, viu uma roda de gente esquisita, vestida de diamantes que espelhavam ao luar. Velhos, rapazes e meninos, todos cantavam e dançavam de mãos dadas, o mesmo verso, sem mudar.

Segunda, terça-feira,
Vai, vem!
Segunda, terça-feira,
vai, vem!

O caçador ficou tremendo de medo. As pernas nem deixavam ele andar. Escondeu-se numa moita de mofundos* e assistiu sem querer àquela cantoria que era sempre a mesma, horas e horas.

Com o tempo, foi-se animando, ficando mais calmo e, sendo metido a improvisador e batedor de viola, cantou, na toada que o povo esquisito estava rodando.

Segunda, terça-feira,
Vai, vem!
E quarta e quinta-feira,
Meu bem!

Boca para que disseste! Calou-se tudo imediatamente e aquele povo todo espalhou-se como rebaçã (bando de pombos) procurando, procurando. Acharam o corcunda e o levaram para o meio da laje como formiga carrega barata morta. Largaram ele e um velhão, brilhando como um sacrário, perguntou, com uma voz delicada:

– Foi você quem cantou o verso novo da cantiga?

O caçador cobrou coragem e respondeu:

– Fui eu, sim senhor!

O velhão disse:

– Quer vender o verso?

– Quero sim, senhor. Não vendo, mas dou o verso de presente porque gostei do baile animado.

O velho achou graça e todo aquele povo esquisito riu também.

– Pois bem – disse o velhão –, uma mão lava a outra. Em troca do verso eu te tiro essa corcunda e esse povo te dá um bisaco (alforje) novo!

Passou a mão nas costas do caçador e este tornou-se esbelto como um rapaz, sem corcunda nem nada. Trouxeram um bisaco novo e recomendaram que só abrisse quando o sol nascesse.

O caçador meteu-se na estrada, andando, andando e assim que o sol nasceu abriu o bisaco e o encontrou cheio de pedras preciosas e moedas de ouro. Só faltou morrer de contente.

No outro dia comprou uma casa, com todos os preparos, mobília, vestiu roupa bonita e foi para a missa, porque era domingo. Lá na igreja encontrou o compadre rico, também corcunda. Este quase cai de costas, assombrado com a mudança. Perguntou muito e mais espantado ficou reparando no traje do compadre, e ao saber que ele tinha casa e cavalo gordo e se considerava rico.

O pobre contou tudo; e, como a medida do ter nunca se enche, o rico resolveu arranjar ainda mais dinheiro e livrar-se da corcunda nas costas. 

Esperou uns dias pensando no que ia fazer e largou-se para o mato no dia azado. Tanto fez que ouviu a cantiga e botou-se na direção da toada. Achou o povo esquisito dançando de roda e cantando:

Segunda, terça-feira,
Vai, vem!
Quarta e quinta-feira,
Meu bem!

O rico não se conteve. Abriu o par de queixos e logo berrando:

Sexta, sábado e domingo!
Também!

Calou-se tudo rapidamente. O povo esquisito voou para cima do atrevido e o levaram para a laje onde estava o velhão. Esse gritou, furioso:

– Quem lhe mandou meter-se onde não é chamado, seu corcunda besta? Você não sabe que gente encantada não quer saber de sexta-feira, dia em que morreu o Filho do Alto; sábado, dia em que morreu o Filho do Pecado, e domingo, dia em que ressuscitou quem nunca morre? Não sabia? Pois fique sabendo! E para que não se esqueça da lição, leve a corcunda que deixaram aqui e suma-se da minha vista senão acabo com seu couro!

E quando falava os outros iam dando empurrão, tapona e beliscão no rico. O velho passou a mão no peito do corcunda e deixou ali a outra, aquela de que o compadre pobre se livrara.

Depois deram uma carreira no homem, deixando-o longe, e todo arranhado, machucado, roxo de bofetadas e pontapés.

E assim viveu o resto de sua vida, rico, mas com duas corcundas, uma adiante e outra atrás, para não ser ambicioso.
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* Mofundo = lugar de repouso do gado ou esconderijo de animais

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (No Tabuleiro da Baiana)


Compositor: Ary Barroso

No tabuleiro da baiana tem
Vatapá, oi
Caruru
Mungunzá, oi
Tem umbu, pra ioiô

Se eu pedir você me dá
O seu coração, seu amor de iaiá

No coração da baiana tem
Sedução, oh
Canjerê
Ilusão, oh
Candomblé pra você

Juro por Deus, pelo Senhor do Bonfim
Quero você, baianinha, inteirinha pra mim
Sim, mas depois, o que será de nós dois?
Seu amor é tão fugaz, enganador

Tudo já fiz fui até um canjerê
Pra ser feliz, meus trapinhos juntar com você
E depois vai ser mais uma ilusão
Que no amor quem governa é o coração
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A Magia e Sedução do Tabuleiro da Baiana

"No Tabuleiro da Baiana" é um dos maiores sucessos de Ary Barroso nos anos trinta. Sucesso, aliás, que o surpreendeu, conforme confessou à revista Carioca, em 23.10.37: "'No Tabuleiro da Baiana' foi a primeira música que vendi, tão descrente eu estava do seu mérito. Foi-me encomendada por Jardel Jercolis, que pretendia incluí-la em uma das revistas de sua companhia. A música foi mais 'fabricada' que inspirada; produzi-a mais ou menos à força e acabei compondo-a nos moldes de um batuque feito por mim há vários anos (o samba 'Batuque', gravado por Sílvio Caldas e Elisa Coelho em 1931)".

Mas, embora assim classificada, "No Tabuleiro da Baiana" é uma excelente composição, bem ao estilo Ary Barroso, já mostrando várias daquelas inovações que ele começava a incorporar ao samba. Sua introdução instrumental é tão adequada que faz parte integrante da música. A letra dialogada entre homem e mulher, muito bem construída, ideal para um quadro cômico-musical, têm interferências que funcionam como breques, alguns improvisados na gravação original - por exemplo, o breque "Mentirosa, mentirosa, mentirosa..." foi introduzido pelo cantor Luís Barbosa. A seção "Juro por Deus, pelo Senhor do Bonfim..." quase ad libitum, no meio da música, antecipa um procedimento que Ary usaria outras vezes e que sem dúvida, valoriza o retorno ao ritmo marcado, como em "Os quindins de Iaiá" ( 1941 ) e na segunda versão de "No Morro (Eh, eh!)", rebatizada de "Boneca de piche" (1938).

Comprador dos direitos de "No Tabuleiro da Baiana", para uso exclusivo no teatro, Jardel Jercolis o incluiu na revista Maravilhosa (outubro de 36), na qual era cantado e dançado pela dupla Déo Maia e Grande Otelo. Em 31.12, a composição voltou à cena, na revista É Batata!, da mesma companhia, desta vez apresentada por Oscarito e a menina Isa Rodrigues, então chamada de "Shirley Temple brasileira" e que faria carreira no teatro e na televisão. Antes porém da estreia teatral, "No Tabuleiro da Baiana" já estava gravado por Carmen Miranda e Luís Barbosa, sendo revivido em 1980 por Gal Costa e Caetano Veloso e em 1983 por Maria Bethânia e João Gilberto.

A música 'No Tabuleiro da Baiana' é uma celebração da cultura baiana e dos sabores e encantos que ela oferece. A letra começa descrevendo os quitutes típicos que se encontram no tabuleiro de uma baiana, como vatapá, caruru, mungunzá e umbu. Esses elementos não são apenas alimentos, mas símbolos da rica tradição culinária e cultural da Bahia, que é conhecida por sua diversidade e sabor marcante. A menção a esses pratos evoca uma sensação de nostalgia e pertencimento, conectando o ouvinte às raízes culturais da região.

A canção também explora temas de amor e sedução, utilizando a figura da baiana como uma metáfora para a paixão e o desejo. O coração da baiana é descrito como cheio de sedução, canjerê (um tipo de feitiço), ilusão e candomblé, sugerindo que o amor é uma mistura de magia e mistério. A referência ao Senhor do Bonfim, uma figura religiosa importante na Bahia, adiciona uma camada de espiritualidade e devoção ao desejo do narrador de conquistar a baiana. Essa combinação de elementos culturais e emocionais cria uma atmosfera rica e envolvente, onde o amor é visto como algo poderoso e, ao mesmo tempo, efêmero.

A música termina com uma reflexão sobre a natureza fugaz do amor. O narrador expressa sua preocupação de que, apesar de todos os esforços e até mesmo de recorrer a um canjerê para garantir a felicidade, o amor pode acabar sendo apenas uma ilusão. Essa dualidade entre a esperança e a desilusão é um tema recorrente na obra de João Gilberto, que frequentemente explora as complexidades das emoções humanas através de suas canções. 'No Tabuleiro da Baiana' é, portanto, uma ode à cultura baiana e uma meditação sobre os altos e baixos do amor, capturando a essência da vida com sua mistura de sabores, sentimentos e espiritualidade. 

Fontes:

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 50: Ausência

 

Mensagem na Garrafa = 122 =

A. A. DE ASSIS 
(Maringá/PR)

PROCURAM-SE OUVIDOS
 
Nós, os trovadores, aliás os poetas de modo geral, somos carentes de ouvidos que nos escutem. Os mortais comuns nem sempre estão dispostos a conversar sobre algo que não seja economia, política, esporte, programas de televisão, coisas assim. Papo poesia é do interesse de uns poucos privilegiados sonhadores, pouquíssimos. Por isso é preciso valorizar mais os nossos encontros, desde as reuniões mensais com os companheiros residentes na mesma cidade até os grandes momentos como os Jogos Florais. Nessas ocasiões a gente fala e ouve tudo o que estava acumulado no coração, à espera de chance para vir à tona. E como isso faz bem! Puxa vida... é muito triste, por exemplo, você fazer uma trova e não ter a quem dizê-la. Ficam aqueles versos presos na garganta, querendo sair, e não há por perto um ouvido generoso capaz de hospedar e de entender o seu recado. Algumas vezes a angústia é tanta que a gente pega o telefone, liga para um trovador ou para uma trovadora distante e solta o desabafo. Fazemos falta uns aos outros. Muita falta. Somos gente rara neste mundo seco; então, quando nos encontramos, é aquela festa enorme. Cada qual aproveita para libertar a alma, trocar ideias, atualizar notícias, matar saudade. O problema é que os nossos encontros duram tão pouco. Umas poucas horas de intensa alegria, e temos logo de descer do Parnaso, voltar ao que habitualmente as outras pessoas chamam de realidade... Que pena!

Vereda da Poesia = 47 =


Trova Humorística de Juiz de Fora/MG

ARLINDO TADEU HAGEN

Meu sogro cheio de medo,
tenta a peruca esconder
e o que ele guarda em segredo
"tô" careca de saber!
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Soneto de São Paulo/SP

HUMBERTO RODRIGUES NETO

Migalhas
 
Que mais desejas, afinal, que eu faça
pra ter por meu o que de ti não tenho,
se já cansado estou com tanto empenho
de haurir de ti a mais suprema graça?
 
Há quanto tempo mendigando eu venho
um pouco mais que esta ventura escassa!
Do amor apenas pingos pões-me à taça
que eu sorvo ao jugo de pesado lenho!
 
Somente a um outro, nas liriais toalhas
da mesa de Eros serves tua paixão,
mesa em que, pródiga, teus bens espalhas!
 
E ali enjeitado, a farejar o chão,
o meu amor vive a lamber migalhas
que tu lhe atiras qual se fora a um cão!
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Aldravia de Madri/Espanha

BEGOÑA MONTES ZOFIO

a
rede
continua
balançando
o
ar
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Soneto de Fortaleza/CE

VICÊNCIA JAGUARIBE

Soneto Azul

A Terra é azul! – Informou o astronauta.
Azul também é o pássaro da felicidade.
Azuis são os sonhos da primeira idade
E azuis as mensagens do divino arauto.

Azuis eram os olhos de minha mãe falecida
Que não acreditava no pássaro da felicidade.
Azul também é a cor da imaterialidade
Azul devia ser também a aventura da vida.

No azul me diluo para despistar o inimigo.
De azul me visto e fujo do perigo.
São azuis as notas do Danúbio Azul.

Azul, a fada a quem Pinóquio enterneceu.
Para o azul queremos ir após o último adeus.
Está tudo bem? Dizemos está tudo azul.
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Trova Premiada em Ribeirão Preto/SP, 1998 

DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Meus pobres sonhos, tão fracos,
a vida em escombro os fez,
mas, teimosa, eu junto os cacos…
e eis-me a sonhar outra vez! 
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Poema do Rio Grande do Sul

LYA LUFT
(Lya Fett Luft)
Santa Cruz do Sul/RS, 1938 - 2021, Porto Alegre/RS

Canção do Amor Sereno

Vem sem receio: eu te recebo
Como um dom dos deuses do deserto
Que decretaram minha trégua, e permitiram
Que o mel de teus olhos me invadisse.

Quero que o meu amor te faça livre,
Que meus dedos não te prendam
Mas contornem teu raro perfil
Como lábios tocam um anel sagrado.

Quero que o meu amor te seja enfeite
E conforto, porto de partida para a fundação
Do teu reino, em que a sombra
Seja abrigo e ilha.

Quero que o meu amor te seja leve
Como se dançasse numa praia uma menina.
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Quadra Popular

Você diz que amor não dói?
Dói dentro do coração.
Queira bem e viva ausente,
veja lá se dói ou não...
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Soneto de Piraquara/PR

HORÁCIO PORTELLA
(Horácio Ferreira Portella)
1934 -2012 

A Marcha do Tempo

Sem pressa as horas passam uma a uma,
escorrem para o túnel do passado,
– não se consegue segurar nenhuma -
pois cada qual já deu o seu recado.

Para a memória humana resta a bruma
que pode dar prazer ou desagrado.
Querendo nós ou não assim se esfuma
a vibração do tempo – este é seu fado.

Essa rotina segue sem descanso,
no transcorrer sutil da eternidade,
num caminhar tranquilamente manso.

Assim também os versos do soneto
vão no papel deixando a novidade
envelhecer no último terceto.
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Trova de Brasília/DF

NATAL MACHADO

Com o verde da natureza
e o sorriso da criança
Deus coloriu a tristeza
pondo no mundo a esperança.
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Poema de Paranaguá/PR

JÚLIA DA COSTA
(Júlia Maria da Costa)
Paranaguá/PR, 1844 – 1911, São Francisco do Sul/SC

Sonhos ao Luar

Quem és tu, bardo noturno
Que me fazes meditar?...
Serás por acaso o eco
De meu triste cogitar?...

Eu também amo a saudade
Que me inspira a solidão;
Amo a lua que me fala
Do passado ao coração.

Como tu choro uma noite
De luar que se ocultou;
Como tu choro a esperança
De uma aurora que passou.

Quem és tu, bardo noturno
Que me fazes meditar?...
Quem és tu que na minh’alma
Vens de manso dedilhar?...

Serás inda a sombra errante
De uma noite que morreu?...
Meigo raio de ventura
Que em meu seio se escondeu?...

Quem és tu? Dize quem és
Branca sombra lá do céu!
Dize o nome do teu canto
Que eu dirte-ei quem sou eu!
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Haicai de Ponta Grossa/PR

FERNANDO VASCONCELOS
(Fernando Roque Vasconcelos)
Diamantina/MG, 1937 -2010, Ponta Grossa/PR

Arrulhos no galho: 
Rolinhas embevecidas 
Em prosa de amor. 
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Sextilha de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

O céu deve ser assim:
um jardim onde as avós
e as mães e os anjos do bem,
em coro, numa só voz,
pedem mil bênçãos a Deus
todo o tempo para nós.
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Trova do Rio Grande do Norte

ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN 1951 - 2013 Natal/RN
.
Do fogo no matagal,
na fumaça que irradia,
vejo um câncer terminal
no pulmão da ecologia!...
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Glosa de Catanduva/SP

ÓGUI LOURENÇO MAURI 

MOTE: 
Tu vieste qual guarida
dando sentido ao meu passo.
E passaste em minha vida
qual nuvem, sem deixar traço. 
J. B. Xavier 
(São Paulo /SP)

GLOSA: 
Tu vieste qual guarida 
desde o Plano Superior; 
antes mesmo de nascida, 
incrustavas-me de amor. 

Filha amada, tu chegaste 
dando sentido ao meu passo. 
Eu nem sentia o desgaste 
diante de algum embaraço. 

Por força preconcebida, 
deixaste-me abruptamente. 
E passaste em minha vida 
qual um raio, de repente... 

Não me cabe lamentar, 
esse rude descompasso, 
pois tinhas que aqui passar 
qual nuvem, sem deixar traço.
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Aldravia do Rio de Janeiro/RJ

LUIZ GONDIM
(Luiz Gondim de Araújo Lins)

fui
letra
depois
palavra
agora
oração
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

AMAURY NICOLINI

Visões

Faço um esforço pra lembrar teu rosto,
mas apenas uma nuvem me aparece,
como se a encobrir todo o desgosto
daquilo que passou e não se esquece.

Ainda há pouco eu conseguia ver-te,
mas os contornos foram se apagando,
junto com a esperança de ainda ter-te,
mesmo que, como antes, eu chorando.

Não sei se agradeço o esquecimento
de como era teu rosto, ou se lamento
pois foi parte importante do passado.

Mas creio que ainda seja bem melhor
outro rosto procurar guardar de cor
do que querer restaurar esse, borrado.
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Trova Premiada em Nova Friburgo/RJ, 2001 

SÉRGIO FERREIRA DA SILVA 
(São Paulo/SP)

Toda paixão se assemelha
à palha, por um detalhe:
basta uma simples centelha,
para que a chama se espalhe…
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Poema de Ubiratã/PR

ODAIR ROBERTO DA SILVA

Amazônia

Oh! Pobre Amazônia!
Berço esplêndido de beleza infinda
Quanto tempo de vida terás ainda?
Teus sequazes predadores não pensam na dor
Que tua destruição provoca em nosso corações.
Humilde berço de um flamejante amor
Galhardeando em tuas razões.

Oh! Linda Amazônia!
Gáudios tempos foram aqueles áureos dias,
Quando a devastação tu ainda não sofrias
E em teu seio reinava a fulgente harmonia natural.
Doiravas ao sol, estrela de imponente ardor.
Deitavas as planícies, esbelta riqueza tropical,
Sonhavas teu futuro num meio de paz e amor.

Oh! Pobres diabos!
Aqueles que em ti cavam a própria sepultura!
Patrimônio da humanidade, berço de tanta agrura.
Falazes homens de monstrengas almas
A podar em ti a vida em seu porvir.
Quando na destruição de tua existência não te acalmas.
Pobres demônios vêm de tua morte rir.

Oh! Amazônia!
Passado, Presente e futura.
Vingarás um dia esta realidade dura.
Teus assassinos pagarão dobrado.
Quando na eternidade repousando estiveres,
Encurralados pagarão o alto preço de um pecado,
Chorando ante às memórias de teus caracteres.
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Triverso de Botucatu/SP

SANDRA REGINA BENATO

vento gelado -
engana o céu sem nuvens
sobre o telhado
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Setilha de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA

O Vírus e o Trovador!
 
Graças a Deus, que botou
um vírus que se irradia
no meio dos Trovadores,
dia e noite, noite e dia,
um vírus que bem comprova
a qualidade da trova
da nossa "trovadoria"!
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Trova de São Mateus do Sul/PR

GÉRSON CÉSAR SOUZA

Foi com pregos de desgosto
que a saudade, do seu jeito,
pôs retratos do teu rosto
nas paredes do meu peito...
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Hino de Caicó/RN

(Compositores: Felinto Lúcio Dantas e José Lucas de Barros)

Co’ o vaqueiro da prece lendária
Surge o manto do amor de Sant’Ana
Caicó, jovial centenária
Que os seus filhos queridos ufana.

Pela voz das cachoeiras
“Barra Nova” e “Seridó”
Cantam cantigas de inverno
Saudações a Caicó.

Caicó das missões do Rosário
De alvoradas em belas manhãs
Sê tranquila no teu centenário
Como às águas tranquilas do Itans.

Teu berço de duras rochas
Te fez forte, Caicó
E o trabalho te elegeu
A rainha do Seridó.

Teus bovinos que longas manadas
Se apresentam nos vales e serras
Simbolizam as lides passadas
Na conquista penosa das terras.

Quadro de luta e letras
Inteligência e civismo
Nunca um filho teu negou
Tributo ao patriotismo.

Atalaia do alto sertão
Não se vencem cruéis empecilhos
Caicó eis farol e instrução
Aclamando os talentos dos filhos.
 
Terra de luz e calor
Fibras longas do mocó
Óh rainha centenária
Coração do Seridó.
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Poetrix do Rio de Janeiro/RJ

LILIAN MAIAL

Música

meu corpo canção
em acordes se afina
tocado por teus olhos
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Soneto de Portugal

ANTÓNIO BOTTO
(António Tomás Botto)
Concavada/Abrantes/Portugal, 1897 – 1959, Rio de Janeiro/RJ

Soneto

Casar, mas para quê, se o casamento 
Não significa o verdadeiro amor? 
E se ele existe – seja como for, 
Deixa de ser amor nesse momento. 

Leva-se a vida, então, no sofrimento 
De um conflito movido no torpor 
Que amortece o respeito e esse pudor 
Necessários ao lar e ao sentimento. 

Com pequenas e raras exceções 
O homem e a mulher andam no mundo 
Ao sabor das mais loucas tentações... 

E, mutuamente, embora não pareça, 
Desejam ambos libertar-se a fundo 
Ou esperam que a morte os favoreça.
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Trova de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

É a rua da minha infância!
Revejo a casa... ouço o trem...
E cismo, em sonho e à distância,
que ela envelheceu... também!
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

A cigarra e a formiga

Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o verão,
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.

Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.

Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Até voltar o aceso estio.

«Amiga, — diz a cigarra —
Prometo, à fé de animal,
Pagar-vos antes de agosto
Os juros e o principal.»

A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta.
«No verão em que lidavas?»
À pedinte ela pergunta.

Responde a outra: «Eu cantava
Noite e dia, a toda a hora.
— Oh, bravo! — torna a formiga;
Cantavas? Pois dança agora!»
(tradução: Bocage)

Renato Frata (Microcontos Escolhidos) * 1

CONSTATAÇÃO 2

     Julho iniciou com o cinza mastigando o azul em mordidas pequenas, e construiu com elas uma colcha opaca que impede o sol de sorrir.
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ESPADACHIM

     Desenhou com a espada a rosa dos ventos: queria delimitar as direções que tomaria.
     Seguiu uma: a da cama dela.
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ESPUMAS

     Poetizando, o mar espumou a praia: em cada bolha, versos em redondilha.
     A menina brincando com os pés na água, não sabendo ler, os desfez.
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FALTA DE PASSADO

    Atônita, Eva repreendeu Caim pelo assassinato; ao que ele, ainda cobrando, lhe perguntou:
     – Exemplo, mamãe, que exemplo você deu?
     Não soube o que dizer.
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FRIVOLIDADE

     Na casa de Zezé não tem pão, não tem café; mas tem batom e tem rapé…
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INFÂNCIA

     À beira da calçada, o copo com água e sabão e a haste de arame envergado faziam sonhos, felicidade magia.
     Todos assoprados nas bolhas de sabão.
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INVEJA OU TRISTEZA?

     A borboleta mostrava às flores o lindo vestido. A mariposa amarfanhada e bêbada, disse:
     – Já fui assim, menos colorida, mas fui…
     Lágrima escorreu.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

PERCEPÇÃO

     No desfile, o plocploc dele é diferente dos plocplocs dos demais. Então da plateia, uma égua relincha:
     – sapatos novos, hein garanhão?
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

VAZIO

     O negror se abre para a lua. Com ela, o frescor recolhe pessoas, mas, na madrugada, uivados vadios quebram o silêncio.
     – É a voz da solidão.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

VIDA CURTA

      A noite efêmera se deitou fria.
     Pessoas se banharam, vestiram-se e se amaram. Quando deu conta, o sol lambia seus pés.

Fonte: Renato Benvindo Frata. 200 microcontos… e mais alguns. Paranavaí/PR: Ed. Paranavaí, 2016. Enviado pelo autor.

Recordando Velhas Canções (Lata D’água)


Compositores: Jota Júnior / Luiz Antonio

Lata d'água na cabeça
Lá vai Maria
Lá vai Maria

Sobe o morro e não se cansa
Pela mão
Leva a criança
Lá vai Maria

Maria
Lava a roupa
Lá no alto
Lutando pelo pão
De cada dia
Sonhando com a vida
Sonhando com a vida
Do asfalto
Que acaba
Onde o morro principia
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
A Luta Diária de Maria: Uma Análise de 'Lata D'Água'
A música 'Lata D'Água', é um retrato da vida árdua das mulheres que moram nas favelas e periferias do Brasil. A letra descreve a rotina de Maria, uma figura que representa muitas mulheres reais, que enfrentam o cotidiano de trabalho pesado e cuidados com a família. A imagem da lata d'água na cabeça simboliza o peso das responsabilidades e a força necessária para sustentar o lar.

Maria é descrita subindo o morro, um elemento geográfico comum nas cidades brasileiras onde se localizam muitas comunidades carentes. A menção de que ela não se cansa e ainda leva uma criança pela mão amplifica a ideia de resiliência e determinação. A luta pelo 'pão de cada dia' é uma expressão que remete à necessidade básica de alimentação, mas também pode ser entendida como a busca por condições mínimas de sobrevivência.

O sonho de Maria com a vida do asfalto, ou seja, a parte da cidade que não é o morro, reflete o desejo de uma vida melhor e mais justa, longe das dificuldades impostas pela pobreza e pela marginalização social. A música, portanto, além de ser um retrato da realidade de muitas mulheres, é também um comentário social sobre as desigualdades presentes na sociedade brasileira. (https://www.letras.mus.br/marlene/399382/

Aparecido Raimundo de Souza (A surpresa do provador)

DESDE QUE VIERA trabalhar naquela loja de departamentos, coubera a Andressa a tarefa de cuidar dos provadores, aquele local reservado onde os clientes antes da decisão final têm a liberdade de experimentarem os produtos que pretendem levar para casa. Uma calça, uma camisa, um cinto, um vestido, uma blusa, um terno. Enfim, é ali, exatamente no provador, que o público em geral toma para si a certeza de ficar ou não com o artigo escolhido nas dependências de qualquer magazine que comercializa com a venda em varejo de artigos os mais diversos, sejam eles masculinos, femininos ou crianças. Na imensidão que se perdia de vista, havia um bom número de provadores. Do lado direito ficava a ala masculina e, do esquerdo, o feminino. Andressa controlava as doze cabines sentada atrás de um balcão onde entregava as fichas com o número de peças que as pessoas levavam para dentro das cabines. 

Laborava, a princesa, de oito da manhã às dez da noite com apenas uma hora de almoço. Mal e parcamente via a luz do sol. O namorado que arranjara a abandonara dois meses depois, até porque passava a maior parte do tempo enfurnada no serviço. Nos dias de folga, aproveitava para cuidar das roupas que usava durante a semana e jaziam amontoadas numa velha cesta num canto do banheiro. Quando terminava os afazeres, altas horas, morta de cansada, caia na cama e dormia feito pedra. Praticamente deixara de viver para se dedicar, de corpo e alma, à labuta do cotidiano. Embora jovem, necessitava tocar a vida adiante. Longe dos pais, carecia de sobreviver. Com o aluguel comendo junto na mesa e outras despesas necessárias, não saia com as amigas da empresa nem para uma balada num barzinho que ficava perto do apartamento que dividia com mais duas colegas. 

Até o dia em que Ricardo, um varão boa pinta apareceu com quatro jeans para provar. Entre eles, foi amor à primeira vista. Ela se encantou por aquele deus grego, um tremendo “mau caminho saradão,” cheio de tatuagens pelo corpo afora. Ela entregou um número a ele e ficou olhando, perdidamente, até que o charmoso sumiu em um dos cubículos e puxou a cortina. De repente, para espanto dela, dois minutos depois, ele a chamou. A voz grossa de macho, e, ao mesmo tempo gostosa de ser ouvida, vibrou por todo seu corpo. O galã queria uma opinião. Saber dela, se alguma daquelas calças cairiam bem ou necessitava trocar por outros modelos. Andressa, meio acanhada, e informando que não poderia estar ali, se achegou e opinou. De repente, nessa desculpa de declarar a sua manifestação no simples troca-troca, eles se examinaram e se tocaram intimamente. 

No instante seguinte, Ricardo já aninhava a presa contra seu peito. Numa troca envolvente de afagos e blandícias, colou a sua boca nos lábios dela. Aconteceu. Foi muito rápido. Naquele dia, só rolou os tais selinhos, aliás, bem calientes. A partir daí os encontros tomaram uma afeição “mais desproporcional” e jamais imaginada. Escapou aos controles de ambos. Andressa simplesmente passou a transar dia sim, dia não, com o Ricardo, dentro do provador, sem se importar com quem pudesse chegar sem avisar e flagra-los na maior sacanagem da paróquia. O inusitado, a partir da primeira vez, esquentou e passou a pegar fogo todas as vezes que ele dava os ares da graça. E esses “ares” se escancaravam cada vez mais compridos e descontrolados. 

Os clangores apimentavam sempre enleados nas alegações dela –, ou seja –, da beldade opinar ao seu “amado,” se tal peça a ser comprada, cairia bem ou não. O assombramento rimbombante maior aconteceu e não só trovejou, estardalhaçou meses à frente. Ou mais precisamente, ao completar nove meses. Ricardo havia acabado de entrar na loja e correu ligeiro em direção às cabines. Seria mais uma seção rápida de sexo e depois, sem maiores problemas, regressaria aos afazeres no escritório onde trabalhava, próximo dali, como gerente de uma empresa de telemarketing. Ao chegar na entrada de acesso dos compartimentos, topou com um rostinho diferente no atendimento. Não a sua fogosa e intrépida Andressa. Perguntou por ela e a nova auxiliadora disse que a funcionária anterior, uma tal de Andressa, que ela não conhecia, acabara de ser levada as carreiras para um hospital.  

Desesperado, Ricardo saiu a indagar daqui e dali e nada. Foi ao gerente e este, esclareceu o ocorrido. Andressa havia sido internada. Sofrera um acidente grave de moto, quando saíra de casa e se dirigia à empresa. Ricardo entrou em um frenesi exaltado e inquieto. Nada sabia da garota, a não ser que vivia sozinha e morava com amigas. Seus familiares residiam no interior de São Paulo. Em face do fortuito colossal, ninguém aparecera para reclamar qualquer tipo de assistência familiar. A pobre estava no hospital aos reveses da sorte, beneficiada apenas pela companhia de uma das gerentes, que fora colocada em auxílio, e, logicamente, à disposição, caso houvesse algum imprevisto mais fulminante que carecesse de solução imediata. Depois de muita luta e empenho, um dia e meio depois, Ricardo finalmente descobriu o hospital para onde Andressa fora levada. 

Correu para lá o mais depressa que pode. Quando chegou na recepção, precisou mentir se dizendo “namorado” da vítima, ou não conseguiria o ingresso para subir ao andar onde à mesma lutava entre a vida e a morte. Ao se apresentar no andar indicado, entretanto, a gerente designada pela empresa lhe veio ao encontro e o pôs à par da nefasta notícia, confirmada, em seguida, por uma das enfermeiras de plantão. 

— A senhorita Andressa, infelizmente acabou de vir à óbito. Se o senhor tivesse aparecido dois minutos antes... 

Coisa de dez minutos depois, outra notícia bombástica tirou Ricardo do chão. Literalmente. Uma segunda plantonista apareceu na sala onde Ricardo acabara de saber do falecimento. A moça se abriu num sorriso triste. 

Como Ricardo, estava na condição de “namorado,” a jovem lhe confortou com palavras de carinho. Em seguida, após as condolências, ofereceu seu apoio irrestrito e os mais sinceros pêsames em nome de toda a equipe da pediatria. Finalmente, no tempo em que apertava as mãos do assustado apolíneo, uma terceira criatura se fez presente. Era a pediatra. 

— Meu rapaz, você é o Ricardo, não é mesmo? Minhas   sinceras condolências. Sua “namorada” nos deixou. Fizemos o possível, acredite. Contudo, sei que a hora não é propícia, mas tenho algo maravilhoso para revelar. – tomou fôlego e continuou.

— Está vendo aquele vidro enorme de um canto a outro da parede? Venha comigo. Conseguimos salvar a criança. Nasceu prematura. O senhor foi contemplado. Meus parabéns. Sua pessoa poderá se considerar, a partir de agora, o homem mais feliz do mundo. O prezado acaba de se tornar papai de uma linda menininha. 

Fonte: Texto enviado pelo autor